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1 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO PROCESSOS Nº 0010-07/001814-3 E 023210-0300/04-0 ORIGEM: OFICIAL DO 5º TABELIONATO DE NOTAS DE PORTO ALEGRE ASSUNTO: REVOGAÇÃO DE ARTIGOS DA CNNR E REVISÃO DO PROVIMENTO Nº 13/2003-CGJ PARECER 052/2008 – MCMC/REG. PÚBL. Proposta de revogação de artigos da CNNR em face de interpretação mais ampla oferecida à exigência de apresentação de certidão da Secretaria da Receita Federal do Brasil para a lavratura de escrituras que tenham por objeto alienação ou oneração de bens imóveis ou direitos a eles relativos e que tenham como transmitentes empresas. Alteração normativa ao texto da CNNR. SENHOR DESEMBARGADOR CORREGEDOR-GERAL: Trata-se de Requerimento interposto pelo Titular do 5º Tabelionato de Notas do Serviço Notarial de Porto Alegre, Sérgio Afonso Mânica, a fim de que seja revista, com base na melhor interpretação, a exigência de apresentação de certidões negativas de débitos do INSS e de contribuições federais e da dívida ativa da União para a lavratura de escrituras que tenham por objeto alienação ou oneração de bens imóveis ou direitos a eles relativos e que tenham como transmitentes empresas que explorem atividades de compra e venda de imóveis, locação, desmembramento de terrenos, incorporação imobiliária ou construção de imóveis destinados a venda, quando o imóvel objeto da transação esteja

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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PODER JUDICIÁRIO

PROCESSOS Nº 0010-07/001814-3 E 023210-0300/04-0

ORIGEM: OFICIAL DO 5º TABELIONATO DE NOTAS DE PORTO ALEGRE

ASSUNTO: REVOGAÇÃO DE ARTIGOS DA CNNR E REVISÃO DO

PROVIMENTO Nº 13/2003-CGJ

PARECER 052/2008 – MCMC/REG. PÚBL.

Proposta de revogação de artigos da CNNR em face de interpretação mais ampla oferecida à exigência de apresentação de certidão da Secretaria da Receita Federal do Brasil para a lavratura de escrituras que tenham por objeto alienação ou oneração de bens imóveis ou direitos a eles relativos e que tenham como transmitentes empresas. Alteração normativa ao texto da CNNR.

SENHOR DESEMBARGADOR CORREGEDOR-GERAL:

Trata-se de Requerimento interposto pelo Titular do 5º

Tabelionato de Notas do Serviço Notarial de Porto Alegre, Sérgio Afonso

Mânica, a fim de que seja revista, com base na melhor interpretação, a

exigência de apresentação de certidões negativas de débitos do INSS e de

contribuições federais e da dívida ativa da União para a lavratura de

escrituras que tenham por objeto alienação ou oneração de bens imóveis

ou direitos a eles relativos e que tenham como transmitentes empresas

que explorem atividades de compra e venda de imóveis, locação,

desmembramento de terrenos, incorporação imobiliária ou construção de

imóveis destinados a venda, quando o imóvel objeto da transação esteja

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lançado no ativo circulante e não conste, nem tenha constado, no ativo

permanente de tais empresas. Esclarece a divergência de entendimento

sobre a matéria em relação às diversas comarcas do Estado, manifestando

que a dúvida principal é quanto à exigência de que as referidas empresas

transmitentes do bens explorem com exclusividade tais atividades.

Apensado o presente expediente ao processo administrativo de nº

22478-0300/01-7 e proferido parecer pela Coordenadoria de Correição,

explicitando a divergência de interpretação da matéria entre a Comarca da

Capital e de Novo Hamburgo e as demais comarcas do Estado, foram os

autos conclusos para análise. Brevemente relatado o expediente, passo

a examinar a questão posta à discussão.

De fato, como proposta a análise da matéria, não se teria como

enfrentar a questão jurídica em discussão – extensão do conceito de

empresa dispensada da apresentação de certidão negativa de débitos

fiscais com a União -, por uma interpretação literal das disposições

normativas, que não atentasse à linha de argumentação defendida no

parecer da Coordenadoria de Correição de fls. 80 a 84 dos autos.

Seguindo-se uma interpretação estrita às disposições legais previstas no

ordenamento jurídico – inclusive no âmbito de regramento administrativo

da Receita Federal do Brasil -, não haveria, a princípio, como se opor à

compreensão de que a dispensa de apresentação de certidão fiscal

negativa seria restrita àquelas empresas que explorassem, em caráter

exclusivo, a atividade de comercialização de bens imóveis. A partir da ótica

de interpretação literal das disposições normativas, correta é a orientação

da Coordenadoria de Correição, que segue a mesma linha de

argumentação proposta na própria Consolidação Normativa Notarial e

Registral – ou seja, pela estrita reprodução, de forma compilada, da

legislação prevista sobre a matéria. É o que segue destacado do parecer

referido:

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“(...) Em síntese, para ser dispensada a apresentação da CND do INSS, na Comarca de Porto Alegre, não há necessidade de que a empresa explore com exclusividade a atividade de compra e venda de imóveis, locação, desmembramento ou loteamento de terrenos, incorporação imobiliária ou construção de imóveis destinados à venda, desde que o imóvel objeto da transação esteja contabilmente lançado no ativo circulante e não conste, nem tenha constado, do ativo permanente da empresa, e nas demais Comarcas do Estado, exceto se houver normatização do Juiz Diretor do Foro local, há necessidade da exigência de que a empresa explore com exclusividade as atividades acima elencadas, devendo cumprir o provimento nº 13/2003-CGJ. Para a CND da Receita Federal não havia a necessidade da exploração com exclusividade – art. 594, VI, a, e 469, da atual CNNR – com a redação do Provimento 13/2003-CGJ.

Igual decisão tomou o Juiz Diretor do Foro da Comarca de Novo Hamburgo, no expediente apenso nº 23210-0300/04-0 (fl.19), sugerindo a normatização a nível Estadual (a decisão do anterior Juiz Diretor do Foro de Novo Hamburgo, era contrária a atual – ver fls.40/42 do expediente nº 22478-0300/01-7).

Analisando os artigos acima descritos na portaria conjunta PGFN/RFB nº 3, de 02 de maio de 2007, e no Decreto 3048/99, conclui-se que, agora, para a dispensa da apresentação da CND do INSS e também da CND da Receita Federal, há necessidade de que a empresa explore com exclusividade a atividade de compra e venda de imóveis, locação, desmembramento ou loteamento de terrenos, incorporação imobiliária ou construção de imóveis destinados à venda, e que o imóvel objeto da transação esteja contabilmente lançado no ativo circulante e não conste, nem tenha constado do ativo permanente da empresa, bastando declaração prestada pela pessoa jurídica alienante, de que atende as condições exigidas pelo art. 16 da portaria acima referida.

O expediente nº 22478-0300/01-7, teve origem em reclamação por parte do Notário e do Registrador de Estância Velha, haja vista que uma empresa procurou aquele Tabelionato de Notas para lavratura de uma escritura, sendo exigida a CND do INSS, então, a empresa procurou o Tabelionato de Notas de Porto Alegre, que lavrou a escritura dispensando a CND do INSS. Isto demonstra claramente que a matéria, para os Tabelionatos de Notas, deve ser tratada igualmente em todas as Comarcas do Estado, tendo em vista que a escolha do Tabelião é livre pelas partes independentemente do seu domicílio ou da localização do imóvel objeto da transação – art. 8º da Lei Federal 8935/94 (como já referi na informação de folha 21, do processo apenso nº 23210-0300/04-0).

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A decisão do Conselho da Magistratura de São Paulo, datada de 22 de fevereiro de 2007, encaminhada pelo Tabelião, foi específica para o registro daquela carta de sentença, expedida nos autos de ação de adjudicação, específico para aquele caso em que havia decisão judicial para a transferência do imóvel.

Portanto, entendo que deva ser alterada a redação dos artigos 594, V, a e VI, a, e 469 e § 2º da CNNR, pois, agora, para a dispensa da apresentação da CND da Receita Federal, a empresa também deverá exercer aquelas atividades supracitadas, com exclusividade, porém, basta a declaração prestada pela pessoa jurídica alienante, que deverá constar do registro imobiliário” (trecho do parecer de correição às fls. 83/84).

Analisada a extensão da normatização prevista na Consolidação

Normativa Notarial e Registral e a interpretação adotada para a

construção de uma orientação normativa a notários e registradores, tem-

se, contudo, que a questão proposta a estudo exige um trabalho

hermenêutico superior a esta CGJ, a fim de que se possa traduzir, na

orientação normativa a ser transmitida, a realidade jurídica implicada em

concreto, especialmente a partir da análise dos enunciados

jurisprudenciais construídos ao longo dos anos nos tribunais. Um

trabalho, portanto, que não se esgota na estrita reprodução literal de

artigos de lei, mas que exige, do intérprete, a compreensão mais ampla de

que há um sistema jurídico a ser observado, para o qual, na maioria das

vezes, torna-se insuficiente o simples exercício de subsunção normativa.

Neste sentido, tem-se a compreensão que uma conexão entre o

exercício da argumentação racional e a dogmática decorre, inicialmente,

do fato de que não se pode afastar dogmática de interpretação. As

questões centrais da dogmática jurídica - referentes à existência de

normas estabelecidas no ordenamento jurídico e à aplicação do Direito -

aparecem intimamente associadas à idéia de interpretação, não apenas

pelo fato de os enunciados dogmáticos tornarem-se relevantes para a

interpretação jurídica, como pela idéia de o enunciado dogmático existir

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em função de uma interpretação, determinando esta e sendo por ela

também determinado.

A afinidade é esclarecida em relação à concepção de discurso

jurídico, o qual pressupõe um procedimento que visa atender a uma

pretensão de correção1. O intérprete busca solução a uma questão

prática proposta à discussão, partindo de condições ilimitadas de

participação, de tempo e de abertura à manifestação de desejos, opiniões

e necessidades. E, nessa busca, o espaço do discurso ideal – aquele

pressuposto de forma universal, capaz de regular abstratamente a

conduta de um dever-ser -, de condições ilimitadas, é formal, ainda não

contendo em si qualquer determinação em relação a um consenso

específico, senão em relação à própria impossibilidade de contradição

pelo discurso. Tal se dá pela concepção de universalidade almejada pelo

discurso ideal que garante, em última análise, a base necessária a uma

"concepción absolutamente procedimental de la correción"2.

Como a perspectiva pelo discurso é encontrar uma idéia

regulativa e, fundamentalmente, uma razão prática a determinada

questão concreta trazida à apreciação, o discurso ideal - plantado sob

condições ilimitadas que visem testar a coerência de máximas de ação -

não se tornaria útil por si só se não permitisse complementação pela

possibilidade aberta pelo discurso real – voltado à situação concreta,

fundada na especificidade do caso em estudo -, que trabalha, então sim,

a partir de condições limitadas de participação, de tempo, de linguagem e

de formação de um consenso, inclusive acerca dos elementos de

argumentação específica (o conhecimento empírico, a dogmática, os

precedentes). É no discurso real, então, que se delimita o espaço 1 Conforme Klaus Günther, recorre-se à ética do discurso, porque nela está contida a "formulação mais clara de uma ética cognitivista, na qual a validade de normas morais depende da qualidade da fundamentação" (GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no Direito e na Moral: Justificação e aplicação. São Paulo, Landy, 2004, p. 32). 2 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 303.

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concreto de construção de uma razão prática, necessariamente vinculada

às regras do discurso, à medida de seu cumprimento, à atuação dos

participantes e à duração do próprio discurso3. Daí a possibilidade de

chegar a uma idéia de consenso na argumentação, entendendo-se

interdependentes o discurso ideal e o discurso real4, no sentido de que

pela razão prática é possível um acordo sobre um assunto, ainda que

aberto à correção e sujeito à idéia regulativa geral.

Outra não é a relação que se pretende ver configurada entre

dogmática e interpretação. Quando Hans-Georg Gadamer se preocupa

com a compreensão do texto e o exercício da hermenêutica, que

pressupõe a interpretação e a aplicação do texto a partir de determinada

experiência concreta5, descreve a interpretação como uma atividade

destinada a ler o que é ou o que pode ser novo, e também como algo que

proporciona uma "fusão de horizontes" (GADAMER, 1999, p. 566), em

que o texto ressurge com o sentido já agregado e também implicado pelas

idéias próprias do intérprete. Se isto permite que a própria interpretação

apresente novidade, é no sentido de que o elemento novo, relacionado ao

horizonte do intérprete, é ele próprio determinante da interpretação. Não

se trata, como refere Gadamer, de "um ponto de vista próprio que se

mantém ou se impõe" e, sim, "da opinião e possibilidade que se aciona e

coloca em jogo e que ajuda a apropriar-se de verdade do que diz o texto"

3 Idem, p. 303. 4 Assim observa-se em Habermas: "É evidente que a autoconsciência e a capacidade da pessoa de assumir uma posição refletida e deliberada quanto às próprias crenças, desejos, valores e princípios, mesmo quanto ao projeto de toda a sua vida, é um dos requisitos necessários para o discurso prático. Há um outro requisito, porém, tão importante quanto esse. Os participantes, no momento em que encetam uma tal prática argumentativa, têm de estar dispostos a atender à exigência de cooperar uns com os outros na busca de razões aceitáveis para os outros; e, mais ainda, têm de estar dispostos a deixar-se afetar e motivar, em suas decisões afirmativas e negativas, por essas razões e somente por elas" (HABERMAS, Jürgen. A ética da discussão e a questão da verdade. São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 15). 5 Como se encontra em Gadamer, "todo compreender é interpretar, e todo interpretar se desenvolve no medium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto e é, ao mesmo tempo, a linguagem própria de seu intérprete. [...] A lingüisticidade da compreensão é a concreção da consciência da história efeitual" (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, vol. 1. Petrópolis, Vozes, 1999, p. 566-567).

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(GADAMER, 1999, p. 566). Da mesma forma que o discurso jurídico, a

interpretação exige a afinidade de dois mundos - o do texto e o do

intérprete -, tornando-se útil na medida em que proporciona uma razão

prática à experiência posta à discussão.

A relação entre dogmática e interpretação, por conseqüência,

não deve ser vista como simples complementaridade entre dois mundos.

Evidencia, antes, o esforço conjunto do intérprete e da própria linguagem

para permitir que se chegue a uma solução adequada a cada novo caso

proposto a estudo, ao mesmo tempo em que se mantenha aberta a

estrutura da norma às experiências futuras6.

Para reconhecer a afinidade das funções desenvolvidas pela

dogmática e pela interpretação, de forma a propor-se a construção de

novos enunciados normativos frente à matéria de estudo ora proposta,

acolhe-se, inicialmente, o conceito de dogmática jurídica elaborado por

Robert Alexy, no sentido de que à dogmática correspondem "(1) una serie

de enunciados que (2) se refieren a las normas establecidas y la

aplicación del Derecho, pero no pueden identificarse con su descripción,

(3) están entre sí en una relación de coherencia mutua, (4) se forman y

discuten en el marco de una ciencia jurídica que funciona

institucionalmente, y (5) tienen contenido normativo" (ALEXY, 1997, p.

246). Nesse sentido, entre dogmática e interpretação não existe uma

dissociação, e, sim, a mesma razão de interdependência reconhecida ao

discurso ideal e real. Ou seja, torna-se fundamental agregar à dogmática

um elemento pragmático, decorrente da interpretação, "según en cual un

enunciado es un enunciado de la dogmática si es establecido, aceptado o,

6 Como sustenta Gadamer, "eso es representado en el milagro de la distancia que estamos en condiciones de experimentar en el lenguaje: la posibilidad de dejar algo incierto, sin decidir" (GADAMER, Hans-Georg. Histórica y lenguaje: una respuesta. In: KOSELLECK, Reinhart; GADAMER, Hans-Georg. Historia y hermenéutica. Barcelona, Ediciones Piados, 1997, p. 101).

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al menos, discutido en el marco de una ciencia jurídica que funcione

institucionalmente" (ALEXY, 1997, p. 248).

Nessa ótica, a dogmática jurídica guarda uma relação de

dependência com a interpretação a partir de uma razão prática geral.

Torna-se relevante não apenas o sentido de busca de uma razão prática a

cada questão concreta trazida à apreciação jurídica - e para a qual os

enunciados normativos, juntamente com os enunciados dogmáticos e os

precedentes contribuem como argumentos à fundamentação -, mas

também o fato de que a própria tradução dos enunciados dogmáticos

impõe, num âmbito genérico, a permanente pretensão de correção em

relação ao que possam significar ou normatizar frente ao caso concreto7.

Isto não resume a dogmática ao conhecimento empírico - o que

conduziria, num extremo, não à argumentação e, sim, ao decisionismo;

marca, de outra parte, o sentido relevante assumido pela interpretação

para a tradução dos enunciados dogmáticos, de forma a possibilitar um

consenso8 acerca do que venha a ser tomado como dogmático. Como

destaca Robert Alexy, "para que un enunciado pueda considerarse

7 O sentido de correção aqui exposto, observa-se, é aquele já explicitado em relação ao discurso prático geral, e não à idéia de uma "interpretação corretiva" em que, esclarece Karl Engisch (referindo-se ao pensamento de Enneccerus) toda a atividade interpretativa deveria ser mantida "sempre de qualquer modo nos limites do 'sentido literal' e, portanto, que pode quando muito 'forçar' estes limites, mas nunca ultrapassá-los" (ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 2001, p. 195). Tal construção, a partir de uma relação de subsunção, conduziria à metodologia jurídica proposta por Savigny – parcialmente adotada no parecer de correição, como referido neste expediente - para quem não se faz admissível construir a interpretação senão que a partir de uma concepção de sistema, em que "nenhum conceito deva ser tratado sem que esteja referido a um princípio de direito. Cada um deles deve ter uma realidade jurídica" (SAVIGNY, Friedrich Karl von. Metodologia jurídica. Campinas, SP, Edicamp, 2001, p. 42). Mesmo que a história passe a desempenhar um papel relevante à construção dos conceitos para Savigny, a concepção sistêmica proposta mantém o enunciado dogmático aprisionado por uma causa única e determinante, e não aberto à experiência concreta. 8 Assim aparece em Joseph Esser na análise do problema da pré-compreensão jurídica necessária à própria construção e manutenção do direito positivo: "Hoje o direito positivo depende, no interesse de sua continuidade, de um tal processo de diferenciação e de uma 'aderência à vida" como solução". (ESSER, Josef. Precomprensione e scelta del método nel processo di individuazione del diritto. Fondamenti di razionalità nella prassi decisionale del giudice. Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, 1983, p. 12). Conferir ainda ZACCARIA, Giuseppe. Ermeneutica e giurisprudenza. Saggio metodologia di Josef Esser. Milano, Giuffrè Editore, 1984, p. 169 a 173.

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dogmático no es necesario que la mayoría de los juristas lo consideren

correcto, sino tan sólo que lo consideren dogmático" (ALEXY, 1997, p.

248). De fato, o que pode ser tomado como normativamente correto para

determinada situação jurídica concreta depende tanto dos enunciados

dogmáticos, como do próprio discurso empregado – daí o recurso à

argumentação racional -, para o qual também contribuem os argumentos

dogmáticos - ainda que não só eles.

Isto também não confunde o trabalho reservado à dogmática

com o uso exclusivo dos argumentos com base em precedentes judiciais,

quando a eles se imputa a responsabilidade de fazer conhecer o Direito a

partir da realidade. Ao contrário, há uma preocupação da dogmática

jurídica voltada à universalidade em seu sentido abstrato, com vista à

elaboração de enunciados "en una amplia medida" (ALEXY, 1997, p. 264).

Até porque os precedentes se estruturam sob a forma especial do decidir,

gerando o consenso na medida em que consolidem, pela reiteração de

decisões, uma determinada realidade jurídica em concreto. Se isto não os

confunde (enunciados dogmáticos e precedentes), torna-os próximos na

perspectiva do discurso, ou seja, quando se comunicam pela razão

prática que buscam fundamentar9.

Compreende, assim, a dogmática também um elemento da

razão prática que justifica não só o seu uso como argumento discursivo

relevante, como também a sua ligação com a realidade dada e com a

atividade da interpretação - que tem, por sua vez, função de oferecer voz

ao enunciado dogmático, de forma a torná-lo compreensível. Exige-se do

intérprete que, com o seu ato, reconstrua a voz do escritor - ou do

legislador -, e ainda que projete sobre o texto, como ressalta Gadamer,

"uma outra e nova luz" (GADAMER, 1999, p. 562). É preciso que haja o

9 Conforme a doutrina de Alexy, “el punto más importante es que, por un lado, muchos enunciados dogmáticos están incorporados también en precedentes y, por otro lado, las decisiones judiciales son aceptadas por la dogmática que pretende precisamente ser dogmática del Derecho vigente” (ALEXY, 1997, p. 263).

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ato de revelar o fenômeno jurídico por si mesmo, de reconhecer-lhe um

sentido prático e, nessa medida, de conhecê-lo. Isso, necessariamente,

passa pela visualização de que a experiência (ou a carga subjetiva de

colaboração da tradição e do intérprete) contribui para a construção da

compreensão do fenômeno jurídico: “Por isso, a compreensão não é

nunca um comportamento somente reprodutivo, mas é, por sua vez,

sempre produtivo. (...) Compreender não é compreender melhor, nem

saber mais, no sentido objetivo, em virtude de conceitos mais claros, nem

no da superioridade básica que o consciente possui com respeito ao

inconsciente da produção. Bastaria dizer que, quando se logra

compreender, compreende-se de um modo diferente” (GADAMER, 1999, p.

444).

Tal introdução se apresenta necessária, no âmbito de análise da

matéria proposta neste expediente para discussão, justamente para

indicar em que medida ora se sugere uma alteração de interpretação

essencial ao texto da Consolidação Normativa Notarial e Registral,

inclusive em caráter mais amplo à interpretação sugerida, inicialmente,

neste expediente. Uma alteração normativa que busca não apenas

reproduzir o conteúdo de textos normativos pulverizados no ordenamento

jurídico nacional, mas que se preocupa em adequar estes textos à prática

da dogmática jurídica, situando a matéria dentro do contexto do sistema

jurídico e da realidade de julgamento dos tribunais. Uma realidade

suficientemente distinta do engessamento de conceitos jurídicos proposto

em textos normativos e de uma finalidade estritamente teleológica de

interpretação, voltada à realização de interesses bastantes específicos de

arrecadação estatal10.

10 Chama a atenção, neste sentido, a disposição normativa mais recente da Lei Complementar nº 123/06 – em sentido contrário às restrições evidenciadas pela Lei 8.212/91 -, permitindo a dispensa de comprovação de regularidade fiscal a microempresas e empresas de pequeno porte aderentes do modelo tributário do Simples Nacional, pelo interesse declarado de facilitação da atividade de fiscalização sobre a arrecadação fiscal.

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Parte-se, nesta análise, da realidade legislativa exposta, ainda no

parecer de correição de fls. 80 a 84, como a seguir destacada nos trechos

que interessam à análise ora proposta:

“(...) De acordo com a Lei Federal 11.457/07, foi criada a Receita Federal do Brasil, cuja competência é:

Art. 2o Além das competências atribuídas pela legislação vigente à Secretaria da Receita Federal, cabe à Secretaria da Receita Federal do Brasil planejar, executar, acompanhar e avaliar as atividades relativas a tributação, fiscalização, arrecadação, cobrança e recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas a, b e c do parágrafo único do art. 11 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, e das contribuições instituídas a título de substituição. (Vide Decreto nº 6.103, de 2007).

A Lei Federal 8212/91, assim prevê: Art. 47. É exigida Certidão Negativa de Débito-CND, fornecida pelo órgão competente, nos seguintes casos: (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 28.4.95) I - da empresa: b) na alienação ou oneração, a qualquer título, de bem imóvel ou direito a ele relativo; Art. 48. A prática de ato com inobservância do disposto no artigo anterior, ou o seu registro, acarretará a responsabilidade solidária dos contratantes e do oficial que lavrar ou registrar o instrumento, sendo o ato nulo para todos os efeitos. § 2º Em se tratando de alienação de bens do ativo de empresa em regime de liquidação extrajudicial, visando à obtenção de recursos necessários ao pagamento dos credores, independentemente do pagamento ou da confissão de dívida fiscal, o Instituto Nacional do Seguro Social-INSS poderá autorizar a lavratura do respectivo instrumento, desde que o valor do crédito previdenciário conste, regularmente, do quadro geral de credores, observada a ordem de preferência legal. (Redação dada pela Lei nº 9.639, de 25.5.98) § 3º O servidor, o serventuário da Justiça, o titular de serventia extrajudicial e a autoridade ou órgão que infringirem o disposto no artigo anterior incorrerão em multa aplicada na forma estabelecida no art. 92, sem prejuízo da responsabilidade administrativa e penal cabível. (Incluído pela Lei nº 9.639, de 25.5.98) O Decreto 3048/99, assim prevê: Art.257. Deverá ser exigido documento comprobatório de inexistência de débito relativo às contribuições a que se referem os incisos I, III, IV, V, VI e VII do parágrafo único do art. 195, destinadas à manutenção da seguridade social, fornecida pelo órgão competente, nos seguintes casos: I - da empresa: b) na alienação ou oneração, a qualquer título, de bem imóvel ou direito a ele relativo; II - do proprietário, pessoa física ou jurídica, de obra de construção civil, quando de sua averbação no Registro de Imóveis, salvo no caso do art. 278;

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III - do incorporador, na ocasião da inscrição de memorial de incorporação no Registro de Imóveis; IV - do produtor rural pessoa física e do segurado especial referidos, respectivamente, na alínea "a" do inciso V e no inciso VII do caput do art. 9º, quando da constituição de garantia para concessão de crédito rural e qualquer de suas modalidades, por instituição de créditos pública ou privada, desde que comercializem a sua produção com o adquirente domiciliado no exterior ou diretamente no varejo a consumidor pessoa física, a outro produtor rural pessoa física ou a outro segurado especial; § 8º Independe da apresentação de documento comprobatório de inexistência de débito: IV-a transação imobiliária referida na alínea "b" do inciso I do caput, que envolva empresa que explore exclusivamente atividade de compra e venda de imóveis, locação, desmembramento ou loteamento de terrenos, incorporação imobiliária ou construção de imóveis destinados à venda, desde que o imóvel objeto da transação esteja contabilmente lançado no ativo circulante e não conste, nem tenha constado, do ativo permanente da empresa. (Inciso acrescentado pelo Decreto nº 3.265, de 29/11/99) § 10. O documento comprobatório de inexistência de débito será fornecido pelos órgãos locais competentes da Secretaria da Receita Federal do Brasil quanto às contribuições de que tratam os incisos I e III a VII do parágrafo único do art. 195. (Alterado pelo Decreto nº 6.106 - DE 30/4/2007 – DOU DE 2/5/2007 - Edição extra I - da Secretaria da Receita Previdenciária, em relação às contribuições de que tratam os incisos I, III, IV e V do parágrafo único do art. 195. (Alterado pelo Decreto nº 5.586 - de 19/11/2005 - DOU DE 19/11/2005 - Edição extra) II - da Secretaria da Receita Federal, em relação às contribuições de que tratam os incisos VI e VII do parágrafo único do art. 195. § 11. Não é exigível de pessoa física o documento comprobatório de inexistência de débito relativo às contribuições de que trata o art. 204. § 12. O disposto no § 11 não se aplica à pessoa física equiparada à jurídica na forma da legislação tributária federal. §15. A prova de inexistência de débito perante a previdência social será fornecida por certidão emitida por meio de sistema eletrônico, ficando a sua aceitação condicionada à verificação de sua autenticidade pela Internet, em endereço específico, ou junto à previdência social. (Parágrafo acrescentado pelo Decreto nº 3.265, de 29/11/99) A Instrução Normativa MPS/SRP nº 03/2005, do INSS, assim prevê: Art. 523. A autoridade responsável por órgão do poder público, por órgão de registro público ou por instituição financeira em geral, no âmbito de suas atividades, exigirá, obrigatoriamente, a apresentação de Certidão Negativa de Débito - CND ou de Certidão Positiva de Débito com Efeitos de Negativa - CPD-EN, fornecida pela SRP, nas seguintes hipóteses: I - da empresa: b) na alienação ou oneração, a qualquer título, de bem imóvel ou direito a ele relativo; Art. 524. A apresentação de CND, ou de CPD-EN, é dispensada, dentre outras hipóteses: I - na lavratura ou assinatura de instrumento, ato ou contrato que constitua retificação, ratificação ou efetivação de outro anterior para o qual já foi feita a prova;

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IV - na transação imobiliária referida na alínea “b” do inciso I do art. 523, que envolva empresa que explore exclusivamente atividade de compra e venda de imóveis, locação, desmembramento ou loteamento de terrenos, incorporação imobiliária ou construção de imóveis destinados à venda, desde que o imóvel objeto da transação esteja contabilmente lançado no ativo circulante e não conste, nem tenha constado, do ativo permanente da empresa, fato que será relatado no registro da respectiva transação no cartório de Registro de Imóveis; A portaria conjunta PGFN/RFB nº 3, de 02 de maio de 2007, diz o seguinte: Art. 1º A prova de regularidade fiscal perante a Fazenda Nacional será efetuada mediante apresentação de: I - certidão específica, emitida pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), com informações da situação do sujeito passivo quanto às contribuições sociais previstas nas alíneas "a", "b" e "c" do parágrafo único do art. 11 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, às contribuições instituídas a título de substituição, e às contribuições devidas, por lei, a terceiros, inclusive às inscritas em dívida ativa do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); e Art. 16. Fica dispensada a apresentação de certidão conjunta na alienação ou oneração, a qualquer título, de bem imóvel ou direito a ele relativo, que envolva empresa que explore exclusivamente atividade de compra e venda de imóveis, locação, desmembramento ou loteamento de terrenos, incorporação imobiliária ou construção de imóveis destinados à venda, desde que o imóvel objeto da transação esteja contabilmente lançado no ativo circulante e não conste, nem tenha constado, do ativo permanente da empresa. Parágrafo único. A certidão a que se refere este artigo será substituída por declaração, que constará do registro do imóvel, prestada pela pessoa jurídica alienante, sob as penas da lei, de que atende às condições mencionadas no caput, relativamente à atividade exercida, e que o imóvel objeto da transmissão não faz parte de seu ativo permanente” (trecho do parecer de correição às fls. 81 a 83).

Ao reproduzir, quase literalmente, os dispositivos da legislação

referida, a Consolidação Normativa Notarial e Registral desta CGJ,

especialmente, nos artigos 465 a 470 e 594, tem endossado, sem maior

esforço hermenêutico, algumas premissas que estão pressupostas à

interpretação literal exigida aos enunciados normativos referidos,

permitindo, em concreto, dissensões significativas em relação à

construção dogmática e jurisprudencial realizada junto aos tribunais

locais e nacionais. Tal se identifica, desde logo, pela situação de

divergência evidenciada em relação às ações judiciais movidas junto a

duas comarcas de significativo movimento cartorário extrajudicial (Porto

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Alegre e Novo Hamburgo), como explicitado à fl. 83, permitindo situações

de extrema discordância na interpretação entre o que dizem os tribunais,

o que é extraído da lei por uma interpretação literal e o que consta numa

Consolidação Normativa com finalidade de orientação ampla a todo o

Estado.

A questão de fundo, portanto, é quanto à interpretação que se

apresenta possível ao que resta disposto no art. 47 da Lei 8.212/91, com

redação conferida pela Lei nº 9.032/95. Conforme tal enunciado

normativo “é exigida Certidão Negativa de Débito (CND), fornecida pelo

órgão competente,” de empresa na alienação ou oneração, a qualquer

título, de bem imóvel ou direito a ele relativo. A questão que se discute é

em que medida esta exigência legal, no interesse de fiscalização,

arrecadação e cobrança de tributos federais por parte da União (art. 2º da

Lei nº 11.457/07), pode impedir a realização de um negócio jurídico de

alienação ou oneração de bens (móveis e imóveis) entre particulares, ainda

que ciente o adquirente de eventual transmissão de ônus tributário

futuro, chegando ao ponto de responsabilizar terceiros – não interessados

no ato, como servidores, serventuário da Justiça, titulares de serventia

extrajudicial e autoridades ou órgãos (§ 3º do art. 2º da Lei 8.212/91) –

pela ausência de cumprimento da medida de fiscalização determinada na

Lei. E mais. A mesma Lei, em seu art. 48, permite reconhecer “a

responsabilidade solidária dos contratantes e do oficial que lavrar ou

registrar o instrumento de escritura pública” que não atenda a exigência

determinada, considerando “o ato nulo para todos os efeitos”.

Exigir a apresentação de documento público para evitar uma

situação de fraude a credores ou de fraude à execução é situação

perfeitamente aceita pelo ordenamento jurídico. Trata-se, no caso, de

exigência que visa ao atendimento de uma função de controle ao próprio

sistema jurídico, a partir da edição de um enunciado normativo,

suficientemente justificável do ponto de vista de uma argumentação

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racional. Até porque a função de controle é aquela que possibilita o

reconhecimento, a partir da expressão técnica, de uma atividade de

comprovação da compatibilidade existente entre os diversos enunciados

dogmáticos e mesmo entre os enunciados dogmáticos e os fundamentos à

expressão de uma razão prática (ALEXY, 1997, p. 259). O controle, no

caso, é o que se dirige à manutenção de uma eficácia ao argumento da

universalidade (ALEXY, 1997, p. 260), porque mantém uma conexão não

só lógica, mas de razão ao próprio ordenamento jurídico. Ele impede o uso

da dogmática como meio ou argumento a "encubrir los verdaderos motivos

de decisión, o cuando se usan como presuntos programas autónomos de

decisión" (ALEXY, 1997, p. 261).

Exigir a certidão federal à alienação de bens – especialmente de

bens imóveis, que dependem do registro para a transmissão da

propriedade -, portanto, é restrição à realização de negócio jurídico entre

privados que se justifica possível, na medida em que alerta estes mesmos

privados quanto à possibilidade de ocorrência de uma fraude a credores

ou à execução que permita a própria invalidação – efeito entre os privados

(contratantes) – ou a ineficácia jurídica do ato – efeito perante terceiros.

Exigir, contudo, certidão federal negativa de débitos para a realização de

ato de alienação ou de oneração de bens é retrição que não alcança, salvo

por mera temeridade à autoridade legislativa imposta pelo Poder

Executivo, qualquer justificativa de controle normativo. Vários são os

argumentos contrários.

Primeiro, um argumento que diz respeito ao próprio controle

exigido ao sistema jurídico em relação ao exercício de direitos reais sobre a

propriedade. Pelo disposto, em caráter genérico no art. 47 da Lei

8.212/91, ter-se-ía a ausência de pagamento de tributos federais como

condição limitante à transferência da propriedade imobiliária – e mesmo

mobiliária, conforme o valor – à pessoa jurídica. Ou seja, pela

interpretação literal do artigo de lei, só pode fazer circular a propriedade

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imobiliária aquele titular, pessoa jurídica, que esteja em dia com o

pagamento de tributos federais, ainda que inexistente qualquer interesse

público direto na realização do negócio jurídico entre privados11.

Poderia se argumentar, então, que a pretensão seria a de se

evitar uma fraude a credores ou uma fraude à execução, em que existiria

um interesse público pressuposto de obrigar a todos o pagamento de seus

tributos. Com a exigência de apresentação de certidão negativa de débitos,

estaria o Poder Público evitando a dilapidação ou o desvio de patrimônio

privado em prejuízo do erário público. Uma situação que, comprovada pelo

rombo público da inadimplência no país, apresentaria, do ponto de vista

jurídico, suficiente justificativa econômica.

Tal argumento, porém, é falho em diversos níveis de análise.

Primeiro, pelo fato de que não elide a mesma situação de fraude que possa

existir em relação a devedores que sejam pessoas físicas. Cria, inclusive,

uma situação de ausência de proporcionalidade no tratamento jurídico

entre a personalidade natural e a jurídica. Em seguida, tem-se como falho

o argumento pela circunstância jurídica de que a fraude a terceiros ou a

fraude à execução não é instituto jurídico reservado ao credor que seja

pessoa de Direito Público, mas a qualquer terceiro interessado no

patrimônio do alienante. Na medida em que a legislação especial cria um

privilégio de controle a um determinado credor, estaria gerando, a

contrario sensu, uma situação de privilégio também a este credor em

detrimento aos demais de forma injustificada. Até porque, a todos os

supostos credores há remédios jurídicos suficentes no ordenamento

11 A restrição, por lei especial, ao direito de dispor de bem particular, por dívidas existentes junto à Fazenda Federal – que nem digam respeito a tributos relacionados ao ato de disposição sobre a coisa – destoa da normatização prevista no capítulo da propriedade no ordenamento jurídico civil (arts. 1.228 a 1.232 do CC brasileiro) no que se refere às disposições gerais referentes ao exercício de direitos de propriedade sobre bem móvel ou imóvel. Ademais, quando referida hipótese de inalienabilidade de bem, esta se apresenta suficientemente justificada no ordenamento jurídico – na medida em que restringe o direito de propriedade -, como evidenciados nos arts. 100, 1.717, 1.848 e 1.911 do CC brasileiro.

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jurídico – e com força real (sobre o bem) efetiva – a evitar uma alienação

em situação fraudulenta que possa levar a uma invalidação (entre os

contratantes) ou a uma ineficácia do negócio jurídico (perante terceiros).

Por fim, há ainda o fato de que nem mesmo em relação ao concurso de

créditos (no âmbito civil e comercial) goza o crédito tributário federal de

privilégio em relação, por exemplo, ao crédito trabalhista. Se realmente

houvesse a observância de uma função de controle pela restrição à

alienação criada no enunciado normativo, esta deveria observar, na

mesma medida, a necessidade mínima de exigir-se a apresentação de

certidão negativa de feitos trabalhistas em tramitação na Justiça do

Trabalho – o que, de resto, inviabilizaria toda e qualquer alienação de bens

de empresas.

Retornando aos argumentos contrários à exigência de

apresentação de certidão federal negativa de débitos para a realização de

ato de alienação ou de oneração de bens, há também a circunstância de

que os efeitos do ato da não-exigência de certidão negativa não alcançam,

em relação a terceiros não-contratantes, qualquer dimensão de invalidade

do ato notarial/registral. Não há como se criar, ainda que por meio de lei,

uma invalidade jurídica de ato de mera publicidade que, por si só, em

relação a terceiros – como a própria Fazenda Pública – gera, no máximo,

uma situação de ineficácia jurídica no âmbito do direito material12.

Daí o absurdo da pretensão de querer-se responsabilizar terceiro

– como no caso dos titulares de serventias extrajudiciais (§ 3º do art. 48

da Lei nº 8.212/91) -, que não o próprio responsável pela arrecadação,

fiscalização e cobrança do tributo federal (art. 2º da Lei nº 11.457/07), por 12 Neste sentido, reiteradas são as decisões do STJ entendendo que “a falta de apresentação da certidão negativa de débito com o INSS faz o ato de alienação do imóvel ineficaz em relação à Seguridade Social, não impondo, entretanto, a sua nulidade” (STJ – 4ª T. Resp. 140252/SP, rel. Min. Salvio de Figueiredo Teixeira, publ. em DJ 14.09.98, p. 69). De forma mais específica, “a falta de apresentação dessa certidão faz o ato ineficaz em relação à Previdência, podendo proceder-se à penhora do bem como se alienação não tivesse havido” (STJ-3ª T. Resp. 92500/AM, rel. Min. Eduardo Ribeiro, publ. em DJ 14.04.97, p. 208).

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ato de nulidade do ato que nunca poderá ser alcançado por efeito do

próprio direito material realizado em concreto. Se estaria criando, em tal

hipótese, situação de invalidade para reconhecimento de existência de

defeito na forma de publicidade do ato jurídico, quando, materialmente,

no máximo se alcança a ineficácia do mesmo em relação a terceiros – ou

seja, em relação ao interesse público envolvido em concreto13.

Ademais, a fiscalização do ato de arrecadação de tributos não é

tarefa pertinente ao titular de serventia extrajudicial, quanto mais no

interesse não justificado e não privilegiado do Poder Público a tanto.

Portanto, descabe reconhecer-se qualquer sanção específica àquele notário

ou registrador que deixe de exigir a apresentação de certidão federal

negativa de débitos para a realização de ato de alienação ou de oneração

de bens. A menos que se passe a entender que esteja o oficial de serventia

extrajudicial também a serviço da autoridade federal na fiscalização do

processo de arrecadação pública – o que não é o caso. Ou pior: que se

passe a admitir que hoje o controle do sistema de fraudes patrimoniais,

por empresas devedoras exclusivamente da União (ou de sua autarquia

previdenciária), esteja nas mãos de notários e/ou registradores, a quem

incumbe, sob pena de responsabilidade pessoal (administrativa, civil e

criminal), efetuar toda e qualquer restrição da circulação de propriedade

imobiliária e mobiliária (conforme o valor) ao arrepio da concordância

exigida aos institutos jurídicos no ordenamento brasileiro. O que, de fato,

é a situação fática que acaba sendo consolidada na prática.

Por isso, cumpre que se louve recente entendimento acolhido

pela 20ª Câmara Cível do TJRS que, na esteira da argumentação ora

trabalhada neste parecer, reconhece a “possibilidade de dispensa de 13 É o que tem sido evidenciado em relação às situações de adjudicação compulsória de bens de empresas privadas que se tenham dívidas junto à Fazenda Pública. Nos termos da decisão da 2ª CC do TJRS, “não pode ser beneficiada a vendedora em prejuízo do comprador, sob alegação de não possuir a certidão negativa de débito do INSS, providência que lhe incumbe” (TJRS – 2ª CC. AC 70004625620, rel. des. Nereu José Giacomolli).

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apresentação de certidão negativa de débitos da empresa vendedora com a

Procuradoria-Geral da fazenda Nacional para registro de escritura pública

de compra e venda de imóvel”14.

Em todos os casos, de resto, a situação de responsabilidade seria

diferente da exigência de simples apresentação de certidão federal

(independentemente do conteúdo da informação constante no documento,

ou seja, de ser esta negativa, positiva ou positiva com fins negativos). Na

medida em que compete ao titular da serventia extrajudicial apenas dar

publicidade a um ato privado das partes – alertando, inclusive terceiros

eventualmente interessados no ato -, para posteriormente, pelo registro,

transmitir efetivamente a propriedade em relação aos bens imóveis (já que

os móveis se transmitem pela tradição), toda e qualquer interpretação da

Lei nº 8.212/91 e das que se seguiram na matéria (incluindo

normatização administrativa) só pode ser compreendida, do ponto de vista

hermenêutico, como uma exigência que resguarde aqueles diretamente

envolvidos no negócio jurídico, estes sim, responsáveis pelos efeitos do ato

perante terceiros – no que se inclui a Fazenda Pública.

Portanto, qualquer exigência a notários e registradores deveria,

ao máximo, alcançar um regramento de conduta que pudesse impor aos

mesmos a exigência de apresentação de certidão federal referente ao

imóvel transacionado15, independentemente do conteúdo da certidão que

esteja sendo apresentada (se negativa, positiva ou positiva com fins

negativos). Exigência nada além do que consta como determinado no art.

14 TJRS, 20ªCC. AC 70019541499, rel. des. Carlos Cini Marchionatti, julg. Em 23.01.08. 15 Ainda que com ressalvas às limitações de análise judicial impostas pelos limites da lide proposta, recolhe-se da jurisprudência a seguinte decisão da 4ª Turma do STJ, destacada em emenda: “Estando a vendedora em dívida com o INSS, a escritura poderá ser lavrada mediante a comprovação de recolhimento das contribuições correspondentes à construção do imóvel em questão, visto que o comprador não pode ficar indefinidamente sem a regularização da sua propriedade em razão de débitos previdenciários de outra origem” (STJ – 4ª Turma. Resp. 426149/RS, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, publ. em DJ 28.10.02, p. 325). Diferente não era o entendimento antes já exposto na própria CNNR, conforme texto do inc. II, alínea ‘a’, do art. 594.

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594, inc. II, alínea ‘a’, da CNNR, em redação ainda anterior às alterações

promovidas pelo provimento nº 13/03. É desta forma que se potencializa

uma efetiva função de controle à normatividade imposta pela Lei nº

8.212/91 que se apresente adequada ao exercício da atividade de cartório

que é privativa de notários e registradores. Equivocada, portanto, a

interpretação literal de Lei que não considere, pelo trabalho hermenêutico,

situação de interpretação mais complexa, capaz de afastar as restrições

que equivocadamente são impostas ao exercício de um direito de

propriedade, com reflexos de responsabilidade creditados a titulares de

serventias extrajudiciais.

Por fim, em relação à pretensão exposta no requerimento que

motiva a instauração deste expediente, entende-se que, existente dispensa

específica de apresentação de certidão negativa - por empresas que

explorem exclusivamente a atividade de compra e venda de imóveis,

locação, desmembramento ou loteamento de terrenos, incorporação

imobiliária ou construção de imóveis destinados à venda, decorrentes de

sua atividade econômica, e o imóvel, objeto da transação, estiver lançado

no ativo circulante, não podendo ter constado no ativo permanente da

empresa -, cabe compreender-se que esta dispensa ocorre em relação a

toda e qualquer exigência de certidão para fins de alienação e oneração de

bens. Da mesma forma, considerando-se os termos da Lei Complementar

nº 123/06 – em sentido contrário às restrições evidenciadas pela Lei

8.212/91 -, permitindo a dispensa de comprovação de regularidade fiscal

a microempresas e empresas de pequeno porte aderentes do modelo

tributário do Simples Nacional, pelo interesse declarado de facilitação da

atividade de fiscalização sobre a arrecadação fiscal, de se estender a estas

empresas mesma dispensa de apresentação de certidão prevista para

alienações e onerações de bens. Afinal, se é possível se alcançar o efeito de

dispensa máxima de comprovação de regularidade fiscal – inclusive para

constituição e extinção das empresas -, nada impede que se alcance, na

mesma medida, o efeito mínimo – para transferência de propriedade.

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Segue, assim, a sugestão de alteração do texto normativo

consolidado, para revogação, por incompatibilidade normativa, observada

a interpretação ora oferecida, dos arts. 465, 466, 467, 468, 469, inc. V e

VI do art. 594 e inc. VII do art. 682 da Consolidação Normativa Notarial e

Registral.

O presente parecer abrange, igualmente, a discussão jurídica

proposta no expediente administrativo nº 023210-0300/04-0, em apenso,

pela afinidade do tema e dos argumentos trabalhados em concreto.

ANTE O EXPOSTO, nos termos do alcance de análise da matéria

e da interpretação proposta, sugere-se a atualização, por provimento, das

disposições normativas indicadas no texto da Consolidação Normativa

Notarial e Registral, conforme revogação de disposições normativas e

justificativas apresentadas. Ao Coordenador de Correição José Augusto

Trombini para correção da minuta de provimento, com as observações

expostas neste parecer.

É o parecer submetido à apreciação.

Porto Alegre, 17 de abril de 2008.

Maria Cláudia Cachapuz Juíza-Corregedora