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  • Revista Conexes n. 5, Dez. 2000 - ISSN 1983-9030

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    ESPORTE E GNERO: REFLEXES A PARTIR DA TEORIA DO PROCESSO CIVILIZADOR

    Ldia dos Santos Zacarias

    Universidade Federal de Juiz de Fora Resumo Este texto apresenta algumas consideraes acerca do esporte e gnero a partir da teoria do processo civilizador de Norbert Elias e Eric Dunning. Traz algumas reflexes a respeito do esporte como indicador do processo civilizador e destaca as relaes de mudana no equilbrio de poder entre os sexos. Palavras-chave: Esporte; gnero; processo civilizador.

    As transformaes das relaes entre os sexos anunciada por diversos autores como uma das questes sociais mais importantes do sculo XX1. Isto tambm feito por Eric Dunning no ltimo captulo do livro A busca da excitao2, no qual se dedica a analisar o esporte como uma rea masculina reservada. Mas o que significa estar pensando as questes de gnero mediatizados pela teoria do processo civilizador de Norbert Elias e Eric Dunning? Como essa teoria pode iluminar a anlise das transformaes nas relaes entre os sexos e como isso tem acontecido no campo das atividades esportivas? Sem dvida so questes complexas e, nesse momento, gostaria de trazer iniciais reflexes acerca do esporte como indicador do processo civilizador3, com destaque para as relaes de mudana no equilbrio de poder entre os sexos.

    Norbert Elias, na Introduo do livro Em busca da excitao, aproxima o surgimento do esporte estrutura da sociedade daquela poca. Analisa que um tipo de atividades de lazer assumiu as caractersticas de esporte no sculo XVIII na Inglaterra, perodo em que tambm acontece a formao do estado parlamentar.

    Entre as principais necessidades do regime parlamentar, tal como esse emergiu no decurso do sculo XVIII, encontra-se a capacidade de uma faco ou partido no governo dominar os seus adversrios atravs de um cargo pblico sem usar a violncia, desde que as regras do jogo parlamentar assim o exigissem.4 Isso quer dizer que a sociedade parlamentar inglesa anunciava um tipo de convivncia e confronto no violento e, desse modo,

    tiveram de aprender novas competncias tcnicas e estratgias a serem utilizadas nessa relao de confronto, porm no violenta. De forma semelhante, mas no numa relao causa efeito, as atividades de lazer passaram tambm por um aumento da pacificao

    e da regularizao, assim enfatizado por Elias nessa passagem: Tal como emergiram no sculo XVIII, quer o desporto quer o parlamento eram caractersticos da mesma modificao na estrutura do poder em Inglaterra e nos hbitos sociais desse grupo de indivduos que emergiu de lutas anteriores como o grupo dirigente. 5

    Essas novas formas de convivncia e a diminuio nos aspectos da violncia no esporte so analisadas como um dos aspectos do processo civilizador. E no esporte h, alm da diminuio da violncia, maior regulamentao.

    As modificaes nas regras e o nvel de violncia aceitos nas competies esportivas so diversas vezes apresentadas e analisadas no decorrer do trabalho dos autores. Ao se referirem aos jogos da antiguidade clssica e em comparao com os jogos dos sculos XIX e XX, Elias e Dunning mostram que os primeiros, em provas como o pugilismo e a luta, admitiam um grau muito mais elevado de violncia. Do o exemplo do Pancrcio, um tipo de luta no solo realizada nos jogos olmpicos, em que o nvel de violncia permitido era muito diferente do que permitido hoje, na luta de estilo livre contempornea. interessante destacar o trecho no qual mostram um pouco da forma que era realizada a luta:

    Havia um juiz mas no um cronometrista, no existindo limites de tempo. A luta durava at que um dos oponentes desistisse. As regras eram tradicionais e no escritas, indiferenciadas e na sua aplicao eram, por certo flexveis. Parece que, tradicionalmente, morder e arrancar os olhos era proibido. Mas, antes que o juiz pudesse afastar um agressor dominado pela fria do combate, quando este era afastado do seu oponente o dano j estava consumado. 6 Vale ressaltar, de acordo com o pensamento dos autores, que a anlise em relao ao nvel de violncia observados em jogos de

    perodos passados no pode ser realizada como resultado de um empreendimento individual e nem com os padres de controle da violncia da nossa prpria forma de viver em sociedade.

    importante compreender a existncia de um ethos guerreiro na estrutura da sociedade antiga, em que era permitido, por exemplo,

    1 Helosa Buarque de HOLANDA, na introduo do livro Tendncias e impasses: o feminismo como crtica da cultura reconhece o pensamento feminista como um dos traos mais salientes da cultura ps-moderna. 2 ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitao. Trad. Maria Manuela Almeida e Silva. Lisboa: Difel, 1992. 3 O esporte e o processo de esportivizao das atividades de lazer, junto com a criao do Parlamento Ingls e as regras de etiqueta de convvio social so temas fundamentais na anlise de longa durao feita na teoria do processo civilizador. 4 A busca da..., p. 51. 5 Ibid., p. 68. 6 Ibid., p. 202.

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    a uma pessoa morta num combate olmpico, de pugilato ou de luta, ser coroada vencedora e o assassino no ser punido e nem estigmatizado. A comparao dos nveis de violncia nos combates de jogos da Grcia antiga ou nos jogos populares da idade mdia com os

    esportes atuais revela o processo de civilizao. Porm, os autores chamam ateno para o fato de no ser um processo linear e para o entendimento que, o nvel varivel de civilizao nas competies de jogos mantm-se incompreensvel se no for relacionado, pelo menos, com o nvel geral de violncia socialmente permitida, com o nvel da organizao do controlo da violncia e com a correspondente formao da conscincia em causa7.

    Os jogos populares ingleses foram se desenvolvendo no sentido de maior regulamentao e uniformidade e o primeiro desenvolvimento na linha da modernizao do esporte ocorreu no sc. XIX, nas escolas pblicas. Apesar de passarem a sujeitar-se as regras escritas no estavam totalmente isentos da violncia, como demonstra Dunning quando utiliza a descrio de um jogo de rguebi feita por um estudante, publicada em 1860. Na anlise destaca a noo de virilidade que ainda caracterizava o jogo nesse perodo.

    No caso da discusso de gnero e processo civilizador h que se considerar, do mesmo modo, as relaes com a violncia e o nvel de desenvolvimento em que a sociedade se encontra. Dunning julga que a oscilao do poder tende a favorecer os homens nas sociedades guerreiras, de elites militares e tambm onde h condio para produo e reproduo de bandos de lutadores. Para o autor,

    (...) que as hipteses de poder dos homens tero tendncia para se reduzirem e as das mulheres para aumentarem sempre que na sociedade global ou numa das suas reas as relaes se tornarem mais pacficas, nos casos em que as oportunidades de as mulheres se empenharem em aes unitrias vierem a aproximar-se ou a exceder as dos homens e na medida em que diminua a segregao dos sexos.8 Esta anlise pode ser feita tambm em analogia ao desenvolvimento do esporte. Os jogos populares expressavam uma forma

    extrema de regime patriarcal, no qual o equilbrio de poder inclinava nitidamente para os homens. Os esportes de confronto tem razes em jogos populares que eram praticados de acordo com regras transmitidas oralmente e neles participavam muitas pessoas. Os jogadores envolviam-se numa expresso relativamente livre de emoo e exerciam apenas uma forma vaga de autocontrolo.9 Esses jogos correspondiam a uma estrutura da sociedade onde a violncia era manifesta na vida cotidiana e o equilbrio de poder entre os sexos se inclinava nitidamente a favor dos homens. Expressavam uma forma extrema de poder patriarcal.

    Se o esporte surge como uma rea reservada aos homens, ainda no esporte moderno essa reserva toma corpo quando o assunto futebol, boxe, halterofilismo e outros esportes identificados como masculinos. No entanto, esta constatao, a meu ver, enriquece a possibilidade de perceber novas configuraes nas relaes entre os sexos, assim como o surgimento de novos significados culturais, quando da intensificao da participao das mulheres no campo esportivo.

    Uma anlise feita por Norbert Elias em Introduo a sociologia, pode contribuir nesse entendimento das relaes entre os sexos. O autor pretende demonstrar atravs de uma exposio de modelos de jogos como os indivduos, devido a sua interdependncia, formam um tipo de configurao. Explica que pretende demonstrar: como se fosse um tipo de experincia mental, por meio de uma srie de modelos, o modo como se entrelaam os fins e aes dos homens10.

    Esses modelos se baseiam em duas ou mais pessoas que medem suas foras e, por isso, suas aes se relacionam com o poder. No entanto, fundamental considerar que Norbert Elias chama a ateno para o fato de muitas pessoas considerarem o poder um termo ruim e para ele isso,

    deve-se ao fato de, durante todo o processo de desenvolvimento das sociedades humanas, o equilbrio de poder ter sido extremamente desigual; pessoas ou grupos de pessoas com possibilidades relativamente grandes de acesso ao poder, exerciam habitualmente essas possibilidades em pleno, muitas vezes de um modo brutal e sem escrpulos, tendo em vista os seus prprios fins.11

    Prossegue com a idia que o poder um elemento integral de todas as relaes humanas e oferece como exemplo uma relao entre

    pais e filhos em que a criana, desde que nasce, tem poder sobre os pais e no s os pais sobre a criana, a menos que eles no atribuam nenhum tipo de valor a elas. Da mesma forma, mesmo que distribudos muito desigualmente, nas relaes entre senhor e escravo, um e outro exercem poder entre si. Suas palavras so que: o poder no um amuleto que um indivduo possua e outro no, uma caracterstica estrutural das relaes humanas- de todas as relaes humanas12.

    Isso nos remete a pensar que em anlises de gnero a questo do poder muito complexa e desse modo, deve ser pensada de forma relacional e de vrios ngulos. Essa idia, de certa forma, acompanha as prprias reflexes conceituais sobre o gnero que, em substituio ao termo mulher, vem abarcar as relaes entre mulheres e homens. Nos estudos de gnero as mulheres podem, numa crtica dominao, deixarem de ser vtimas e de considerarem os homens como inimigos13.

    7 Ibid., p. 211. 8 Ibid., p. 392. 9 Ibid., p. 395. 10 ELIAS, Norbert. Introduo a sociologia. Lisboa: Edies 70, 1980. p. 78. 11 Ibid., p. 80. 12 Ibid., p. 81. 13 Nesse sentido, destacamos o trabalho de Natalie DAVIS. Em As mulheres por cima, relata os usos de inverso sexual, especialmente o jogo com a imagem da mulher desregrada na literatura, nas festas populares e na vida cotidiana no incio da Europa moderna. A mulher desregrada d livre vazo ao que inferior a si mesma e procura governar seus superiores. Para a autora: Pr em cena a mulher desordeira , em parte, uma oportunidade de liberao temporria da hierarquia tradicional e estvel, mas tambm, parte do conflito sobre os esforos para mudar a distribuio bsica de poder na sociedade. A mulher por cima poderia at facilitar a inovao na teoria histrica e no comportamento poltico. In: Culturas do povo. So Paulo: Paz e terra. p. 113.

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    Se as relaes entre os sexos for analisada atravs dos acontecimentos esportivos de grande relevncia mundial, como por exemplo os jogos olmpicos, percebe-se um espao ocupado prioritariamente pelos homens. Porm, a presena feminina vem tornando-se cada vez mais intensa e diversificada, revelando uma histria de ousadias, lutas e controvrsias.

    Pode-se considerar o ano de 1928 um marco em relao a participao feminina nos jogos olmpicos. Se nas oito olimpadas anteriores haviam participado 298 mulheres contra 14.572 homens, em 1928 eram 290 atletas do sexo feminino e pela primeira vez disputaram provas do atletismo, at ento restritas aos homens. nesse ano tambm que o Baro de Coubertian pediu demisso do cargo de presidente de honra do Comit Olmpico Internacional, acusando os seus seguidores de trair o ideal olmpico ao permitirem a presena das mulheres14. Outro acontecimento importante foi a prova de 800m do atletismo que causou grande controvrsia e foi retirada dos jogos subseqentes, s voltando a ser disputada por mulheres em 1960, nos jogos olmpicos de Roma15.

    Embora rompida a barreira de participao, as atletas femininas continuaram sofrendo algum tipo de resistncia. Em 1968 passaram a ser submetidas a exames clnicos para a comprovao do sexo, o que no aconteceu para os homens16.

    Na mais recente reunio olmpica, realizada em Sidney (2000), o atletismo cede espao para as mulheres em algumas das ltimas provas consideradas exclusivamente masculinas: o lanamento do martelo, o salto com varas e o decatlo. Nessa olimpada as mulheres estiveram presentes em 25 dos 28 esportes includos no programa e, pela primeira vez, participaram no mesmo nmero de esportes por equipes que os homens17.

    Em relao ao futebol feminino, tambm recentemente foi disputado nos jogos olmpicos, em 1996. Nessa modalidade, o primeiro campeonato mundial aconteceu em 1991 e os EUA, grande destaque, tm seleo permanente desde 198518. interessante destacar que no Brasil, j houve proibio s mulheres a prtica do futebol e de outros esportes, por determinao do Conselho Nacional dos Desportos. A deliberao no. 7/65 regia que s mulheres: No permitida a prtica de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salo, futebol de praia (...)19.

    Algumas mudanas aqui registradas e muitas outras que aconteceram ao longo do desenvolvimento dos jogos esportivos, podem chegar os nossos olhos como insignificantes ou pequenas demais diante do que h para ser conquistado pelas mulheres. No entanto, a partir da teoria do processo civilizador, podem contribuir para a reflexo acerca do equilbrio de poder entre os sexos e das mudanas civilizadoras em relao a participao feminina no mundo esportivo.

    Gostaria de valer-me das palavras de Ludmila Mouro, num estudo sobre a significao das representaes associadas a mulher brasileira nas atividades fsico-esportivas de 1870 a 1950. Embora o tema da pesquisa tenha tratado da participao de mulheres brasileiras nas atividades esportivas, parece ser semelhante a trajetria feminina no envolvimento com os grandes eventos esportivos do sculo XX:

    Os resultados indicam algumas mudanas expressivas no processo de emancipao da mulher no esporte. As evidncias apontam para liberao crescente da prtica esportiva feminina: maior mobilidade da mulher no campo esportivo, diminuio das restries prtica de modalidades esportivas consideradas masculinas, diminuio do controle da famlia e do contexto micro-social sobre a escolha esportiva.20 Apesar do esporte moderno emergir como uma mudana civilizadora, da qual houve, mesmo que de forma tnue, um equilbrio de

    poder entre os sexos, importante considerar as expresses simblicas envolvidas nessas relaes. O que Dunning coloca que: uma das conseqncias foi a contribuio que deu para o desenvolvimento, em certas esferas, de expresses simblicas do machismo.21

    Para finalizar, gostaria de registrar a necessidade de aprofundar as possveis interrelaes entre os estudos de gnero e o processo civilizador, atravs das quais, podem surgir evidncias inovadoras da participao de mulheres e homens na vida esportiva. Abstract This paper presents a discussion on sport and gender starting from Norbert Elias and Eric Dunnings civilizing process theory. The article brings reflections on the sport as an indicate of the civilizing process and emphasis the change on power balance among the sexes. Key words: Sport; gender; process civilizing. Referncias Bibliogrficas CARRILLO, Luis Felipe C. Mujer y olimpismo. Revista Digital, Buenos Aires, ano 5, n. 24. 2000 DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo. So Paulo: Paz e terra, ?. ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitao. Lisboa: Difel, 1992.

    14 Jornal do Brasil. Encarte da Revista de Domingo, Histria das Olimpadas. 15 Ibid. 16 Ibid. 17 CARRILLO, Luis Felipe C. Mujer y olimpismo. Revista Digital, Buenos Aires, ano 5, n. 24. 2000. 18 PLACAR. Histrias do futebol. So Paulo: Abril, 1998. 19 CASTELLANI FILHO, Lino. Educao fsica no Brasil: a histria que no se conta. 4. ed. Campinas: Papirus, 1994. p. 63. 20 MOURO, Ludmila. Representao social da mulher brasileira nas atividades fsico-desportivas: de 1870 a 1950. In: EDUCAO FSICA, ESPORTE, LAZER E DANA, 7, 2000, Gramado. Coletnea. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2000. p. 384. 21 A busca da, op. cit., p. 399.

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    ELIAS,Norbert. Introduo a sociologia. Lisboa: Edies 70, 1980. HOLANDA, Helosa Buarque. Tendncias e impasses: o feminismo como crtica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. Jornal do Brasil. Encarte da Revista de Domingo, Histria das Olimpadas. MOURO, Ludmila. Representao social da mulher brasileira nas atividades fsico-desportivas: de 1870 a 1950. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTRIA DA EDUCAO FSICA, ESPORTE, LAZER E DANA, 7, 2000, Gramado. Coletnea. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2000. PLACAR. Histrias do futebol. So Paulo: Abril, 1998.