Esqueceram de mim

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Luciana Marques, Marina Cardozo e Marcelo Grisa Reportagem produzida na disciplina de Jornalismo Investigativo (professora Luciana Kraemer) Esqueceram de mim Falta de lugares adequados em cinemas exclui cadeirantes da atividade cultural “Infelizmente, a acessibilidade ainda não está internalizada em nenhum ambiente. Os culturais, em especial, ainda são massivamente destinados às elites.” Vitória Bernardes tem 27 anos, é psicóloga e mora em Porto Alegre. Em 2002, foi vítima de uma bala perdida e, desde então, utiliza uma cadeira de rodas para se locomover. Gosta de cinema e costuma frequentá-lo, mas há cerca de um ano teve de deixar o Cinemark Ipiranga, em Porto Alegre, antes do início da sessão. O motivo: descontente com os locais destinados a cadeirantes no cinema, ela quis sentar em cadeiras normais, auxiliada pelas primas que a acompanhavam. O gerente proibiu. Segundo ele, só havia estrutura para pessoas “normais”. À época, o caso ganhou uma repercussão nas redes sociais impensada até pela própria Vitória. Hoje, ela espera a marcação da audiência do processo que move contra a rede de cinemas. Segundo o artigo 3º da Lei Estadual 12.339, de 10 de outubro de 2005, sobre a proteção dos direitos e do atendimento da pessoa com deficiência, deve haver acessibilidade e conscientização da sociedade sobre os direitos, necessidades e capacidades das pessoas com deficiência. Em Porto Alegre, o artigo 1º da Lei Municipal nº 10.379, de 6 de fevereiro de 2008, prevê obrigatoriedade de espaço para cadeira de rodas e assentos reservados para pessoas portadoras de necessidades especiais em salas de cinema. Os locais existem. O problema é onde eles ficam. Em sua maioria, os assentos destinados a cadeirantes estão nas

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Por Luciana Marques, Marina Cardozo e Marcelo Grisa (orientadora: Luciane Kraemer)

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Luciana Marques, Marina Cardozo e Marcelo GrisaReportagem produzida na disciplina de Jornalismo Investigativo (professora Luciana Kraemer)

Esqueceram de mim

Falta de lugares adequados em cinemas exclui cadeirantes da atividade cultural

“Infelizmente, a acessibilidade ainda não está internalizada em nenhum ambiente. Os culturais, em especial, ainda são massivamente destinados às elites.” Vitória Bernardes tem 27 anos, é psicóloga e mora em Porto Alegre. Em 2002, foi vítima de uma bala perdida e, desde então, utiliza uma cadeira de rodas para se locomover. Gosta de cinema e costuma frequentá-lo, mas há cerca de um ano teve de deixar o Cinemark Ipiranga, em Porto Alegre, antes do início da sessão. O motivo: descontente com os locais destinados a cadeirantes no cinema, ela quis sentar em cadeiras normais, auxiliada pelas primas que a acompanhavam. O gerente proibiu. Segundo ele, só havia estrutura para pessoas “normais”.

À época, o caso ganhou uma repercussão nas redes sociais impensada até pela própria Vitória. Hoje, ela espera a marcação da audiência do processo que move contra a rede de cinemas.

Segundo o artigo 3º da Lei Estadual 12.339, de 10 de outubro de 2005, sobre a proteção dos direitos e do atendimento da pessoa com deficiência, deve haver acessibilidade e conscientização da sociedade sobre os direitos, necessidades e capacidades das pessoas com deficiência. Em Porto Alegre, o artigo 1º da Lei Municipal nº 10.379, de 6 de fevereiro de 2008, prevê obrigatoriedade de espaço para cadeira de rodas e assentos reservados para pessoas portadoras de necessidades especiais em salas de cinema.

Os locais existem. O problema é onde eles ficam. Em sua maioria, os assentos destinados a cadeirantes estão nas primeiras filas, o que obriga o consumidor a levantar demais a cabeça e, ainda assim, ter sua visão limitada pela proximidade. Deduzido o desconforto.

A posição em que o deficiente é obrigado a permanecer pode causar danos que vão de dores musculares e de cabeça até sintomas mais sérios como náuseas, vertigem e hérnias: “Por ser móvel, a coluna cervical é mais propensa a lesões e, uma vez lesionada, ela se adapta àquela nova posição”, explica a fisioterapeuta Cátia Festner. “A posição do pescoço para ver um filme tão próximo à tela causa a compressão de artérias e nervos.” Ela lista que pode haver desgaste ósseo, dor cervical, dor de cabeça, vômito, fraqueza muscular, dor nos ombros. “Citando apenas alguns sintomas.” Cátia afirma que tudo depende da frequência com que o cadeirante utiliza o cinema: “Um cinéfilo pode desenvolver algo muito sério”.

Um estranho no ninho

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O desconforto combinado à possibilidade de sofrer preconceitos por sua condição desencoraja a ida de cadeirantes ao cinema. Osório Martins, 40 anos, não frequentava uma sala desde 2004, um ano antes de sua paralisia. Morador de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, em 2005, Osório pediu um remédio para tratar de suas dores musculares ao cardiologista, afinal, se automedicar seria perigoso. O médico lhe receitou um analgésico comum para este tipo de situação, o Tandrilax. Tudo corria normalmente.

Logo chegava o casamento de Osório com Simone Suszeck Martins e, no dia, o inesperado: “Quem disse que eu levantava?”. A interação medicamentosa criara coágulos entre quatro de suas vértebras e a medula espinhal. Estava tetraplégico. Mesmo com o desespero de parentes e da futura esposa, ele somente pediu para que lhe alugassem uma cadeira de rodas, ele ia se casar.

Após quatro anos de fisioterapia, Osório recuperou parte dos movimentos, o que não foi suficiente para fazer a sua locomoção deixar de depender da cadeira – um modelo simples azul. “Nunca me rendi”, declara.

Osório acompanhou a reportagem a uma incursão ao Cinemark Canoas. Localizado no Canoas Shopping, o Cinemark é o único conjunto de cinema do município, com sete salas de cerca de 200 lugares cada uma.

Os balcões de atendimento – tanto de compra de ingressos quanto da lancheria – têm porções adaptadas à altura da cadeira de rodas. Apesar da preferência no atendimento na bilheteria, cadeirantes e acompanhantes demoram a entrar nas salas de cinema, que é separada do “lounge” por uma cancela.

Há dois espaços para a acomodação de cadeirantes nas sete salas do Shopping Canoas. Cada um deles, segundo Osório, comportaria quatro cadeirantes. Os espaços são adaptados com a retirada de duas poltronas. O posicionamento, entretanto, prejudica a experiência da tela grande, pela proximidade – o pescoço do espectador não pode estar reto para olhar diretamente o filme.

Na saída do cinema, mais um ponto negativo. Apesar de existirem duas portas duplas na saída, apenas uma delas estava aberta – e pela metade. Osório teve de sair pelo mesmo lugar por onde entrou, em vez de usar a saída usual. Pelo menos, o erro não é estrutural: a porta somente deixou de estar aberta o suficiente para permitir a passagem da cadeira de rodas.

Osório agradeceu e lembrou o drama da falta de informação. "Quantos deixam de ir aos lugares por nem saber se há acessibilidade?"

Realmente, é irônico como muitos dos locais destinados a arte e cultura não estão preparados para receber o grande público. Eduardo Senna Batista, 43 anos, se declara um apreciador do mundo cultural. Casado com Vanessa Vasconcelos e pai de dois filhos, o aposentado leva a família a espetáculos teatrais e, principalmente, ao

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cinema, sempre que pode. Há um ano o aposentado é cadeirante, devido a uma queda numa tarde chuvosa.

Um dos poucos cinemas que o casal ainda não conhecia, o Unibanco Arteplex, fica no Shopping Bourbon Country, em Porto Alegre. A curiosidade de avaliar a estrutura do local fez com que eles fossem assistir ao filme Homens de Preto 3. Ao chegar à sala em questão, os dois se depararam com uma rampa que os conduzia até a primeira fila. Duas poltronas foram removidas para dar lugar a dois cadeirantes, contanto que pelo menos um deles não estivesse acompanhado.

O filme começou e, com ele, as dores no pescoço, a vertigem nos olhos, a tontura e a dificuldade de acompanhar as legendas. O cansaço tornou o filme maçante: “Assistir a um filme em 3D assim é praticamente inviável”, observa o aposentado.

Eduardo lembra que não apenas no cinema falta acessibilidade: o Teatro do Bourbon Country também apresenta problemas: “No ano passado eu e minha esposa fomos comprar os ingressos para o show do Roupa Nova, mas nosso plano foi interrompido porque o elevador do local não estava funcionando”, revela. Vanessa comenta ainda que o lugar destinado a cadeirantes é na plateia baixa, com ingresso mais caro: “Ou o acompanhante paga o valor estipulado para sentar junto, ou fica separado. O cadeirante também tem família, amigos. Ele não é sozinho”, desabafa.

Além de Vitória, Osório e Eduardo, outros tantos cadeirantes sofrem com situações de desrespeito. A Associação Canoense de Deficientes Físicos (Acadef), próxima ao centro da cidade, oferece tratamento fisioterápico, convívio e formação profissional para pessoas de 136 cidades em todo o Rio Grande do Sul. Nas manhãs de terça a sexta-feira, muitos deficientes físicos se encontram para conversar. Clóvis Schenkel, 40 anos, diz que a convivência no espaço trouxe muitos benefícios à sua vida: "Se eu tenho amizades agora, é aqui dentro”.

Clóvis frequenta o Shopping Canoas eventualmente e também sente o desconforto causado pelos lugares destinados a cadeirantes: "É muito em cima da tela e muito em cima das caixas de som. Desconfortável em dobro". O morador de Canoas acredita que a situação poderia mudar se as pessoas que idealizam os espaços entendessem o que significa estar numa cadeira de rodas: "Deixa eles umas três ou quatro horas por dia sem sair de cima de uma cadeira, para eles verem o que é bom”.

Conversando com o restante do grupo, todos assumem a dificuldade que têm para ver os filmes com conforto – e não apenas cadeirantes passam por isso. Lariane Caetano, 21 anos, tem dificuldades para caminhar, e as escadas nas laterais do cinema são um obstáculo para sua acomodação: muito estreitas.

O discurso do rei

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De acordo com a Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos do Ministério Público, um expediente com o propósito de verificar as condições de acessibilidade e de acolhida das pessoas com deficiência física nos cinemas está em andamento. Um laudo técnico que comprove a adequação das salas de cinema, em relação às normas de acessibilidade também foi solicitado pela Promotoria. O ministério Público afirma, ainda, que está atento à questão e recebe diariamente uma série de denúncias envolvendo casos de falta de acessibilidade.

Intriga internacional

Em 2010, o Blog do Estadão pediu que um deficiente físico de São Paulo avaliasse os cinemas da cidade e escolhesse os melhores – e piores – no quesito acessibilidade. Para Anderson Santana, de 22 anos, que utiliza muletas para andar, o cinema do Shopping Metrô Santa Cruz é o melhor para quem tem necessidades especiais: “A equipe de funcionários é a que mais ajuda”, diz. Para levar usuários de cadeiras de roda, ele recomenda o Cinemark Pátio Paulista: “A área reservada é ótima e você não paga estacionamento”.

No Rio de Janeiro, o blog Mão na Roda, aponta alguns cinemas da capital carioca acessíveis a cadeirantes. O cinema São Luiz, no Largo do Machado, tem duas salas com entradas por cima, ou seja, os lugares são mais distantes da tela. O cinema Roxy, em Copacabana, tem todas as salas adaptadas, com locais de boa visibilidade. Nas duas salas do térreo, se entra por cima, ou seja, os espaços reservados para a cadeira de rodas ficam no fundo do ambiente, afastados da tela. Já na sala 3, no segundo andar, a entrada é na altura da quarta fileira. O espaço entre a tela e os assentos, porém, é grande, não é necessário olhar para cima para assistir ao filme.