Estado, Direitos e Liberdades · E O DESENVOLVIMENTO PROGRESSIVO 219 Samuel Felipe Nascimento Horn...

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INSTITUTO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO PPGDUFPR PATROCINADORES ORGANIZADOR GERAL Ricardo Marcelo Fonseca (UFPR) COMISSÃO ORGANIZADORA André Peixoto de Souza (UFPR/UNINTER) Danielle Wobeto de Araújo (UFPR) Luis Fernando Lopes Pereira (UFPR) Sergio Said Staut Jr (UFPR) Thiago Hansen (UFPR) Walter Guandalini Jr (UFPR/UNINTER) Estado, Direitos e Liberdades: em homenagem a António Manuel Hespanha REALIZAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ FACULDADE DE DIREITO ANAIS DO XI CONGRESSO DE HISTÓRIA DO DIREITO 2019

Transcript of Estado, Direitos e Liberdades · E O DESENVOLVIMENTO PROGRESSIVO 219 Samuel Felipe Nascimento Horn...

  • INSTITUTO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO

    PPGDUFPR

    PATROCINADORES

    ORGANIZADOR GERAL

    Ricardo Marcelo Fonseca (UFPR)

    COMISSÃO ORGANIZADORA André Peixoto de Souza (UFPR/UNINTER)Danielle Wobeto de Araújo (UFPR)Luis Fernando Lopes Pereira (UFPR)Sergio Said Staut Jr (UFPR)Thiago Hansen (UFPR)Walter Guandalini Jr (UFPR/UNINTER)

    Estado,Direitos eLiberdades: em homenagem a António Manuel Hespanha

    REALIZAÇÃO

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁFACULDADE DE DIREITO ANAIS DO XI

    CONGRESSODE HISTÓRIA DO DIREITO 2019

  • Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019

    ÍNDICE

    GT DIREITO E ORGANIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA DO OITOCENTOS

    O CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO NA CARTA BRASILEIRA DE 1824 5

    Luis Henrique Braga Madalena; Samantha Ribas Teixeira Madalena

    THE DEEPEST SOUTH: COMO O INTERESSE ESTADOUNIDENSE SOBRE A AMAZÔNIA NO SÉC. XIX CONTRIBUIU PARA A FORMAÇÃO DA SOBERANIA BRASILEIRA DURANTE O IMPÉRIO? 20

    Victor Hugo Petersen

    GT HISTÓRIA DO CRIME

    A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TIPO PENAL DE AGRESSÃO PREVISTO NO ESTATUTO DE ROMA 38

    Fernanda Ravazzano L. Baqueiro; Luíza Moura Costa Spínola

    A PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO SOB A PERSPECTIVA MATERIALISTA HISTÓRICA 59

    André Peixoto de Souza; Kauana Vieira da Rosa Kalache

    DE PRISÃO A ESPAÇO CULTURAL: A RESSIGNIFICAÇÃO DA ATUAL CASA DA CULTURA DO RECIFE 72

    Alícia Maria Vieira Rocha; Ariadne Junia; Gomes da Cunha

    UMA HISTÓRIA DAS MASCULINIDADES: CRIME E DISCURSO JURÍDICO EM IRATI E MALLET-PR (1907-1940). 86 Lucas Kosinski

  • Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019

    GT HISTÓRIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO

    DISCURSO E LEGISLAÇÃO RACIONALISTA NA SAÚDE PÚBLICA BRASILEIRA ENTRE OS ANOS 1981 E 1987 106

    João Paulo Jamnik Anderson

    GT HISTÓRIA DO DIREITO E DA JUSTIÇA NO ANTIGO REGIME E COLÔNIAS

    ESTADOS DA MULHER NO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO: APONTAMENTOS PARA UMA INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA 126

    Fabiana Passos de Melo; Sérgio Said Staut Júnior

    UMA BREVE ANÁLISE DAS ESPECIFICIDADES DA COOPTAÇÃO INDÍGENA NO BRASIL PORTUGUÊS SEISCENTISTA (1631 - 1692) 148 Stéfano Gonçalves Lima; Joana Aymée Nogueira de Freitas

    GT HISTÓRIA DO DIREITO E DO TRABALHO NO SÉCULO XX

    CRÍTICA A DOGMÁTICA JURÍDICA E PLURALISMO JURÍDICO: FERRAMENTAS DE FORTALECIMENTO DO DIREITO DO TRABALHO NO SÉCULO XX. 163

    Celio Roberto Correa

    GT HISTÓRIA DO DIREITO E INFÂNCIA, ADOLESCÊNCIA E JUVENTUDE

    OS ENJEITADOS NA VIRADA DO SÉCULO XIX: ENTRE LEIS E LIVROS 183Alice de Perdigão Lana; Gabriel Percegona Santos

    GT HISTÓRIA DO DIREITO ECONÔMICO NO SÉCULO XX

    ESTRUTURAS EM MOVIMENTO: HISTÓRIA, SUBDESENVOLVIMENTO E SUBVERSÃO EM CELSO FURTADO 197

    Tuany Baron de Vargas; Paulo Ricardo Opuszka

  • Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019

    GT HISTÓRIA DO DIREITO INTERNACIONAL

    OS DEZ CRIMES DE SPIROPOULOS: UM ESBOÇO ENTRE A CODIFICAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO PROGRESSIVO 219

    Samuel Felipe Nascimento Horn

    GT HISTÓRIA DO DIREITO TRIBUTÁRIO

    AS RAÍZES ALEMÃS DA LITERATURA JURÍDICA TRIBUTÁRIA E AS REPERCUSSÕES NA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA: BREVE EXAME DO PERÍODO ENTRE-GUERRAS (1919-1933). 245Jeferson Teodorovicz

    HISTÓRIA DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA 269

    Caroline Chen Kravetz; Victor Guilherme Esteche Filho; Jeferson Teodorovicz

    HISTÓRIA DO FATO GERADOR 283

    Gabriel Martins Fonçatti; Lucas Mendes Lichs; Jeferson Teodorovicz

    GT HISTORIOGRAFIA JURÍDICA

    PASSADO PRESENTE E FUTURO: A HISTÓRIA CONCEITUAL DE REINHART KOSELLECK 300

    Ana Paula de Oliveira

    GT TRANSFERÊNCIAS, “TRANSPLANTES”, TRADUÇÃO CULTURAL

    A LIBERDADE DE IMPRENSA COMO DIREITO EM PORTUGAL E NO BRASIL: UM ESTUDO SOBRE POSSÍVEIS SIMILITUDES HISTÓRICAS 313

    Marissol Barbosa de Souza Pinheiro; Marcos Pascotto Palermo

    LIBERDADE RELIGIOSA E IMIGRAÇÃO NO IMPÉRIO BRASILEIRO 332

    Daniel Machado Gomes; Lucas Baffi Ferreira Pinto

    PEDRO RUIZ DE MOROS E AS TRANSFERÊNCIAS JURÍDICOCULTURAIS: UM JURISTA ESPANHOL

  • Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019

    NA POLÔNIA DO SÉCULO XV 346

    Nathalia Kosinski Rodrigues

    PRÁTICAS INQUISITORIAIS PRELIMINARES NO PROCESSO DE CONDENAÇÃO DE JOANA D’ARC 360

    Caio Cardoso Tolentino; Paulo Eduardo Alves da Silva

    ROCHA POMBO: IMAGINÁRIO REPUBLICANO EM PETRUCELLO NA VIRADA DO SÉCULO XIX PARA O XX 378

    Gusttavo Guth

    A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA 402

    Frederico Paganin Gonçalves

    O PENSAMENTO DE ALBERTO TORRES NA FORMAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1934 422

    Kamylla de Paula Padilha

  • Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019

    O CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO NA CARTA BRASILEIRA DE 1824

    LUIS HENRIQUE BRAGA MADALENA1

    SAMANTHA RIBAS TEIXEIRA MADALENA2

    Partindo do referencial teórico colocado pela História Conceitual desenvolvida por Reinhart Koselleck a presente pesquisa visa analisar o conceito de Constituição no contexto da Carta Imperial de 1824, mais especificamente no período de vigência do tal documento constitucional. Adotando o método de abordagem indutivo e o pro-cedimento monográfico, a pesquisa inicialmente embasou-se em breve estudo acer-ca da História dos Conceitos, desenvolvida por Reinhart Koselleck, na qual declina-se como a linguagem trabalha no sentido de fixar historicamente o sentido dos con-ceitos, circunscrevendo-os ao momento histórico em que foram concebidos. A partir deste ponto, a pesquisa procede com a análise do conceito de constituição na Car-ta Imperial de 1824, com enfoque na aplicação dos preceitos constitucionais e prá-ticas estatais relevantes para a compreensão do real sentido do conceito à época.

    Palavras-chave: Reinhart Koselleck. História dos Conceitos. Carta Imperial de 1824.

    1 Coordenador Geral da Academia Brasileira de Direito Constitucional - ABDConst. Doutorando em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Mestre em Direito Público pela UNISINOS-RS. Especialista em Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito pela Academia Brasileira de Direito Constitucional.

    2 Mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Membro da World Commission on Environmental Law (WCEL) para o quadriênio 20172020. Membro do Grupo de Pesquisa “Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade Hegemônica” e “Teoria da Norma e Teoria da Decisão”, ambos vinculados ao Cnpq.

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    INTRODUÇÃO

    Nos anos que seguiram a promulgação da Constituição Federal de 1988, viu-se

    uma exponencial mudança no papel tradicionalmente ocupado pelo documento na cul-

    tura jurídica brasileira, passando, gradativamente, à posição que atualmente ocupa, de

    pedra angular do sistema jurídico. Diante desta constatação, formou-se a dúvida: qual

    seria o conceito de constituição à época da primeira Carta brasileira?

    Para intentar responder este questionamento, optou-se pelo referencial teórico

    da História dos Conceitos ou História Conceitual, desenvolvida por Reinhart Koselleck,

    o qual opera com a história dos termos, das ideias, das palavras, dos conceitos. Resta

    fundamentalmente ligada com a linguagem no sentido de fixar o sentido dos conceitos

    em determinado tempo histórico, evitando sua deturpação e/ou tratamento anacrônico

    e, portanto, indevido3. A análise da teoria em comento é breve, dada a envergadura do

    trabalho, porém, marca os fundamentos e a metodologia de trabalho adotados ao longo

    da pesquisa.

    A partir deste caminho é que se passa à análise do conceito de constituição no

    contexto da Carta Imperial de 1824, a partir de algumas obras e autores contemporâneos

    ao documento estudado, com o fito de traçar suas características fundantes e observar

    o conceito em estudo no tempo e espaço de vigência daquele documento constitucional.

    Estes traços não restarão restritos a análises sobre o texto, mas passarão por prá-

    ticas e fatos concernentes ao período, espaço e tema em evidência. Compreendidos nes-

    tes traços fundantes deve estar o objetivo e função da Constituição, assim como a sua

    forma de aplicação e quais eram as práticas estatais relevantes para a compreensão do

    real sentido do conceito à época. Por fim, cabe apenas apontar que para a realização des-

    ta pesquisa adotou-se o método de abordagem indutivo e o procedimento monográfico,

    sendo as técnicas de pesquisa empregadas a bibliográfica e a documental.4

    3 BEZERRA, Danieli Machado. Reinhart Koselleck e a Linguagem. Curitiba: Appris, 2018.4 MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Claudia Servilha. Manual de metodologia de pesquisa no direito. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 65.5 BEZERRA, Danieli Machado. Reinhart Koselleck e a Linguagem. p. 34: “O conceito está presente como parte con-stitutiva da linguagem: é comum conceituarmos tudo desde as primeiras sílabas pronunciadas pelo bebê, já identificando quem é a mãe e o pai, por exemplo. A linguagem contribui para uma elaboração dos conceitos quando desenvolvemos a teoria da História dos Conceitos, passando por questões semânticas em torno da nomeação de artigos, substantivos, predicados, locução adjetiva ou verbal; indo além desses aspectos semânticos; chegando às questões que revelam os elementos históricos dos conceitos presentes na semântica histórica que são constitutivos da modernidade e da contem-poraneidade elaborada no projeto do léxico.”

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    1. A História dos Conceitos de Reinhart Koselleck

    A teoria de Koselleck permite observar novas alternativas conceituais e é capaz

    de mostrar que os conceitos comprovam novas situações em uma relação de mudan-

    ça levada a cabo por meio do movimento da modernidade. Este movimento é capaz de

    transformar a natureza e a história, o mundo e o tempo e cujas mudanças ocorrem pela

    evidência das transformações produzidas neste movimento e refletidas linguisticamente

    nos conceitos.5

    A História dos Conceitos questiona como as experiências e os estados de coisas

    são refletidos em determinados conceitos e reflete como eles são compreendidos. De-

    signa que o estudo sobre a língua nos indica dados sobre a realidade previamente dada e,

    também, é um fator dessa mesma realidade. Assim, acaba por se manifestar por meio da

    relação história-linguagem, apenas sendo viável em razão do discurso conferir entendi-

    mento transmito pela linguagem às experiências humanas – seja esta linguagem falada,

    escrita ou pensada.6 No desenvolvimento de sua História dos Conceitos, que em verda-

    de está na metade do caminho entre a história e a filosofia7, Koselleck sofre substancial

    influência da Filosofia Hermenêutica de Martin Heidegger e, também, da Hermenêutica

    Filosófica de Hans-Georg Gadamer. Com este último, inclusive, manteve debates sobre os

    fundamentos do conhecimento histórico.

    Na obra Ser e Tempo8, Heidegger procura entender a possibilidade da historio-

    grafia a partir do problema fundamental da historicidade constituinte do homem em sua

    existência prática. A história, para Heidegger, é a estrutura ontológica do que chama de

    “pre-sença”, “ser no mundo”, o dasein: trata-se da existência do homem na vida comum,

    fenômeno essencialmente temporal. A existência prática do homem é, para Heidegger,

    constituída de temporalidade porque é essencialmente finita, definindo-se pela certeza

    e pela expectativa da morte9.

    A existência do homem se dá nesse transcurso entre nascimento e morte, o “ser-

    -para-a-morte”, o que, para Heidegger, define sua consciência e ação no mundo como ser

    temporal e finito. No horizonte aberto por Heidegger, o tempo deve deixar de ser a base

    6 Ibid., p. 33.7 Ibid., p. 31.8 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 3. ed. Tradução por Márcia Sá Cavalcante Schuback.Petrópolis: Vozes, 2008.9 PEREIRA, Luisa Rauter. O debate entre Hans-Georg Gadamer e Reinhart Koselleck a respeito do conhecimen-to histórico: entre tradição e objetividade. In: História da Historiografia: International journal of theory and history of historiography. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/240/210. Acesso em: 19/03/2019

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    neutra e inquestionável das operações do discurso histórico para se tornar um problema

    fundamental da disciplina.

    Koselleck transformou a descoberta heideggeriana da historicidade intrínseca à

    experiência humana num projeto historiográfico, qual seja, o de pesquisar empiricamen-

    te como no plano dos conceitos políticos fundamentais para a modernidade se instaurou

    e remodelou a linguagem política. A marca da historiografia de Koselleck é ter posto a

    tarefa de compreensão do processo de inserção dos conceitos fundamentais do pensa-

    mento político moderno numa consciência processual da história10.

    Já Gadamer, seguindo a tradição da hermenêutica alemã, procurou revelar em sua

    grande obra Verdade e Método11, publicada em 1960, que o fundamento da historiografia

    e de todas as ciências do homem é a relação de pertencimento e comprometimento com

    o mundo e as tradições, e não a metodologia científica. A experiência hermenêutica do

    estabelecimento da verdade não se esgota nos parâmetros estabelecidos pela ciência,

    mas, diz respeito à totalidade da experiência do homem no mundo12.

    As reflexões Koselleck sobre historiografia se desenvolvem a partir de uma ques-

    tão fundamental: “o que é o tempo histórico?”. O tempo histórico não é abstrato, como o

    tempo do calendário; ao contrário é uma realidade plural, diversificada, variável como a

    diversidade da experiência humana. Há vários “extratos de tempo” superpostos e simul-

    tâneos, “estruturas de repetição que não se esgotam na unicidade”, “vinculado a unidades

    políticas e sociais de ação, a homens concretos que atuam e sofrem, a suas instituições e

    organizações”.13

    Para ele, o que constitui o tempo histórico são as concepções construídas por uma

    sociedade sobre sua temporalidade e, particularmente, sobre seu futuro. A temática his-

    toriográfica, não é propriamente o passado, mas o futuro; não o fato, mas a possibilidade;

    mais precisamente, as possibilidades e projetos, passados. Em todo conceito, realidade

    ou período histórico a ser analisado pelo historiador estaria em jogo uma determinada

    relação entre “espaço de experiências” e “horizonte de expectativas”. A primeira categoria

    diz respeito à tradição recebida e experiências que informam o presente. A segunda se

    10 ibid. p. 246.11 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 3. ed. Tradução por Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997; GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. 2. ed. Tradução por Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002.12 PEREIRA, Luisa Rauter. O debate entre Hans-Georg Gadamer e Reinhart Koselleck a respeito do conhecimen-to histórico: entre tradição e objetividade. In: História da Historiografia: International journal of theory and history of historiography. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/240/210. Acesso em: 19/03/201913 Ibid. p. 252-253.

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    refere ao elemento de projeção futura, de transformação. Estas categorias “reportam à

    temporalidade do homem e assim, em alguma medida meta-historicamente à temporali-

    dade da história”.14

    Atingimos então o ponto central da proposta historiográfica de Koselleck: enten-

    der o movimento da ação política e social ao longo da história a partir da investigação

    acerca da maneira com que os homens combinaram concretamente em seu presente a

    dimensão de sua experiência passada com suas expectativas de futuro. A história con-

    creta pode ocorrer na medida em que os homens que a fazem combinam experiências e

    determinadas expectativas. Koselleck propõe abordar esta questão no plano linguístico,

    através de uma história dos conceitos, uma semântica dos conceitos históricos que bus-

    que a Constituição linguística de experiências do tempo na realidade passada15. A ciência

    histórica deve fazer referência ao problema da experiência histórica, com suas diferentes

    “ontologias sociais do tempo”, que indicam e informam “tensões existenciais” relativas à

    finitude16 humana.

    Na proposta de Koselleck, a compreensão histórica visa primeiramente a esclare-

    cer sobre uma realidade existente para além dos textos e da linguagem. O historiador, é

    claro, não participa da visão ingênua de um “passado em si”: o conhecimento histórico

    sempre elege, seleciona e organiza aquilo que deve ser conhecido. Entretanto, trata-se

    ainda do conhecimento de dados de uma realidade fora do âmbito linguístico.17

    Para além de Heidegger e Gadamer, aqui se faz importante mencionar a impor-

    tância de Carl Schmitt para a Constituição da História dos Conceitos de Koselleck, que

    orientou sua tese de doutoramento. Com este, partilha da visão de que a política é deter-

    minada, em última instância, pela possibilidade do conflito entre os homens e os povos,

    e, também, da morte física.18

    Koselleck busca utilizar os conceitos como instrumentos que revelam a sociedade

    concreta por ela mesma, vez que afirma que estes são marcas evolutivas das sociedades e 14 Ibid. p. 254.15 Ibid. p. 255.16 INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. p. 71-73: “Em Ser e Tempo, “finitude”, Endlichkeit, refere-se invariavel-mente e de maneira mais ou menos explícita, à morte, sendo, pois, finitude temporal. (...) A filosofia é uma expressão de nossa finitude, uma tentativa de nos familiarizar em um mundo que não criamos e que não compreendemos inteiramente, e a própria filosofia é finita: “todo filosofar, sendo uma atividade humana, é incompleto, finito e restrito. (...) O “ser” é finito em três sentidos: (a) Ele requer outras coisas (Deus etc.) para revelar-se em uma civilização. (b) Nenhuma revelação do ser revela tudo que há; há sempre mais do que qualquer civilização descobre. (desta forma a finitude do ser refuta qualquer “idealismo”). (c) Toda civilização tem um começo e um fim.”17 PEREIRA, Luisa Rauter. O debate entre Hans-Georg Gadamer e Reinhart Koselleck a respeito do conhecimen-to histórico: entre tradição e objetividade. In: História da Historiografia: International journal of theory and history of historiography. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/240/210. Acesso em: 19/03/201918 BEZERRA, Danieli Machado. op. cit., p. 23-24.

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    sua investigação demanda reflexão acerca do trabalho intelectual que será levado a cabo

    por meio de uma ideia de que o conceito utilizado para ler uma específica época é passí-

    vel de ser amplamente decorrente do que essa época diz sobre tal conceito.

    Na análise conceitual específica a ser realizada no decorrer do texto, esta noção é

    fundamental, dado que os usos de determinado conceito determinam seu sentido porque

    os usos dos conceitos, tanto no passado como no presente, determinam seus usos possí-

    veis.19 A vida humana resta constituída por experiências e os conceitos revelam os signi-

    ficados de tais experiências que acabam diluídas no tempo, contribuindo para entender e

    registrar o que de fato ocorreu.

    2. O CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO NO CONTEXTO DA CONSTITUIÇÃO BRA-SILEIRA DE 182420

    Conforme visto, a História dos Conceitos parte dos aspectos sociais, históricos

    e políticos que constituem o significado original e autêntico que os conceitos possuem,

    para que sua história possa ser conceitualizada, descrita, pensada, levando em conside-

    ração a realidade da concepção do conceito.

    Os conceitos são registros da realidade e, inclusive, fatores de mudançadesta

    mesma realidade. Com os conceitos se estabelece tanto o horizonte daexperiência pos-

    sível como os limites que esta resta submetida. É por isso que aHistória dos Conceitos é

    capaz de fornecer conhecimento que não pode serextraído da análise da própria situação

    fática. O panorama construído nospermite enxergar uma dimensão da realidade social.

    Por isso o conceito não émero indicador dos contextos que engloba, sendo também um

    fator destes. Com cada conceito se estabelecem determinados horizontes, mas também

    limitespara a experiência possível e para a teoria pensável. Os conceitos não detêmuma

    história autônoma, não existem aleatoriamente, pois carregam consigoelementos de sig-

    nificado transmitidos historicamente. Não há contextos originaisnos conceitos, sendo

    incumbência da História dos Conceitos registrar como tais conceitos foram criados, al-

    terados ou transformados no decurso da história.21

    19 OLIVEIRA. Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2006. p. 117-147.20 DAS NEVES, Lúcia Bastos Pereira; DAS NEVES, Guilherme Pereira. Constituição. In: Léxico da história dos con-ceitos políticos do Brasil. João Feres Júnior (org.). Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 65-90.21 Ibid., p. 84-85.

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    Posto isso, serão apresentados traços22 do conceito de Constituição quando do

    período da Constituição Imperial brasileira de 1824, para o que não se deve carregar a

    compreensão sobre o conceito hodierno, aplicável para arealidade constitucional brasi-

    leira do final da segunda década do século XXI. Este cuidado é indispensável, sob pena

    de cair em anacronismos ao não apenasolhar, mas efetivamente ter em conta o momento

    constitucional brasileiro da Constituição do Império a partir dos óculos da contempora-

    neidade e a partirdisso retirar conclusões equivocadas.

    O objeto deste texto não é a confrontação entre o conceito de Constituiçãono

    período da Constituição de 1824 e atualmente, mas o cuidado com a corretaobservação

    da História dos Conceitos para que se evite anacronismos econsequentes equívocos deve

    estar presente. Assim, a pesquisa foi levada acabo a partir de obras da época, em grande

    medida do século XIX, que contivessem noções do período e das ideias que circulavam

    naquele momento. O que era e qual a função da Carta Imperial de 1824? Quais seus pon-

    tos nevrálgicos? Estes são alguns dos questionamentos que este texto pretende tratar.

    Da leitura de interessante obra derivada da teoria koselleckiana daHistó-

    ria dos Conceitos, organizada por João Feres Júnior, denominada “Léxico da His-

    tória dos Conceitos Políticos do Brasil”23, chega-se a algumas conclusõesso-

    bre o conceito de Constituição no período compreendido entre 1750 e 1850:

    • No início do século XVIII, Constituição significava “um estatuto,uma re-

    gra”. Nos meios eclesiásticos, Constituição era o conjuntode leis, pre-

    ceitos e disposições que regulavam uma instituiçãocomo seu estatuto

    orgânico;

    • Somente a Constituição, como instrumento de um ideário político,era

    vista como capaz de assegurar a possibilidade de triunfo daspráticas li-

    berais. Exprimia o anseio político de todos os membrosdas elites política

    e intelectual de Brasil e Portugal;

    • À semelhança da Constituição espanhola de 1812, a Constituiçãobrasilei-

    ra de 1824 não começava pela enunciação de direitos,como estabelecido

    22 Aqui fala-se em traços, vez que em um trabalho com a limitada envergadura que possui este, não se pode ter a pretensão de delimitar o conceito de Constituição.

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    pelas revoluções do século XVIII24, mas pelaorganização do Império, ou

    seja, pela organização do poder.

    Além do que posto acima, alguns outros pontos merecem ser elencadosacerca da

    Constituição de 1824.

    O primeiro deles é o fato de que a “Constituição”25 era, em verdade, uma Car-

    ta, dado que não votada com assentimento do povo26, ou seja, foi outorgadapelo Im-

    perador. Mais interessante, ainda, que esta não era a ideia original, porém, uma su-

    cessão de acontecimentos levou à dissolução armada27 da Assembleia Constituinte por

    Dom Pedro I.

    O monarca prometeu, na sequência, convocar uma nova constituinte, quefaria

    uma Constituição “duplicadamente mais liberal”, mas isso nunca ocorreu. O Imperador,

    todavia, nomeou um Conselho de Estado formado por “dez dos mais notáveis da Terra”

    para elaborar o texto da Carta, o qual foi, posteriormente,outorgado e passou a viger

    como a primeira “Constituição” do Brasil.

    Outro ponto a ser firmado é a inspiração da Carta Imperial de 1824 fundada no

    constitucionalismo britânico – que serviu de modelo de organizaçãoàs monarquias cons-

    titucionais do mundo ocidental, onde se inclui o Brasil. Tal influência fica evidente na

    Carta de 1824 especialmente em seu artigo 17828 ena característica predominante de

    constitucionalizar apenas o que dizia respeitoaos poderes do Estado e às garantias in-

    dividuais dos cidadãos. Aqui importaenfatizar que neste ponto da história o conceito de

    direitos e garantias individuaisé substancialmente diverso do atual29.

    Exatamente nestas características, advindas da influência britânica, oconceito de

    Constituição do período da Carta de 1824 demonstra-se bastantediverso do que contem-

    23 DAS NEVES, Lúcia Bastos Pereira; DAS NEVES, Guilherme Pereira. Constituição. In: Léxico da história dos con-ceitos políticos do Brasil. João Feres Júnior (org.). Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 65-90.24 Deve-se anotar que a grande importância dada ao tema da enunciação de direitos como cerne das constitu-ições, se deu com os adventos deste período.25 Importante anotar que ao longo de todo o texto utilizou-se o vocábulo “Carta” ao invés de “Constituição”, ao contrário do que feito nesta passagem, exatamente em razão da intenção de enfatizar a característica da outorga do doc-umento constitucional de 1824.26 Certamente que o conceito de povo ora tratado não equivale ao conceito hodierno. O tratado no texto diz res-peito ao que compreendido por povo quando do recorte temporal em voga, conforme aborda a História dos Conceitos.27 Após o golpe militar que dissolveu a Constituinte de 1823, as Províncias do Norte e Nordeste se agitaram e se rebelaram. Houve descontentamento no Pará, Maranhão, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas. Em Pernambuco, foi deflagrado um movimento separatista políticomilitar, que recebeu o nome de “Confederação do Equador” (1824). No dia 1228 Art. 178. É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional, póde ser alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinarias.29 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

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    poraneamente temos em conta, dada que não apenas afunção da Constituição restava

    restringida a questões muito específicas, comojá mencionado, mas na ordem de impor-

    tância destes referidos temas a organização do Estado e seus poderes ganhava predomi-

    nância, inclusive naordem em que são apresentados no teor da Carta.

    Mais um dos pontos a ser firmado é o grande período de vigência da Carta de 1824,

    que alcançou 65 anos. Notadamente, ao ser revogada pelo governo republicano em 1889,

    era a segunda Constituição30 escrita mais antiga domundo, superada apenas pela dos Es-

    tados Unidos da América.

    Este fato decorreria de sua plasticidade e adaptabilidade31, característicastão im-

    pactantes que a própria República poderia ter sido implantada no País comuma simples

    emenda constitucional, haja vista a ausência de limitação do poderconstituinte derivado

    – importando na plenipotência das emendasconstitucionais. Além disso, embora estas

    tivessem o mesmo rito de Lei Ordinária e, portanto, dependessem da sanção do Impera-

    dor no caso de mudança da formade governo, como em qualquer outra matéria consti-

    tucional reformada por Lei Ordinária, o Monarca não poderia negar a sanção, desde que

    aprovada por duaslegislaturas seguintes, em face do que dispunha o art. 6532. Maior plas-

    ticidadenão houve em nenhum dos documentos constitucionais brasileiros posteriores.

    Ressaltados os pontos acima, começa a tomar forma o conceito que seprocura

    traçar neste trabalho. Para além destes, haverá a passagem paradestaque de trechos de

    obras e documentos da época que terão o condão deexprimir impressões sobre o con-

    ceito de Constituição daquele momento que jánão são possíveis de obter apenas com a

    leitura afastada das pontuaiscaracterísticas da sistemática normativa do texto da Carta

    de 1824.

    A primeira questão a ser tratada por estas obras da época é referente ao Conse-

    lho de Estado, previsto no texto originário da Carta de 1824, especificamente nos artigos

    137 a 144, que compunham o Capítulo VII dodocumento constitucional – estando as suas

    atribuições declinadas no teor do artigo 142, especificamente33.

    30 Ou Carta, dada sua outorga. Enfim, certamente podemos denominá-la de documentos constitucional.31 FIGUEIREDO, Afonso Celso de Assis. Oito anos de Parlamento; Brasília, DF. Ed. UnB, 2a ed., 1983, p. 37.32 Art. 65. Esta denegação tem effeito suspensivo sómente: pelo que todas as vezes, que as duas Legislaturas, que se seguirem áquella, que tiver approvado o Projecto, tornem successivamente a apresental-o nos mesmos termos, en-tender-se-ha, que o Imperador tem dado a Sancção.33 “Os Conselheiros serão ouvidos em todos os negócios graves e medidas gerais da pública administração, princi-palmente sobre a declaração de guerra, ajustes de paz, negociações com as nações estrangeiras, assim como em todas as ocasiões em que o Imperador se proponha exercer qualquer das atribuições próprias do Poder moderador, indicadas no art. 101, à exceção da 6a.”

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    Este primeiro Conselho funcionou entre 1828 e 1834, quando foi extintopor meio

    de Ato Adicional. Esta extinção foi muito criticada por Silvestre Pinheiro Ferreira, autor

    da época, que produziu a obra “Observações sobre a Carta Constitucional do Reino de

    Portugal e Constituição do Império do Brasil”34,especialmente na segunda edição do tra-

    balho que teve causa justamente emdecorrência do Ato Adicional de 1834.

    Logo no início da obra, o autor escreve o que chama de “advertência”, quando

    critica duramente a referida extinção do Conselho de Estado, tendo-acomo “contrária

    e subversiva dos princípios do sistema constitucional”35. Ao afirmar isso, o autor enten-

    de que o Conselho de Estado era um limitador do Poder Moderador do Imperador. Em

    verdade o Poder Moderador e o Conselho de Estado eram, respectivamente, o quarto e

    quinto poderes.

    O diagnóstico da afirmação de subversão dos princípios constitucionaisquando

    da extinção do Conselho de Estado parece ser clara: ficaria prejudicadaa necessidade de

    controle dos demais poderes, em especial do Poder Moderador exercido pelo Imperador.

    Assim, dentre as noções do conceito de Constituição estava a necessidade de limitação

    mútua dos poderes, mesmosendo o caso de uma monarquia, aqui necessariamente cons-

    titucional.

    O Conselho de Estado foi posteriormente restaurado, por meio da Lei n°234, de 23

    de novembro de 1841, com diferente conformação e atribuições, com notável apoio tanto

    dos conservadores quanto dos liberais, estes sendo osgrandes artífices da extinção ante-

    rior. Na verdade, a recriação se deu, inclusive,com o apoio dos liberais, com o objetivo de

    manter a estabilidade política einstitucional pretendida pela Carta de 1824.36

    Aliás, ao se observar a obra de José Honório Rodrigues, vê-se que aprincipal des-

    confiança que recaia sobre o Conselho de Estado era suacaracterística de “reduto de

    áulicos” que transformaram o ente em “um guardiãodas tradições do regime, um órgão

    de estatização da monarquia representativa e constitucional, disfarce com que se apre-

    sentava a ditadura do Poder Moderador”.37 Outra interessante característica da Carta de

    1824 era a função demantenedora da independência, especialmente com o sentimento

    34 FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Observações sobre a Carta Constitucional do Reino de Portugal e Constituição do Império do Brasil. 2. ed. Paris: De Casimir, 1835.35 Id.36 NOGUEIRA, Octaciano. 1824. 3. ed. Brasília: Senado Federal, 2012.37 RODRIGUES, José Honório. Conciliação e Reforma no Brasil. Um Desafio Histórico-Político; Rio de Janeiro, Civi-lização Brasileira, 1965. p. 67.

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    Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019 páginas 7 - 21

    nativista queimpregnava diversas prescrições normativas do documento constitucional,-

    conforme aponta Aurelino Leal.38

    Em diversos momentos, quando a Carta tratava dos estrangeiros,realizava exi-

    gências desmedidas, considerando-os sempre integrados pelos portugueses. Este trata-

    mento denotava o traço da Carta e da concepção de Constituição que se tinha naquele

    momento, não apenas como responsável pela organização de Estado onde tudo estava

    por fazer39, mas pela real manutençãodeste como um Estado independente e livre de

    possíveis usurpadores.

    Por mais que a dissolução da Assembleia Constituinte, ocorrida em 1823, tenha

    sido levada a cabo por diversos fundamentos que, em verdade,pretendiam conservar os

    princípios constitucionais e viabilizar o projeto constitucional brasileiro40, a mesma foi

    muito mal recebida pela população41, compontuais manifestações no Rio de Janeiro, como

    o chamado apagão42, além daConfederação do Equador em Pernambuco. Isso demonstra

    como a premissade que uma Constituição deveria ser votada pelos representantes do

    povo erabastante importante.

    Ainda durante o primeiro ano de vigência da Carta de 1824, o próprioabsolutis-

    mo manifestou desejo de ressurgir. Nas palavras de Aurelino Leal, “osagrado código não

    estava sendo mais que um phantasma de estatutopolítico”43, pois suspenso para alguns

    na parte que tocavam as liberdadesindividuais. Aurelino ainda mencionou que “a verda-

    de é que o regimen constitucional não passava de um rotulo collado ao absolutismo44”,

    poisenquanto não havia carta teria havido mais liberdade do que após o juramentodo tal

    documento. A liberdade de imprensa teria sido ceifada pelo chamado“golpe de estado”

    dado na assembleia constituinte.45

    Outro ponto de interesse do texto da Carta de 1824 e seus efeitos, é aposição

    dispensada ao Judiciário, especialmente no tocante às garantias dadasaos magistrados,

    38 LEAL, Aurelino. História Constitucional do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1915.39 RODRIGUES, José Honório. op. cit., p. 47: “tudo estava por fazer, tudo por criar, pois não só era nova a forma constitucional, novas as instituições, como novo o País até na organização administrativa. A independência era muito recente, e ainda não havia tempo de ter-se criado a escola prática brasileira”.40 LEAL, Aurelino. op.cit., p. 93-101.41 Id.42 Muitos dos cidadãos descontentes com a dissolução da assembleia constituinte não acenderam a iluminação de suas residências ao cair da noite que sucedeu o evento.43 LEAL, Aurelino. op.cit., p. 146.44 Id.45 Ibid., p. 149: “Quanto ao mais, era visível que a Constituição fora uma lei decorativa. Dir-se-ia um edifício construído só exteriormente. O interior, sem divisões, que seriam as leis complementares, dava em resultado que o paiz mostrasse ao publico e ao extrangeiro uma construcção de bella fachada, onde, na realidade, porém, tremulava a bandeira do absolutismo.”

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    conforme consta nos artigos 151 e 154. Materialmente eramnegadas a inamovibilidade, a

    vitaliciedade do cargo e a irredutibilidade de vencimentos.46

    Para além do que posto, a prática constitucional em relação ao Judiciário,porém,

    mostrou que, mesmo as garantias expressamente ressalvadas, não eramrespeitadas, es-

    pecificamente sob o fundamento do “interesse da administração”. Conhecido caso que

    expressa violação do preceito da vitaliciedade ocorreudurante o ministério da Conci-

    liação, presidido pelo marquês de Paraná, entre 1853 e 1856, quando Nabuco de Araújo

    era Ministro da Justiça. O fato consistiuna aposentadoria de dois e na transferência de

    um terceiro juiz da Relação de Pernambuco, por terem, em julgamento da violação da lei

    que puniu esuspendeu o tráfico, em 1850, absolvido réus importantes da Província que o

    Governo entendia culpados por conivência e omissão num desembarqueclandestino de

    africanos.47

    Tal constatação deixa claro a posição assumida pelo Executivo de nãoapenas in-

    terferir diretamente nas decisões do Judiciário, como a sua disposiçãode punir aqueles

    que atuassem em desacordo com suas concepções. Ante taispráticas e tendo em conta o

    poder expressamente concedido ao Imperador, pelaprópria Carta, de decretar aposenta-

    dorias compulsórias e transferências demagistrados, não se pode afirmar que o Judiciário

    do período imperial fosseefetivamente um poder independente. Este é um traço muito

    importante da Cartade 1824 e de seu período de vigência, pois mostra a concepção de

    divisão de poderes muito diversa da que contemporaneamente vigente, com grandecon-

    centração nas mãos do Imperador48.

    Para a anotação desta fraqueza do Judiciário, especialmente frente aoExecutivo,

    deve-se observar o que posto no artigo 15, item VIII49, que acabavapor atribuir ao legis-

    lativo a incumbência de uniformização da jurisprudência. Mas, materialmente, como o

    poder de interpretação legal jamais foi exercido pelolegislativo, a prerrogativa terminou

    absorvida pelo Executivo, durante todo oImpério.50

    46 Ibid., p. 125.47 NOGUEIRA, Octaciano. op. cit. p. 27.48 Que detinha não apenas um “extenso” Poder Executivo, mas o decisivo Poder Moderador, que somados ao Con-selho de Estado na materialidade de sua composição e práticas, proviam um verdadeiro instrumento de manutenção do poder para o monarca, ao invés do documento constitucional servir de meio para limitar os poderes do mandatário real.49 Art. 15. E’ da attribuição da Assembléa Geral (...) VIII. Fazer Leis, interpretal-as, suspendel-as, e rovogal-as.50 NOGUEIRA, Octaciano. op. cit. p. 29.51 PEDRO I IMPERADOR DO BRASIL. Discurso de sua Magestade, o Imperador, a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil, no dia da abertura da mesma Assembleia (sic). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, [1823?]. Pg. 04.

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    Pontos dignos de nota são alguns postos no discurso do Imperador paraa Assem-

    bleia Constituinte que acabou dissolvida. O primeiro deles é a referênciapositiva reali-

    zada perante a participação dos brasileiros na elaboração da Constituição, não dos por-

    tugueses, o que daria legitimidade para o documento51.Claro que a contradição causada

    pela dissolução da Assembleia por parte domesmo Imperador é patente, demonstrando a

    ausência de legitimidade da Cartade 1824 diante de sua própria argumentação.

    Outro destes pontos refere-se ao fato de o Imperador mencionar que espera da

    assembleia constituinte uma Constituição em que os três poderessejam bem divididos,

    de modo a não arrogar direitos que não sejam de suacompetência. Claro que com a pos-

    terior prática constitucional e com a introduçãodo Poder Moderador, a contradição aqui

    também se mostra patente52.53

    Por fim, outro aspecto importante é a menção de que a Constituiçãodeveria ser

    digna do próprio Imperador, revelando o caráter centralizador, personalíssimo a absolu-

    tista das intenções do que deveria ser um monarca constitucional.54

    CONCLUSÃO

    A partir desta singela exposição de traços da Carta de 1824, é possívelesboçar uma

    construção do conceito de Constituição no período de vigênciadaquele documento cons-

    titucional. Em primeiro lugar, a Constituição ou Cartatinha função de demonstrar a inde-

    pendência institucional do Brasil, com fortefundamento na legitimidade que desfrutaria

    por ter sido elaborada por brasileiros. Obviamente que tal legitimidade sofre um golpe

    com a dissolução da assembleiaconstituinte, mas o documento de 1824 permaneceu bra-

    sileiro. Obviamente queesta legitimidade não significa uma legitimidade democrática nos

    moldes atuais.

    Esta independência acabaria escancarada por um documentoinstitucional brasi-

    leiro, na medida em que a Constituição era entendida como omeio de organização do

    52 Ibidem, pg. 1053 “Uma Constituição, em que os trez Poderes sejam bem divididos de forma; que não possam arrogar direitos, que lhe não compitam; mas que sejam de tal modo organizados, e harmonizados, que se lhes torne impossivel, ainda pelo decurso do tempo, fazerem-se inimigos, e cada vez mais concôrram de mãos dadas para a felicidade geral do Estado”. PEDRO I IMPERADOR DO BRASIL. Discurso de sua Magestade, o Imperador, a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil, no dia da abertura da mesma Assembleia (sic). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, [1823?]. Pg. 10.54 Idem.

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    Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019 páginas 7 - 21

    Estado e de implementação das práticas liberais.Exprimia o anseio político de todos os

    membros das elites política e intelectual,desta feita genuinamente brasileiras.

    A grande plasticidade da Carta contribui para reforçar este caráter deorganização

    do Estado, na medida em que não aplicava a petrificação a qualquerde suas cláusulas. Sua

    grande virtude era a regência por si só, não a defesa dequaisquer específicos conteúdos

    impressos em seu texto.

    Pela dissolução da assembleia constituinte e pelas condições deaplicação da Car-

    ta, entendia-se que não comtemplava como deveria seudesiderato liberal, disfarçando

    um regime absolutista e que em verdade detinhaos poderes, especialmente o Judiciário,

    bem amarrados pelos institutos do Poder Moderador e pelo Conselho de Estado, para

    além de outros efetivos mecanismos. Some-se a isso as práticas estatais que reforçavam

    tais posições. Revoltas como a Confederação do Equador e a execução de Joaquim da Sil-

    va Rabelo, conhecido como Frei Caneca, reforçam esta compreensão.

    REFERÊNCIAS

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    DAS NEVES, Lúcia Bastos Pereira; DAS NEVES, Guilherme Pereira. Constituição. In: Lé-xico da história dos conceitos políticos do Brasil. João Feres Júnior (org.). Belo Horizon-te: UFMG, 2009.

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    GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 3. ed. Tradução por Flávio PauloMeurer. Petrópolis: Vozes, 1997.

    GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II. 2. ed. Tradução por Enio PauloGiachini. Petrópolis: Vozes, 2002.

    HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 3. ed. Tradução por Márcia Sá CavalcanteSchuback. Petrópolis: Vozes, 2008.

    INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. 2. ed. Tradução por Luísa Buarquede Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

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    Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019 páginas 7 - 21

    LEAL, Aurelino. História Constitucional do Brazil. Rio de Janeiro: ImprensaNacional, 1915.

    MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Claudia Servilha. Manual de metodologiade pesquisa no direito. São Paulo: Saraiva, 2003.

    NOGUEIRA, Octaciano. 1824. 3. ed. Brasília: Senado Federal, 2012.

    OLIVEIRA. Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática nafilosofia contem-porânea. São Paulo: Edições Loyola, 2006.

    PEDRO I IMPERADOR DO BRASIL. Discurso de sua Magestade, o Imperador, aAssem-bleia Geral Constituinte e Legislativa do Imperio do Brasil, no dia daabertura da mesma Assembleia (sic). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, [1823?].

    PEREIRA, Luisa Rauter. O debate entre Hans-Georg Gadamer e ReinhartKoselleck a respeito do conhecimento histórico: entre tradição e objetividade. In:História da Histo-riografia: International journal of theory and history ofhistoriography. Disponívelem:ht-tps://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/240/210.Acesso em: 19/03/2019 as 17:30

    RODRIGUES, José Honório. Conciliação e Reforma no Brasil. Um DesafioHistórico-Polí-tico; Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.

    SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2007.

  • Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019

    THE DEEPEST SOUTH: COMO O INTERESSE ESTADOUNIDENSE SOBRE A AMAZÔNIA NO

    SÉC. XIX CONTRIBUIU PARA A FORMAÇÃO DA SOBERANIA BRASILEIRA DURANTE O IMPÉRIO?

    VICTOR HUGO PETERSEN 1

    Durante o século XIX, as relações entre o Império do Brasil e os Estados Unidos da América foram marcadas principalmente por uma questão, qual seja, o interesse e a pressão estadounidenses para abertura da navegação dos canais amazônicos. Levan-do em conta que os processos históricos não ocorrem de forma isolada em cada país, percebe-se que tal evento teve influências na construção do Brasil Imperial. Assim, através do método da revisão bibliográfica de autores das relações internacionais, direito internacional e história e análise de documentos diplomáticos históricos, bus-ca-se compreender como o interesse estadounidense na abertura dos canais amazô-nicos no séc. XIX - tanto com fins comerciais quanto com fins de expansão territorial e deportação dos escravos sulistas pós-Guerra de Secessão - e a relativa resistência do governo imperial brasileiro contribuíram para a formação de uma ideia de soberania brasileira durante o período monárquico.

    PALAVRAS-CHAVE: soberania nacional; Estado-nação; Brasil Império;

    Over the 19th century, the Brazilian Empire and United States of America relations were marked maily on the discussion about the north-american interest and pressure over the ope-ning of the amazona cannals. Considering that historical processes do not happen isolately on each country, it is possible to realize that this event had effects over the construction of the Brazil Empire. This way, through the bibliographic review of International relations, Interna-tional law and history authors and historical diplomatic documents analysis, this article aims to understand how the northamerican interest over the opening of the amazona cannals on the 19th century – either for commercial intentions either for territorial expansion and slave deportation on the post Civil War – and the relative resistance of the imperial Brazilian gover-nment contributed to the construction of a Brazilian sovereignty during the monarchy period.

    KEYWORDS: nacional sovereignty; nation State; Imperial Brazil

    1 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Curitiba, [email protected]

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    1. INTRODUÇÃO

    O século XIX se mostrou como um século de transformações e definições para as

    Américas: processos de independência, delimitação de fronteiras, corridas expansionis-

    tas e construções de noções de identidade e soberania nacional marcaram esse período

    histórico no continente. Tais experiências, como se é comum no processo histórico, não

    se deram de maneira isolada: há uma forte correlação entre as experiências vivenciadas

    pelos Estados americanos e os efeitos produzidos por uns sobre os outros

    Nesse sentido, enquanto a América do Sul vivenciava diferentes processos de in-

    dependência com relação aos países ibéricos e de formação de fronteiras dos recém-es-

    tabelecidos Estados Nacionais da região, os Estados Unidos da América - que já no século

    anterior haviam conquistado a independência com relação à Inglaterra - vivenciavam dois

    momentos de grande importância em sua construção histórica: o expansionismo terri-

    torial marcado pelo destino manifesto e a Guerra de Secessão, que dividiu os estados do

    norte e do sul em um sangrento embate envolvendo a manutenção do sistema escravista.

    E é com a união dos efeitos desses dois processos históricos que se constrói um

    dos primeiros momentos de disputa envolvendo o interesse internacional sobre uma das

    mais ricas regiões brasileiras: a Amazônia. A imprensa e grandes influências estadouni-

    denses começam a defender a abertura dos canais amazônicos para navegação interna-

    cional não apenas como forma de exploração econômica mas como uma solução para

    as consequências da Guerra de Secessão - servindo a Amazônia, território de uma das

    maiores nações ainda escravistas do mundo, como refúgio para a escravidão ameaçada

    pelo abolicionismo objeto da Guerra Civil Americana.

    A Amazônia passa a ser vista enquanto uma ‘extensão natural do Vale do Missis-

    sippi’ – ou the Deepest South, em relação aos estados do sul dos EUA conhecidos como

    the Deep South – território propício para abrigar a continuidade da máquina escravista

    ameaçada no território estadounidense.

    No cerne de tal discussão, o Brasil - que era um Estado Nacional com menos de 50

    anos de independência, caracterizado por uma Monarquia Constitucional única na região

    - não mostrou fácil submissão aos interesses internacionais. Houve resistência por parte

    do governo imperial à abertura dos canais amazônicos, contando com fundamentação

  • 24

    Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019 páginas 22 - 39

    jurídica baseada no direito internacional e nas próprias leis nacionais do Império. Assim

    sendo, enquanto uma nação ainda em construção - considerando tanto o estabeleci-

    mento de fronteiras quanto a ideia de uma soberania e identidade nacional -, mostra-se

    como objeto de discussão a inter-relação entre os processos históricos de formação do

    Estado-Nação vividos pelos EUA e pelo Brasil no séc. XIX.

    2. DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO

    2.1. A SITUAÇÃO ESTADOUNIDENSE

    No início do século XIX, os Estados Unidos, enquanto Estado recém independente,

    foi marcado por uma política expansionista e de consolidação de territórios conhecida

    como destino manifesto. Esse ideal é construído com base nas ideias calvinistas de pre-

    destinação, fruto da reforma religiosa ocorrida na Inglaterra que transpassou seus resul-

    tados à então colônia britânica na América.

    Assim, a predestinação calvinista sustentava a ideia de que “Deus escolhe seus

    eleitos”, sendo, então, o povo estadounidense aquele escolhido por Deus para levar o es-

    clarecimento aos povos considerados inferiores (COSTA, 2011, sem paginação), que ocu-

    pavam os territórios do oeste da América do Norte.

    Quase que simultaneamente ao fenômeno da expansão territorial do destino ma-

    nifesto, os EUA também começavam a se encaminhar ao conflito entre estados livres e

    estados escravistas que viria a ser conhecido enquanto Guerra de Secessão. As diferenças

    político-econômicas entre os Estados do Norte - que desenvolviam sua industrialização

    em ritmo acelerado e aos poucos se tornavam autossuficientes - e os Estados do Sul - que

    contavam com altíssimo desenvolvimento da agricultura e ainda dependiam da importa-

    ção de manufaturas - foram consumadas em Guerra Civil com a emergência da discussão

    quanto a manutenção, ou não do sistema escravista.

    Dessa forma, ao desenvolver do século XIX nos Estados Unidos:

    [...] o “mito do Oeste” passou a fixar-se no imaginário de toda a nação,

    fazendo corresponder a ideia de “fronteira em movimento” ao processo

    real de guerra permanente contra os índios. Tidos como “inimigos da

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    civilização”, os índios serviram de bode expiatório para se tentar dar co-

    esão no Oeste a uma formação social que cada vez mais se esgarçava no

    Leste, opondo abolicionistas e escravistas ou nortistas e sulistas.”(MAG-

    NOLI, 2006, p. 239)

    Assim, de acordo com Nicia Vilela Luz (1968, p. 50), ao longo desse processo “o de-

    senvolvimento e a valorização da produção de algodão no Sul levam à anexação do Texas

    e à conquista do México, ao mesmo tempo em que se colocava, internamente, o problema

    do equilíbrio político entre os Estados escravistas e os Estados livres, encaminhando os

    Estados Unidos diretamente na direção de um conflito armado e inevitável entre os Es-

    tados do Norte e do Sul.

    2.2. A SITUAÇÃO BRASILEIRA

    Enquanto os EUA se tornaram uma Nação independente ainda no final do século

    XVIII, na América do Sul a onda de processos de independência marca o início do século

    XIX: numerosos conflitos levam à independência e desmembramento do território co-

    nhecido como “América Espanhola”, enquanto que o território da “América Portuguesa”,

    em 1822, conquista sua independência através de negociações e se torna o Império do

    Brasil.

    Se durante o período colonial já se percebiam diferenças discrepantes entre as

    regiões espanholas e a portuguesa, com as independências desses territórios elas se tor-

    nam ainda mais gritantes. Por um lado há uma série de Estados-Nações Republicanos

    resultantes do desmembramento do território colonial espanhol, enquanto que por outro

    há o surgimento de uma Monarquia Constitucional a partir do território colonial portu-

    guês.

    Com o receio da fragmentação, também, do antigo território colonial português,

    é desenvolvido um esforço pela manutenção da unidade territorial brasileira. Assim, to-

    mam-se medidas no sentido de afastar os ideais republicanos e consolidar, de acordo

    com Lilia Schwarcz (1999, p. 57), uma unidade do Império Brasileiro através de uma noção

    cerimonial da Família Real Brasileira e em uma certa idealização dessa Monarquia.

    Esse projeto de manutenção da unidade territorial do Império Brasileiro se deu

    muito mais pelo meio da construção de um sentimento de nacionalidade do que pela

  • 26

    Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019 páginas 22 - 39

    preocupação em consolidação de fronteiras, como ocorreu com os Estados da antiga

    América Espanhola. Nesse contexto, no que diz respeito ao território do Vale Amazônico,

    este acabou por receber ainda menos atenção do Governo Imperial:

    A presença da Espanha ao longo das fronteiras fizera com que Portugal,

    nos limites de seus recursos, não se descuidasse da região Amazôni-

    ca. Com os movimentos de emancipação na América Latina e a nossa

    própria independência, não se cogitou muito daquela parte do território

    nacional, longínqua, deserta e que, com toda a sua opulência, continuou

    relegada aos animais selvagens [...] (LUZ, 1968. p. 99)

    O próprio senso de realidade do Governo Imperial fazia com que não se alimen-

    tassem ilusões quanto a um desenvolvimento rápido da região - “não há tesouros no

    Amazonas, e para crescer aí são indispensáveis sacrifícios enormíssimos que hão de dar

    lucros tardios para especuladores”2 -, motivo para mantê-la fora da atenção do Governo

    até que o interesse estadounidense sobre o Vale o despertasse na direção contrária.

    2.3. O PROBLEMA ESCRAVISTA E O ‘DEEPEST SOUTH’

    Nos EUA, a secessão começava a se apresentar enquanto a única solução possível,

    e, como corolário, uma expansão para “o sul em direção a Cuba, às Américas Central e

    do Sul, com a finalidade de dar, ao eventual Estado escravista, uma base territorial mais

    sólida”, nas palavras de Nicia Vilela Luz (1968, p. 50)

    Assim se começa a construir um ideal de “grande poderio dos Estados do Sul, que

    viria então quebrar sua união com o Norte” (VAN ALSTYNE, 1960, p. 155) e a noção de um

    destino manifesto próprio sobre “todo o México, sobre a América do Sul, sobre as Índias

    Ocidentais e Canadá”.

    Matthew Fontaine Maury, tenente da marinha estadounidense e estudioso das

    correntes marítimas, deu início aos esforços de imposição de um destino manifesto dos

    EUA sobre a Amazônia, movendo intensa e persistente campanha a fim de mostrar a re-

    gião brasileira como solução das dificuldades do sul.

    Amparado em conceitos do determinismo biológico que cada vez mais ganhava

    força à época, Maury defendia a Amazônia enquanto o habitat natural do negro e do es-

    2 Despacho n 1 para Washington, Rio, 29 de Janeiro de 1853, AHI; Missões Diplomáticas Brasileiras, Expedido, 253-1-17.

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    cravo: “Quem vai povoar o vale do poderoso Amazonas? Aquele povo imbecil e indolente

    ou ele será desenvolvido por uma raça com energia e engenhosidade capaz de domar a

    floresta e trazer à tona os recursos que jazem ali?”, referia-se Maury em documentações

    da época. (HORNE, 2010, p. 98)

    E assim, cada vez mais, a ideia de estabelecer uma empresa binacional de escra-

    vidão com o Brasil surgia como uma esperança de resolver os problemas resultantes da

    Guerra Civil:

    E Deus preservara a Amazônia deserta e desocupada para que os proble-

    mas do Sul pudessem ser resolvidos. Acuados ao Norte onde não encon-

    trariam mais ‘terras do Mississippi por desbravar’ nem mais ‘campos de

    algodão por subjulgar`, os sulistas, para se livrarem do seu excesso de

    população negra, salvando ao mesmo tempo sua economia e sua ‘peculiar

    instituição’, encontrariam a ‘safety valve’ mais ao sul, no vale Amazônico.

    Era ‘o único raio de esperança’ a iluminá-los naquele momento dramáti-

    co em que se discutia o destino do regime de escravidão nos EUA. (LUZ,

    1968, p. 59)

    As ideias de Maury se frutificavam e, na década de 1850, já eram fortes as pres-

    sões da imprensa e de influências estadounidenses pela abertura da navegação dos ca-

    nais amazônicos, dando início ao desenvolvimento da questão pelas vias da diplomacia.

    William Trousdale, ministro dos Estados Unidos para o Brasil, manteve uma atuação for-

    te, ainda que tenha, por duas vezes, recebido “um solene não” à proposta de abertura dos

    canais. (CERVO; BUENO, 2008, p. 105)

    Apesar dos esforços estadounidenses serem intensos, houve resistência do Brasil

    em seu posicionamento: já em 1852, através de comunicações diplomáticas, sustentava o

    Império sua argumentação de que não era possível a instalação de tal negócio escravista

    em seu território, especialmente por conta de sua legislação interna - a Lei de 7 de no-

    vembro de 1831 declarara livre todos os escravos vindos de fora do Império e a Lei de 4 de

    Setembro de 1850 estabelecera medidas para repressão do tráfico de escravos.

    Ainda, não fora por forças de uma política exclusivista herdada da tradição colo-

    nial que o Brasil relutou tanto com relação à abertura do Amazonas. O problema de fato

    residia na inoportunidade, considerando “a fragilidade defensiva da região em face das

    pretensões extrangeiras” (LUZ, 1968. p. 115). Dessa forma, foi necessária uma pressão ex-

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    terna forte para que o Governo Imperial efetivamente agisse no sentido de consolidar os

    direitos sobre a navegação do canal amazônico.

    Assim o Brasil manteve sua posição defensiva, contrária à abertura dos canais ama-

    zônicos, durante toda a ofensiva midiática-diplomática estadounidense, ainda que dando

    continuidade a seus esforços de manutenção das relações diplomáticas com os EUA -

    vinculavam-se interesses político-comerciais comuns entre esses Estados, de forma que

    “a ente cordiale Brasil-EUA fortalecia o equilíbrio do poder EuropaAmérica, uma das me-

    tas externas comuns” (CERVO; BUENO, 2008, p. 105). Tal posicionamento é evidenciado

    constantemente através da correspondência diplomática trocada entre os Estados:

    Pelo que pertence à pretensão da livre navegação do Amazonas, que o Sr. Trousdale declara ser de interesse para os Cidadãos dos Estados Unidos, o Governo Imperial não pode estar de acordo com o princípio e a doutrina em que se pretende fundar esta re-clamação, assemelhando-se o Amazonas ao Oceano. Entende o Governo Imperial que semelhante doutrina [...] não pode prevalecer senão pela

    substituição do princípio do interesse e da força aos do direito e da jus-

    tiça. Os Estados Unidos jamais se prevaleceram dela nas questões que sustentaram sobre a navegação do Mississipi e do São Lourenço com a Espanha e a Inglaterra. [...] Não é da intenção do Governo Imperial conservar o Amazonas fechado para sempre ao trânsito e comércio estrangeiro; a sua abertura porém não lhe parece ainda oportuna.3

    Frente à possibilidade da união das nações ribeirinhas superiores - Peru, Colôm-

    bia, Equador, Venezuela e Bolívia - com os EUA a fim de lograr a navegação dos canais

    amazônicos, o Brasil iniciou seus esforços na direção de firmar compromissos com essas

    nações. Em 1851 firmou com o Peru a “Convenção especial de comércio e navegação flu-

    vial, extradição e limites”, em que se regulavam limites e concedia a navegação à nação

    contratante e excluiam-se terceiros. Além disso, Cervo e Bueno (2008, p. 105) destacam

    que também foram despendidos esforços diplomáticos com Venezuela, Nova Granada e

    Equador a fim de “assertar o canhão norte-americano.”

    Assim, o Governo Imperial logrou em seus objetivos ao estabelecer essas relações

    com os países ribeirinhos: ao mesmo tempo viabilizava o desejo destes países de se ligar

    com o Atlântico, impedindo-os de se coligar com outras potências interessadas no vale,

    3 NATIONAL ARCHIVES II. Nota de setembro/1854, anexada ao despatch 19, 15/9/1854.

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    como os EUA, enquanto também ganhava tempo para que a crise estadounidense afastas-

    se sua atenção do Vale Amazônico, reduzindo sua pressão.

    E assim aconteceu: extratos do relatório do guarda-marinha estadounidense,

    Lardner Gibbon, começaram a ser divulgados pela imprensa dos EUA, sendo oferecido à

    opinião pública estadounidense uma imagem mais real do Vale Amazônico. As atenções

    se voltavam cada vez menos à propaganda flibusteira e ao interesse sobre a Amazônia,

    sendo enterradas com a eclosão da Guerra de Secessão. (LUZ, 1968, p. 150)

    Por fim, em 7 de dezembro de 1866, aliviada a pressão estadounidense sobre o

    direito de navegação do Vale Amazônico, o governo brasileiro consulta o Conselho de

    Estado e baixa o decreto de abertura incondicional a todas as nações, excluindose apenas

    o trânsito de navios de guerra, pondo fim à controvérsia.

    3. IMPLICAÇÕES NA FORMAÇÃO DA SOBERANIA BRASILEIRA IMPERIAL

    Tal resistência do Governo Imperial brasileiro na questão do interesse estadouni-

    dense sobre a Amazônia serve como fator exemplificativo da política exterior da época

    - e, consequentemente, da formação da nacionalidade do Império do Brasil - ao mesmo

    tempo em que contribui para consolidá-la. Nesse sentido, têm-se três principais efeitos

    extraídos da análise dessa inter-relação entre processos históricos:

    Primeiro, contribui para construir a ideia do Brasil com uma diplomacia cordial

    com as demais nações, mantendo as boas relações e a boa imagem do imperador, porém

    autônoma frente aos demais Estados. Ainda, também demonstra a preocupação da mo-

    narquia em consolidar as fronteiras do Estado brasileiro como forma não só de estabi-

    lização de conflitos, mas também de formação de uma ideia de nacionalidade brasileira.

    Por fim, também mostra, quase que ineditamente, o Brasil enquanto sujeito de direito

    internacional público ao negar a ideia de um direito natural sobre a Amazônia e impor a

    necessidade de aceite do direito convencional.

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    Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019 páginas 22 - 39

    3.1. CONSTRUÇÃO DE UMA DIPLOMACIA CORDIAL

    Enquanto, no Primeiro Reinado, “o processo decisório era fechado e a leitura do

    interesse nacional feita sob a ótica da herança social, econômica, psicológica e política

    portuguesa”, a partir do Período Regencial a política externa brasileira começa a ser ges-

    tada num acompanhamento do ritmo de nacionalização do Estado, que se consolidou a

    partir do início do Segundo Reinado. (CERVO; BUENO, 2008, p. 145) Assim, se a formação

    da política externa imperial é processo simultâneo e correlato à nacionalização do Im-

    pério do Brasil, percebe-se que houve grande influência da disputa pelo Vale Amazônico

    nesse processo de nacionalização através dos esforços diplomáticos despendidos não só

    na resolução da questão, mas também na consolidação do que veio a ser conhecida como

    a diplomacia cordial de D. Pedro II.

    O desenvolvimento da diplomacia cordial do Império se mostra evidente no modo

    como foi tratado, pelo Governo Imperial, questão perigosa do ponto de vista da coerência

    de sua política externa: se, por um lado, o Brasil se mantinha contrário a navegação dos

    canais amazônicos por nações estrangeiras, por outro, pleiteava o seu direito de navega-

    ção na Bacia do Rio da Prata.

    A partir do Congresso de Viena, estabeleceu-se a doutrina do livre trânsito flu-

    vial, o qual garantiria o direito da navegação dos rios não somente à nação que possuísse

    ambas as margens do rio em seu território, mas também aos ribeirinhos superiores que

    necessitassem alcançar o mar. (LUZ, 1968, p. 116)

    Tal princípio era defendido principalmente pelos publicistas estadounidenses,

    porém também foi adotado pelo Brasil especialmente visando a comunicação de sua pro-

    víncia do Mato Grosso com o oceano através da Bacia do Prata - sendo consignado nos

    protocolos ao tratado de 27 de maio de 1827 com Buenos Aires, no artigo adicional da

    convenção preliminar da paz de 1828 com Argentina e na de 1844 com o Paraguai.

    No entanto, por mais que se alegasse a vigência do princípio do livre trânsito flu-

    vial na Bacia do Prata ao sul, recusava-se sua aplicação nos Canais Amazônicos ao norte.

    A solução para tal contradição vinha sendo simplesmente prolatada pelo Governo Impe-

    rial, sob a alegação da necessidade de um ajuste prévio de limites, até que as pressões

  • 31

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    externas conduzidas por Maury fizeram despertar o Governo, que se dedicou a firmar

    compromissos com as nações ribeirinhas.

    Retirado da inércia pelo posicionamento agressivo dos EUA sobre a Amazônia, o

    Brasil:

    [...] mostrou seu espírito moderado e conciliador ao não se escudar em

    nenhum princípio rígido, alegando apenas inoportunidade da decisão

    de navegação do Amazonas. Estava assim firmada a política de nossa

    chancelaria a respeito da momentosa questão. Ela foi conduzida, durante

    o período mais agudo da crise, por Paulino José Soares de Souza, futuro

    Visconde do Uruguai [...]. A atuação [de seus agentes diplomáticos] muito

    contribuiu para assegurar a posição brasileira, trabalhando todos como

    uma verdadeira equipe, sem nenhuma preocupação de vaidade pessoal, o

    que constituiu uma das grandes forças diplomáticas do Segundo Reinado.

    (LUZ, 1968, p. 117)

    Visconde de Uruguai, assim, despendeu fortes esforços no estabelecimento de

    convenções com as nações ribeirinhas superiores para que fosse garantido, de forma

    coerente, a regulação do acesso dessas nações aos canais amazônicos - já que o Brasil

    havia logrado em conseguir seus direitos de navegação fluvial da Bacia do Prata através

    de instrumentos da mesma natureza.

    A firmeza do Governo Imperial em firmar tais compromissos com as nações ri-

    beirinhas, e não com os EUA, em muito se deu graças à agressividade da ofensiva expan-

    sionista estadounidense. Nicia Vilela Luz (1968, p. 117) defende que o Brasil, imerso em

    um dilema entre “manter uma política cautelosa ou adotar sem restrições as normas do

    liberalismo”, baseou-se em suas experiências anteriores no tocante a tratados comerciais

    para adotar uma posição mais cautelosa - ainda que com algumas concessões dentro de

    certas garantias -, a qual foi consolidada com a impossibilidade de se adotar política mais

    liberal com os EUA.

    A influência da pressão estadounidense sobre a definição, por parte do Governo

    Imperial, de seu posicionamento de política externa, é evidenciada em despacho do Vis-

    conde do Uruguai:

    O Governo Imperial não duvidaria facilitar sua navegação a algumas

    companhias americanas se não tivesse de temer da avidez e do espírito

    aventureiro e usurpador desses Senhores, sempre favorecido e patro-

  • 32

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    cinado pelo seu governo. A maneira pela qual a raça Anglo-Saxônia vai

    estendendo a sua dominação na América Setentrional e a sua imensa

    atividade, o seu espírito aventureiro, interesseiro e dominador, deve ins-

    pirar-nos a maior reserva e cautela.4

    Adotando tal política cautelosa, também preocupava, ao Brasil, a manutenção de

    sua relação com os Estados Unidos. Afinal, o comércio com os Estados Unidos era ele-

    mento essencial da modernização das décadas finais do Império, e o Brasil não poderia

    pôr em risco sua boa relação com a maior nação do continente americano. Registram-se,

    inclusive, preocupações do diplomata brasileiro Limpo de Abreu com a reação do gover-

    no estadounidense após as negativas brasileiras aos pedidos de navegação:

    O que fará o governo dos EUA? Pretende insistir nos meios diplomáticos

    para acelerar a abertura do Amazonas visto que o Governo do Brasil de-

    clara que não é sua intenção conservar fechado para sempre ao trânsito

    e comércio ou animará o espírito flibusteiro para causar embaraços ao

    Governo Imperial obrigando-o assim a tomar uma decisão pronta.5

    E assim, com o consolidar da política externa brasileira enquanto cordial e con-

    ciliadora com as demais nações, vai se construindo a nacionalidade do Império do Brasil

    nesse sentido. Ao mesmo tempo em que o Imperador D. Pedro II firmava, através de sua

    política externa, a imagem de um homem moderado, firme e conciliador, o Império do

    Brasil se construía junto enquanto uma nação de posicionamento equivalente

    Dessa forma, com o amortecimento da questão sobre o Vale Amazônico, o Brasil

    se materializa enquanto uma nação que compartilha dos mesmos valores de seu Impera-

    dor, o qual, em um conselho à filha no qual muito bem traduz a política imperial brasileira,

    afirma: “A consciência também se pode apaixonar para assim dizer, o nosso sistema de

    governo é o da calma e o da paciência.”6

    3.2. CONSOLIDAÇÃO DO TERRITÓRIO NACIONAL

    Nas Américas, a consolidação e expansão territorial foi elemento intrínseco e es-

    sencial da construção das ideias de nacionalidade e de soberania. Os EUA contaram com

    4 Despacho n 2 de Paulino José Soares de Souza para Francisco INácio de carvalho Moreira, Rio de Janeiro, 29 de junho de 1852, AHI, Misssões Diplomáticas Brasileiras, Expedido, 235-1-17 5 Despacho de Limpo de Abreu para Carvalho Moreira, Rio de Janeiro, 13 de Setembro de 1854, AHI, Missões Diplomáticas Brasileiras, Expedido, 235-1-17 6 D. Pedro II, Conselhos à Regente, Rio de Janeiro, Livraria S. José, 1958, 64

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    uma construção de nacionalidade considerada extrovertida, ou seja, uma nacionalidade

    aberta ao desconhecido que tinha como base construir e conquistar novos espaços -

    como se demonstra pelo expansionismo do destino manifesto no período subsequente à

    sua emancipação da Inglaterra.

    Não só na construção da noção de nacionalidade e soberania estadounidense es-

    teve presente a preocupação com a consolidação de fronteiras e limites territoriais, mas

    também nos países emancipados dos territórios coloniais espanhóis. A Argentina, por

    exemplo, passou por uma crise de identidade nacional, a qual não conseguia se construir,

    em meio a conflitos internos, independências de Estados vizinhos e à confusão estabele-

    cida entre a identidade argentina e os limites do antigo

    Vice-Reino da Prata. Assim, “a indefinição da nacionalidade condicionava obvia-

    mente uma eventual política de limites.” (CERVO; BUENO, 2008, p. 88)

    Esse fenômeno da interdependência entre a consolidação de limites e a de nacio-

    nalidade e soberania se repetiu também em outras regiões como a GrãColombia, a Amé-

    rica Central e a Federação Boliviano-Peruana. No entanto, no caso brasileiro, observa-se

    fenômeno diverso: o Império Brasileiro foca seus esforços de construção de identidade

    nacional não através dos seus limites territoriais, mas de uma grandeza nacional que una

    os brasileiros e seu território.

    O Brasil se direciona no sentido da construção de uma simbologia em torno da

    Monarquia, uma vez que “a realeza parecia ser a melhor saída possível para evitar a auto-

    nomia e possível separação das províncias, somente podendo a figura de um rei congre-

    gar esse território gigantesco, marcado por profundas diferenças.” (SCHWARCZ, 1999. p.

    24)

    Não só se investe no cerimonial da Família Real, mas também na construção de

    uma grandeza nacional sustentada no legado histórico da herança portuguesa e baseada

    na vastidão do espaço e na abundância dos recursos presentes no território do Império

    do Brasil:

    As características da nacionalidade brasileira diferem de todos os exemplos da América do Sul. [...]. Criou o seu mito: o da grandeza nacional. A nacionalidade brasileira era introvertida, de suficiên-cia congênita, voltada para si, [...] Substitui-se o mito da fronteira pelo da grandeza nacional, e dessa forma reduziu-se o proble-

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    ma da fronteira ao problema político-jurídico dos limites, como ocorria no restante da América Latina. A diferença estava apenas na definição original da nacionalidade brasileira em oposição à indefinição sociocultural das fronteiras hispano-americanas, onde o peso da juridicidade política será maior. (CERVO; BUENO, 2008, p. 89)

    No entanto, com a ostensiva pressão dos Estados Unidos sobre o território ama-

    zônico, o Império Brasileiro desperta de seu estado em que considera a delimitação de

    fronteiras enquanto preocupação secundária. A partir desse momento, o Governo Impe-

    rial passa a ver os domínios e limites territoriais também como forma de demonstração

    de sua soberania, indo além de mera ideia de nacionalidade proporcionada por um senti-

    mento de grandeza nacional.

    A soberania manifestada em forma de delimitação de territórios é percebida pelo

    Império do Brasil principalmente por conta das preocupações quanto a manutenção des-

    se território:

    Considerando o que ocorrera com os territórios mexicanos absorvidos

    pelos Estados Unidos, se havia no Brasil receio de desígnios anexionistas

    por parte dos Estados Unidos. Tal receio podia ser injustificado, mas não

    incompreensível; o caso do Texas, formado a partir de uma região mexi-

    cana na qual se estabeleceram colonos norte-americanos, é um exemplo

    que ajuda a entender a preocupação do governo imperial. (RAFFAELLI,

    2006, p. 145)

    Tanto é a mudança de percepção do Governo Brasileiro que se percebe, a partir

    deste período de tempo, uma maior atuação do governo, no final do Império e no início da

    República, no sentido de consolidação de fronteiras - Cervo e Bueno (2008, p. 97) afirmam

    que, durante a primeira metade do séc XIX, a política territorial brasileira é hesitosa tanto

    prática quanto doutrinariamente, porém, na segunda, se dá início a uma doutrina firme e

    coerente do utis possidetis, definido fortemente pela negociação bilateral como meio de

    implantação.

    Por mais que não se possa negar o espírito expansionista do Brasil ao longo do

    século XIX, como se percebe ao analisar a Guerra da Cisplatina, há investimentos mais

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    intensos na consolidação de fronteiras principalmente com o advento da gestão do Barão

    de Rio Branco.

    Tanto é que se pode dizer que é com Barão de Rio Branco que o Brasil efetivamen-

    te assume a preocupação da consolidação de suas fronteiras. E por mais que essa con-

    solidação tenha acontecido já no período republicano, percebe-se, no final do Segundo

    Reinado, o início de uma inclinação do Governo Imperial brasileiro em direção à preocu-

    pação com sua delimitação de território enquanto elemento de soberania para além da

    ideia de nacionalidade, tendo esse movimento sido impulsionado principalmente com a

    necessidade de preservação do território amazônico frente às investidas estadouniden-

    ses.

    3.3. EMERGÊNCIA DO BRASIL ENQUANTO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL

    PÚBLICO

    Dentro do que se conhece enquanto Direito Internacional Público, reconhecese

    a existência de uma sociedade de Estados - os quais “mantém entre si relações mútuas

    enquanto isso lhes convêm e interessa” - imersa em um conjunto de princípios e regras

    destinados a reger as situações desses Estados. (MAZZUOLI, 2014, p. 60) Os Estados que

    fazem parte de tal sociedade, segundo afirma Mazzuoli (2014, p. 474), são constituídos

    por quatro elementos, quais sejam, povo, território, governo e finalidade. Além desses

    referidos elementos, também poderia se incluir a “capacidade para manter relações com

    os demais Estados”.

    Como já supramencionado, a política exterior do Brasil passou por um período

    de gestação durante o Primeiro Reinado, para se consolidar com o Período Regencial e

    o advento do Segundo Reinado. Nesse sentido, considerando as noções de sociedade de

    Estados e do próprio conceito de Estado, percebe-se que não só a política externa do

    Brasil foi desenvolvida na segunda metade do séc. XIX, mas também sua atuação enquan-

    to Estado sujeito de Direito Internacional Público, acatando as regras e princípios de tal

    sociedade.

    A consolidação do uso de tais regras e princípios pelo Brasil se mostra evidente ao

    analisar outro fator da controvérsia sobre a navegação dos Canais Amazônicos, qual seja,

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    os argumentos jurídicos utilizados para se permitir a navegação dos ribeirinhos tanto na

    Bacia Amazônica quanto na Bacia do Prata.

    No aspecto jurídico, os Estados Unidos fundamentavam sua ofensiva pela Amazô-

    nia com base no princípio do livre trânsito fluvial, estabelecido pelo Congresso de Viena,

    o qual lhe daria o direito de navegar pelos canais amazônicos como se fossem oceanos.

    O Império do Brasil, no entanto, não poderia refutar diretamente tal doutrina por conta

    de seus interesses na Bacia do Prata, razão pela qual desenvolveu argumentação jurídica

    baseada no direito convencional para justificar-se:

    Pelo que pertence à pretensão da livre navegação do Amazonas, que o

    Sr. Trousdale declara ser objeto de interesse para os cidadãos dos EUA,

    o Governo Imperial não pode estar de acordo com o principio e doutrina

    em que se pretende fundar esta reclamação, assemelhando-se o Ama-

    zonas ao oceano. Entende o Governo Imperial que semelhante doutrina,

    aliás nova, e apresentada pela primeira vez, é repelida pelos princípios do

    direito público e das gentes, e não pode prevalecer senão pela substitui-

    ção do princípio do interesse e da força aos do direito e da justiça7

    Dessa forma, o Brasil não renunciaria sua soberania e jurisdição sobre as águas do

    seu território, uma vez que a admissão dos ribeirinhos “resultaria de uma concessão feita

    por acordo comum, e portanto sujeita ao direito convencional e não ao direito natural”.

    (LUZ, 1968, p. 152) O Brasil assim se baseava no “direito imperfeito dos ribeirinhos supe-

    riores, que poderiam aceder à navegação dos rios interiores apenas mediante convenção”

    (CERVO; BUENO, 2008, p. 104), condicionando, de forma equivalente no Amazonas e no

    Prata, a navegação à convenção e solução concomitante dos limites.

    O Governo Imperial, então, condiciona a abertura dos rios à sua apreciação de

    oportunidade e destaca que, quando ocorresse, seria feita somente por meio de “conven-

    ções que resguardem seu direito de propriedade e que acautelem o contrabando, proven-

    do para que seja devidamente mantida a fiscalização e polícia da navegação”. Dessa forma,

    ao classificar a posição juridica estadounidense enquanto “mero direito convencional”, o

    Brasil reafirma seu posicionamento em contraste à doutrina do direito natural defendida

    pelos publicistas dos EUA. (LUZ, 1968, p. 156) Dessa forma, a pressão realizada pelos EUA

    impulsiona o Império Brasil a desenvolver seu posicionamento jurídico, consolidando-se

    enquanto sujeito de Direito Internacional Público e fortalecendo sua própria soberania:

    7 Trousdale para Marcy, Rio de Janeiro, 14 de março de 1854, in Manning, op. cit., II, 454.

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    Anais do XI Congresso Brasileiro de História do Direito • 2019 páginas 22 - 39

    Insurgiu-se o Brasil contra a afirmação que, relegando a uma po-sição secundária a sua soberania e jurisfição sobre a parte do rio que corria dentro do território nacional, sobrepunha-lhe um direito preexis-

    tente, o direito natural. Sustentar esse direito, em detrimento da sobe-

    rania nacional, seria permitir a interferência estrangeira em questões

    internas do país e, portanto, negar-lhe a faculdade de autodeterminação.

    Cioso dessa prerrogativa, o Governo Imperial não pode admitir, mes-

    mo em nome de um princípio tão nobre quanto o do ius naturalis, um atentado contra a sua soberania, impedindo-o de resolver quando e como lhe conviesse uma questão que considerava de ordem interna e, portanto, estritamente de sua competência. (LUZ, 1968, p. 170)

    4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Percebe-se, assim, que o processo de consolidação da soberania e da nacionali-

    dade do Império do Brasil, ao longo do séc. XIX, se deu de forma complexa. Esse processo

    foi moldado e fomentado por diversos fatores das relações exterio