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Esporte na escola e esporte de rendimento Valter Bracht* Como lidar com um fenômeno tão poderoso como o esporte sem sucumbir a ele? (Ricardo Lucena, 1999) I NTRODUÇÃO O tema esporte de ren- dimento na escola foi avalia- do pela editoria da revista Movimento como controver- so e como tal eleito para ser discutido na seção da revista destinada exatamente ao de- bate de temas de caráter polê- mico. Dentro desta perspecti- va fui convidado para expres- sar minha opinião e/ou posi- ção a respeito. Inicialmente fiquei me perguntando: o tema é real- mente polêmico? ou seja, mobiliza a comunidade da área num debate onde posi- ções distintas disputam a hegemonia? Efetivamente o espor- te de rendimento 1 já esteve sim no centro das dicussões pedagógicas na Educação Fí- sica (EF). Algumas razões para tanto foram ou são: a) o esporte (de rendimento) tor- nou-se a expressão hege- mônica da cultura de movi- mento no mundo moderno; b) uma das bases da legitimação social do sistema esportivo era sua alegada contribuição para a educação e a saúde; c) o es- porte é/era o conteúdo domi- nante no ensino da EF; d) o sistema esportivo via na esco- la uma instância contribuidora importante para o seu desen- volvimento, uma de suas "ba- ses"; e) com a sociologia crí- tica do esporte (e da educa- ção) surgem dúvidas quanto ao valor educativo do espor- te. Embora o tema nunca tenha saído efetivamente de pauta, ele, enquanto objeto de polêmica, parece viver um "renascimento". O que esta- ria fazendo com que este tema adquirisse novamente um ca- ráter polêmico, ou seja, fosse capaz de mobilizar a comuni- dade para um debate? É a constatação de que o tema não se esgotou? Que teriam permanecido questões fundamentais a serem discu- tidas? Em suma, seriam ra- zões "internas" ao debate? Sim e não! Assim como na década de 80 o esporte vai tor- nar-se objeto de severa críti- ca a partir de desdobramentos no plano social mais geral, também agora parece que o debate é reativado por alguns desdobramentos sócio-políti- cos. Quais seriam as circuns- tâncias sociais que estariam mobilizando a comunidade para este debate neste momen- to? A princípio parece ha- ver aqui um paradoxo; o de- bate aparenta estar na contra- mão. Senão vejamos: a EF (escolar) passa por um mo- mento em que sua existência encontra-se ameaçada e isto na medida em que foi aban- donada pelo projeto neo-libe- ral de educação e pelo próprio sistema esportivo que dela pode prescindir para o seu de- senvolvimento, pois as es- colinhas esportivas substitu- em com "vantagens" a EF. Assim, parece-nos que o reascendimento da polêmica é suscitada muito mais pelas ações ligadas à política para o setor dos últimos dois go- vernos federais através do INDESP, que entendeu que Movimento - Ano VI - Nº 12 - 2000/1 XIV

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Esporte na escola e esportede rendimento

Valter Bracht*

Como lidar com um fenômenotão poderoso como o esporte

sem sucumbir a ele?(Ricardo Lucena, 1999)

INTRODUÇÃO

O tema esporte de ren-dimento na escola foi avalia-do pela editoria da revistaMovimento como controver-so e como tal eleito para serdiscutido na seção da revistadestinada exatamente ao de-bate de temas de caráter polê-mico. Dentro desta perspecti-va fui convidado para expres-sar minha opinião e/ou posi-ção a respeito.

Inicialmente fiquei meperguntando: o tema é real-mente polêmico? ou seja,mobiliza a comunidade daárea num debate onde posi-ções distintas disputam ahegemonia?

Efetivamente o espor-te de rendimento1 já estevesim no centro das dicussõespedagógicas na Educação Fí-sica (EF). Algumas razõespara tanto foram ou são: a) oesporte (de rendimento) tor-nou-se a expressão hege-mônica da cultura de movi-mento no mundo moderno; b)uma das bases da legitimação

social do sistema esportivo erasua alegada contribuição paraa educação e a saúde; c) o es-porte é/era o conteúdo domi-nante no ensino da EF; d) osistema esportivo via na esco-la uma instância contribuidoraimportante para o seu desen-volvimento, uma de suas "ba-ses"; e) com a sociologia crí-tica do esporte (e da educa-ção) surgem dúvidas quantoao valor educativo do espor-te.

Embora o tema nuncatenha saído efetivamente depauta, ele, enquanto objeto depolêmica, parece viver um"renascimento". O que esta-ria fazendo com que este temaadquirisse novamente um ca-ráter polêmico, ou seja, fossecapaz de mobilizar a comuni-dade para um debate?

É a constatação de queo tema não se esgotou? Queteriam permanecido questõesfundamentais a serem discu-tidas? Em suma, seriam ra-zões "internas" ao debate?Sim e não! Assim como nadécada de 80 o esporte vai tor-

nar-se objeto de severa críti-ca a partir de desdobramentosno plano social mais geral,também agora parece que odebate é reativado por algunsdesdobramentos sócio-políti-cos. Quais seriam as circuns-tâncias sociais que estariammobilizando a comunidadepara este debate neste momen-to?

A princípio parece ha-ver aqui um paradoxo; o de-bate aparenta estar na contra-mão. Senão vejamos: a EF(escolar) passa por um mo-mento em que sua existênciaencontra-se ameaçada e istona medida em que foi aban-donada pelo projeto neo-libe-ral de educação e pelo própriosistema esportivo que delapode prescindir para o seu de-senvolvimento, pois as es-colinhas esportivas substitu-em com "vantagens" a EF.Assim, parece-nos que oreascendimento da polêmica ésuscitada muito mais pelasações ligadas à política parao setor dos últimos dois go-vernos federais através doINDESP, que entendeu que

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uma das formas de dar urnacontribuição para o engrande-cimento esportivo do país(leia-se: conquistas esporti-vas, medalhas olímpicas,etc.), seria investir na investi-gação no âmbito das Ciênciasdo Esporte e com isso vem fi-nanciando os Centros de Ex-celência, que entre outras coi-sas, desenvolvem projetos noâmbito da detecção de talen-tos esportivos. Para que estetipo de investigação seja legi-timada em centros de investi-gação ligados a Escolas de

Educação Física, é preciso"recuperar a dignidade peda-gógica"2 do esporte de rendi-mento, caso contrário, o quejustificaria o esforço financei-ro e de pessoal, envolvendorecursos públicos, para o seudesenvolvimento? Embora oesporte de alto rendimento(que é esporte espetáculo) te-nha aprofundado sua mer-cadorização — sendo hoje,mais que outrora, regido pe-las leis de mercado — o Esta-do brasileiro, que orienta-seem princípios conhecidoscomo neo-liberais, ainda sesente responsável por apoiarcom formação de mão-de-obra especializada, com co-nhecimento científico, semfalar nos subsídios diretos, odesenvolvimento deste siste-ma. Assim, busca legitimida-de para suas ações no campo.Embora tenha amplo apoiosocial nesta iniciativa, pelaampla unanimidade da qualdesfruta o esporte enquantobem cultural, para o que aimprensa colabora e muito, noâmbito acadêmico parece ha-ver algum tipo de resistência... geradora de polêmica.

RETOMANDO O DEBATE

Mas, nosso objeto nãoé propriamente o esporte derendimento e sim, a relaçãoentre o esporte de rendimentoe a EF, entendida esta enquan-to uma prática pedagógicapresente na instituição educa-cional.

Não vou recuperar aquitoda a crítica3 feita ao esportede rendimento enquanto ele-mento da EF, revisitando osargumentos prós e contras.Vou limitar-me a elencar e dis-cutir os pontos que considerotenham sido objeto de equívo-cos e mal-entendidos no inte-rior do debate. Portanto, sereiseletivo, pressupondo um cer-to envolvimento com o temapor parte dos leitores. Estouusando como estratégia tam-bém, a anexação de pequenostextos ilustrativos (para-tex-tos) que podem ser lidos tam-bém isoladamente.

Parece-me que numaperspectiva bem genérica, oesporte de rendimento en-quanto elemento da EF foicolocado sob suspeita a partirdas teorias da reprodução, de-senvolvidas no âmbito da so-ciologia da educação e queenfatizavam o papel conserva-dor do sistema educacionalnas sociedades capitalistas. AEF ao fazer do esporte de ren-dimento seu objeto de ensinoe mesmo abrindo o espaço es-colar para o desenvolvimentodesta forma de realizar o es-porte, acabava por fomentarum tipo de educação que co-laborava para que os indiví-duos introjetassem valores,

normas de comportamentoconforme e não questiona-dores do sistema societal. Eisto porque o esporte de ren-dimento traz na sua estruturainterna, os mesmos elementosque estruturam também as re-lações sociais de nossa socie-dade: forte orientação no ren-dimento e na competição,seletividade via concorrência,igualdade formal perante asleis ou regras, etc. Ressalte-se que colaboraram para o de-senvolvimento de uma visãocrítica do esporte também asociologia crítica do esporteque ganha enorme impulsonas décadas de 70 e 80 (cf.Bracht, 1997). Isto tudo, levouas pedagogías críticas da EF,nascentes naquele momento(década de 80), a repensar arelação que a EF deveria tercom o esporte (de rendimen-to).

Importante dizer que oesporte, enquanto fenômenocultural, foi assimilado pelaEF, inicialmente, sem que istomodificasse a visão hege-mônica de sua (da EF) funçãosocial (desenvolvimento daaptidão física e do "caráter"),mas, paulatinamente, o espor-te se impõe à EF, ou seja,instrumentaliza a EF para oatingimento de objetivos quesão definidos e próprios dosistema esportivo. Este pro-cesso não vai ser acompanha-do de uma reação crítica daEF, muito ao contrário, ele foisaudado como elemento devalorização da EF, que passaa ser sinônimo do esporte naescola. A reação se dá tardia-mente, como já observado, nadécada de 80.4

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Quando então, na EF,sob a influência das teoriascríticas da educação e da so-ciologia crítica do esporte sefaz a crítica ao esporte, prin-cipalmente ao de rendimento,no sentido do seu papel e-ducativo no âmbito escolar,acabam por se instalar uma sé-rie de mal-entendidos e equí-vocos, que, infelizmente aindagrassam em nosso meio(alguns, para meu quase de-sespero, já se cristalizaram).Ao tratá-los espero poder dei-xar clara minha posição e co-laborar para uma melhor com-preensão do tema.

EQUÍVOCO/MAL ENTENDIDO 1

Quem critica o esporte écontra o esporte. Criticar oesporte ficou sendo entendidocomo uma manifestação dealguém que é contrário aoesporte no sentido lato. Comisso criou-se uma visão ma-niqueísta: ou se é a favor, ou seé contra o esporte. A EF foidividida por este raciocíniotosco, entre aqueles que sãocontra, de um lado, e aquelesque são a favor do esporte, deoutro.

Esta visão tosca trabalhacom o pressuposto de que oesporte é algo a-histórico. Comefeito, é comum ouvir-se falarneste contexto em "essência doesporte", em "natureza doesporte". Ora, o esporte é umaconstrução histórico-socialhumana em constantetransformação e fruto demúltiplas determinações. As-sim, críticas ao esporte só po-dem ser endereçadas ao seu

sendo, a como ele se apresentahistoricamente. E no caso dapedagogia crítica da EF comvistas a sua superação, o quesignifica, buscar colaborar paraque este esporte assuma outrascaracterísticas, estas então,mais adequadas a uma outra(alternativa à hegemônica hoje)concepção de homem esociedade.

A negação do esportenão vai no sentido de aboli-loou fazê-lo desaparecer ou en-tão, negá-lo como conteúdo dasaulas de EF. Ao contrário, sepretendemos modificá-lo épreciso exatamente o oposto, épreciso tratá-lo pedagógica-mente. É claro que, quando seadota uma perspectiva peda-gógica crítica, este "tratá-lopedagógicamente" será dife-rente do trato pedagógico dadoao esporte a partir de umaperspectiva conservadora deeducação.

EQUÍVOCO/MAL ENTENDIDO 2

Tratar criticamente oesporte nas aulas de EF é sercontra a técnica esportiva.Portanto, os que não são crí-ticos são tecnicistas. Por outrolado, aqueles que dizem tratarcriticamente o esporte na EFnegam a técnica, são contra oensino das técnicas esportivas.

Quando um determina-do bem é valorizado social-mente, busca-se aperfeiçoar osprocedimentos para a suaefetivação (produção), ou seja,investe-se no desenvolvimentode técnicas com este

objetivo. O que é fundamentala perceber é que a técnica é(deve ser assim considerada)sempre meio para atingir fins.Estabelecer fins/objetivos(sentido) é que é um predicadohumano, portanto a técnicadeve ser sempre subordinada àsfinalidades humanas. Se variamas finalidades, os sentidos daprática esportiva, éconseqüente que variemtambém as técnicas, bem comoseu valor relativo.

Tanto num jogo de tênispela Taça Davis, quanto numjogo de frescobol numa praiaqualquer, a técnica estápresente (movimentos apren-didos para realizar fins). Noentanto, o valor relativo datécnica empregada, o sentido eo resultado social do empregodas técnicas são muito di-ferentes nos dois casos. Por-tanto, o que a pedagogia críticaem EF propôs/propõe, não é aabolição do ensino de técnicas,ou seja, a abolição daaprendizagem de destrezasmotoras esportivas. Propõesim, o ensino de destrezasmotoras esportivas dotadas denovos sentidos, subordinadas anovos objetivos/fins, a seremconstruídos junto com um novosentido para o próprio esporte.5

No caso da lógica dosistema esportivo, o rendi-mento almejado é o máximo,não o possível ou o ótimo,considerando as possibilidadesindividuais e dos grupos. Nosistema esportivo o própriorendimento máximo tornou-seo objetivo a atingir. Destaforma, os meios (técni-

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cos) alcançam grande cen-tralidade neste sistema. Há umenorme investimento no de-senvolvimento técnico quepermitirá o máximo de rendi-mento que permitirá, por suavez, sobrepujar o adversário.Esta lógica aparece já no pro-cesso de iniciação esportiva,de forma muitas vezes incons-ciente.

No esporte de rendi-mento as ações são julgadaspelo seu resultado final, aperformance esportiva men-surada/valorizada em funçãodo código binário da vitória-derrota. Os meios empregadosno treinamento, o próprio trei-namento, tudo é medido peloresultado final. A própria prá-tica, o processo, a fruição dojogo não assumem importân-cia significativa para o siste-ma.

O que se criticou e secritica então, é a subordinaçãoinconsciente não à técnicaenquanto tal, mas à finalida-de a qual determinada técnicaestá a serviço.

Não é preciso repetiraqui o quanto as ciências natu-rais e suas irmãs ciências soci-ais e humanas que copiam seumodelo, foram engajadas comvistas ao objetivo de maximizaro rendimento: a fisiologia, abiomecânica, a aprendizagemmotora, a psicologia, a socio-logia, etc. Para atingir este ob-jetivo, o de maximizar o rendi-mento, o grande modelo de cor-po de atleta foi o do corpo-má-quina (máquina maravilhosa),capaz de performances es-petaculares.

Em função da centrali-dade do desenvolvimento téc-nico para os objetivos do sis-tema esportivo (esporte derendimento), criou-se o jargãode que os professores de EFque defendem o esporte derendimento seriam tecnicistas.A confusão aumentou quan-do, ao se discutir a literaturapedagógica e, com o seu au-xílio, operar análises do queacontecia na EF, começou-sea confundir o tecnicismo es-portivo com o tecnicismo pe-dagógico, ou com a pedago-gia tecnicista. Embora seusprincípios epistemológicossejam os mesmos, o que faci-litou a incorporação da peda-gogia tecnicista no ensino doesporte na escola, trata-se deduas coisas bastante distintas.Não se está adotando a peda-gogia tecnicista simplesmen-te porque se ensina técnicasesportivas.

EQUÍVOCO/MAL-ENTENDIDO 3

Já pode o leitor perce-ber que a separação entre osdiferentes mal-entendidos éapenas formal-didático, por-que eles estão entrelaçados.Assim, orgânicamente ligadoao anterior, outro equívoco éo de que a crítica da pedago-gia crítica da EF era destina-da ao rendimento enquantotal, e que a este contrapunha,em posição diametralmenteoposta, o lúdico. Nova con-traposição maniqueísta6: osdo rendimento x os do lúdico(os do formal x os do infor-mal; os do alto nível x os doEPT, etc). Do lado do rendi-mento estariam todos os de-

feitos: mecanização do ho-mem, orientação pela razãoinstrumental, sacrifício, dor,manipulação, etc; do lado dolúdico todas as virtudes: pra-zer, espontaneidade, liberda-de, verdadeira humanização.1

Me parece que há nesta posi-ção uma idealização do lú-dico, como espaço, dimensãodo humano a-priori a ser pre-servado da colonização da ra-zão (científica) e seus produ-tos. No esporte de rendimen-to haveria como que uma ra-cionalização (pela razão téc-nico-instrumental) do jogo, dolúdico. Ora, o comportamentolúdico não existe na suaforma pura, ele está mais oumenos presente em uma sériede práticas humanas, portan-to, moldado culturalmente. Acrítica é endereçada, na ver-dade, ao fato de que na nossasociedade, todas as ações hu-manas tendem a ser guiadaspela razão técnico-instrumen-tal. A crítica é à hegemonia darazão técnico-instrumental,que numa determinada pers-pectiva marxista, significa acoisificação de todas as rela-ções sociais-humanas. Parece-me que a contraposição a estatendência não deveria se fa-zer pela afirmação do seu con-trário, o primado da sensibili-dade, do acaso, do lúdico, poruma volta à uma unidade pri-mordial (natureza/homem,mundo/homem) e sim, pelamediação, pelo reconheci-mento da ambigüidade denosso ser/estar (n)o mundo,pela superação qualitativa darazão instrumental e não pelo"retorno" ao sensível original.

Conseqüência paralela:

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como o rendimento está con-dicionado à capacidade física,acusa-se aqueles que defen-dem o esporte enquanto jogo,de negarem a aptidão física oua atividade física enquantopromotora de saúde. Não setrata de negar os benefíciosdas práticas corporais para asaúde, embora isto precisasseser mais relativizado do quequerem alguns apologetas daatividade física como promo-ção de saúde. Trata-se apenasde não reduzir o sentido des-tas práticas a este objetivo etambém, de não entender quea especificidade da EF (e suafunção na escola) seria exata-mente a promoção da saúde.

EQUÍVOCO/MAL ENTENDIDO 4

Tratar criticamente doesporte na escola é abando-nar o movimento em favor dareflexão.

Outro equívoco que seconstruiu foi o de que os críti-cos do esporte de rendimentoenquanto conteúdo de ensinoda EF, quereriam substituir oensino das destrezas esportivaspelo discurso sociológico oufilosófico sobre o esporte,transformando as aulas de EFem aulas de sociologia/filoso-fia do esporte (de preferênciadesenvolvidas em sala de aula- aula teórica).

Não se trata de substi-tuir o movimento pela refle-xão, mas de fazer esta acom-panhar aquele. Para isso, nãoé preciso ir para a sala de aula!Mas é preciso também, não re-duzir a mudança apenas ao atode acrescentar a reflexão à

prática, e sim entender que aprópria prática, a própria for-ma do movimentar-se espor-tivo precisa ser reconstruída.8

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Minhas reflexões ante-riores partem de um pressu-posto que me parece óbvio,mas que talvez precise serexplicitado. No meu entendero esporte na escola, ou seja, oesporte enquanto atividadeescolar só tem sentido se in-tegrado ao projeto pedagógi-co desta escola. Como conse-qüência é necessário analisaro quadro das concepções pe-dagógicas e fazer opções. Épreciso analisar o tipo de edu-cação possível a partir de cadauma das manifestações do es-porte, integrando estas análi-ses discursiva e praticamentena concepção pedagógicaeleita. Assim, a realização deuma pedagogia crítica9 em EFestá condicionada por aquiloque acontece na escola comoum todo, e muito provavel-mente apresentará os avançose as contradições deste con-texto. A mudança na EF estácondicionada pela mudançada escola e esta pela da socie-dade. Para um projeto políti-co-pedagógico que não enten-de como problemático educarno sentido da integração aosistema societal vigente, amaioria das críticas ao espor-te de rendimento feitas pelapedagogia crítica, não fazemsentido.

Sabemos da sociologiado currículo que nem todos ossaberes produzidos no contex-

to cultural mais amplo aden-tram a escola, ou seja, sãoescolarizados para compor oscurrículos escolares. Dois as-pectos neste processo nos in-teressam de perto: a) a escolaseleciona, vale dizer, privilegiadeterminados saberes; b) esco-lariza os saberes, ou seja, elespassam por uma mediação di-dático-pedagógica (muitas ve-zes se fala em transposição di-dática). Questões importantesderivam destes dois pontos. Apartir de quais critérios, sabe-res são considerados relevan-tes ou irrelevantes para mere-cerem a atenção da escola?Porque, por exemplo, o espor-te deve ser um saber escolar oucompor as atividades da esco-la? Quais interesses, que gru-pos de pressão definem se o es-porte fará ou não parte das ati-vidades escolares? Ou ainda,na mediação didático-pedagó-gica do esporte, transforman-do-o em atividade escolar, porquais mudanças ele deve pas-sar? ou ele deve aparecer na es-cola tal qual se apresenta noplano cultural mais geral?

Porque o esporte foiescolarizado? Sem poder mealongar neste ponto, diria quevários foram os interesses quepressionaram neste sentido,entre eles os interesses do pró-prio sistema esportivo com oobjetivo de socializar consu-midores e produzir futuros epotenciais atletas. Aliado dosistema esportivo, na maioriados casos, foram os Estados,o poder público, que se colo-cou como tarefa intervir nosentido de que a nação, o es-tado ou o município fosse bemrepresentado nas disputas es-

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portivas nos diferentes níveis.Para o sistema esportivo inte-ressava que a escola, ao incor-porar o esporte, o fizesse demaneira a desenvolvê-lo nu-ma forma o mais próxima pos-sível de como ele acontece nopróprio sistema esportivo.Pedagogizar o esporte tornou-se um problema para o siste-ma esportivo, porque colocanesta prática elementos queacabam entrando em confron-to com os principios, com alógica que orienta as ações noâmbito do esporte.

Existe urna forma deprática esportiva onde o ren-dimento e a competição te-nham um outro papel, um ou-tro sentido, diverso daqueleque possuem no âmbito do es-porte de rendimento ou altacompetição? Entendemos quesim. Portanto, o esporte trata-do e privilegiado na escolapode ser aquele que atribui umsignificado menos central aorendimento máximo e à com-petição, e procura permitir aoseducandos vivenciar tambémformas de prática esportiva queprivilegiem antes o rendimen-to possível e a cooperação.Mas, como sabemos da socio-logia do currículo, esta esco-lha depende da correlação deforças entre os diferentes inte-resses sociais. Não é mera co-incidência que a escola, prin-cipalmente a privada, "desis-te" das aulas de EF e promoveas escolinhas de esporte.

Para finalizar gostariade fazer ainda duas observa-ções:

a) Não desconheço as

dificuldades de realizar umaprática pedagógica crítica emEF envolvendo o fenômenocultural do esporte. Esta é umapossibilidade no entanto, queestá sendo construída, portan-to não é uma missão impossí-vel. Existem várias experiên-cias sendo realizadas por pro-fessores de diversas regiõesdo Brasil, que fizeram esta op-ção, que lutam com um qua-dro adverso é verdade, masque não desistem porque acre-ditam nessa necessidade eneste projeto político-pedagó-gico.

b) Alerto para que nãose interprete a tentativa de ar-gumentação presente nestetexto como uma defesa daidéia de que as opções ético-políticas que todo professorde EF faz, quer queira quernão, consciente ou inconsci-entemente, que estas opçõessejam de caráter técnico, ouseja, de que seria possívelmedir com um instrumentotécnico e "objetivo" o valor(tamanho) dos argumentosprós e contras e então decidira favor de uma posição. Aconstrução destas posições,as tomadas de decisão nestecampo (ético-político) é (são)um processo extremamentecomplexo que envolve dimen-sões racionais e não-racionais(estéticas), estruturais e con-junturais, e é exatamente nes-te fato que radica a necessi-dade da democracia, entendi-da como uma proposta deauto-referencialidade, ou seja,não existe um fundamento úl-timo onde poderíamos buscarum critério ineludível paranossas opções ou decisões.

Daí também a necessidade dodebate para fortalecer o cará-ter público das decisões, paralhes fornecer qualidade.

REFERÊNCIAS

BIBLIOGRÁFICAS

BRACHT, V. Educação física no1o grau: conhecimento e es-pecificidade. Revista Pau-lista de Educação Física.Sup. 2, 1996, p.23-8.

__ . Sociologia crítica do esporte: uma introdução. Vitória:CEFD/UFES, 1997.

BROHM, J.-M. (org.). Deporte,cultura y represión. Barce-lona: Ed. Gustavo Gili,1978.

EICHBERG, H. Der Weg desSports in die industrielleZivilisation. Baden-Baden:Nomoa, 1979.

KUNZ, E. Transformação didá-tico-pedagógica do esporte.Ijuí: UNIJUÍ, 1994.

HARGREAVES, J. Sport, cultu-re and ideology. London:Routledge & Kegan Paul,1982.

SAVIANI, D. Escola e democra-cia. São Paulo: Autores As-sociados/Cortez, 1983.

SILVA, T. T. da . Documentos deidentidade; uma introduçãoàs teorias do currículo. BeloHorizonte: Autêntica, 1999.

Textos ilustrativos

(para-textos)

Santin, Silvino. Edu-

cação Física: da alegria do

lúdico à opressão do rendi-

mento. Porto Alegre: EST/

ESEF-UFRGS, 1994.

"O rendimento não éum fenômeno que possa serisolado de um contexto maioronde encontra suporte a apoio.

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O rendimento encontra suasraízes filosóficas e ideológi-cas na própria dinâmica inter-na das ciências e da técnica;ele faz parte da imensa paisa-gem construída pelos homensda sociedade industrial. Por-tanto, o esporte de rendimen-to não pode ser entendido ape-nas como uma ação esporti-va, mas como uma manifes-tação total da criatividade hu-mana e, mais, em todas as suasimplicações culturais pos-síveis"(p.35)

"O que se deve levar emconsideração não é o rendi-mento, mas o valor simbólicoque a ele é atribuído pelas di-ferentes culturas" (p.41)

"(•••) é bom lembrarque toda a ação humana nãoelimina em nenhum momen-to a perspectiva de rendimen-to. O que deve ser observadoé o significado ou a valor queele adquire no desenvolver aatividade" (p.52).

Becker, P. ; Jung, P.;

Wesp, H. e Wicklaus, J.M.

Egalisiert und maximiert.

In: Bekcer, P. (Hrgs.) Sport

und Höchstleistung. Ham-

burg: Rowohlt, 1987. (Tra-

dução: Valter Bracht).

"Com o esporte de ren-dimento vinculam-se concep-ções de tipos ideais de uma so-ciedade do rendimento na for-ma de jogo — seja isto enten-dido numa perspectiva positi-va ou crítica. O esporte de ren-dimento condensa uma dascategorias centrais para a ex-plicação de nossa sociedade, oprinicípio do rendimento. Estacategoria que orienta a vida emtodos os setores sociais, forne-

ce sentido principalmente paraaquelas situações nas quais,por princípio, independente-mente de idade, sexo, da ori-gem étnica ou social, bens es-cassos devem ser distribuídosentre os participantes somenteem função do seu rendimentoindividual. A orientação norendimento e no seu aumentopermanente, determina nocampo do esporte o que é re-conhecido e desejado em ter-mos de corpo e movimento. Oesporte de alto rendimento re-presenta a importância que orendimento possui para a so-ciedade moderna e age ao mes-mo tempo como espelho, cujadupla função consiste, por umlado, dar destaque, hipertro-fiando num modelo 'simplifi-cado' , ao complexo societal nasua essência, e por outro, per-mite focar problemas especí-ficos. A partir do esporte derendimento é possível demons-trar de forma exemplar as pré-condições, a relevância e osefeitos de uma das mais impor-tantes características expli-cativas da sociedade" (p. 186)

Larécio. Seção de hu-

mor da Revista Corpo e

Movimento, APEF (SP),

1984, n.3, p.38.

Inusitado diálogo...

- Os jogos escolares ser-vem para a fraternidade! Paraa socialização dos participan-tes! Para a prática salutar dasatividades gimnodesportivas!Para a Educação, enfim...

- Seu Diretor, a sua es-cola participa dos Jogos Es-colares?

- Claro! Somos umainstituição educacional.

- E quais foram os re-

sultados educacionais daparticipação do seu colégio?

- Duas medalhas deouro, cinco de prata, três terceiros lugares, e o nosso timede basquete tava massacran

do o inimigo quando foi desclassificado por um juiz ladrão.

-Ah!!!

Vago, Tarcísio Mau-

ro. O "esporte na escola" e

o "esporte da escola": da ne-

gação radical para uma re-

lação de tensão permanen-

te. Revista Movimento, Vol.

III, n° 5, 1996/2, p.4-17.

"Assim, diferentemen-te de uma negação radical do'esporte da escola' pelo 'es-porte na escola', considero serfrutífero para a Educação Fí-sica avançar no sentido deconstruir uma relação de ten-são permanente entre eles.Uma relação de tensão perma-nente que se estabeleça entreuma prática de esporte produ-zida e acumulada historica-mente e uma prática escolarde esporte (a cultura escolarde esporte)" (p. 10)

"Afirma-se e defende-se aqui, portanto, a escolacomo um lugar de produçãode cultura. Cabe-lhe, então, aotratar do esporte, produziroutras possibilidades de seapropriar dele — é o proces-so de escolarização do espor-te — e, com isso, influenciara sociedade para conhecer e

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usufruir de outras possibilida-des de se apropriar do espor-te. Buscar uma tensão perma-nente entre o espaço social daescola e o espaço social maisamplo. É isso que caracterizaum movimento propositivo daescola em suas relações comoutras práticas culturais dasociedade"(p.l2)

"Não se trata, então, deagir apenas para que a escolatenha o 'seu' esporte. Trata-sede problematizar a prática cul-tural do esporte da sociedade(que é ao mesmo tempo, o es-porte da e na escola), parareinventá-lo, recriá-lo, recons-truí-lo, e, ainda mais, produ-zi-lo a partir do específico daescola, para tencionar comaqueles já citados, que a soci-edade incorporou a ele (e parasuperá-los). Não sendo mesmopossível à escola isolar-se dasociedade, já que a escola é,ela mesma, uma instituição dasociedade, uma de suas tare-fas, então, é a de debater o es-porte, de criticá-lo, de produ-zi-lo ... e de práticá-lo! Ora,se se quer o confronto — atensão permanente — com oscódigos e valores agregadosao esporte pela formacapitalista de organizaçãosocial para construirmosoutros valores a partir daescola (a solidariedadeesportiva, a participação, orespeito à diferença, o lúdico,por exemplo), é fundamentalque o façamos para toda a so-ciedade", (p. 13)

Bracht, Valter. Mar-

celinho Carioca, FHC e as

regras do jogo. (texto inédi-

to, impresso), 1999.

Há algum tempo atrás,

um economista escrevendo noJornal a Folha de São Paulo,estabelecia uma interessanteanalogia entre o que se viveno esporte internacional e naeconomia globalizada. Citan-do trechos de uma entrevistado tenista Peter Sampras, oautor argumentava que assimcomo no tênis, como diziaSampras, também na econo-mia globalizada os competi-dores precisam estar cada vezmelhor preparados, pois acada dia torna-se mais difícilmanter-se competitivo. Suge-ria o autor que deveríamosextrair lições, enquanto país,para nosso comportamentoeconômico.

Suspeitamos haver ou-tras possibilidades de aproxi-mar comportamentos do pla-no esportivo com outros dediferentes esferas sociais,como forma, não só de suge-rir ações, mas, principalmen-te, como forma alternativa deentender a vida social.

Muito já se escreveusobre a relação entre o espor-te e a sociedade. O esporte, emmuitas análises, é considera-do a sociedade em um seuexemplo, em alguns casos,radicalizando, uma fotografiaou um reflexo da estrutura evalores sociais. Por outrolado, também é entendidocomo um modelo ideal (con-tra-fático) que antecipa o queseria uma sociedade igualitá-ria e eminentemente me-ritocrática — o sucesso é exa-tamente proporcional ao ren-cimento alcançado, sendo esterendimento produzido sob re-gras iguais para todos e emrelações de concorrência. Semexpressar opinião definitiva

sobre esta relação, é possívelrelacionar alguns lances ouocorrências do plano políticocom lances como o que envol-veu o jogador MarcelinhoCarioca em jogo recente.

No dia 11/02/98 en-frentaram-se em Aracaju, pelaCopa do Brasil, o CornthiansPaulista e o Itabaiana deSergipe. O primeiro tempoterminou com o placar de 1 x0 a favor do Corinthians, comum gol marcado por Mar-celinho Carioca numa cobran-ça de falta, cuja existência,aliás, era questionada pelo lo-cutor televisivo. No intervaloo Repórter da TV aproximou-se de Marcelinho e perguntouo que ele havia achado do pri-meiro tempo do jogo. Respos-ta de Marcelinho: com a for-ça de Jesus o Corinthians jo-gou bem e saiu vencedor doprimeiro tempo (estou citan-do de memória). O repórterperguntou então sobre a falta;se ela havia realmente acon-tecido. Resposta do "crente"jogador: pra bater falta é pre-ciso "cavar"uma falta!!! Épreciso também ser inteligen-te!!! Risos de todos.

No mesmo dia do alu-dido evento esportivo o Pre-sidente da República reunia-se com o Sr. Paulo Maluf para"negociar" votos do PPBpara a reforma da Previdência(Folha de São Paulo de13/02/98, p.I.11). Maluf,aliás, é conhecido como umpolítico capaz de realizar"jogadas inteligentes" — édetentor de uma "esperteza"tomada por uma parcelasignificativa da populaçãocomo um valor positivo.Lances como este, para per-manecer no linguajar esporti-

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vo, de Marcelinho(s) e deFHC(s) não ferem as regrasformas do jogo (esportivo oupolítico). Um parênteses: nos-so interesse aqui não é ressal-tar a contradição entre a evo-cação de Jesus e o cinismo ala "Lei de Gérson" presente naatitude/fala do jogador, mui-to menos os, cada vez maisfreqüentes, apelos ao divinodo nosso Presidente da Repú-blica. Nossa atenção recai so-bre uma das característicasmais vinculadas à vida demo-crática, que é o respeito às re-gras.

O presidente FHC nãoinfringe as regras formas dojogo quando negocia os votospara aprovar a reforma da pre-vidência ou quando edita me-didas provisórias — embora,da a sua performance recor-dista, levante a forte suspeitade que haja aí inconstitu-cionalidade, mas... quem jul-ga? Aliás, em relação à regu-lamentação das medidas pro-visórias, Sandra Starling naFolha de São Paulo de 13/02/98, p. I.3, mostra como a ati-tude/ação do Presidente éoportunista e esperta — semque seja necessário desrespei-tar as regras formais. Mas, oque poderíamos obstar se es-tes "jogadores" todos produ-zem este espetáculo atendo-seas suas regras constitutivas?

Também muito se es-creveu sobre as limitações ouimperfeições da democraciarepresentativa. A esquerdanão cansa de apontá-las e adireita de justificá-las, não ra-ramente com pitadas decinismo explícito. A direitaliberal fala inclusive de umaimperfeição natural einevitável

que, de tanto ser alardeada,acaba assumida pela popula-ção, provocando uma atitudede indignação conformista.Indignação que muitas vezesé metamorfoseada para umaespécie de auto-zombaria; fa-zemos piada de nós mesmos,de nossas mazelas anti-demo-cráticas. Estas imperfeições,faz-se crer, são inevitáveis,são próprias do jogo, assimcomo inevitável é a globa-lização impostas pelas leis domercado (com certeza, este oDeus de quem tanto se fala).Frente ao inevitável é inútilreagir.

Mas voltemos à analo-gia e à questão da regras dojogo. É senso-comum o enten-dimento de que liberdade de-mocrática não significa viverna ausência de regras, mas,escolher (democraticamente)sob quais regras vamos con-viver. Parece-nos que o con-ceito de auto-referencialidade(desenvolvido por H. Ma-turana na biologia e utilizadopor N. Luhmann na sociolo-gia) cabe bem à democracia.Não se chega à democraciacomo um ponto final, ela seconstrói, e só se constrói de-mocracia democraticamente,ou como escreveu F.Weffort,a luta entre as diferentes con-cepções de democracia preci-sa acontecer no plano da pró-pria democracia. Assim, aconstrução e o respeito às re-gras assume fundamental im-portância no debate em tornoda democracia.

O filósofo alemão K.-O. Apel (em Diskurs undVerantwortung, 1987), en-frentando a questão da eti-cidade das regras esportivas,

lembra, baseando-se em J.Searle, que existem dois tiposde regras: as constitutivas, quefazem, por exemplo, do fute-bol o futebol e as regrasregulativas que estão implíci-tas, por exemplo, no fair playcomo norma das interaçõeshumanas. Estas segundas, di-zem respeito, portanto, a nor-mas seguidas ao nos mover-mos no interior das regrasconstitutivas. Eu posso afron-tar o fair play, mesmo não in-fringindo as regras cons-titutivas de um esporte. As-sim, para o autor, o problemaético ainda não está colocadoquando nos limitamos à ques-tão da observância ou não dasregras do jogo. A questão éti-ca se coloca no âmbito do"como" respeitamos as regras.Exemplifiquemos com o es-porte. Relevante eticamente,aquilo que afeta a noção dejustiça, não foi o fato deMarcelinho afrontar as regrasconstitutivas do futebol; issoele não o fez. Relevante eti-camente, é o fato de buscarvantagem no jogo simulandouma violação. No caso famo-so da "mão santa" de Ma-radona na Copa do Mundo deFutebol de 1986, pelo fatodele esconder que havia co-metido uma violação. E nesteplano que devemos discutirsobre a moralidade ou não dasações. Oferecer cargos em tro-ca de votos a favor da refor-ma da previdência, divulgardados que interessam e omi-tir os que não interessam (Leide Ricupero), por um lado, epor outro "cavar" uma falta(Lei de Marcelinho) ou darum passo para fora da áreapara enganar o árbitro —

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como fez Nilton Santos emcaso famos e alardeado comoexemplo de esperteza do jo-gador brasileiro — situam-seno mesmo plano sob a pers-pectiva ética. Portanto, nãobasta para a construção da de-mocracia respeitar as regrasconstitutivas do jogo, e precisoobservá-las a partir de prin-cípios éticos, como por exem-plo o fair play, que claro é tan-to desrespeitado por Mar-celinho quanto por FHC.

Mas, nestes tempos pós-modernos e de globalização,tentar estabelecer pontos dereferência éticos soa semprecomo retrógrado, ultrapassado,tem cheiro de mofo iluminista.O que conta é o imediatismopragmático; o que conta é oque aparenta ser e não o que é,mesmo porque não se admitemais a possibilidade dediferenciar a versão darealidade ou decidir sobre averdade da versão. A disputa épela imposição da versão, daí anecessidade de manter ocontrole, via aliciamentopolítico-financeiro, dos meiosde propagação das versões. Aversão dominante não o é peloseu conteúdo de verdade, maspela sua capacidade de sedução— a espe-tacularização(esportivização) da políticasegue este princípio. Os atores,sejam políticos ou jogadores oujogadores políticos, atuam nacena social sob a égide daespeta-cularização outeatralização dosacontecimentos, onde ficção erealidade se confundem.Produz-se uma hiper-realida-deque só é rompida com extremadificuldade. É rompidamomentaneamente nas filas

dos hospitais, na carta de de-missão do emprego. Seus im-pactos, no entanto, são absor-vidos via ressemantização/ressignificação a partir do có-digo da inevitabilidade da glo-balização econômica e das leisde mercado: privatização dosserviços de saúde por um lado,e por outro, flexibilização doscontratos de trabalho — melhorum emprego virtual do quenenhum.

Marcelinho e FHC, noesporte e na política, escolhe-ram jogar o jogo respeitando asregras (constitutivas). Mascomo eles se movem no inte-rior do quadro balizado porestas regras, a forma como elesas respeitam é questionáveleticamente. No entanto, istoparece provocar mais aaquiescência de boa parte dosespectadores do que umaindignação mobiliza-dora,talvez porque não se infrinjafrontalmente as regras, apenaso fair play implícito, que diga-se de passagem, não fez escolanem na política nem no esporte.Aliás, existem boas chances doesporte moderno e da sociedadecapitalista serem incompatíveiscom o fair-play. Neste sentidoo esporte e a política reforçamos seus times reciprocamente,sendo que a derrota é dademocracia e consequen-temente da maioria da popu-lação brasileira.

NOTAS

lA adjetivação do esporte comode rendimento solicita por si sóuma discussão aprofundada, oque tomaria todo o espaço aquidisponível. Assim, apenas o-

bservo que o rendimento estápresente em maior ou menorgrau em toda prática esportiva,no entanto, numa determinadamanifestação esportiva o rendi-mento é elevado à categoriacentral, ao elemento definidor eorganizador das ações. É a esteesporte que estaremos chaman-do de esporte de rendimento.2Já que foi no interior ou a partirdas Escolas de Educação Física,Departamentos e Centros deEducação Física das Universida-des que no Brasil desenvolveu-seuma vertente que faz críticascontundentes à função social doesporte. Ou seja, é no âmbitoacadêmico da EF que existemresistências ao fenômeno es-portivo na forma como ele seapresenta em nossa sociedade.3Em relação às análises críticasdo fenômeno esportivo reme-temos o leitor a uma vastaliteratura que compreende entreoutros: Brohm (1978); Har-greaves (1982); Kunz (1994) eBracht (1997).4Não ignoro outras e anteriores re-ações críticas ao esporte presentesna história da EF, no entanto, elasapresentam caráter esporádico. Ummovimento mais sistemático e dealguma repercussão parece mesmosó ter acontecido a partir da décadade 80.5 A prática esportiva comsentido diferente daquelepredominante no esporte derendimento já está presente noâmbito da cultura. Trata-se,portanto, de tematizar tambémestas práticas esportivas, que namaiorira das vezes sãomarginais no âmbito do sistemaesportivo, ou quando rivalizamcom o sentido oficial, tendem aser incorporadas e resignifi-cadas.6Observe-se que não sou contraas classificações pura e sim-plesmente. Elas têm funçãodidática importante, na medidaem que simplificam, organizama realidade de uma determinadaforma de maneira a torná-la in-telegível. O problema está emcomo se trabalha com elas, comos conceitos na forma de tipos

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ideais. O que estamos obser-vando na EF é um uso abusivoe equivocado das classifica-ções, principalmente, das ditastendências pedagógicas. A sim-plificação das classificações énovamente simplificada, ge-rando um simplismo emaniqueísmo extremamenteprejudiciais.

7Esta perspectiva de crítica aoesporte de rendimento Eichberg(1979) denomina de "cristã-con-servadora".8Desenvolvi este tema em Bracht(1996).9Estou entendendo por Pedago-gia Crítica uma vertente dapedagogia que tem como pers-

pectiva a transformação da soci-edade capitalista. Ver a respeito:Saviani (1983) e Silva (1999).

*Valter Bracht é professor deEducação Física do Departa-mento de Ginástica do Centro deEducação Física e Desportos daUniversidade Federal do Espí-rito Santo.

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