Essência
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Esta é uma versão de demonstração, em baixa resolução, do livro
“Essência – Vol I” e pode ser distribuída gratuitamente. Porém,
seu conteúdo está protegido pela legislação brasileira e possui
registro de autoria, portanto, não pode ser copiado, reproduzido
ou alterado sem prévia autorização da autora.
A seguir você encontrará o Prólogo e os dois Primeiros Capítulos
do Romance de Lorena de Macedo que em breve estará nas
livrarias pela Editora Literata.
Lançamento Oficial: 1ª Confraria Fantástica – 16 de junho –
Vila Mariana – São Paulo. Para saber mais:
www.lorenademacedo.com
Degustem...
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Não é verdade o que dizem a respeito de nossos últimos minutos antes de morrer. No
meu caso, a proximidade do fim não me conduziu a uma catarse de sentimentos ou a
lembranças de uma vida inteira. Eu só pensava como seria o primeiro golpe. A criatura
deslocaria meu coração para o centro do peito? Enquanto meu corpo se retesava a
espera do pior, uma pergunta me veio à mente: de que valeria minha morte se o que a
criatura desejava não estava ao seu alcance?
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Sempre gostei do estalido das folhas secas sob meus pés. A visão da calçada de minha
casa, inundada de um amarelo crepitante do Ipê desflorado, enchia-me de uma alegria
difícil de ser sentida. Não raro me sentia alegre e também angustiada pelo medo da
efemeridade de um sentimento tão oscilante. Olavo costumava tirar fotos daquela
paisagem bucólica com frequência. Tinha orgulho do gigante de flores amarelas que
embelezava nossa casa e a rua onde morávamos. Em nossos primeiros anos naquele
lugar, eu costumava brincar com o misto de flores e folhas que debulhavam no jardim
naquela época do ano. Rolava na grama umedecida pelo orvalho da madrugada e as
folhas secas e flores, ainda vívidas, grudavam em meus cabelos e em toda a roupa. Por
esse motivo, protagonizei muitas fotos tiradas por meu pai no exercício de seu
passatempo preferido.
Estacionei a velha Pampa de cor prata na entrada da garagem e desci sem pressa de
entrar em casa. Olavo veio receber-me na porta com uma expressão de euforia em seu
rosto arredondado.
— Olha só o que chegou para você! — com a mão esquerda erguida na altura do tórax,
papai segurava um envelope branco de tamanho médio e sacudia-o com impaciência.
Dei-lhe um beijo na bochecha e perguntei do que se tratava.
Papai aproximou o envelope do meu rosto e indagou-me, menos eufórico:
— Você não desconfia do que seja, Sara?
Dei de ombros e entrei em casa. Ele entrou logo atrás trazendo o envelope. Pendurei
minha jaqueta jeans no cabide de madeira disposto na parede atrás da porta e me virei
para ele, sem ânimo para adivinhações.
— Não faço ideia do que possa ser, mas acho que você já sabe, não é mesmo? —
esperava que me dissesse em poucas palavras o que havia no envelope.
Ele soltou um longo suspiro e respondeu, desapontado:
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— Sara, sua carteira de motorista chegou — estendeu a mão para me entregar o
envelope aberto. — Desculpe pela violação da sua correspondência, mas não pude me
conter. Ao contrário de você, eu estava ansioso e fiquei muito feliz com a chegada do
documento.
— Pai... — assumi uma expressão mais suave e obriguei-me a dizer algumas palavras
enquanto ele se dirigia para a sala. — Estou muito feliz por isso. Afinal de contas, essa
carteira de motorista representa muito para mim.
Papai me encarou com ternura enquanto me esforçava para demonstrar entusiasmo.
— Você se lembra da primeira vez que lhe pedi para me ensinar a dirigir? No começo,
você abominou a ideia e se encheu de argumentos ridículos para me dissuadir.
— Filha — sua voz assumiu um tom mais grave —, eu tinha bons argumentos e você
sabe bem disso.
Engoli em seco e o encarei por um breve instante. Tive medo que ele dissesse qualquer
coisa a mais. Qualquer coisa que pudesse me fazer passar a noite inteira me
perguntando o que realmente acontecera comigo. Nada, jamais, havia sido explicado a
nenhum de nós, mas por alguma razão obscura, papai parecia confortável com as
explicações óbvias. As pessoas discutiam as consequências, mas nunca as causas.
Nunca as identificaram. Jamais me conformei com o óbvio, mas aprendi a viver do meu
jeito. O jeito que me confortava e me permitia acordar todos os dias sem me lembrar
constantemente da minha precária condição.
O sono que se acumulara desde a madrugada anterior, passada no saguão de um
aeroporto à espera do avião que me traria de volta para casa, me fez desistir de
qualquer argumentação que pudesse prolongar a conversa. Abri um meio sorriso e dei-
lhe um beijo de boa noite. Papai permaneceu sentado no sofá, pensativo e sem
qualquer traço da euforia demonstrada minutos atrás. Subi rapidamente as escadas
em direção ao meu quarto, que ficava no final do pequeno corredor. As paredes do
segundo andar eram enfeitadas com fotos variadas e dois pequenos quadros de um
artista local. Antes de chegar ao quarto parei diante de um pequeno porta-retratos
pendurado na parede oposta à escada. As bordas descascadas denunciavam seu
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tempo de uso. A foto de minha mãe prendeu-me a atenção mais uma vez. Respirei
profundamente e mostrei a ela a carteira de motorista que acabara de receber.
Já no quarto, abri a cesta de vime envernizado e retirei um pijama de liganete. Meus
pés reclamaram por liberdade e atirei longe o par de sapatilhas preto. Enquanto meus
pensamentos dividiam-se em inúmeras direções, andava pelo quarto procurando uma
toalha limpa para tomar banho. Lembrava-me das férias na casa de minha tia-avó, dos
momentos na praia com amigos animados, das tardes cheias de conversas
despreocupadas e risadas exageradas, dos mergulhos no mar que me fizeram sentir
mais viva e menos impotente.
— Sentir mais viva.
Pronunciei a última frase em voz alta e a recordação da água gelada me causou
arrepios. Havia chegado de viagem naquela manhã e as lembranças das últimas férias
fervilhavam em minha mente. Dois meses inteiros passados longe de casa com a
intenção de me revigorar e me preparar para uma nova fase. Uma fase mais adulta e
responsável. Desde a minha mudança para a cidade de Terra Branca, há 10 anos,
nunca havia me ausentado de casa por tanto tempo.
Terra Branca era uma cidade pequena, com pouco mais de quatro mil habitantes,
incluindo a população rural. Um lugar de natureza farta, mata nativa beirando a
cidade, extensos quintais com pomares bem cuidados, pequenas quedas d’água
escondidas pela vegetação e o famoso rio Negro cortando todo o estado. Uma cidade
que se tornou meu lar quando papai foi transferido de Campelo, minha cidade natal,
para gerenciar a única agência bancária do pequeno distrito.
Após um longo banho quente, que me fez relaxar o suficiente para aquietar meus
pensamentos, tomei meus costumeiros remédios e me preparei para o sono dos
justos. Ainda era cedo e pude ouvir o som de vozes misturadas que vinham do
primeiro andar. Com certeza, papai estava assistindo à novela. Às vezes me sentava ao
seu lado nas noites mais quietas e assistíamos televisão por algumas horas. Sabia que
meu pai se sentia muito solitário e, sempre que me lembrava de sua solidão, eu me
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doava um pouco mais do que de costume. Nos últimos anos, seu mundo se resumia a
mim, e minha família a ele.
Soquei o velho travesseiro de espumas até ajeitá-lo bem. Puxei o edredom que
comprara pela internet e relaxei meu corpo. O pijama de liganete roçava em minha
pele provocando uma sensação de conforto e frescor. Queria adormecer antes que
minha cabeça se enchesse de bobagens e ideias malucas não me deixassem dormir.
Revirei um pouco e o colchão de molas rangeu alto. Antes de cair no sono olhei para o
despertador colocado na pequena mesa de mosaico ao lado da cama, o relógio
marcava vinte e duas horas.
Não sei ao certo o que sonhei aquela noite. Lembro-me apenas de estar vestindo
minha blusa preferida — uma bata branca de manga três quartos e bordado de
pedrarias na gola.
Acordei com o barulho de louça vindo da cozinha. Meu pai está fazendo o café —
pensei, enquanto me espreguiçava. As manhãs de sábado eram sempre iguais. Papai
levantava bem cedo para fazer uma caminhada pelas ruas do bairro. Na volta para
casa, passava na padaria e trazia pão francês, pão de queijo e algum outro tipo de
iguaria que atraísse sua atenção. Meu apetite matinal o agradava muito. Eu adorava as
manhãs de sábado por conta dos cafés caprichados que meu pai se sentia na obrigação
de preparar.
Havia terminado o ensino médio no semestre passado e, após a viagem de férias,
estava de volta em casa, para o último final de semana antes do início das aulas na
faculdade.
Eu não demorava muito para me levantar depois que despertava. Estiquei minhas
pernas para fora da cama e me ergui lentamente. O relógio ainda marcava vinte e duas
horas.
Estragou de novo — resmunguei para mim mesma depois de um profundo bocejo.
Após uma rápida passada no banheiro, desci para tomar café.
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— Café preto, Sara?
— Bom dia, pai.
— Bom dia, filha. Então... Café preto? — ele insistiu na pergunta.
Acomodei-me em uma das quatro cadeiras que compunham a mesa da cozinha e
esfreguei os olhos com a palma das mãos.
— Prefiro leite quente. — papai encheu uma caneca de louça com leite morno e me
entregou para que eu misturasse o achocolatado.
— Você se mexeu muito durante a noite. — disse-me entre uma mordida no pão
francês e um gole de café.
Olhei-o com uma expressão confusa.
— O colchão rangeu muito... — acrescentou sem desviar os olhos do pão.
— Ah sim... Sonhos tumultuados. — respondi sem pensar.
— Hoje de manhã o cachorro dos Maias tentou atacar novamente a minha sacola de
pães. — meu pai possuía uma incrível capacidade de mudar de assunto. — Tive que
afastá-lo com uma mão e a sacola com a outra por quase um minuto até que a dona
viesse e o levasse embora.
Soltei um risinho preguiçoso e continuei a tomar o leite. O cachorro do vizinho
correndo atrás de meu pai para pegar nossa comida era um sinal de que nada havia
mudado durante a minha ausência. Pelos menos, ainda não havia percebido nada
diferente.
— Vai sair hoje? — mais uma mudança drástica de assunto.
— Sim. — respondi automaticamente e acrescentei. — Logo após o café.
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Papai limpou a boca com um guardanapo e tocou no ponto que realmente o
interessava.
— Agora você pode dirigir livremente por aí. Já que a sua carteira de motorista chegou
ontem... — Olavo não havia se conformado com a minha falta de entusiasmo na noite
passada.
Aprendi a dirigir aos 15 anos de idade, depois de muito argumentar com meu pai,
implorando para que me ensinasse. Os filhos de nossos conhecidos já dirigiam por
toda parte e me sentia uma criança, sem qualquer autonomia para ir e vir. Meu pai
lutou muito para que eu desistisse da ideia e continuasse a depender de suas caronas,
ou então me conformasse com pequenas e vagarosas caminhadas, desde que as
mesmas não desafiassem meu fôlego escasso. Ele se valia de alguns argumentos bem
pensados, mas o motivo era evidente demais. Dizia que eu ainda era muito nova e que
não havia necessidade de começar a dirigir aos 15 anos, uma vez que só poderia retirar
a licença quando completasse a maioridade. Em contrapartida, eu retrucava a altura,
dizendo que quanto mais novos somos, mais fácil aprendemos algo diferente. Na
tentativa de me dissuadir, papai comprou um automóvel pouco atrativo para garotas
da minha idade. Uma Pampa velha, barulhenta, de pintura desgastada e com o banco
do passageiro com alguns remendos. Seu gesto me fez perceber o quanto ele desejava
que eu ficasse longe de um volante. Lembro-me que olhei para a Pampa, estacionada
pela primeira vez na garagem de casa, e não enxerguei seus defeitos como empecilhos.
Ao contrário, a liberdade estava estampada em cada centímetro de pintura queimada.
Os argumentos de Olavo, apesar de fazerem algum sentido, não eram fortes o
suficiente para vencer a minha teimosia. Por fim, resolveu ceder, temendo que eu
acabasse aprendendo escondida. Desde aquele momento, a Pampa passou a ser
objeto indispensável para mim, e papai comprou para si um automóvel mais
compatível com a posição que ocupava no Banco. Uma das vantagens de morar em
uma cidade pequena e pacata é que eu podia dirigir à vontade, sem me preocupar com
a fiscalização da polícia ou coisa parecida. No máximo, uma repreensão mal-humorada
de um dos poucos guardas locais por conta de uma acelerada mais temerosa.
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Papai estava fazendo um grande esforço nos últimos tempos para aceitar o fato de que
eu havia crescido e que meu estado permanente de saúde, se devidamente cuidado,
não me impediria de levar uma vida tão normal e corriqueira quanto à de qualquer
garota da minha idade. Quando sua preocupação com a liberdade que a carteira de
motorista poderia me proporcionar cedeu lugar para a satisfação estampada em sua
reação positiva na noite anterior, percebi claramente o quanto ele estava se dedicando
a encarar meu problema de uma forma menos neurótica.
— A licença já está na minha bolsa. — respondi.
Levantei-me e recolhi a louça do café. Coloquei tudo na pia e prometi que arrumaria a
cozinha assim que retornasse. Ele não perguntou pelo meu itinerário, disse apenas que
passaria o dia no sítio de Ney Abdala. Papai foi apresentado ao Ney em nossa primeira
semana em Terra Branca e rapidamente se tornaram amigos. Ney Abdala era um
ótimo cozinheiro e ensinou muitos truques ao senhor Olavo. Divorciado e pai de uma
filha que ele não via há alguns anos, Ney morava sozinho em um pequeno sítio nos
arredores da cidade.
— O que você e o Ney vão cozinhar dessa vez?
— Ney quer fazer uma galinha no fogão à lenha. — papai respondeu de forma
descontraída. — Prometi a ele que levaria a pimenta para o molho, mas se você quiser,
eu posso desmarcar e nós almoçamos juntos.
Apoiei-me na bancada da pia e respondi:
— Não acho uma boa ideia você deixar de experimentar essa galinha. Além do mais, eu
tenho algumas coisas para organizar hoje e devo comer algo na rua. Diga ao Ney que
eu mandei um abraço. — acrescentei enquanto me virava para apanhar minha bolsa
no sofá da sala.
Papai assentiu com a cabeça e encerrou a conversa com um apático até mais tarde.
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As ruas da cidade estavam umedecidas pela insistente garoa que caía naquela manhã.
Estacionei a Pampa em frente ao mercado da avenida principal e buzinei duas vezes
antes de descer. Marina apareceu na porta da frente com uma expressão curiosa, que
logo se transformou num largo sorriso estampado em seu rosto de traços delicados.
Ela vestia um avental preto que descia até o meio das pernas. O cabelo, de um
castanho avermelhado, estava preso displicentemente por uma presilha de plástico,
num coque desajeitado. Marina era minha amiga mais próxima. Uma garota nascida e
criada em Terra Branca.
Caminhei rapidamente em sua direção. Ela abriu os braços com alegria, me convidando
para um costumeiro abraço.
— Oi! Então você chegou ontem, não foi? — Marina perguntou enquanto me
abraçava.
— Sim. Ontem de manhã.
— Seu pai foi buscá-la em Valença? — ela me soltou e olhou-me direto nos olhos.
— Claro que sim. Quando cheguei, ele já estava a minha espera.
— Nossa... — começou a falar mais rapidamente. — Nós temos tanto o que conversar.
Quer dizer, você tem muito a me contar. Eu, que fiquei aqui nesse fim de mundo
desprovido de qualquer distração emocionante, não tenho nada de interessante para
dizer. Mas você, ah... Você deve ter algumas histórias...
Puxei-a pelo braço e nos sentamos no banco de madeira colocado no lado esquerdo da
entrada para o mercado.
— Marina, eu passei só dois meses fora. Não tenho muita coisa pra dizer. — interrompi
seu falatório com uma frase que a fez me encarar com desdém.
— Então, você quer que eu acredite que passou as férias inteiras em um paraíso
tropical e não tem nada de emocionante para me contar? — ergueu as sobrancelhas
numa clara expressão de incredulidade.
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Pigarreei antes de responder. Não havia nada de incrível que pudesse ser dito. Passara
dois meses hospedada na casa de minha tia-avó, em uma cidade litorânea repleta de
turistas eufóricos. Diariamente, o sol se abria por entre as nuvens mansas e castigava
todos os tipos de pele que se atrevessem a enfrentá-lo. Eu evitava a praia nos horários
mais lotados, desviando-me de convites insistentes da filha de minha tia e de suas
amigas. Nos finais de tarde, passeávamos pela orla, dividindo o calçadão com ciclistas
e corredores de todas as idades. Às vezes, um chuvisco nos surpreendia. Foram meses
de descanso e reflexão, dias que passaram vagarosos e previsíveis. Nada além do
esperado. Cruzei as mãos em cima do joelho e lhe dei uma resposta vaga:
— Você sabe como é. Muito sol, gente bonita, biquínis minúsculos, turistas com cara
de turistas, vendedores ambulantes pipocando em cada esquina, e eu passando
bloqueador solar a cada meia hora. Além do mais, nós nos falamos por e-mail as férias
inteiras, então você já sabe de tudo.
Ela suspirou profundamente e disse por fim:
— Esperava mais de você. — nós nos entreolhamos e começamos a rir.
Afastei-me um pouco de Marina e relaxei as costas no banco de madeira. O mercado
atrás de nós pertencia aos seus pais e ela trabalhava lá durante as férias, e também
nos intervalos da escola.
Escola. Pensei por um instante no último mês de aula. Os corredores enfeitados com
cartazes informativos a respeito de vestibulares em todo o país. Excitação e
nervosismo transbordando pelos poros dos alunos do último ano e uma decisão difícil
a ser tomada: para qual universidade eu deveria ir?
Por um minuto me perguntei se havia me enveredado pelo caminho mais adequado.
Estudar em Valença, há quinze quilômetros de Terra Branca e sob os cuidados de um
pai com tendências melodramáticas, não me parecia muito atrativo.
— Então... — arrancando-me de meus devaneios, Marina perguntou, subitamente. —
Você já se encontrou com ele depois que chegou?
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Demorei um segundo para me dar conta do que estava falando.
— Não. Na verdade, eu nem estava pensando nisso.
Ela revirou os olhos para o lado oposto e retrucou com ares de dona da verdade.
— Não estava, mas deveria pensar. Pedro gosta de você o suficiente para engolir o
próprio orgulho e vir me procurar durante as férias para saber notícias suas.
— Ele fez isso? — perguntei, surpresa.
— Algumas dezenas de vezes. No começo, eu fiquei com pena dele. Afinal de contas,
não é fácil para um garoto que foi chutado durante o baile de formatura esquecer a
dor do chute e correr atrás da louca que o chutou. Mas, depois da quarta vez em dois
dias, eu me irritei e passei a dizer que não sabia de você. É claro que ele não acreditou,
mas passou a vir menos aqui.
Pedro Molina foi meu par para dançar a valsa durante o baile de formatura do último
ano. Convidou-me para a festa com uma antecedência de quase três meses e não tive
como escapar. Frequentamos as mesmas aulas durante todo o ensino médio e
acabamos cultivando uma amizade restrita aos muros do colégio. Restrição que
dependia muito mais de mim do que dele. Marina costumava dizer que Pedro me
olhava com olhos apaixonados, mas nunca dei muita importância aos seus
comentários a esse respeito. Quando disse ao meu pai que não queria ir ao baile, ele
não se conformou e, achando que a razão da recusa estava na falta de um par,
perguntou a todos os clientes do Banco se seus filhos poderiam me convidar. Foi uma
época constrangedora para nós dois. De qualquer modo, Pedro resolveu o problema
de papai e o deixou satisfeito.
— Marina — respondi de forma simples e resoluta —, não sinto nada além de amizade
pelo Pedro. Não poderia me obrigar a estar com alguém que não faz meu estômago
formigar e... — mas antes que eu terminasse, ela me interrompeu gesticulando com as
mãos.
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— Blá-blá-blá... Formigas no estômago, coração saindo pela boca... Eu já ouvi isso
antes.
De repente, fomos surpreendidas pelo ronco de uma pick-up cabine dupla que dobrou
a esquina e passou vagarosamente pela avenida à nossa frente. Pela pouca velocidade
em que andava, pude ver com clareza a motorista loira que a conduzia com aparente
tranquilidade. Rapidamente, meu cérebro acionou o arquivo de lembranças à procura
de imagens daquela pick-up. Contudo, nem o carro nem a loira me eram familiares.
Meus olhos curiosos seguiram a pick-up preta até o cruzamento seguinte e então ela
dobrou a esquina, desaparecendo de meu campo de visão. Aquela cena me causou
uma impressão curiosa, difícil de absorver. Uma estranheza me fez remexer no banco
assumindo uma posição mais rígida e ereta. Com um surto de ansiedade, que julguei
inofensiva, olhei rapidamente para Marina à procura de explicações.
Ela também acompanhou o carro com interesse. A pergunta não precisou ser feita em
voz alta, pois diante da minha expressão interrogativa, Marina adivinhou o que eu
queria saber.
— Aquela é a pick-up dos Fideli. — disse pausadamente. — E a moça ao volante é Nora
Fideli.
Novamente meu cérebro não reconheceu aquela informação. Nunca havia escutado
aquele nome antes. Continuei a fitá-la com atenção.
— Você sabe... Eu lhe falei sobre eles em um dos meus e-mails durante as férias.
Joguei a cabeça para trás e fechei os olhos na tentativa de me lembrar do que ela havia
escrito na mensagem. Mas nada me veio à mente.
Sacudi a cabeça negativamente e desisti de lembrar.
— Quem são eles?
— Malthus Fideli comprou o sítio do velho Benjamim. A família se mudou logo depois
que você viajou. Costumam desfilar por aí em pick-ups de última geração.
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— E a moça?
— Nora é filha de Malthus e Julia Fideli. Conversamos uma vez quando ela veio buscar
umas compras. — Marina deu de ombros num gesto de descontração e continuou. —
É uma moça simpática e incrivelmente bonita. Parece que o casal tem quatro filhos,
mas eu ainda não conheci os outros três.
Esparramei-me no banco novamente, interpretando o sentimento de estranheza como
mera curiosidade. Marina mudou de assunto e passamos a conversar sobre os
preparativos para o primeiro dia na faculdade.
Havíamos escolhido o mesmo curso e estávamos satisfeitas com o fato de não termos
que nos separar. O curso de História da Universidade de Valença era um dos mais
antigos e bem conceituados do país. A princípio, cogitei a hipótese de estudar longe,
em uma universidade da Capital. Contudo, meu pai fazia questão de me ter sob sua
vista. Ao que parecia, eu precisava de cuidados constantes, mesmo com meu problema
sob controle. Marina prestou alguns vestibulares em cidades mais afastadas, mas
acabou optando por estudar perto de casa. Acho que minha escolha comodista a
influenciou bastante. Moraríamos com nossos pais ainda por um bom tempo, o que
facilitaria muito o começo da vida adulta. E assim como nós, muitos jovens de Terra
Branca fizeram escolhas parecidas, uma vez que a Universidade de Valença possuía um
leque bastante atrativo de cursos superiores.
Após conversar com Marina, entrei no mercado e comprei ingredientes para fazer uma
lasanha que aprendera na casa de minha tia-avó. Não era uma exímia cozinheira, mas
me obrigava a encarar o fogão quando não tinha nada melhor para fazer. Ela me
seguiu com empolgação, dando palpites na minha receita e se convidando para o
jantar. Despedimo-nos depois de almoçarmos juntas e a fiz prometer que não se
atrasaria, pois meu pai não gostava de comer muito tarde.
Quando voltei para casa naquela tarde, uma cena me surpreendeu. Ao dobrar a
esquina, avistei um rapaz pulando o muro de um vizinho em uma atitude suspeita. Ele
apoiou as mãos nas placas de cimento e projetou seu corpo acima do muro com uma
agilidade incomum. Caiu agachado na grama que margeava a fachada da casa. Parei a
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Pampa bruscamente do outro lado da rua e continuei a observar a cena que se
desenrolou em poucos segundos. A primeira reação orquestrada pelo meu cérebro foi
sair do carro e chamar sua atenção. Porém, minhas pernas congelaram quando o rapaz
ergueu as mãos e percebi que ambas estavam sujas de alguma coisa vermelha.
Sangue. Cogitei instantaneamente.
A adrenalina retesou meus músculos e prendi a respiração. O rapaz olhou para as
mãos, mas pareceu não se importar com a sujeira. Notei que havia manchas do mesmo
tom em seu jeans claro. Ele olhou para o lado e franziu o cenho quando a fraca luz do
sol incidiu sobre seus olhos. Depois, desviou o olhar e encarou a Pampa. Subitamente,
deslizei meu corpo pelo banco para esquivar-me de seu olhar curioso.
O que eu faço agora?
O impulso de acelerar o carro e sumir dali não era maior que a minha vontade de
entender o que estava se passando. Precisava saber para onde aquele rapaz iria. E
depois, bateria na porta do vizinho para descobrir que o sangue nas mãos do suspeito
era fruto de uma chacina.
Ergui lentamente a cabeça para avistar o rapaz. Ele continuava parado no jardim
olhando na direção da Pampa. Será que ele havia me visto? Enchi meu peito de ar e
me preparei para um ato de coragem. Levantei meu corpo, endireitando as costas.
Àquela altura ele já havia percebido que eu estivera ali o tempo todo, observando-o de
uma distância segura, como um investigador de tocaia.
Vai! Obriguei-me a reagir. Anda logo.
Abri a porta do carro e saí devagar. Não havia ninguém na rua. Esforçando-me para
parecer natural, escorei-me no capô da Pampa e perguntei, com cautela:
— Você parece perdido. Está precisando de ajuda? — minha voz vacilou, trêmula e
esganiçada.
O rapaz atravessou o gramado e parou ao final do passeio de pedras.
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— Eu pareço precisar de ajuda? — sua boca abriu-se levemente em um meio-sorriso
que me atordoou.
— Bem... — gaguejei um pouco. — Eu não sei, é que... — não sabia como responder
àquilo sem me referir ao sangue em suas mãos.
— Acho que assustei você. — disse-me, voltando os olhos para a roupa manchada.
Sua voz tilintava harmoniosa. Nenhum vacilo que pudesse denunciar a culpa
escancarada no vermelho que o marcava.
Liberei uma lufada de ar e meu tórax murchou, aliviado. Havia prendido a respiração
muitas vezes desde que avistara o estranho suspeito.
— Você não devia me ver aqui. Ninguém deveria me ver... — de repente, o rapaz
pareceu preocupado.
— Ninguém deveria ver você? — ergui as sobrancelhas em um gesto de assombro.
Será que aquilo era o começo de uma confissão?
— Desculpe-me por tudo isso. Eu fui muito descuidado.
Balancei a cabeça me obrigando a manter a calma.
— Você estava na casa dos Lemos? — perguntei, desviando o olhar para a porta de
entrada da casa do vizinho.
— Sim. Só espero que você não me pergunte o que eu estava fazendo lá.
Novamente, seu meio sorriso me desconcertou. A rápida oscilação de suas expressões
faciais não me ajudava a compreender a situação. Às vezes, um sorriso faceiro, outras
vezes um olhar preocupado.
— Tá legal. — afastei-me alguns centímetros da Pampa e me preparei para correr ou
gritar.
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O rapaz percebeu meu sinal de alerta e começou a cruzar a rua em minha direção.
Voltei-me rapidamente para a porta da Pampa e segurei a maçaneta.
— Espere! — ele ergueu umas das mãos para o meu lado. — Eu estava cuidando do
cachorro deles. — o rapaz se aproximou mais de mim.
Agora que estava mais perto, pude observar alguns detalhes de sua aparência. O tênis
branco trazia, na ponta de um dos pés, uma marca escura e arredondada.
O sangue dessa mancha deve ter secado. Pensei.
A camisa verde-clara estava um pouco amarrotada e as mangas arregaçadas na altura
dos cotovelos conferiam-lhe um aspecto desgrenhado. Contudo, foi seu rosto que me
fez perder o foco da situação por mais de um minuto.
O cabelo negro contrastava com a pele clara e o levíssimo tom róseo das maçãs do
rosto, algumas mechas espetadas na altura da testa e outras caindo em pequenas
ondulações pelo restante da cabeça. As sobrancelhas grossas e naturalmente
delineadas adornavam seus olhos de um azul opaco, com nuances acinzentadas. O
formato de seu rosto, com os ossos da mandíbula bem definidos e o queixo quadrado,
provocou-me um pequeno espasmo no estômago.
— Você é veterinário? — perguntei desconfiada, tentando dissimular a profunda
distração que suas feições haviam me causado. Os dedos da minha mão esquerda
mantinham-se firmes na maçaneta.
Ele sorriu e seus lábios se espalharam pela face perfeita. Nenhuma ruga ou saliência.
Sua pele parecia ter saído de um comercial de cosméticos.
Outro espasmo.
— Pode-se dizer que sim. — ele respondeu. Não percebi qualquer ironia em sua
resposta.
— Isso em sua mão é... — não consegui pronunciar a palavra que denunciaria tudo.
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— Sangue. Sangue de cachorro. — o rapaz completou a frase com naturalidade.
Nenhum sinal de oscilação em sua voz. Ele havia confirmado minhas suspeitas com
uma tranquilidade estampada em seu rosto e em todos os movimentos de seu corpo.
Subitamente soltei a maçaneta e levei as mãos à boca.
— O que aconteceu? — indaguei alarmada.
— Não se preocupe. Está tudo bem agora.
Obedecendo meus reflexos, projetei-me para frente rumo à casa dos Lemos. Queria
saber o que estava se passando. Mas o rapaz segurou meu pulso, detendo-me no
segundo passo. O toque de sua mão em meu braço esquerdo provocou em mim o
terceiro e mais forte espasmo. Encarei-o aturdida e ele me fitou direto nos olhos.
— Está tudo bem. Você não precisa ir até lá.
Balancei a cabeça e estreitei os olhos, enrugando a testa em sinal de completa
confusão.
— Olha... — disse-me depois de um segundo. — Nós não nos conhecemos e sei que
tudo isso é muito estranho, mas vou te pedir um favor. — ele ainda segurava meu
pulso.
Engoli em seco e assenti com a cabeça.
Ele se curvou alguns centímetros para alinhar seu rosto com o meu e se aproximou de
minha orelha esquerda.
— Você poderia confiar em mim? — suas palavras sibilaram em meu ouvido e fechei
os olhos, enquanto meu corpo estremecia em resposta ao seu hálito quente.
Abri os olhos bem devagar e precisei de alguns segundos para me recompor e
conseguir formular uma resposta. Não tive coragem de me virar para ele, pois a
proximidade de nossos rostos me faria olhar em seus olhos a uma distância perigosa.
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— Você tem razão. — respondi com o rosto voltado para a casa dos Lemos. — Isso
tudo é muito estranho.
Abaixei a cabeça e olhei para sua mão, que ainda segurava meu pulso. Ele
acompanhou meu movimento e nossas testas quase se chocaram.
— Desculpe-me. — soltou meu pulso e deu um passo para trás.
Inspirei lentamente e soltei o ar pela boca.
— Tudo bem. — devia estar ficando louca ao concordar com ele. Mas algo em seus
gestos e palavras aquietou meus instintos de sobrevivência. A constância de sua voz e
a onda de calor que emanava de seu corpo imprimiu em mim uma sensação de
conforto e sinceridade.
— Acho que posso confiar em você.
Ele fechou os olhos e sorriu. Pareceu-me um sorriso de alívio.
— Obrigado.
Nesse momento, fomos surpreendidos pelo silvo de uma buzina que me fez dar um
pulo para trás. O rapaz também se afastou e nós nos mantivemos encostados na
Pampa, enquanto uma van escolar passava à nossa frente.
— Preciso ir. — disse-me, já se afastando.
— Espere! — reagi automaticamente.
Ele se voltou e ergueu a palma das mãos.
— Se me virem assim, vão achar que matei alguém.
Estremeci ao ouvir sua última frase. Será que fiz bem em confiar nele? A dúvida
começava a instigar meus pensamentos à medida que o rapaz se afastava. Minha
conclusão inicial diante da situação também havia sido a de que ele cometera um
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crime. Tudo se encaixava nesse contexto. No entanto, bastou que ele se aproximasse
para que o calor de sua presença repelisse qualquer desconfiança. Mas, agora que ele
havia se afastado, sentia novamente a brisa fresca tocar minha nuca, eriçando os
cabelos e me fazendo pensar com racionalidade.
Quem era aquele rapaz e porque pulara o muro? Se estivesse na casa com o
consentimento dos moradores, o normal seria sair pela porta. Por que ele não se
limpara lá dentro? Como o cachorro se machucou? Mas todas essas perguntas ficariam
sem resposta, pois o rapaz dobrou a esquina e desapareceu com a mesma agilidade de
minutos atrás. Precisei de uns instantes para reagir àquilo tudo. As perguntas que não
fizera agora fervilhavam em minha cabeça. Refreei a ansiedade que começava a dar
sinais e entrei na Pampa.
— Está feito. — concluí em voz alta.
Poderia bater na porta dos Lemos para me certificar de que tudo estava bem. Mas eu
concordara em confiar nele.
Dei a partida e andei alguns metros até em casa.
Ao voltar do passeio no sítio do Ney, papai encontrou a casa arrumada e um cheiro de
comida vindo do forno. O sol, que durante o dia se mostrou tímido e preguiçoso,
brilhou com toda a intensidade que lhe era permitida em um fim de tarde de outono,
com seus raios cruzando a varanda e incidindo nos cômodos cujas janelas eram
voltadas para rua.
Estava arrumando a mesa da cozinha quando o ouvi abrir a porta devagar.
— Sara? — Olavo perguntou desconfiado.
— Estou na cozinha. — respondi num tom de voz mais alto do que o necessário.
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— Que cheiro é esse? Está cozinhando? — papai parou ao meu lado com as mãos na
cintura.
— É só uma receita que aprendi nas férias. E o almoço, como foi? A galinha estava
boa?
Ele se recostou na bancada de mármore preto e soltou um suspiro de
desapontamento.
— A comida não estava lá essas coisas... Acho que o Ney está perdendo o jeito. Ele
ficou me dizendo que eu não devia ter colocado tanta pimenta no molho, mas estou
certo de que não exagerei.
Soltei uma risada baixa e o avisei de que teríamos uma convidada para jantar naquela
noite.
— O jantar ainda vai demorar um pouco? Eu quero tomar um banho antes de comer.
— Acabei de colocar a lasanha no forno pai. Você pode subir e descansar, se quiser.
— Lasanha? Será que eu devo me arriscar?
Olhei-o de soslaio e continuei a preparar a salada. Olavo costumava caçoar de meus
dotes culinários.
Ele me deu um beijo na testa e subiu as escadas.
Marina tocou a campainha no momento em que coloquei a lasanha na mesa. Olavo, já
de banho tomado e refeito do passeio, abriu a porta para que minha amiga entrasse.
Da cozinha, os chamei para comer.
— O que você fez hoje, Sara? — papai me perguntou enquanto jantávamos.
Antes que eu pudesse responder, Marina declarou apressada:
— Ela passou a manhã conversando comigo na porta do mercado.
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Assenti com a cabeça para confirmar a informação.
— Você conseguiu resolver tudo o que precisava?
Terminei de engolir uma porção de arroz branco misturado ao molho da lasanha e
respondi, antes que Marina abrisse a boca.
— Sim. Fui à papelaria fazer umas compras. Depois voltei para casa e terminei de
desfazer a mala. Lavei minhas roupas e arrumei as coisas por aqui.
Havia passado o resto do dia pensando no inesperado encontro com o rapaz
misterioso. Entretanto, julguei ser prudente não dizer a ninguém a respeito do
ocorrido. Afinal de contas, contar o que se passara implicaria em revelar minha atitude
impensada. E eu ainda não conseguia compreender porque agira daquela maneira,
confiando em um estranho sujo de sangue.
Olavo parecia estar gostando do jantar, pois já havia se servido duas vezes enquanto
ouvia minha narração a respeito das atividades daquele sábado.
— Vimos um dos Fideli hoje. — soltei o comentário na esperança de que papai se
interessasse pelo assunto.
Marina me encarou com a boca cheia de comida e esperou que ele se manifestasse.
Sem retirar os olhos da mesa, papai sorveu um gole de refrigerante gelado e
respondeu vagarosamente.
— Eles são novos na cidade, Sara. Mudaram-se para cá depois que você viajou. — mais
um gole generoso antes de continuar. — Há algumas semanas, Malthus Fideli foi até o
Banco para fazer umas transações. Um homem distinto e muito conservado. — ele fez
uma pausa.
— Conservado? — não havia entendido o comentário.
— Jovem. Para um homem com filhos adultos... — papai completou.
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Marina se serviu de mais uma colherada de arroz e terminei o que restava em meu
prato. Permaneci ali, à espera de mais alguma informação. Finalmente, papai terminou
de comer, ergueu os olhos e empurrou o prato para o centro da mesa.
— Eles compraram o sítio do velho Benjamim. Aquela gente tem muito dinheiro.
— Isso dá pra perceber pelas caminhonetes que eles dirigem. — Marina comentou
com um tom de ironia que meu pai não percebeu.
— Você sabe de onde eles vieram? — inquiri curiosa, olhando para Marina.
Mas, dessa vez, foi meu pai quem se apressou em responder:
— Parece que vieram do sul. De alguma cidade em Santa Catarina, mas não me lembro
o nome. Tentei descobrir algo quando nos conhecemos, mas Malthus é escorregadio.
Não gosta muito de falar de si mesmo.
Imaginei o senhor Olavo Lins, com aquela voz mansa e sorriso de gerente de Banco,
bombardeando o novo morador com perguntas pessoais. Ele sabia ser inconveniente
quando queria.
— Mas, afinal, qual dos Fideli vocês viram hoje?
— A filha de Malthus. — Marina respondeu enquanto retirava os pratos da mesa.
— É uma moça linda. — papai pronunciou a última frase com um misto de admiração e
incredulidade.
Fiquei intrigada com aquele comentário, imaginando o que haveria por de trás de um
simples elogio, mas logo percebi que ele estava apenas sendo sincero. Ela devia ser
maravilhosa, pensei.
Olavo esticou os braços acima da cabeça e entrelaçou os dedos das mãos para alongá-
los. Em seguida, levantou-se da cadeira e agradeceu o jantar. Depois, foi para a sala
assistir ao noticiário. Marina me ajudou com a arrumação da cozinha e nós
conversamos um pouco antes que ela fosse embora. Senti-me tentada em revelar a ela
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o que havia se passado naquela tarde. Contar-lhe acerca do rapaz de cabelos negros e
rosto de anjo que cruzou meu caminho de forma surpreendente. Esconder coisas da
minha melhor amiga não era natural para mim. Mas mantive a descrição para não
parecer ridiculamente ingênua. Após nos despedirmos na varanda, tranquei a porta da
frente e subi correndo para o quarto. Papai ainda estava na sala, cochilando em seu
novíssimo reclinável de couro preto.
Adormeci rapidamente e na manhã seguinte nenhum sonho me veio à memória. O
domingo transcorreu sem qualquer novidade. Olavo esquentou as sobras da noite
passada e almoçamos em silêncio. Aproveitei a oportunidade para organizar alguns
papéis e livros espalhados pelo chão do quarto. Com o fim do ensino médio, o material
apinhado nas prateleiras da estante de madeira envernizada tornou-se sem utilidade.
Precisava dar um fim a tudo que não tivesse mais serventia, pois certamente iria
precisar de espaço para os livros e papéis da faculdade.
Enquanto remexia em cadernos e livros antigos, meus pensamentos flutuavam em
uma única direção. O rapaz de rosto perfeito que me causara impressões nunca antes
sentidas. Estava impressionada com a sensação térmica que senti quando ele segurou
meu pulso para refrear meus passos. Impressionada com a facilidade com que havia
concordado em confiar nele. Eu não pestanejei. Não questionei seu pedido sussurrado
em meu ouvido. Mas agora, ao analisar a situação de forma racional, concluí que ele se
aproximara de mim propositalmente para me dissuadir com um tom de voz calculado.
Contudo, uma parte de mim se recusava a aceitar que um rosto tão angelical fosse
capaz de tamanha dissimulação. Não era tão difícil acreditar que o cachorro realmente
estivesse ferido e que os Lemos tivessem chamado alguém para cuidar dele.
Marina me telefonou à noite para combinarmos o horário em que iríamos nos
encontrar. Eu passaria em sua casa bem cedo para lhe dar uma carona. Seguiu-se mais
uma noite de sono tranquilo e sem ranger de molas. O colchão havia me dado uma
trégua. Com o despertador estragado, papai bateu na porta do quarto para me
acordar. Estirei meu corpo na cama, espreguiçando-me vagarosamente, enquanto
Olavo descia as escadas chamando por mim.
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Esfreguei com impaciência o canto do olho esquerdo com o dedo indicador da mão
direita para conter uma coceira irritante. Já no banheiro, me detive na frente do
espelho por alguns minutos para prender os cabelos em um firme rabo-de-cavalo.
Segurei as pontas ressecadas — resultado de muito sol e água salgada — imaginando
como ficaria se mudasse radicalmente o corte. A quantidade de protetor solar que
gastei todos os dias durante o verão não foi suficiente para impedir que as pequenas
sardas do meu rosto se intensificassem. O elogio que papai dispensara à Nora não
cabia a mim, pensei, analisando meu reflexo no pequeno espelho do banheiro.
Papai esperava por mim na mesa da cozinha, mas não parei para tomar café, pois não
queria me atrasar. Saí correndo pela porta da frente, deixando-o para trás com seus
gritos de repreensão pela minha pressa exagerada.
Entrei na Pampa e dei a partida. O motor respondeu com um uivo profundo, mas não
se atreveu a me deixar a pé. Antes de engatar a ré senti meu estômago formigar.
Segurei o volante com firmeza, esperando que a força de meus pulsos equilibrasse o
frenesi sentido por conta do primeiro dia na faculdade. Manobrei com agilidade e
comecei a traçar o caminho que me levaria até a casa de Marina.
A Pampa aproximou-se da esquina e desacelerei para observar o que se passava à
minha direita no lado oposto da rua. Em frente à casa dos Lemos, avistei o casal e seus
dois filhos pequenos entrando no carro da família, parado de fora da garagem. O
cachorro — um boxer de pelo marrom e focinho esbranquiçado — trançava em volta
do carro com desenvoltura, enquanto seus donos o advertiam do perigo de cruzar a
rua. A sensação de alívio pareceu emanar do fundo de minha alma.
Todos estavam vivos, afinal.
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Não sabíamos ao certo em qual prédio deveríamos entrar. Alguns blocos antigos
misturavam-se a construções mais recentes, e ruas estreitas formavam um labirinto
para os desavisados. O campus da Universidade de Valença surgia diante de nós como
um pequeno condomínio de prédios cercado por uma extensa muralha de tijolos
vermelhos. Em alguns pontos a muralha era interrompida por metros de cercas de aço.
Em outros lugares, havia portões para a entrada de veículos e passagens menores
destinadas aos pedestres. Áreas intensamente arborizadas ladeavam os prédios de no
máximo cinco andares. Havíamos entrado por uma portaria lateral, e uma espécie de
rua principal surgiu a nossa frente. Cortada em duas vias por um extenso canteiro com
árvores de diversas espécies, a avenida servia de desemboque para todas as ruas
estreitas do labirinto.
Estacionei em uma das poucas vagas restantes no generoso estacionamento que
margeava as duas vias e descemos com cautela. Marina estava maravilhada. Seus
olhos arregalados de excitação e interesse me fizeram sorrir. Dei a volta na Pampa e
parei ao seu lado. Uma imensa faixa branca, com dizeres em vermelho pendurada na
fachada de uma construção antiga, nos chamou a atenção.
Instituto de História, Filosofia e Ciências Sociais.
Sejam bem-vindos!
— Achamos. — dei um passo à frente e li a mensagem impressa na faixa em voz alta.
Marina olhou rapidamente a sua volta e começou a andar em direção ao bloco.
O prédio de três andares era feito do mesmo tipo de tijolo utilizado na muralha que
separava o campus do resto da cidade. Pacientemente, fomos abrindo espaço por
entre a multidão de calouros que serpenteava por todos os lados para chegar à
calçada. Era início de semestre, e um grande número de novos alunos trançava pelo
campus à procura de seus departamentos. Alguns postos de atendimento foram
colocados em pontos estratégicos para auxiliar os novatos. Funcionários e veteranos
participavam da maratona de boas-vindas.
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Avistei um pequeno stand colocado do lado direito da entrada para o prédio. Atrás do
balcão, uma garota esguia e de cabelos bem curtos prestava informações com um
imenso sorriso nos lábios. Cutuquei Marina com o cotovelo e mostrei o stand. Ela
soltou um discreto suspiro de alívio e marchou na direção do estreito balcão. Eu a
segui automaticamente.
A garota nos cumprimentou com um bom dia exageradamente alegre.
— Bom dia. — Marina e eu respondemos em uníssono.
— Eu sou Grace, veterana do curso de Filosofia. Estou aqui para ajudar no que for
preciso. — Grace soltou uma risadinha e continuou. — Quero dizer, ajudar no que for
possível.
— Somos calouras do curso de História. — Marina disse com entusiasmo.
— Ah sim... Vocês estão no lugar certo. — enquanto falava, Grace apanhou duas
pastas de papelão com o emblema da Universidade gravado na capa e nos entregou.
— Nesse prédio funciona o Instituto de História, Filosofia e Ciências Sociais. — olhou
para os lados com uma expressão de desconfiança e fez um gesto para que nos
aproximássemos mais.
Marina e eu nos inclinamos para frente e Grace sussurrou um comentário com cautela:
— Não sei por quanto tempo esses três departamentos vão funcionar no mesmo
espaço. Existe uma antiga guerra por território... — parou por um segundo, como se
tivesse se arrependido da última frase. Afastou-se de nós e assumiu novamente uma
expressão de euforia. — Vocês vão encontrar tudo o que precisam dentro dessas
pastas. Horários, mapa do campus, atividades sociais, lista de livros e algumas outras
informações necessárias.
— O que temos programado para hoje? — perguntei com interesse.
— Algumas palestras foram agendadas para essa semana. Daqui a meia hora haverá
um tour pelo bloco, do qual eu serei a guia. — Grace parecia orgulhosa de seu trabalho
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voluntário. — Patrício quis roubar meu posto, mas fui mais esperta. Aquele
empertigado metido à intelectual pensa que manda aqui.
— Patrício? — franzi o cenho.
— O assistente do professor de Mitologia, Dr. Bertolucci. Aquele cara é um
asqueroso... — novamente Grace assumiu uma postura de arrependimento pelo
comentário negativo que acabara de fazer.
Marina esboçou um sorriso e soltei uma risadinha sem graça.
— Nossa... Vocês duas devem estar tão ansiosas. No meu primeiro dia, eu não me
aguentava de euforia. Às vezes, parecia que não ia caber dentro de mim. — Grace
soltou um profundo suspiro e continuou. — Ainda me lembro da primeira vez que
senti o cheiro do desinfetante de lavanda que as funcionárias da limpeza costumam
usar nos banheiros aqui do prédio. Vocês vão adorar os banheiros com aqueles
espelhos enormes. Estão sempre bem limpos.
Enquanto Grace tagarelava, gesticulando com avidez, olhei ao meu redor e percebi um
tumulto atrás de nós. De repente, dei-me conta de que estivemos paradas ali por
tempo demais. Uma roda de calouros ávidos por informações estava se formando a
nossa volta e Grace não parava de falar sobre coisas irrelevantes. Ela está mesmo
elogiando os banheiros? Pensei, com ironia.
Aproveitamos a aproximação de algumas pessoas do balcão de informações para nos
esquivarmos de Grace e desaparecer em meio à multidão, que se aglomerava na porta
do prédio. Marina me puxou para dentro.
Um imenso portal de pedra dava passagem para o saguão ricamente iluminado por
diversas luminárias de formato arredondado e também pelos raios de sol que
começavam a despontar no horizonte, quebrando a barreira acinzentada do clima
chuvoso e penetrando pelos vitrais das janelas mais altas. Andávamos com lentidão,
observando o fluxo de pessoas que entrava e saía das salas. O elevador panorâmico
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para pessoas com deficiência, colocado ao lado da escadaria, chamou-me a atenção,
pois seu estilo moderno destoava do restante da decoração.
— Você se surpreenderia se eu dissesse que quero participar do tour? — Marina
perguntou olhando para frente.
— Não me surpreendo nem um pouco. Sabia que você tinha gostado da Grace
tagarela. — abri a pasta de papéis que Grace havia nos dado e retirei o cronograma de
palestras.
Olhei com atenção à programação daquela manhã. Alguns professores iriam ministrar
seminários sobre temas variados. O nome do Dr. Bertolucci estava entre eles. Logo
abaixo de seu nome, o título da palestra fora impresso em negrito: O mito e o homem.
— Vou aproveitar a oportunidade para conhecer o prédio. Não quero parecer uma
barata tonta zanzando pelos corredores sem direção. — Marina justificou a escolha em
participar do tour.
— É bom mesmo que você vá, para depois me explicar tudo.
— Você não vai comigo?
— Não. Vou assistir à primeira palestra do dia. — indiquei com o dedo o título no
papel.
Aquele título despertou em mim um interesse saudável. Sempre gostei de mitologia e
das histórias fantásticas que os deuses protagonizaram. O primeiro seminário de tantos
que ainda virão, pensei enquanto me dirigia para a sala de aula indicada no
cronograma. Marina ficou no saguão aguardando o início do passeio.
A sala fora construída em formato de auditório, com cadeiras de braço acolchoadas,
revestidas com um tecido azul-escuro e dispostas em arquibancada. À frente, um palco
da altura de dois degraus de escada com uma pequena mesa de madeira escura, que
sustentava um aparelho de projeção. Um imenso quadro branco ocupava grande parte
da parede oposta à plateia.
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Algumas pessoas, já instaladas em seus lugares, aguardavam em silêncio o início da
palestra, enquanto outras, em pé ao lado de suas cadeiras, conversavam de forma
descontraída. Escrutei o ambiente com o cenho franzido e me decidi por um lugar mais
discreto. Desviei-me de dois pequenos grupos e me sentei na fileira do corredor
central, em uma cadeira da ponta. Os lugares de ponta me atraíam com regularidade.
Se precisasse sair da sala antes do fim da palestra, não causaria tumulto ao tentar me
desviar de outras pessoas, pisando em muitos pés ao passar pelos estreitos corredores
que separavam as fileiras de cadeiras. Depois de me acomodar, meu rosto assumiu
uma expressão paciente. Os interessados continuavam a chegar e percebi logo que a
palestra seria assistida por alunos de diversos cursos. A sala lotou rapidamente, e após
dez minutos de espera as luminárias que pendiam do teto foram apagadas, e luzes
amarelas de intensidade mais fraca iluminaram o palco diante de nós.
Um homem de aparência austera entrou no auditório sem olhar para a plateia. Vestia
uma camisa social branca de manga longa e uma calça cáqui de um tecido mole. O
sapato marrom de bico fino, combinando com o cinto da mesma cor, transmitia
harmonia e elegância. Esguio e com uma postura aparentemente fácil de ser mantida,
pigarreou para limpar a garganta, passando a mão pela barba grisalha. Óculos com
armação arredondada ajudavam a compor o visual sério. Ao lado do aparelho de
projeção, uma garrafa de água mineral atraiu sua atenção. Abriu a garrafa e despejou
uma pequena quantidade de água no copo de vidro colocado ali para que se servisse.
Molhou a garganta com apenas um gole. A essa altura todos já estavam sentados e
atentos aos gestos daquele homem. Com as mãos escondidas nos bolsos da calça ele
olhou para os ouvintes. Escrutou rapidamente o pessoal da primeira fila e levantou o
olhar para avistar as cadeiras mais elevadas no fundo do auditório. Tive a impressão de
que as fileiras do meio foram propositalmente privadas de sua inicial atenção.
Agradou-me a sensação de ter escolhido o lugar certo. Lugar onde poderia passar
despercebida.
— Bom dia a todos. — com as mãos ainda escondidas, o professor Bertolucci deteve-se
no meio do palco e cumprimentou-nos com uma pitada de sequidão.
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Todos responderam em conjunto, o que pareceu agradá-lo. Ele relaxou os ombros e
suas mãos abandonaram os bolsos.
— Acredito que a sede de vivenciar ao máximo o primeiro dia do resto de suas vidas,
muito mais do que o interesse pelo próprio tema que será por mim abordado, encheu
esse auditório de curiosos. — coçou o queixo com os dedos da mão esquerda e
continuou. — O frescor de rostos tão jovens, expressões ingênuas, pupilas arregaladas
e audição aguçada para escutar até mesmo meus suspiros de tédio. — diante de
nossas expressões confusas o professor prosseguiu. — É isso mesmo que os senhores
ouviram. — disse ele. — Sentirei profundo tédio quando me negarem respostas para
perguntas simples. Tédio diante das expressões vacilantes que me oferecerão no
decorrer dessa manhã. Tédio por saber que, mesmo convicto de suas incapacidades,
sairei daqui, hoje, mais leve do que entrei. — estreitou os olhos, unindo as
sobrancelhas, e depois os arregalou para demonstrar surpresa.
— Costumo trabalhar com possibilidades infinitas, e, nesse caso, a chance de me
surpreender com vocês deve ser considerada. Sendo assim, peço-lhes desculpas
antecipadas pela minha falta de fé nesses rostos tão curiosos. Ao me surpreender,
sairei daqui tão pesado quanto entrei, pois levarei comigo todo o tédio não liberado, e,
assim, mesmo pesado, estarei satisfeito.
Ajeitei-me na cadeira e mordi o lábio inferior. Aquele homem oscilava entre o desdém
e o prazer. De alguma forma, o discurso inicial me fascinou e não pude deixar de me
sentir especial por estar ali. Senti minhas bochechas corarem de excitação e percebi
que suas palavras faziam todo sentido.
O primeiro dia do resto da minha vida... pensei, sentindo meu coração palpitar, um
pouco acelerado.
— Perdoem-me pela falta de educação. Ensinaram-me que devo me apresentar para a
plateia antes de dar início aos meus devaneios. — Dr. Bertolucci assumiu uma postura
irônica. — Meu nome é Cícero Bertolucci. Dr. Cícero Francesco Bertolucci. Mas eu
agradeceria se pudessem omitir o segundo nome. — seu pedido causou descontração
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e algumas risadas abafadas saíram do fundo da sala. Imaginei a origem de um nome
tão forte.
— A palestra de hoje é formada por fragmentos de diversas aulas, pedaços de artigos
que redigi e por alguns pensamentos alheios que tive a inteligência de surrupiar. — um
burburinho percorreu as primeiras fileiras e atraiu a atenção do professor. Alguns
alunos estavam comentando a última palavra dita por ele. — Reações agitadas quase
sempre provocam conclusões precipitadas. — Dr. Bertolucci elevou a voz. — Não me
tomem por um larápio idiota. O devido crédito para ideias alheias será respeitado na
exata medida de sua necessidade.
Olhei para o relógio. Vinte minutos haviam se passado desde o início da palestra.
Lembrei-me de Marina e do passeio de reconhecimento pelas salas do prédio. De
repente, a imagem do rapaz pulando o muro do vizinho estalou em minha mente
como um flash. Quem seria ele? E sua idade? Minhas especulações foram rapidamente
interrompidas pela voz do professor, que havia acabado de dar início ao tema
proposto.
‘ Mito quer dizer conto. A produção de lendas, contos e personagens extraordinários é
característica de todos os povos desde a mais tenra existência. O mito é presença
constante na mentalidade do homem. Nossa criatividade infinita nos permitiu elaborar
fantasias incríveis, criaturas exuberantes e altamente atraSvas.’ ― Dr. Bertolucci
interrompeu o discurso por alguns segundos para se certificar de que todos os olhos e
ouvidos miravam-no, e voltou a falar com invejável confiança.
‘A origem do mito remonta a pré-história, mas podemos concluir, na melhor das
hipóteses, que sua origem coincide com um extraordinário acontecimento, marco
indiscutível da espécie humana e peça fundamental no quebra-cabeça evolutivo do ser
humano.’ — deteve-se com as mãos cruzadas nas costas e encarou a plateia diante de
si. Não demorei muito para entender que o professor esperava uma reação. Uma
resposta para a pergunta velada na interrupção de sua fala. Dr. Bertolucci esperava
que alguém dissesse qual foi o acontecimento de extraordinária importância para a
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evolução humana. Mas ninguém se manifestou. O professor soltou um suspiro e
continuou sua explanação:
‘O despertar da consciência, o pensamento pulsando como energia recém-criada é o
marco evolutivo mais importante para a humanidade. Na busca por explicações para
os fenômenos da natureza, o homem encontra no mito a justificativa suficiente para os
acontecimentos ao seu redor. A mitologia primitiva começa a se desenvolver e os seres
mitológicos ganham vida e inundam todo o pensamento humano. Sacrifícios,
oferendas e liturgias, uma visão fantástica do mundo que perduraria por milhares de
anos. Para cada fenômeno da natureza, uma explicação sobre-humana. O homem não
está mais sozinho, pois criou um universo repleto de criaturas exuberantes. Daí a
origem do culto ao sagrado. A prática de rituais místicos e a construção de templos e
altares é característica primordial desse novo mundo. Os Deuses, apesar de superiores
aos seres humanos, possuíam os mesmos vícios e virtudes do homem. A semelhança,
consequência de sua fonte criadora, fez com que os Deuses construíssem relações
semelhantes àquelas cultivadas pelo homem em sociedade. Pode-se concluir que os
Deuses eram o reflexo aprimorado do homem, uma espécie de modelo evolutivo.
Criaturas poderosas, governantes de cada aspecto da vida terrestre. Adorados pelo
homem, e adoradores dos hábitos mortais.’
À medida que o professor ministrava sua palestra, descrevendo a evolução do
pensamento mitológico e a relação estabelecida entre Deuses e homens, minhas
recordações das aulas de mitologia da senhora Lina Rosa ganhavam vida. Lembrei-me
do filme que certa vez exibiu em sala. A Odisseia de Homero rendeu algumas aulas
muito interessantes sobre as aventuras que Odisseu enfrentou na sua volta para casa.
Contudo, minhas lembranças foram bruscamente interrompidas pela considerável
elevação de voz do professor Bertolucci ao se dirigir para uma aluna sentada na
primeira fileira. Parecia que todo o auditório prendera a respiração para acompanhar a
cena que se desenrolava à nossa frente.
O professor inclinou-se para a caloura e desferiu-lhe o primeiro comentário sarcástico:
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— Um perfeito exemplo de narcisismo acaba de se revelar diante de mim. — ainda
sem Srar os olhos da garota, ele endireitou a postura e conSnuou a falar. ― Enquanto
falo, acreditando estar contribuindo para a evolução intelectual de todos aqui
presentes, Narciso se revela em sua forma feminina. — a menina, alvo de comentários
aparentemente sem sentido, encolheu-se na poltrona, enquanto o resto de nós se
entreolhava confuso.
Estiquei o pescoço para olhar acima das cabeças à minha frente, e tive a impressão de
que a garota segurava um objeto em uma das mãos firmemente fechada.
— Narciso era um jovem de extrema beleza. — Dr. Bertolucci abaixou o tom de voz e
continuou. — Pobre coitado — a expressão do professor suavizou por alguns segundos
para depois assumir traços de ironia —, morreu contemplando o próprio reflexo na
água da fonte. Espero que meu falatório não esteja atrapalhando este precioso
momento de contemplação da própria figura, jovem Narcisa. A fonte da Vaidade pode
ser encontrada em todos os lugares, não é mesmo?
Rapidamente meu cérebro entendeu o significado dessas últimas palavras. O pequeno
objeto que a caloura segurava com firmeza era um espelho. O rapaz sentado na
cadeira à minha frente pendeu a cabeça para o lado e sussurrou, pausadamente, para
a garota sentada à sua direita.
— Ela estava se olhando no espelho quando o professor a flagrou.
— Coitada. — a garota murmurou em resposta.
A dona do espelho pediu desculpas pelo gesto impensado e me solidarizei com seu
tom de voz trêmulo e envergonhado. Aquele dia jamais sairia de sua memória. Para
falar a verdade, acho que nenhum dos presentes se esqueceria que uma caloura
ingênua e desavisada retirou da bolsa um pequeno espelho retangular e deu vazão à
sua vaidade durante a primeira palestra do resto de nossas vidas. Após o incidente, Dr.
Bertolucci continuou a explanar por mais meia hora. Tive a impressão de que a garota
do espelho não desviou os olhos do chão. Ao final da última frase, o professor
agradeceu a atenção de todos e se virou para a mesa de madeira à procura da garrafa
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de água mineral. A plateia se levantou para aplaudir, mas ele pareceu não se importar
com a manifestação do público. Bebeu sua água e atirou a garrafa vazia na cesta de
lixo embaixo da mesa. Alguns alunos se aproximaram dele com uma corajosa avidez.
Eu me levantei sem pressa, imaginando onde Marina estaria. Mal havia descido o
primeiro degrau, quando senti algo segurar meu braço na altura do punho direito. Virei
à cabeça e me deparei com uma garota de cabelos lisos sentada na cadeira ao lado da
minha. Ela me ofereceu um meio-sorriso e apontou para a pasta em cima da poltrona
que eu ocupara.
― Você está esquecendo seu material. ― a garota me disse com simplicidade.
― Ah. É verdade. ― respondi, debruçando-me sobre a cadeira para ajeitar alguns
papéis que caíam da pasta. A garota permaneceu sentada enquanto eu organizava a
papelada. De repente, me dei conta de que ainda não havia escrito meu nome no
material e que provavelmente o teria perdido para sempre se ela não tivesse me
avisado. ― Obrigada. Eu sou muito distraída. ― sentei-me e olhei para ela.
― Eu sei como é isso. ― respondeu. ― Minha mãe costuma dizer que só não esqueço
minha cabeça porque está grudada no pescoço.
Soltou uma risada tímida e me encarou por um brevíssimo instante. Seus olhos escuros
eram facilmente ofuscados por cílios incrivelmente negros e longos. Não precisou me
encarar por mais de dois segundos para que eu percebesse isso.
— Não se preocupe. ― disse-lhe, enquanto escrevia meu nome em algumas das folhas
do material. ― Eu também já ouvi essa frase.
― Meu nome é Alana. Alana Molina.
Aquele sobrenome não me era estranho.
― Sara Lins. ― refreei a vontade de perguntar qual era seu parentesco com Pedro
Molina, mas resolvi não tocar em um assunto que poderia se estender além do
desejado.
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― Então, você vai ficar para a próxima palestra? ― Alana perguntou.
Levantei-me da cadeira e me preparei para descer as escadas.
― Na verdade não. Acho que vou andar por aí. Tenho uma amiga que preciso
encontrar. — Alana encolheu os ombros e depois relaxou o corpo.
Imaginei que estivesse sozinha, pois não havia ninguém sentado ao seu lado.
— Você gostaria de vir comigo? — perguntei por educação.
Alana meneou a cabeça em sinal de afirmação.
Desci a escada rapidamente e ela me seguiu. Antes de sair da sala, corri os olhos pela
primeira fileira de cadeiras à procura da jovem Narcisa, mas não obtive sucesso.
Deixamos o auditório ainda cheio de alunos que cercavam o professor Bertolucci com
avidez. Não senti vontade alguma de me aproximar dele. Talvez porque não tivesse
nenhuma pergunta relevante para fazer. Não suportaria ouvir qualquer resposta
sarcástica de sua parte. Por esse motivo, e pelo episódio do espelho, prometi a mim
mesma que somente lhe perguntaria alguma coisa que fizesse muito sentido.
Encontrei Marina encostada na parede oposta ao elevador. Parecia muito à vontade,
sorrindo e gesticulando para algumas pessoas à sua volta. Alana ainda me
acompanhava quando me aproximei de Marina.
— Sara! Você devia ter participado do tour. — Marina me puxou para perto de si.
— E você devia ter assistido à palestra. ― respondi.
Ignorando minha resposta, Marina me apresentou para o grupo.
— Esses são Lucas, Caio e Felícia. ― cumprimentei-os com um aceno de cabeça e
aproveitei para apresentar-lhes Alana.
― Essa é Alana Molina. ― arrependi-me instantaneamente de ter dito seu sobrenome.
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Marina reagiu como previ, contando-lhe que estudamos com um garoto de mesmo
sobrenome durante o colegial e perguntando imediatamente se Alana e Pedro eram
parentes.
― Somos primos. ― Alana respondeu prontamente. ― Nossos pais são irmãos. Vim
para estudar em Valença e estou morando na casa de Pedro. Ele está cursando
Veterinária e parece que a maior parte das aulas é ministrada na fazenda-escola. Acho
que não o veremos muito pelo campus.
— Ah, sim. Ele havia nos dito isso antes do início das férias. — Marina me olhou
discretamente e minha expressão carrancuda refreou sua vontade de obter mais
detalhes.
Para meu alívio, Caio mudou de assunto.
― Vocês estão morando no alojamento? ― perguntou de forma geral.
― Nós moramos em Terra Branca. Uma cidadezinha que fica há quinze quilômetros
daqui. ― Marina respondeu apontando para mim e completou. ― E Alana também, já
que está morando com os tios.
― Sou de Campelo. ― Felícia manifestou-se pela primeira vez.
Ergui as sobrancelhas num gesto de incredulidade.
― Jura? ― minha voz saiu mais alta do que desejava, mas não me importei em
parecer empolgada por ter encontrado uma conterrânea. ― Também sou de lá. Quero
dizer, moro em Terra Branca, mas nasci em Campelo. ― falei com saSsfação.
Oito anos da minha vida foram passados em Campelo. Todos os anos vividos ao lado
de minha mãe tiveram aquela cidade como cenário. No entanto, não foi em Campelo
que vivi a maior tristeza e o fato mais estranho da minha vida. Ao me lembrar
rapidamente de tais acontecimentos, a empolgação de segundos atrás cedeu lugar
para uma expressão facial mais contida.
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― Nossa! ― Felícia exclamou surpresa. ― Essa é uma ótima notícia.
― Coincidências da vida. ― Caio manifestou-se.
― E você, Lucas? ― Marina perguntou.
Todos os olhos se voltaram para Lucas à espera de uma resposta, mas ele pareceu não
escutar. Olhava diretamente para mim. Contudo, percebi que seu olhar estava fixo em
algo acima de meus ombros. Lucas não piscava e sua boca entreaberta, numa clara
expressão de admiração, conferia-lhe um aspecto abobalhado. Virei à cabeça para
conferir o motivo de sua aparente alienação. Do outro lado do saguão, um casal de
jovens estava em pé ao lado do bebedouro de água, conversando descontraidamente.
A moça, de cabelos loiros com pontas onduladas pesando por cima dos ombros, vestia
um jeans claro e uma blusa branca de manga comprida. O lenço colorido que envolvia
seu pescoço, cobrindo parte do colo, conferia-lhe uma aparência alegre. O rapaz
posicionara-se de costas para nós. Não pude ver seu rosto. Notei apenas que era mais
alto que a moça, e seus cabelos curtos e desgrenhados eram castanhos e brilhantes.
Marina aproximou-se mais de mim e cutucou levemente meu braço esquerdo. Seu
gesto chamou-me a atenção e a fitei por alguns segundos. Ela retribuiu o olhar sem
nada dizer e depois se voltou para o casal de jovens. Correu rapidamente os olhos pela
moça, como se estivesse se certificando de algo, e disse por fim:
― Aquela é Nora Fideli.
Lucas reagiu à informação de Marina com um suspiro.
Observei a moça novamente. O jeans colado ao corpo acentuava suas curvas perfeitas.
Seu rosto assumia leves expressões à medida que conversava com o rapaz. Ele ainda
estava de costas para nós e parecia não se importar em bloquear parcialmente o
acesso ao bebedouro. Desejei que ele se virasse. Queria ver seu rosto. Nora passou a
mão pelo cabelo e colocou uma mecha mais fina atrás da orelha. As bochechas rosadas
inflavam levemente quando ela sorria. Sua pele branca combinava com os reflexos
mais claros que se misturavam ao loiro âmbar de seu cabelo longo.
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― A cara de abobalhado é justificável. ― afirmei, olhando para Lucas. Ele sorriu,
parecendo envergonhado.
Alana, que até o momento permanecera em silêncio, surpreendeu-nos ao dizer que
conhecia Nora e a mãe, Julia Fideli.
― Já nos cruzamos lá em Terra Branca.
― Quando? ― Marina perguntou.
― Há mais ou menos uma semana. Estava naquele armarinho em frente à praça da
fonte, quando Nora e a mãe entraram.
― O que elas estavam fazendo lá? ― Marina conSnuou a especular.
― Bom, eu as ouvi perguntar para a senhora no balcão alguma coisa sobre cristais.
― Cristais? ― dessa vez fui eu que manifestei interesse.
― Isso. Nora perguntou se a loja vendia cristais naturais. Aí, eu me aproximei do
balcão para pagar pela minha compra e a mãe dela, Julia, me cumprimentou.
― E como você soube que se tratava da mãe dela? ― Marina franziu o cenho.
― Porque Nora a chamou de mãe.
― Dona CoSa não vende cristais em seu armarinho. — eu disse.
― Foi exatamente isso que a senhora respondeu. — Alana completou a história. —
Dona Cotia disse que não vendia cristais, mas deu o endereço de uma loja aqui em
Valença. Julia agradeceu a informação e elas foram embora. Não compraram nada.
Aquela informação não me causou estranheza. Para mim, não havia nada de errado no
gosto de Nora por cristais. Eu também gostava de pedras naturais. Em especial, do
quartzo rosa. A mesinha de ferro e tampo de mosaico, posicionada do lado esquerdo
da minha cama, era enfeitada por uma pedra não lapidada do meu cristal preferido.
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Enquanto fazíamos comentários engraçados a respeito da expressão abobalhada de
Lucas, Nora e o rapaz se afastaram do bebedouro e se misturaram no intenso fluxo de
pessoas que povoava o saguão do bloco. Não os vi mais naquele dia.
O restante da manhã transcorreu sem grandes emoções. Descobri que Alana também
estava matriculada no curso de História, e isso acabou nos aproximando, pois
passamos o dia frequentando as mesmas atividades. Marina pareceu não gostar da
nova amiga.
— Essa garota está pior que cola caseira. — disse-me enquanto fomos ao banheiro no
intervalo de uma palestra.
Olhei-a pelo reflexo do espelho.
— Você ouviu o que eu disse? — perguntou-me com irritação.
— Pensei em ignorar seu comentário, mas você não me deixaria fazer isso.
Marina bufou e exclamou com a voz esganiçada:
— Essa garota está andando atrás da gente o dia todo!
— Alana não está andando atrás da gente. Ela está andando com a gente. O que é bem
diferente. Alem do mais, eu gostei dela.
— Ah! Você gosta de todo mundo.
— E você não gosta de ninguém.
Marina parou ao meu lado com as duas mãos na cintura e me encarou com desdém.
— Marina, nós vamos passar quatro anos frequentando as mesmas aulas e morando
na mesma cidade. Portanto, não seja tão implicante. Alana se tornaria nossa amiga de
qualquer maneira.
— Quem disse isso? — ela sabia ser irritante.
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— Eu disse. — respondi secamente e me virei para a porta de saída. Marina bufou mais
uma vez, mas nada respondeu.
Marina e eu nos tornamos amigas algum tempo depois de minha chegada em Terra
Branca. Com a repentina transferência para assumir o cargo de gerente bancário,
Olavo não teve tempo suficiente para organizar a mudança em seus mínimos detalhes.
Sendo assim, a primeira casa onde moramos fora uma indicação do prefeito da cidade.
Indicação que meu pai acolheu de imediato, pois não havia tempo para outras opções.
A casa pertencia aos pais de Marina e estava sendo alugada pela primeira vez, desde a
mudança de toda a família para a casa de sua avó paterna em virtude de uma
enfermidade que inspirava atenção especial.
Naquele ano, seus pais tornaram-se enfermeiros dedicados e Marina ganhou um
quarto muito maior. Só que, a princípio, ela não gostou da ideia. Marina adorava sua
antiga casa e a enorme mangueira, cujas raízes se espalharam por grande parte do
terreno. Ao nos mudarmos, papai me colocou em seu antigo quarto. Eu havia ganhado
uma nova vida e uma inimiga ciumenta. Marina passou um ano inteiro com ciúmes da
forasteira que havia tomado seu querido quarto e também suas mangas. Depois do
primeiro ano na nova cidade, nós passamos a frequentar a mesma escola e acabamos
nos aproximando. Papai colocava fatias de manga em minha lancheira para que
dividisse com ela no recreio, e Marina me deixava morar eu seu quarto sem reclamar.
Depois de dois anos e meio, Olavo comprou nossa casa atual.
Ao final do dia, nos encontramos com Felícia e Caio no estacionamento. Enquanto se
aproximavam, detive-me a alguns passos da Pampa e Alana colocou-se ao meu lado.
Imaginei que ela estivesse esperando por uma oferta de carona. Nada mais natural do
que isso, afinal de contas, iríamos para o mesmo lugar e não havia sentido deixá-la
voltar de ônibus. Marina, parecendo adivinhar minhas intenções, antecipou-se a nossa
frente e parou encostada à porta do passageiro. Segurou com firmeza a maçaneta,
olhando para mim com impaciência. Fingi não perceber sua atitude e me virei para me
despedir de Caio e Felícia.
― Para onde vocês vão agora? ― Felícia perguntou.
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― Estamos indo para casa. ― respondi.
Caio olhou para Marina por alguns segundos, oferecendo-lhe um largo sorriso. Marina
respondeu com um aceno de mão e continuou a bloquear a porta da Pampa. Após
uma rápida despedida, Caio e Felícia afastaram-se e caminharam em direção ao pátio,
que dava acesso ao bloco de alojamentos. Olhei-os se distanciarem vagarosamente.
Alana ensaiou um tímido ‘até logo’ e começou a se afastar de mim. Antes que eu
pudesse me manifestar, Marina respondeu apressadamente:
―Até!
Lancei-lhe um olhar de repreensão, mas ela deu de ombros. Marina não se intimidava
com minhas expressões carrancudas. Meus olhares repreensivos não surtiam muito
efeito, mas eu insistia neles sempre que julgava necessário. Ela costumava ignorá-los e
incorrer nas mesmas atitudes que me desagradavam. Éramos muito próximas, amigas
inseparáveis, e a intimidade cultivada durante os anos de convívio oferecia-me a
vantagem de conhecê-la o suficiente para prever alguns comportamentos. A presença
constante de Alana durante todo o dia, compartilhando conosco os primeiros
momentos na Universidade, era algo que certamente desencadearia algum tipo de
comportamento possessivo e arredio em Marina. Minhas previsões se concretizaram
quando ela começou a implicar com Alana. Sentiu-se incomodada quando percebeu
que ela e eu acabaríamos nos aproximando. Era algo inevitável.
Chamei por Alana e ela se virou para me olhar. Ignorando o que Marina poderia estar
pensando, ofereci uma carona.
―Hei! Você vem com gente. — disse-lhe eu.
― Como assim? ― Alana pareceu não entender a oferta.
― Você está indo para Terra Branca? ― perguntei.
― Sim.
― Nós também. Não faz sentido você ir de ônibus se vamos para o mesmo lugar.
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Alana titubeou antes de aceitar a carona. Olhou para Marina rapidamente e tive a
impressão de que esperava que ela reiterasse o convite. Marina permaneceu calada,
segurando a maçaneta da porta do passageiro. Depois de um brevíssimo instante,
Alana voltou-se em direção à Pampa e agradeceu a oferta. Ignorando o pesado suspiro
que minha amiga soltou, ao perceber que dividiria seu assento cativo na velha Pampa
com Alana, coloquei a pasta de papéis que carregava em cima do capô para procurar a
chave do carro na bolsa. Papai sempre dizia que minhas bolsas eram um constante
exercício de paciência, por serem grandes demais.
Apoiei-a no capô e comecei a remexer em tudo o que havia lá dentro. Marina
reclamou da minha aparente falta de pressa e Alana me ofereceu ajuda. De repente,
ouvimos o farfalhar das árvores ao nosso redor e uma rajada de vento gélido nos
surpreendeu. A pasta de papéis foi levada pela ventania, e as folhas guardadas em seu
interior espalharam-se por todo lado. Alana disparou atrás de algumas páginas jogadas
a metros de distância, mas a pressa empreendida para alcançar as folhas fez com que
ela se desequilibrasse e tropeçasse em um dos blocos de concreto da extensa fileira
que separava o estacionamento do gramado. Marina e eu soltamos risadas pelo tombo
de Alana, enquanto corríamos para apanhar os papéis que grudaram na grama
umedecida pela garoa da tarde. Agachei-me ao lado da Pampa para apanhar mais
algumas folhas e Marina organizou o que havia conseguido coletar, antes que uma
nova rachada de vento viesse. Alana se aproximou trazendo folhas sujas e amassadas.
Marcas marrons de sujeira marcaram seu jeans claro na altura dos joelhos. Agradeci a
ajuda. A pasta de papelão perdeu-se em algum canto do estacionamento.
Acomodamo-nos dentro da Pampa e entreguei o restante dos papéis para Marina
segurar. Já na estrada, perguntei a Alana se ela gostaria de vir conosco todos os dias.
Marina pigarreou, mas não disse nada.
— Acho que vou atrapalhar. — Alana respondeu.
— Enquanto nossas aulas forem no mesmo horário, eu não me importo em lhe dar
carona.
— Bom, se não for atrapalhar... Seria ótimo.
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— É claro que seria ótimo. — Marina interrompeu com ironia.
Alana fingiu não perceber o tom irônico no comentário.
Para mim, não havia problema em ter a companhia de Alana. Marina, por outro lado,
demoraria a se acostumar com a ideia de uma nova amiga entre nós. O ciúme de
minha melhor amiga contrastava com sua facilidade de se relacionar com as pessoas.
Já em nosso primeiro dia na faculdade, ela havia se aproximado de Lucas, Caio e
Felícia, formando uma turma de amigos aparentemente promissora.
Estacionei a Pampa em frente à casa de Alana e nos despedimos rapidamente. Marina
recomendou a Alana que estivesse pronta na manhã seguinte no horário combinado,
pois não gostava de atrasos. Preferi não intervir, pois sabia que Marina só estava
reagindo como de costume e que acabaria se acostumando com a presença dela.
Marina pediu que a deixasse no mercado de seus pais. Atendi prontamente seu
pedido, mas notei irritação em seu tom de voz.
— É impressão minha, ou você está irritada comigo? — perguntei-lhe desconfiada.
— Imagina... E por acaso eu tenho motivos para estar irritada? — Marina não esperou
que eu respondesse. — Você fez o favor de oferecer carona vitalícia para aquela garota
idiota que acabou de conhecer, mas eu não vejo motivos para estar irritada.
— Deixa de ser carrancuda. Você me apresentou um monte de gente nova hoje, e
agora vai implicar com a única pessoa que conheci sozinha. Isso está ficando chato.
Marina estreitou os olhos e cruzou os braços. Depois balançou a cabeça em sinal de
discordância. Sem argumentos, respondeu simplesmente:
— Chata é você! — deu-me as costas e desceu da Pampa.
— Amanhã no mesmo horário! — gritei enquanto ela se afastava para entrar no
mercado, mas não houve resposta.
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Em casa, fui recebida com expectativa. Ney Abdala fora convidado para o jantar
especial que papai preparou em comemoração ao meu primeiro dia de aula. Não me
surpreendi ao encontrar a mesa posta com a louça mais bonita que tínhamos. Atitudes
como essas eram típicas de meu pai. Sempre preocupado comigo. Atento às minhas
necessidades e a qualquer detalhe que pudesse facilitar o meu dia. Seus cuidados
poderiam facilmente ser taxados por mimos por aqueles que não conheciam nossa
história. Mas, para Ney, a mesa enfeitada com flores e a comida preparada com a
medida exata de sal, eram atitudes normais para um pai que só queria cuidar bem da
filha doente.
— Você está ótima. — Ney cumprimentou-me com um beijo na testa.
— E você parece muito animado com esse cheiro que vem do fogão. — dei-lhe um
tapinha na barriga saliente.
Minhas lembranças de Ney em nossas vidas remontam aos primeiros meses após nos
mudarmos para Terra Branca. Os espaços vazios deixados pelos amigos que papai
perdeu com a mudança foram, aos poucos, preenchidos pela companhia de Ney Abala.
Cozinheiro de fogão a lenha, criador de galinhas e especialista em ervas, Ney ensinou a
Olavo muitos truques culinários.
— Querida... — papai me chamou para sentar à mesa. — Pensei que Marina viesse
para o jantar.
— Marina vai sair com a família hoje para comemorar o aniversário do pai.
Papai me serviu um generoso pedaço de suflê de couve-flor e continuou:
— Espero que goste da comida. As flores são do jardim do Banco.
Provei o suflê com pouca curiosidade, pois já sabia que não iria sentir quase nada. O
mesmo tempero sem graça de todas as refeições que papai preparava para mim. Não
reclamei da falta de sal. Ao contrário, elogiei o suflê e todo o resto que Olavo havia
feito.
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Na segunda colherada, papai me interrompeu:
— Quero saber como foi o grande dia. Mas, antes, você precisa mostrar ao Ney.
Olhei para papai confusa, e depois para Ney. Ney retribuiu o olhar com a mesma
expressão de dúvida. Aparentemente, ele não sabia do que papai estava falando.
— Mostre a ele. — Olavo insistiu.
Desisti da segunda colherada e perguntei:
— Mostrar o quê?
— Ora, Sara, mostre ao Ney sua Carteira de Motorista.
Ney sorriu satisfeito e assentiu com a cabeça em sinal de concordância.
— Seu pai me contou que sua Carteira chegou.
— Ah... — respondi meio sem jeito. — Chegou à semana passada.
Papai me cutucou visivelmente ansioso.
— Vá buscar a Carteira, Sara.
Antes que eu pudesse me manifestar, Ney nos interrompeu:
— Olavo, deixe a menina comer em paz.
— Tudo bem. Não me importo. — sorri apaticamente e me dirigi para a sala, para
pegar a Carteira que guardara dentro da bolsa pendurada no cabide.
Sentei-me no sofá para procurar com calma. Papai e Ney continuaram a conversar
animadamente enquanto esperavam por mim. Abri o primeiro compartimento interno
e me deparei com um molho de chaves, um lenço de papel e meu vidro de remédios.
No bolso menor havia moedas e dois pequenos prendedores de cabelo. Revirei o
fundo da bolsa na esperança de que a Licença estivesse misturada ao restante das
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coisas que carregava, mas não a encontrei. Nesse momento, uma pontada de
ansiedade rechicoteou em meu estômago. Olhei novamente nos dois bolsos internos,
mas não havia nada. Resolvi despejar todos os objetos em cima do sofá. Agenda,
porta-moeda, canetas, papéis amassados, tudo foi revistado. Fui me dando conta de
que havia perdido a Carteira de Motorista três dias depois de recebê-la.
Isso não pode estar acontecendo. Comecei a resmungar. Revistei a bolsa pela terceira
vez antes de me conformar com o inconformável.
O que vou fazer agora? Estalei quatro dedos da mão esquerda de uma vez só. Não
posso deixar que papai saiba e venha a pensar que estou me esquecendo das coisas...
Ele vai achar que estou com problemas.
Respirei fundo para disfarçar o nervosismo. O que vou dizer agora?
— Sara. — papai me gritou da cozinha. — A comida está esfriando. Traga logo a
Carteira e venha comer.
Levantei-me do sofá calmamente. Cada passo em direção à cozinha era dado com
relutância. Olavo se decepcionaria imensamente com minha falta de zelo. Depois do
penoso discurso proferido com dramaticidade, papai começaria a cogitar hipóteses
remotas. Será que ela está perdendo a memória? Pensaria, tentando justificar minha
falta.
Mais um passo e eles saberiam que algo estava errado.