Essas Pessoas a Quem Chamamos Psr Zaluar

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3 Editorial O povo e o público 6 Uma visão da conjuntura Para além do sorriso do ministro 12 ioviniano Neto Conjuntura Internacional e Direitos Humanos 22 Alba Zaluar, Delma Pessanha Neves, Maria Conceição d'lncao e Maria Lúcia Montes Essas pessoas a quem chamamos população de rua 42 Ruhen Siqueira O que as águas não cobriram: tempo, espaço e memória 59 Valmor Schiochet Sociedade civil e democracia 73 Deis Siqueira, Lourdes Bandeira e Sílvia Yannoulas A cabeça do corpo: a construção masculina da condição feminina ' -.g— -------- ------

Transcript of Essas Pessoas a Quem Chamamos Psr Zaluar

  • 3 EditorialO povo e o pblico

    6 U m a viso da conjunturaPara alm do sorriso do ministro

    12 io v in ia n o N etoConjuntura Internacional e Direitos Humanos

    2 2 A lba Z a lu ar, D elm a Pessanha Neves,M a ria Conceio d 'lncao e M a ria Lcia Montes Essas pessoas a quem chamamos populao de rua

    4 2 Ruhen SiqueiraO que as guas no cobriram: tempo, espao e memria

    5 9 V a lm o r SchiochetSociedade civil e democracia

    7 3 Deis S iqueira, Lourdes B andeira e Slvia YannoulasA cabea do corpo: a construo masculina da condio feminina

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  • ESSAS PESSOAS A QUEM CHAMAMOS POPULAO DE RUA

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    De 3 a 5 de junho de 1992, realizou-se na capital de So Paulo o I Seminrio Nacional sobre Populao de Rua, prom ovido por um conjunto de instituies: Organizao do Auxlio Fraterno (OAF) de So Paulo, Igreja Metodista do Brasil 3- regio So Paulo, NOVA Pesquisa e Assessoria em Educao (Rio), Ncleo de Pesquisa da Faculdade de Servio Social da PUC-SP. Do Seminrio, participaram representantes de 36 experincias de trabalho com populao de rua (sendo uma canadense) e alguns assessores. 0 texto que apresentamos rene algumas colocaes de quatro desses assessores. Uma segunda apresentao, com intervenes de outros assessores, vir num dos prximos Cadernos do CEAS.

    I. QUANDO A RUA NO TEM CASAAlba,Zalur

    Para pensar a questo do viver na rua, preciso considerar que, em todas as sociedades humanas, existe alguma separao entre o pblico e o privado, seja a tribal, a medieval, a capitalista, a socialista. Mesmo que no seja a oposio pensada pelos gregos, em todo tipo de sociedade existe a preocupao com o espao denominado de lugar do ntimo, do secreto, do particular, do que no exposto aos olhos pblicos.

    Na sociedade tribal, embora no haja uma separao pela mediao do

    Estado, ainda assim existem lugares onde certos tipos de atividade so feitas e existem tambm relaes; sociais em que se compartilham certos tipos de segredo que no so expostos a todos.

    Os gregos que desenvolveram um pensamento mais claro, mais explcito acerca dessa separao entre,.o. espao domstico, que chamavam. oikos, e a praa, chamada agora, qu era o lugar pblico onde os cidados se reuniam e assumiam a condio de pessoas com direitos iguais pe-

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  • rante a lei (que os gregos chamavam isonomia) e direitos iguais palavra, ao discurso (que os gregos chamavam isoforia). A praa era, portanto, o lugar da discusso pblica dos problemas comuns, e o oikos era o refgio do que no poderia vir a pblico, do que era ntimo, secreto, particular, do que deveria estar resguardado do olhar curioso ou da interveno estatal.

    Mas qualquer sociedade, mesmo as tribais, tenta sempre equilibrar de algum modo os dois espaos para que, por um lado, o mundo privado no seja invadido e segredos pessoais no se tornem pblicos; e, por outro lado, os problemas comuns a todos no sejam ignorados ou tratados inadequadamente como derivados dos interesses privados de alguns. Algumas sociedades obtiveram grande sucesso nesta diviso; outras, como as totalitrias, fizeram quase que desaparecer o espao privado, pois toda a vida social passou a ser objeto da vigilncia e da interveno estatal; outras ainda, como as feudais, no permitiram a instituio do espao pblico, na medida em que os interesses e posturas privados, locais e parciais dos senhores deveriam sempre predominar sobre quaisquer outros.

    Nas grandes metrpoles de hoje, como o Rio de Janeiro e So Paulo, o deslocamento permanente de uma parte da populao para a rua coloca novos problemas para se pensar sobre a separao entre o pblico e o privado. Isto porque, primeiramente, a exibio na via pblica dos atos usualmente realizados na intimidade provoca rejeio dos que so obri

    gados a assisti-los, na medida em que subverte este princpio da separao bsica da vida social humana. A falta de privacidade tambm repercute nos que vivem na rua por sua condio de expostos permanecentes curiosidade, intromisso, agresso, o que os torna particularmente vulnerveis s manifestaes do poder repressivo difuso, isto , exercido por qualquer pessoa, e do poder repressivo monopolizado institucio- nalmente, isto , o da polcia.

    Entre duas espcies de violncia uma simblica e outra concreta, material , os que vivem na rua vo pouco a pouco adquirindo a identidade dos cados, dos inteis, dos fracassados. A simbologia da queda particularmente forte entre os que abandonam seus laos sociais com a famlia, os parentes, os amigos e passam a viver na solido nmade dos que perderam seus referenciais de organizao social to importantes na construo de identidades sociais positivas e de personalidades com auto-estima e noo de dignidade prpria.

    Considerados e considerando-se como o estgio final da degradao humana, os que vivem na rua so tomados pelo medo de terminar como um dejeto da sarjeta, smbolo da queda e do fracasso, com os sinais da degenerao mais visveis e facilmente reconhecidos por todos: a doena fsica, a sujeira, a loucura, o alcoolismo, o isolamento, a falta de laos sociais duradouros, sinais estes que fazem parte do perfil da populao de rua segundo todas as pesquisas sociais j realizadas, segundo os relatos literrios, a poesia universal e

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  • os seus prprios depoimentos acerca dessa experincia dolorosamente marcante na histria pessoal de cada um.

    So esses mesmos sinais que marcam a ausncia de traos que constituem a imagem de um trabalhador, o que vem dificultar ainda mais a sua volta ao mercado de trabalho melhor remunerado. Se a presso familiar para mant-lo como trabalhador ativo, mesmo que aceitando ocupaes mal remuneradas, foi recusada por muitos deles e os levou rua, a condio de morador de rua os obriga a aceitar remuneraes ainda mais baixas, como catadores de papel e prestadores de pequenos servios em virtude de sua aparncia pessoal e de sua condio de pessoa sem lugar, sem lar. Acabam realizando as tarefas rejeitadas por todos e tornam-se coletores, no do que oferecido generosamente pela natureza, mas do lixo, dos dejetos humanos, do que desprezado culturalmente como intil ou poluidor. Vivem do lixo porque realizam, sem sab-lo, as primeiras atividades da coleta seletiva, aproveitando o que foi desprezado para vender ou para montar os parcos refgios onde dormem. Inconscientes precursores da ecologia, ajudaram a preservar muitas rvores sem ganhar o crdito por isto, numa das atividades mais mal pagas nas cidades: a de catador de papel. Trabalhadores desorganizados, ajudaram a acumulao de capital por empresas de papel reciclado que vendem seus produtos valorizados nos tempos ecolgicos atuais em lojas chiques da cidade.

    Entre os que apenas passam na rua, os que nela moram tornam-se os

    passageiros da agonia de nela ficar, de no apenas passar. No que lhes faltem manifestaes dos"melhores sentimentos humanos de solidariedade, amizade, companheirismo, amor e paixo; mas que, em razo mesmo da precariedade e da extrema mobilidade do seu- viver, esses elos humanos so muito frgeis e muito rpidos, demasiadamente frgeis e rpidos para que as condies de vida na dignidade e na auto-esti- ma se faam presentes.

    Sem um lugar apropriado como seu, os smbolos da identidade pessoal vo pouco a pouco se perdendo ou sendo roubados pelos outros. As principais queixas dos que moram na rua so justamente sobre a perda ou roubo de documentos e objetos pessoais, os primeiros to importantes na realizao da atividade prtica do trabalho, e todos to cruciais na construo simblica da identidade pessoal. O resultado deste processo lento e penoso que conduz muitos loucura que mais facilmente os estigmas sociais, as identidades impostas desde fora, so incorporados nas suas personalidades, com a'onsqente perda da bssola e dos compassos internos, fundamentais ha orientao psquica da pessoa humana.

    E por isso que, como todos os seres humanos, os moradores da rua que ainda tm um mnimo de capacidade de luta e dignidade pessoal tentam reconstituir um espao de sua privacidade em mocs, malocas, pequenas tendas de trapos.,, pequenos abrigos de papelo. A. prppria natureza dos materiais empregados j revela sua fragilidade: papelo, trapos, objetos encontrados no lixo. Se

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  • digna de admirao a criatividade que muitos adquirem na utilizao do lixo, no se pode deixar de notar que qualquer sopro, qualquer chuva, qualquer chute, qualquer vento derruba as dbeis construes de suas moradas, que simbolizam tambm suas paredes e muralhas psquicas contra as invases exteriores.

    Quando vista por este ngulo, a populao de rua nos estimula a pensar na relao entre a cidadania e a dignidade da pessoa humana, na relao entre o respeitar-se e ser respeitado, entre a manuteno de um espao privado e a integridade da pessoa. E preciso abandonar a retrica romntica de apont-los como pessoas livres que escolheram estar na rua como um exerccio de liberdade apenas e ouvir o que dizem sobre o seu sofrimento e a vontade que alguns ainda expressam de sair dessa situao de absoluta penria. A idia de defender este direito de ficar na rua expondo-se violncia fsica e simblica de todos os demais, inclusive de seus prprios

    companheiros, ou de obrigar o conjunto da sociedade a ver cotidianamente o que apresentado nesta retrica como chaga da sociedade que precisa continuar a ser vista deve ser repensada. At porque ser tratado como chaga e obrigado a ser visto assim talvez no seja o desejo dos moradores da rua cuja nica comunidade conhecida em So Paulo foi chamada por eles de sofredores de rua. Esta voz, que precisa ser ouvida pelos tcnicos que concebem os projetos de atendimento a eles, se expressa muito bem na poesia de Maria Elizabeth Lima Mota, moradora e sofredora de rua em So Paulo:

    Como tudo, como nada / Como leito o cho, como teto a imensido / Como remdio, cachaa / como consolo, saudade / Como afeto, o incerto / relento como morada / Sofrimento como companhia / como amor a solido, as tristezas, as angstias / esmolas como ganha-po / Amigos? Quem lhe estende a mo / Como tudo, como nada.

    II. ESTRATGIAS DE SOBREVIVNCIADelma Pessanha Neves

    Fui convidada pela organizao do Seminrio sobre Populao de Rua a apresentar algumas idias em tomo da seguinte questo: a trajetria da populao de rua e suas estratgias de sobrevivncia. Decidi encaminhar as reflexes a partir dos problemas de compreenso suscitados quando se tenta entender a chamada populao de rua pela ausncia de vincu- lao ou de insero no mundo do trabalho. Considero que essa a

    questo que mais angstia cria nos outros. Compreendemos por que algum que apresente uma deficincia fsica ou limitao para o desempenho de alguma atividade produtiva possa se valer de outras alternativas de ocupao no reconhecidas propriamente como trabalho. Mas, quando nos deparamos com homens e mulheres em idade produtiva e com todos os atributos externos necessrios ao desempenho de uma ativida

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  • de remunerada, tendemos a no imaginar outra sada que lhes assegure sua autonomia seno o trabalho.

    Insolitamente, a forma predominante de vinculao ao trabalho ou a relao de trabalho fundamental no sistema capitalista pressupe o trabalhador livre. Livre quando pensado em contraposio a outras formas que pode assumir a relao de trabalho. Livre porque expropriado de meios de produo que lhe possam assegurar algum nvel de sobrevivncia autnoma, isto , fora do mercado de trabalho assalariado. E livre das tutelas e dependncias pessoais e morais de outras formas de trabalho. Por isso, o trabalhador livre pode ser pensado antes de tudo como em disponibilidade por tal dependncia - para venda da fora de trabalho porque s assim pode sobreviver. Livre, paradoxalmente, porque sem possibilidade de reproduo seno pelo trabalho. A situao inusitada e paradoxal dessa liberdade se resolve porque o trabalho passa ento a ser o smbolo da liberdade social, da dignidade pessoal. E a prpria iluso da liberdade para a venda da fora de trabalho ento pensada como liberdade de fato.

    Outra questo inusitada nos fundamentos da relao de trabalho sob modalidade capitalista que todos os expropriados dos meios de produo devem trabalhar, mas aqueles mesmos fundamentos ou princpios operam no sentido de consumir o menor nmero de trabalhadores e, assim, de aumentar o nmero de desempregados ou de condenados inanio ou caridade, porque so desnecessrios ou descartveis.

    Por isso mesmo, todos os trabalha-, dores vivem a ameaa do desemprego. O medo do desemprego quase sempre est associado ao medo de virar mendigo. O termo virar men--- i digo expressa bem que essa transformao no resulta de uma lha ou que essa condio no ine: , ^ rente a este ou quele homem, ms''' ao trabalhador em situao prolongada de desemprego, que tenha dilapidado seu fundo de consumo casa, roupa, alimentos, possibilidade de obteno de emprstimos de amigos, etc ou que no conte com ajuda de familiares ou colegas para colaborar nessa reposio.

    Dentre as conseqncias do desemprego prolongado entre os homens .. casados, est a perda de autoridade e, em certos casos, a desmoralizao, pela perda do papel de provedor da famlia, inviabilizando-o para o ga1 pel de esposo. ' ' v

    A fuga a esse tipo de situao e acusao de vagabundo conduz .aceitao de ocupaes sem sentido-econmico mas plenas de significados sociais. Os potenciais trabalha--

    , '* . 5 i7 < ydores que vivem sob essa acuSaao *' * de vagabundos tendem a exor- * ciz-la exatamente pela estilizo .. do estilo de vida. E 0 caso, por exemplo, dos trabalhadores que reinventam, criam e recriam atividades a partir do conhecimento que possuem sobre os recursos abandonados * na rua, justamente porque a esquadrinham como andarilhos dia e_ae.gr.-: te, justamente porque devem deso-. - brir os becos, as malocas para se esconder e minimizar os efeitos negativos dessa desclassificao.

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  • Essa recriao coloca sob visibilidade extrema o lado perdulrio da sociedade capitalista de consumo. O descartvel para um segmento passa a ser o imprescindvel para outros. O lixo e a sobra de uns adquirem valor de uso para outros e valor de troca para o reaproveitamento.

    Essa atividade de coleta, de seleo, esse olhar atento, orientado pelo princpio de que nesse mundo nada se perde, tudo se aproveita, essa capacidade de encontrar sentido econmico e utilidade no desprezvel e nojento, que pressupe a convivncia com o que negado por outros segmentos, tambm pressupe a desqualificao daquele que com o sujo e o resto tem contato.

    E o carter paradoxal desse sistema de relaes sociais se revela novamente, abrindo espao para um novo campo de atividades econmicas sustentadas no reaproveitamento daquilo que antes fora rejeitado, mas que, pelo menos num dos momentos do processo, s se desenvolve absorvendo o trabalhador expulso de atividades mais valorizadas pela sociedade. E o carter inusitado que aquele saber apropriado pelos empresrios do setor industrial do reaproveitamento do descartvel, mas o cata- dor de lixo mantido como desclassificado.

    Para que em tese essa atividade possa ser mais lucrativa e o rendimento adequado possa ser alcanado, fundamental que o trabalhador que a executa se insira numa concorrncia pelos pontos de concentrao do lixo, dos objetos descartveis, e mantenha a dominao desses ter

    ritrios moralmente apossados e demarcados. Como o controle do ponto se d pela posse moral, isto , pela apropriao de um espao demarcado moralmente, segundo regras estabelecidas, respeitadas e defendidas pelos concorrentes, o sucesso depende de viglia constante para afugentar os novatos, os invejosos, os transgressores de tais regras de apropriao.

    Tendo o espao da casa, da habitao, confundido com o do trabalho e ambos apropriados segundo as mesmas regras morais, o foco da vida econmica passa a ser o alimento (e no a casa, o futuro, como ocorre em outros segmentos de trabalhadores mais sistematicamente vinculados ao mercado formal de trabalho).

    Vivendo do controle de parte desse espao pblico apropriado por regras dos grupos que o disputam, da eficcia da posse assegurada pelo olhar constante, pela lembrana e reafirmao de regras prprias e, se tais mecanismos no funcionarem, pela disputa na fora fsica, nada melhor do que acoplar vrios desempenhos que dependam desse controle ou constituir equipes para diviso e complementao das tarefas. Assim, a constituio de pequenos grupos, familiares ou de camaradagem, para ocuparem o mesmo espao e dividirem os cuidados do controle, alm do exerccio de outras atividades passveis de serem exercidas no mesmo espao, ampliam a racionalidade dessas estratgias de vida. Por isso mesmo, mltiplas atividades podem ir se agregando e ampliando o leque de funes do coletor de lixo. Essas atividades geralmente se cons

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  • tituem pela oferta de servios em que os prprios coletores ou os companheiros que controlam e habitam o mesmo espao anunciam e prenunciam a utilidade: guardar pertences de terceiros, guardar lugar na fila, tomar-se auxiliar de camel, guardar carros estacionados, limpar vidros de carro em sinais de trnsito, participar da atividade de encarte de jornal durante as madrugadas, etc. Por isso mesmo, os lugares desejados para a associao casa e trabalho so aqueles em que esses recursos so abundantes e podem ser transversalizados.

    Esse setor da produo que conta com atividades de coleta de materiais reaproveitveis pode operar com o rebaixamento mximo, impensvel e ilegtimo, do custo da fora de trabalho. Se a coleta agrega o trabalho familiar, esse rebaixamento pode ainda ser mais elstico. Alm disso, a vinculao de todo o tempo de vida diria do indivduo tem um carter pedaggico e disciplinar: a compresso dos custos deixa de ser vista como imposio da baixa remunera

    o para ser qualidade ou condio inerente da situao de moradia. O custo da reproduo da fora de trabalho elimina assim a casa, os pertences, a roupa, o transporte, a luz, a gua. A partir dessas consideraes, quero destacar que esse setor de atividade de reaproveitamento do lixo, do descartvel, no s deve contar com o trabalhador que j foi expulso de outras formas de insero no mercado, que teve dilapidado seu fundo de consumo e quase sempre j foi expulso do convvio familiar pela incapacidade de desempenho do papel de provedor ou de colaborador sistemtico nessa proviso, mas que tambm j internalizou a desqualificao e, a partir dela, criou novas formas de sobrevivncia. A reproduo dessa atividade econmica depende da manuteno do trabalhador nessa condio. Por. conseguinte, como j mencionei, essa atividade produtiva opera num- nvel de compresso do custo da fora de trabalho quase sempre inimaginvel culturalmente em nossa sociedade. Est-se assim diante do mximo de superexplorao capitalista.

    III. PERDENDO SEUS TERRITORIOS*Maria Conceio d'Incao

    Muitas vezes, a definio das populaes de rua se confunde com a de migrante, trecheiro, itinerante.

    A abordagem das populaes de rua pelo ngulo da migrao pode trazer uma contribuio positiva. Porque, ao falarmos em migrao, somos obrigados a refletir sobre a racionalidade dos processos migratrios. E

    chegamos, necessariamente, s causas estruturais da semi-excluso dessas populaes dos sistemas sociais dominantes em nossa sociedade. Essa viso estrutural pode nos ajudar a politizar nossas estratgias de interveno. Pode Vft ajudar a ver que a criao dos espaos de integrao dessas populaes passa pela transformao de nossa prpria

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  • sociedade. O que nos permitir pensar a articulao de nossos esforos parciais e, mais do que isso, a vincu- lao deste nosso tema especfico populaes de rua problemtica social e poltica da sociedade brasileira como um todo.

    Mas essa mesma viso macro-poltica das populaes de rua pode tambm nos levar a um certo comodismo. Porque, enquanto nos atemos s questes estruturais relativas necessria transformao nossa sociedade, corremos o risco de adiar a busca de solues mais imediatas para os problemas dos homens de rua, deixando de enfrentar o desafio de politizar tambm o dia-a-dia de nosso trabalho ou reproduzindo nele as prticas paternalistas ou assistencialistas.

    Reforando esse risco de assistenci- alismo, cabe lembrar que a palavra migrante tem sido apropriada pela ideologia conservadora dominante. No difcil perceber que, mesmo entre ns, quando nos referimos aos homens de rua como sendo migrantes, estamos transferindo para eles a responsabilidade de suas presenas na situao de rua. Como se a condio de migrante representasse uma opo e no merecesse qualquer reflexo ou anlise.

    Como construo da ideologia dominante, a categoria migrante tem sido usada para designar a situao de pobreza dos setores no qualificados de nossa populao. Migrante, tre- cheiro, peo, itinerante so designaes que deslocam a explicao dos processos sociais que geram a excluso desses setores para o que costuma ser entendido como uma espcie

    de natureza das pessoas que os compem. Quando eu era estudante, no final dos anos 50, o migrante era a pessoa que no gostava mais do campo porque estava seduzida pelas luzes da cidade, pelo cinema, pela televiso... Programas de fixao do homem no campo eram mencionados como meio de impedir a desorganizao que poderia decorrer dessa seduo. Vinte anos depois 1970 , a proporo entre populao urbana e rural do pas tinha se invertido. Os 70% da populao que moravam no campo em 1970 passaram a morar na cidade, evidenciando que o abandono do campo no podia ser explicado apenas pela atrao da cidade. Era a prpria economia do pas que se modificava, expulsando o homem do campo e abrigando-o na precria condio de trabalhador no qualificado, na cidade.

    A migrao campo-cidade tenden- cial em todos os pases que se desenvolveram economicamente. Como tambm o so os movimentos de populaes das regies mais atrasadas para as mais desenvolvidas ou das reas de explorao mais antigas para as reas de explorao recentes, tambm conhecidas como frentes de expanso. Mas no Brasil, por razes histricas que no cabe aqui explicitar, essas migraes ten- denciais possuem um carter perverso. Porque no correspondem diretamente s transformaes do mercado de trabalho de uma economia em desenvolvimento, elas implicam .a excluso de significativas parcelas de nossa populao do prprio mercado de trabalho. Por exemplo, ela expulsa o homem do campo e no o incorpora plenamente ao trabalho urbano.

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  • Nesta circunstncia, a oferta de fora de trabalho passa a ser cada vez maior do que a demanda, criando para os empregadores a possibilidade de utilizao do trabalhador temporrio e/ ou eventual sempre que isso lhes parea conveniente ou lucrativo.

    Essa possibilidade, por sua vez, produz no pas dois outros tipos de migrao: a migrao sazonal e a migrao circular. Ambas adequadas racionalidade do lucro empresarial.

    A migrao sazonal aquela que se define atravs da combinao, por parte dos trabalhadores, das oportunidades existentes de trabalho temporrio. Por exemplo, a migrao dos pequenos produtores do norte de Minas Gerais para o trabalho de corte de cana na regio de Ribeiro Preto, no Estado de So Paulo. Quando o corte de cana termina, eles voltam para trabalhar em suas prprias terras ou para fazer pequenos bicos nas suas cidades de origem. Isso, preciso insistir, corresponde a um clculo bastante racional dos usinei- ros da referida regio, que s no substituem esse cortador de cana pela mquina enquanto ele lhes mais barato.

    Na migrao circular, esse carter perverso que os setores empresariais fazem dessas populaes ou do fato da oferta de trabalho no pas ser menor do que a demanda ainda mais acentuado. Trata-se de movimentos de populao decorrentes de planejamentos estatais ou empresariais de utilizao desta mo-de-obra sobrante. Quase todo o setor de construo das grandes obras no pas tem sido programado

    dessa forma. De tal sorte que signi-- ~ flcativas parcelas de trabalhadores sobretudo da construo civil passam a ser transportadas de um canto para outro do pas, atendendo- racionalidade do lucro das empreiteiras na maioria das vezes contftT* tadas pelo prprio Estado. . . ^

    Acredito que, para evitar essa abordagem que considera os migrantes como pessoas naturalmente errantes, preciso entender o que diferencia um homem de rua de um migrante. Algo muito tnue, mas decisivo. Eu diria que a capacidade de sonhar. Nas minhas experincias, tenho observado que o sonho de encontrar as condies para viver com mais dignidade o eleijiento . energizador da errncia que nnf ' os processos migratrios em noss.o pas. Se estou certa, o homem de rua seria o homem que deixou de sonhar. E o estar de passagem nesta "ou ria.-?.' quela cidade teria de ser lido por ns de uma outra maneira. Essas pessoas que nos dizem que esto de passagem e que costumamos caracterizar como migrantes esto..nos. * dizendo que tambm ali, rios esp& f- os onde estamos intervindo, no lhesr oferecida uma possibilidade de viver decentemente. _'

    Na expresso da representante de uma experincia de Campinas, que fez uma exposio muito bonita,- o homem de rua uma pessoa que foi, pouco a pouco, perdendo seus territrios. Resta-lhe, como ltimo terri-

    * ' f - - ttrio ou espao de defesa, seu ciftprr. ' Um corpo que est doente e requer cuidados. Trata-se de pessoas que perdem, primeiramente, as suas prprias razes, quando saem de casa

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  • em busca de uma vida melhor. Nessa busca que no cessa, vo pouco a pouco perdendo o prprio passado, pela impossibilidade de recri-lo em outro local ou de se reproduzirem enquanto famlia. Perdem a memria e, pela dificuldade de se qualificarem para o trabalho, vo somando

    experincias fragmentadas que no lhes asseguram uma identidade social. Devagar, perdem tambm o sonho ou, de um outro ngulo, o futuro. Essa viso do homem de rua como resultado de um processo de perdas sucessivas permite entender melhor seus comportamentos.

    IV. NS E ELES: ALTERED ADE*Maria Conceio d'Incao

    Aps a j mencionada caracterizao dessas populaes como resultantes de sucessivos processos de perda, a representante de Campinas nos interroga sobre a qualidade da relao que podemos ou devemos ter com elas. E prope que procuremos responder a esta pergunta atravs de uma anlise que nos conduza descoberta daquilo que temos em comum ou nos identifica com essas populaes. Sugere que olhemos para os homens de rua considerando-os como expresso do que se passa com a prpria sociedade brasileira. Uma sociedade que nos tem roubado os sonhos e ameaado os projetos... Por esse caminho, estaremos criando um mnimo de identificao com os problemas dessas populaes e estaremos nos capacitando para uma relao pessoa-a-pessoa com os homens de rua. Uma relao minimamente transparente e despida da marca paternalista ou assistencialista bastante comum na ao das instituies que estamos aqui representando.

    Dito com outras palavras, a questo da qualidade da relao interpessoal com os homens de rua. Insistindo na necessidade de uma re

    lao humanizada, capaz de compreender o comportamento dos mesmos, a prpria companheira de Campinas interrogou o grupo sobre qual seria a base de construo dessa relao. E props que a procurssemos nas semelhanas existentes entre ns mesmos, enquanto brasileiros, e as pessoas que se constituem nessas populaes de rua. Insistiu que o povo brasileiro tambm um povo sem razes e sem memria. Que tambm est perdendo a esperana ou o sonho. E que tambm migrante no sentido de que raramente vive onde nasceu ou reproduz, onde vive, relaes sociais que lhe deram origem. Se pensarmos nisso, seguramente encontraremos espaos de identificao que nos permitiro uma relao mais pessoal e menos institucional com essas pessoas que classificamos de populao de rua.

    Essa dimenso de busca de nossas semelhanas com as pessoas junto s quais realizamos nosso trabalho de interveno introduz, necessariamente, a da maior clareza sobre as

    ' A partir deste subttulo, o texto no foi revisto pelas conferencistas.

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  • nossas diferenas. Sinto, no meu prprio trabalho, que a garantia da transparncia nessas relaes passa tambm pela conscincia que tenho da minha diferena. Somos iguais enquanto pessoas que respeitam mutuamente as diferenas umas das outras. Insisto nisso porque tenho dois tipos de receio em relao ao que entendo ser uma compreenso errnea das relaes inter-pessoais. O primeiro liga-se ao j mencionado paternalismo, no qual a nossa diferena, travestida de compreenso, bondade, generosidade, etc, inibe o processo de comunicao ou a existncia da igualdade na relao. Sem a qual nossa interveno estar meramente reproduzindo a relao dominador/dominado que explica, historicamente, a pobreza existente nos setores populares da sociedade brasileira. Estaremos, portanto, reproduzindo a pobreza que pensamos estar combatendo...

    O outro risco que decorre do esquecimento de nossas diferenas o de perdermos nossa capacidade de indignao. Tenho tambm observado que minhas relaes em situao de trabalho de campo se aprofundam, medida que o espao das semelhanas existentes entre eu e os trabalhadores e suas famlias tende a crescer. Laos afetivos se constroem e o prazer do encontro se substitui relao inicialmente s profissional. Nessas situaes, procuro ficar vigilante no sentido de no perder o distanciamento necessrio avaliao crtica das condies em que vivem esses trabalhadores. Esse distanciamento depende da clareza que eu tenha da minha diferena ou da minha capacidade de ter sempre

    presente que a pobreza e um mal a ser combatido. Em outra? palavras, da minha capacidade de indignao.

    Ainda nesse departamento da relao pessoa-a-pessoa, uma questo tambm levantada foi a da necessria ateno extrema diferenciao existente nas populaes de rua. Sabemos que qualquer trabalho de interveno direta na realidade social deve estar atento singularidade dos indivduos que a compem. Aprendemos isso no dia-a-dia de nossos prprios trabalhos e ao preo de um duro esforo de crtica das representaes idealizadas que tnhamos das pessoas e situaes sociais com as quais trabalhamos. Ora, no caso, a importncia da ateno singularidade dos homens de rua parece ser maior ainda. Porque, se os entendemos como pessoas que j perderam muitos territrios, meio territrio que ainda lhes resta dado precioso. Da nossa capacidade de valorizar, considerar ou resgatar as especificidades de cada uma dessas pessoas depende a eficcia do nosso esforo coletivo de reconstruo da identidade ou daV^tgndade social dessas populag^: y

    Fica a questo da importncia de uma viso macro-e.strutural para a politizao de nossas estratgias de interveno. Sem essa viso, corremos o risco de nos perdermos em solues tpicas para os problemas dessas populaes migrantes ou das populaes de rua. Sem- dvida, conforme tenho insistido-, no nos basta essa viso macro. Temos de estar atentos especificidade de cada situao e, em especial, singularidade de cada indivduo para o qual

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  • nossa ao se dirige. Mas como desenvolver uma prtica cotidiana de trabalho orientada para a singularidade dos indivduos sem perder a dimenso politizante que oferecida pelo conhecimento dos processos sociais mais gerais as migraes, por exemplo? E um tema que tambm acredito ser da maior relevncia para os debates em curso neste Seminrio. Tema complexo e bastante central, hoje, no pensamento poltico.

    Delma Pessanha Neves

    Na medida em que estou me comunicando com os que tm como dever de funo encontrar sadas e solues, sugiro que qualquer proposta que pretenda inserir ou reinserir esses indivduos sob outras modalidades de atividade produtiva deve operar, antes de tudo, com o rompimento da desclassificao social, da

    desmoralizao e da reificao das causas individuais. Por outro lado, no basta negar o seu tipo de atividade ou ocupao porque ela incorporada em face da escassez do emprego, cabendo ao prprio trabalhador inventar e reinventar formas de sobrevivncia.

    Considero que o reconhecimento dessa atividade produtiva e do trabalhador a ela vinculado, a politizao das questes que a envolvem, inclusive pela incorporao de direitos e os coletores de lixo j vm pondo em prtica essa luta e apontando para essa necessidade de reconhecimento , a colaborao das instituies na viabilizao de um fundo de consumo que no abarca apenas recursos materiais, mas tambm culturais, simblicos so fatores fundamentais para romper ou minimizar o processo de desclassificao social e atuar no processo de reclassificao social.

    V. POTENCIAL DE TRANSFORMAO SOCIAL?Alba Zaluar

    Essa populao de rua no pode ser encarada como uma minoria porque diferenciada internamente do ponto de vista das perspectivas de sada dessa situao de muito sofrimento e de muita dificuldade. A maior parte deseja deixar esta situao e este seu desejo deve ser respeitado. Por conta deste fato, muito difcil tentar tratar essa populao como uma minoria (como so os negros, as mulheres, os ndios), porque minorias esto organizadas ou montadas numa identidade que partilhada por todos, numa capacidade de organizao que j exis

    te e tambm numa autonomia de fabricar o seu prprio discurso para apresentar as suas reivindicaes. Tendo a concordar com o que j foi dito aqui no sentido de que esta populao fragmentada, desvinculada, atomizada. O imperativo permitir- lhes sair desta situao que eles prprios chamam de sofredor de rua.

    Maria Conceio d Incao

  • pem as populaes de rua e o processo mais geral de transformao de nossa sociedade, tem sido colocada em debate a questo da integrao/no integrao dessas pessoas aos processos sociais dominantes. At onde pude entender, esse debate surge da crtica ao das instituies que, passando por cima das especificidades dos homens de rua, procuram integr-los ao mercado de trabalho de forma autoritria e, conseqentemente, ineficaz.

    No intuito de propor uma ao capaz de respeitar essas pessoas, partindo do conhecimento de seus limites e possibilidades ou do que elas so, muitos dentre ns tm afirmado a existncia de um potencial transformador da sociedade nas prticas cotidianas dessas populaes. Isto , tm afirmado ou sugerido que os homens de rua so portadores de uma crtica nossa sociedade, que essa crtica aparece no fato de terem optado por uma vida mais livre, um novo modo de vida, etc.

    Referindo-se a essa questo, um dos representantes da cidade de Londrina nesse encontro dizia que registrou a presena do que chamava de duas posies polticas a respeito das prticas de interveno junto s populaes de rua em sua cidade: uma que parte de fora e outra que parte de dentro da realidade da vida dos homens de rua. O objetivo do referido colega era denunciar o carter autoritrio das prticas que se definem fora dessa realidade enquanto prticas que reproduzem as relaes de dominao que, historicamente, so responsveis pela existncia dessas populaes em nossa sociedade.

    So as j mencionadas prticas pa- ^ temalistas. E acho que j lugar comum entre ns a necessidade de desenvolver prticas construdas a partir do respeito especificidade^-, dessas pessoas, as nicas capazs de resgatar ou reconstruir a dignida^.^^ de si mesmas e, conseqentement,' capazes de promover a mudana-dai ^ t- relaes sociais que vm reproduzindo a pobreza em nossa sociedade.

    Pessoalmente, tenho podido observar que as relaes iguais ou transparentes, s quais j nos referimos, so em si mesmo transformadoras. Porque essas pessoas foram socializadas nas perversas relaes de dominao que caracterizam nossa histria e, na oportunidade de uma relao igual ou de respeito mtuo, cooie-^-7, am a romper a paralisia das relaes sociais que lhes foram impostas. . * e a se pensar como capazes d&_alv_,_ gum tipo de deciso sobre suas pr-;; j* prias vidas. Mas da a pensar as - " alternativas de vida ou de trabalho que os homens de rua vm desenvol- _ vendo em seus cotidianos, penso que existe uma grande distncia. Proclamar a liberdade implcita nesgesr.V; novos modos de vida me parece,* mnimo, inocncia.

    Delma demonstrou os caminhos peiii^.. los quais nossa sociedade se apropria do trabalho produzido pelas populaes que exclui do direito a ter direitos, sem entretanto excluir da participao, enquanto mo-de- obra barata, nos processos produtivos ou nos processos de acumula^ r y - ' de capital. Da minha parte, quero _ terminar com mais algumas interrogaes: possvel pensar a reconstruo da dignidade dessas pessoas

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  • sem a recuperao dos territrios que foram perdendo em suas trajetrias de vida? A famlia, as razes e as identidades sociais todas? Sem assegurar-lhes o direito a ter direitos? E possvel recuperar essas perdas sem pensar a reintegrao social dos mesmos? Sem reconstruir-lhes o sonho de uma vida melhor e com mais segurana? De uma vida com mais dignidade?

    Nas minhas experincias de pesquisa, tenho podido observar que a perda desse sonho ou dessa possibilidade de uma vida melhor, mais estvel, mais digna o comeo de uma srie de desestruturaes pessoais. Dentre os cortadores de cana da regio de Ribeiro Preto, onde trabalhei durante quatro anos, pude assistir a vrios exemplos dessa de- sestruturao: o de um rapaz que, depois de trs anos consecutivos de viagens ao vale do Jequitinhonha para a referida regio e para o corte de cana, se desequilibra e internado. Seu projeto ou sonho era reunir um pouco de dinheiro para poder trazer a famlia e se fixar na regio. Quando percebe que isso no possvel, decide ficar s na regio, procurando bicos para realizar na entre-safra da cana e se desestrutu- ra. No seu delrio de loucura, a que pude assistir, ele repetia sem cessar que precisava ir buscar a me.

    Um outro, chefe de famlia, depois de muitas tentativas sem sucesso de livrar as prprias filhas desse trabalho arriscado e sujo, comea a beber e tambm se desorganiza. Comea a ter delrios. Uma voz que lhe anuncia acidentes de caminho... Acaba no podendo mais trabalhar. Assisti morte desse trabalhador. E seriam muitos os exemplos que poderia arrolar aqui desses processos de desestru- turao associados perda do sonho ou dos projetos de vida com dignidade.

    Parece-me evidente que a reconstruo dessas pessoas passa pela valorizao daquilo que lhes resta e, conseqentemente, daquilo que fazem e das formas como se organizam para viver. Isso que muitos dos presentes vm conseguindo fazer com surpreendente sucesso. Mas tenho muitas dvidas sobre as possibilidades de reconstruir-lhes o sonho e a dignidade sem reintegr-los socialmente.

    E tenho receio dessa valorizao ingnua das suas formas ou modos de vida como espaos de contestao social ou de exerccio de liberdade. Sou tentada a pensar que essas leituras das populaes de rua correspondem muito mais a desejos de liberdade reprimidos em ns mesmos. H projees, nessas populaes, de nossas prprias frustraes. Mas isso j uma outra histria.

    VI. IDENTIDADE E CIDADANIAMaria Lcia Monles

    No decorrer deste Seminrio, ao se falar de identidade, estava-se falando, por um lado, de alguma coisa que

    est no plano do indivduo, estava se pensando na reconstituio da integridade psquica de indivduos que,

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  • como parte desta populao de rua, vivem uma experincia extremamente dolorosa de fragmentao da vida. A recuperao da identidade aparece a como associada muito de perto recuperao da dignidade. E alguma coisa, portanto, pensada na dimenso mais micro, mais individual, mais prxima da experincia cotidiana de cada um que trabalha com a populao de rua.

    Isto por um lado. Por outro lado, quando se falava em identidade, era tambm no sentido no da reconstituio de uma integridade psquica frente a uma experincia de fragmentao, mas no sentido da construo social de uma identidade coletiva desta populao de rua como ator social e poltico. E no processo de construo social desta identidade coletiva que deve emergir a figura do cidado, do homem de rua no mais como excludo, mas como sujeito de direitos.

    Quer dizer, na verdade, sob a palavra identidade ns falvamos de duas coisas extremamente diferentes.

    Cada vez que se falou neste cidado, nestes direitos que lhe so devidos, o Seminrio, sem exceo, pensou no registro da privao ou seja, tudo o que falta ao homem de rua para chegar cidadania. E, cada vez que se referia a cidado, se falava em coisas extremamente amplas que iam dos direitos humanos, aqueles bsicos e elementares sem os quais a dignidade da pessoa humana no pode ser resgatada, at a pluralidade de dimenses dos direitos sociais que devem ser assegurados a esta populao de rua.

    Agora, sob esta amplitude h alguns problemas, porque a gente acaba tomando os conceitos pelo que eles parecem significar do ponto de vista do senso comum.

    Com relao ao conceito de identidade, a idia do senso comum pensar exatamente na permanncia, naquilo que ao longo do tempo permanece sempre idntico a si mesmo. E por isso que se chama identidade: alguma coisa resistente, algo que se possa perder eventualmente perdeu- se a identidade ou ento que se possa recuperar depois atravs de um processo de reabilitao, regenerao, etc.

    Mas, ao contrrio do que parece, a identidade tal como vista pela Psicologia e pelas Cincias Sociais de um modo geral corresponde a alguma coisa que est no nvel da experincia psquica como lima espcie de sentimento de unidade. No permanncia, aquilo que transforma em unidade uma pluralidade fragmentada de experincias. No uma coisa que a mesma ao longo do que varivel, aquilo que d unidade a uma variao: permanente de situaes, porque isto que define a vida psquica dos indivduos. No plano social, quando falamos de uma carteira de identidade, por exemplo, estamos falando de alguma coisa que determina a singularidade de um indivduo, marcada pela impresso digital, apesar dele desempenhar uma pluralidade de papis sociais.

    A identidade, no casoj.algo que faz parte de um conjunto de representaes que a sociedade e os indivduos tm sobre aquilo que d unidade a

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  • uma experincia humana que por definio mltipla e facetada, tanto no plano psquico como no plano social. Essas representaes evidentemente so construdas diferentemente segundo diferentes tipos de sociedade, segundo o lugar diferencial que o indivduo ocupa nesta sociedade, segundo o conjunto de valores, de idias, normas, etc que pautam o cdigo de leitura atravs do qual ele interpreta a sua viso do mundo, a sua viso de vida. Ele organiza a sua percepo da realidade a partir deste lugar.

    O que eu quero dizer com isso que no h, portanto, identidade que no seja socialmente construda no plano simblico da cultura. Ns estamos falando de alguma coisa que , antes de tudo, no uma coisa, mas um feixe de relaes. Identidade no coisa, identidade relao.

    Ento, se queremos pensar a identidade do homem de rua frente aos outros atores com os quais ele se confronta na vida da cidade, temos que pensar qual essa rede de significados que a vida social constri no plano simblico da cultura e que movida, evidentemente, pela dinmica da vida social. Rede de significados frente qual os homens de rua vo estar dizendo, em momentos alternativos, quem so eles, se aceitam ou no as identificaes que lhes so atribudas, se negociam ou no e, inclusive, como que transformam ou manipulam estas representaes que a sociedade constri a respeito das suas identidades.

    A partir da perspectiva mais ampla que este Seminrio nos ofereceu ao dar um panorama nacional sobre a

    questo da identidade do homem de rua, comeamos a perceber algumas das coisas que constroem esta identidade. So discursos muito especficos que a sociedade produz. So significaes com as quais meu olhar vai enfrentar aquele outro e aquele outro olha e aceita ou no o cdigo de identificao a partir do qual eu o estou lendo.

    Tentando avaliar o que aconteceu no Seminrio, encontrei quatro tipos de discursos diferenciados.

    Em primeiro lugar, eu diria que se falou e se criticou, com toda razo, o que eu chamo de Discurso Higieni- zador, o discurso que, na linguagem da patologia mdica ou jurdica, associa pobreza doena e criminalidade. Ora, o modo pelo qual eu recorto quem este homem de rua e defino por que trabalho com ele vai determinar imediatamente como ser o meu trabalho. Isto , quando eu penso, atravs do Discurso Higienizador, a identidade deste homem de rua como recortada pela carncia que associa a pobreza doena e criminalidade, isto vai requerer evidentemente recuperao, reabilitao, quando no regenerao. E esta linguagem que sustenta as propostas que falam da recuperao: no fundo, elas esto tentando tirar o indivduo de um patamar de doena fsica, social ou moral, ou do perigo imediato da criminalidade. um discurso que requer, portanto, a recuperao e a regenerao como alternativas que orientam a proposta e a prtica com os homens de rua.

    O segundo discurso que eu apontaria o D iscurso Moralizador, que

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  • pensa a recuperao do homem de rua por uma outra tica: o operador fundamental que organiza este discurso a noo de trabalho. Isto , o modo pelo qual os homens de rua se relacionam ao trabalho alguma coisa que faz com que eles sejam ou no bem aceitos. E, a bem da verdade, quando os homens de rua aparecem se recusando ao trabalho, eles em geral so extremamente mal aceitos. A noo de trabalho organiza toda uma tica de reintegrao. Quer dizer, no discurso que eu estou chamando de moralizador, o conjunto de valores que torna o ser humano digno de aparecer como ser humano organizado a partir do conceito de trabalho.

    O terceiro discurso que detectei nas falas deste Seminrio foi o que chamei de Discurso da Excluso. Naverdade, ele vai pensar a questo da reintegrao, que o discurso anterior colocava, atravs da assistncia isto , aes emergenciais ou permanentes de apoio s populaes carentes e fornecimento eventual de servios. O discurso assistencialista a contrapartida de uma viso do homem de rua pela tica da excluso.

    O quarto discurso o que eu chamaria de Discurso de Autonomia,que, na verdade, vai pensar a mesma questo da excluso, mas por uma outra tica. Ele vai pensar a negao da excluso atravs da construo de novos atores coletivos, capazes de participar no plano da vida social e da vida poltica. Essa construo pensada como uma ao poltica e pedaggica ao mesmo tempo, e o que est no horizonte a conquista da cidadania.

    No fundo, o que d unidade a estes-, quatro discursos, embora eles sejam diferentes, uma espcie de noo de desordem, e portanto de perigo, que est associada presena des-' ' tes homens de rua. E o que eu chamo de marca da liminaridde. liminaridadeTE o sujeito que est v_ no limite, na fronteira entre T- ~ dem e a desordem. E a presena dele que nos obriga a tematizar que a sociedade tem regras, tem ordens. E os homens de rua, estando com um p na ordem e outro na desordem, so uma figura extremamente con- flitiva, uma figura ambivalente. A ambigidade prpria desta condio de transio alguma coisa que marca, nestes quatro discursos, a maneira pela qual o homem de. rua_- pensado.

    Agora, evidentemente, isto estou Ta- - lando de ns pensando neles. MasJ como eu disse, a construo da idh--:v-.~ tidade um processo que tem dois lados: ns pensamos e a sociedade solta este discurso; e eles se reapro- priam do nosso discurso e so capazes de manipul-lo e inclusive de--** combinar vrios dos seus elementoa^^^ a depender do ator especfico que tm * pela frente. . - -

    O que quero dizer? Por exemplo, twlo" mundo sabe que o trabalho uma coisa essencial na tica que organiza a concepo de vida desta nossa sociedade. E o que apontam muitos, entre os prprios homens de rua quando dizem: Perdemos a carteira de trabalho. Mas de repente a gerf ^ encontra um depoimento que dTz>* Mesmo que eu tivesse a carteira de trabalho aqui, eu no sei se quero trabalhar. Ou seja, no momento

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  • seguinte, frente a outro ator, ele rela- tiviza essa tica, no aceita a dominao do discurso do trabalho. Outra coisa muito mencionada aqui foi a relao entre alcoolismo e culpa: o alcoolismo pensado pelos homens de rua como queda, como aquilo que provoca o desprezo por parte da sociedade. Mas eu me pergunto se esta noo de culpa e de queda no est associada ao fato de que esses homens esto falando com organizaes confessionais de cunho cristo que so a maioria daquelas que tm um trabalho com populaes de rua. Estou dizendo isso por uma razo muito simples: quando penso que a bebida de maior consumo a pinga, e sei, por outro lado, que um dos grandes centros de fornecimento de pinga para estes homens de rua so os despachos de Candombl que se encontram nas esquinas e nos cemitrios, eu no sei se, ao in s de ter o padre na frente eu tivesse o pai de santo, eu no iria dizer tudo bem, obrigado, Exu, sem culpa, e pegar a minha pinga.

    Vocs percebem, eu no estou dizendo que um discurso bom e o outro ruim; estou dizendo que so diferentes discursos, e que o outro no caso, o homem de rua encontra determinadas maneiras de manipular estes discursos para construir a sua prpria identidade.

    Basicamente, o que complicado que, frente contradio desta pluralidade de discurso que a sociedade constri sobre a identidade do homem de rua, na medida em que ele os introjeta, passa a viver uma situao de tenso enorme que acaba produzindo uma experincia de fragmentao.

    Uma tentativa de sada desta fragmentao coloca simultaneamente a questo da reconstruo eu diria mais da reconstruo da identidade fragmentada que paralela ao modo pelo qual se constri simultaneamente a identidade coletiva dos atores polticos. E por a passo a uma segunda questo, relativa cidadania.

    De fato, o que se diz da construo de identidade do homem de rua que h uma ruptura das redes de relaes sociais, dos laos afetivos que o uniam sua comunidade. Passando cada vez mais a viver uma experincia de isolamento, de incomunicao, a loucura a conseqncia necessria disto. Quando eu simbolizo sozinho, quando eu invento um jeito de construir o mundo que ningum partilha comigo, eu de fato enlouqueci. A ruptura desses laos ento alguma coisa que provoca esta desagregao, esta desintegrao da personalidade individual. Isto num primeiro momento.

    Num segundo momento, h uma insero deste homem de rua em outras redes de relao, desde a rede da Boca de Rango at os mocs e as informaes que circulam sobre as outras pessoas que esto chegando na rua. E da se criam laos de solidariedade entre eles e de ligao com as instituies que trabalham com eles. No entanto, so laos contraditrios, porque h sempre uma negociao dependendo de com quem ele est falando: ele est disposto a usar uma das suas identidades na sua relao com um e outra identidade na sua relao com outro.

    Ora, vrias experincias relatadas aqui demonstraram a importncia

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  • da organizao coletiva de umaidentidade fragmentada. E esta a razo fundamental pela qual a concluso que todo mundo tirou deste Seminrio que impossvel pensar um trabalho significativo e eficaz com esta populao de rua que passe pelo recolhimento deles, por descontextualiz-los, por tir-los do lugar onde se desenvolvem estas suas experincias significativas.

    Do ponto de vista da questo da cidadania, essa ruptura dos laos afetivos construdos na rua aparece como uma estratgia extremamente complicada; significa que vou trabalhar pela recuperao do homem de rua, pela sua regenerao. E uma perspectiva de assistncia.

    Mas tambm do ponto de vista da cidadania, se eu valorizo a insero do homem de rua nas redes de sociabilidade e nos laos de solidariedade que se criam, posso ser tentada a imaginar que se trata de preservar este modo de vida enquanto tal, o que cria duas coisas extremamente complicadas: por um lado, eu posso estar colocando a obrigao do Estado conceder populao de rua, enquanto direitos sociais, certas condies e servios o que significa, ao mesmo tempo, obrigar o Estado a reconhecer como permanente este modo de vida, que eu no sei se o Estado quer que se reconhea como permanente. Por outro lado, eu posso estar pensando esta preservao do modo de vida numa tica de mudana social, como foi enfatizado aqui vrias vezes: Isto representa um protesto contra a ordem capitalista. E importante que seja preservado; ou Eu posso pensar esta comunidade

    como futuro embrio de uma sociedade socialista...

    Acho extremamente complicada esta perspectiva que imagina estar preservando e recuperando a comunidade ou o futuro embrio da sociedade socialista. Isto , que imagina que cabe ao Estado e a ns a obrigao moral de dar a este Sofredor os direitos sociais que ele no tem.

    Um processo quase idntico foi apresentado aqui pelos representantes de uma experincia do Canad, mas o que me chamou a ateno foi o fato deles estarem fundados num outro pressuposto: eles no estavam construindo direitos sociais, e sim direitos civis. Eles estavam reconstituindo a obrigao dos indivduos refazerem o Pacto Social. Aprenderam, no convvio, qual o significado de criar regras comuns, uma mesma regra para todos, umamesma regra que pressupe a no pessoalidade, isto , no pressupe a relao pessoal que cria o privilgio. O fato de ns insistirmos tanto em direitos sociais enquanto, na perspectiva do grupo de Gknad, o que estava na base era a construo dos direitos civis e polticos mostra alguma coisa: por mais que a gente tenha precauo-crtica, o Estado Patrimonial, Paternalista, Burocrtico, Hierrquico volta insidiosamente a deixar uma marquinha na nossa cabea, e a gente est novamente querendo encontrar um novo heri que vai fazer a ao transformadora da sociedade e'flo qual cabe dar direitos sociedade.

    Eu tenho a impresso de que a construo da cidadania pressupe a crti

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  • ca da nossa perspectiva e, neste sentido, a experincia do Canad pode nos servir de modelo. Eles pegaram um espao vazio e fizeram com que as pessoas, a cada momento, decidissem no s como que iam reconstruir o espao fsico, mas tambm o que queriam fazer e como. E as pessoas, ao longo do trabalho, aos poucos foram construindo as regras pelas quais ordenaram o convvio. Elas fizeram, no microcosmo daquele projeto, um novo Pacto Social. Aprenderam o que viver em sociedade... e a no d para ter o jei- tinho brasileiro que entranha a nossa cultura de relaes personalistas! Quer dizer, no uma questo de primeiro mundo ou terceiro mundo; eu diria que h um mundo, o nosso, com um tipo de Estado personalista, autoritrio, clientelista. E

    h um Estado que veio dos processos histricos do sculo XVIII, das revolues burguesas, que construiu uma mesma noo de leis para todos e de todos iguais diante da lei. Claro que, na prtica, a gente sabe, os indivduos no so todos iguais diante da lei, mas h um consenso de que esta noo do valor do indivduo como responsvel pela sua vida alguma coisa que faz parte daquele contexto cultural e que no faz parte do nosso.

    No estou dizendo que a soluo individualista boa; estou dizendo que o buraco mais embaixo. Ao invs de querer ir correndo dar os direitos sociais, a gente tem que comear a construir a noo de direitos civis que as pessoas no tm. Eu acho que uma coisa fundamental, que est faltando na nossa sociedade.

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