Estado luta há oito anos 60 milhões do caso Amadora-Sintra · já em Janeiro de 2011. No passado...

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Estado luta oito anos por 60 milhões do caso Amadora-Sintra Saúde Em 2003, 26 ex-quadros da ARS foram acusados de lesarem o Estado. Processo na Justiça passou por sete ministros Págs. 20/21

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Estado luta há oito anos por 60milhões do caso Amadora-Sintra

Saúde Em 2003, 26 ex-quadros da ARS foram acusados de lesaremo Estado. Processo na Justiça já passou por sete ministros Págs. 20/21

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Estado espera há oitoanos fim de processoque vale 60 milhõesEm 2003, 26 ex-quadros públicos foram acusados delesarem o Estado na primeira parceria público-privadana saúde em Portugal. A história de um processointerminável que atravessou sete ministros da área

JOÃO CORTESÃO

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João d'Espiney

• Oito anos e milhares de páginasdepois de o Ministério Público (MP)junto do Tribunal de Contas (TC) teracusado 26 ex-responsáveis da Admi-

nistração Regional de Saúde (ARS) deLisboa e Vale do Tejo de terem feito,entre 1996 e 2001, pagamentos inde-vidos à sociedade gestora do HospitalFernando Fonseca (Amadora-Sintra),o juiz-conselheiro Carlos Morais An-tunes ainda não decidiu se os leva ounão a julgamento.

O PÚBLICO consultou o processoque está a fazer jurisprudência no TCe constatou os contornos kafkianos deuma história que tem como principalprotagonista o contrato que o Estadoassinou com o Grupo Mello, em 1995,

para a gestão do hospital, a primeiraparceria público-privada na saúde emPortugal.

Um contrato que recebeu o vistoprévio do TC "sem documentos essen-

ciais" e que, como admitiu em 2003o então presidente daquele tribunale actual provedor de Justiça, AlfredoJosé de Sousa, não deveria sequer tersido visado.

Desde que o procurador-geral ad-

junto junto do TC, António Cluny,intentou, em 2003, uma acção deresponsabilidade financeira contraos ex-administradores e delegados daARS por violarem as normas relativasà "autorização e pagamento de des-

pesa pública" à sociedade gestora nomontante de 75,6 milhões de euros,já se verificaram vários incidentesprocessuais e inúmeros recursos e

adiamentos que têm arrastado inde-finidamente o processo.

E os próprios membros do conse-lho de administração da ARS, na altu-ra presidida por Manuela Lima, que se

recusaram - com o aval da então mi-nistra Manuela Arcanjo - a fechar as

contas do hospital por consideraremque tinham sido feitos pagamentosindevidos e defenderam, em 2001, a

intervenção da Inspecção-Geral das

Finanças (IGF), correm o risco detambém se sentarem no banco dosréus e serem obrigados a pagar umaindemnização ao Estado.

O relatório de auditoria da IGF, di-

vulgado em 2002 e que serviu de baseà acusação do MP, foi entretanto pos-to em causa pela decisão do TribunalArbitrai (TA) constituído ao tempo doex-ministro da Saúde Luís Filipe Pe-reira (2002-04), o qual concluiu quenão só a sociedade gestora não tinha

que devolver os 75,6 milhões de eu-ros, como tinha ainda a receber 43milhões.

Uma decisão que, além de ter con-tribuído para o arquivamento dos in-

quéritos da Inspecção-Geral das Acti-vidades em Saúde e do Departamentode Investigação e Acção Penal de Lis-boa, levou António Cluny a desistirda acusação contra seis pessoas e areduzir o valor do pedido de indem-

nização ao Estado para cerca de 60milhões de euros.

A acusação inicialEm 2003, depois de concluir que a leinão permitia responsabilizar finan-ceiramente os ex-ministros da Saúde,Maria de Belém e Manuela Arcanjo,e das Finanças, Sousa Franco e Pina

Moura, o Ministério Público intentauma acção contra os administrado-res e delegados de diversas gerênciasda ARS por terem feito pagamentos"todos eles ilegais do ponto de vistafinanceiro" à sociedade gestora doAmadora-Sintra. O procurador-geraladjunto encarregue do processo re-clamava a responsabilidade financeirasancionatória (multa) e reintegratória(verba a devolver ao Estado) dos visa-

dos, que, no seu conjunto, totalizava

79,3 milhões de euros.A primeira acusação incidia apenas

sobre seis pessoas. Já a reintegratóriavisava a totalidade dos ex-dirigentese delegados da ARS e os valores dopedido de indemnização variavamconsoante a gravidade das infracçõesdetectadas pela IGF.

A acção foi contestada por váriosex-dirigentes, pelo facto de o TC "nãoter elaborado qualquer auditoria quepudesse dar origem ao julgamento de

responsabilidade financeira" e por orelatório da IGF não poder "superar afalta de um pressuposto processual -o direito ao contraditório". Os contes-tantes invocavam ainda as conclusõesdo TA, que considerara legais as trans-ferências de dinheiros públicos para asociedade gestora do hospital.

A resposta do MP à contestação nãodemorou. "Só uma fértil imaginaçãopode encontrar qualquer identidadeentre os sujeitos, o pedido e a causade pedir na acção intentada neste tri-bunal e aquela em que se debruçouo TA. [...] Ao contrário do que algunscontestantes insistem em pretender,não se está aqui perante um processode responsabilidade civil que correnum tribunal especial. Encontramo-nos diante de um processo de respon-sabilidade financeira", que o TC tem"competência constitucional" paradecidir.

Para António Cluny, o despacho deremessa do juiz do TC seria condiçãosuficiente para instaurar o processo.Já para os acusados, o relatório da IGFteria primeiro de ser aprovado pelojuiz da 2.a secção do TC - que aprovaos relatórios de auditoria -, o que im-

plicaria o cumprimento do princípiodo contraditório. Isso mesmo aconte-ce a 30 de Setembro de 2004, quandoo plenário do TC aprova uma propos-ta de auditoria à execução do contrato

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entre o Estado e a sociedade gestorado Hospital Amadora-Sintra.

A auditoria é feita e o relatório,aprovado a 30 de Junho de 2005, con-firma as principais conclusões da IGF.Manuela Lima contesta, alegando queé acusada de um pagamento que nãofez e que foi a primeira a defender,num despacho entregue ao então mi-nistro Correia de Campos, a rescisão- ou a revisão, pelo menos - de umcontrato pouco rigoroso e lesivo dosinteresses do Estado, "documentoque estranhamente não é referidopelo relatório de auditoria [do TC]nem pelo relatório da IGF".

Ana Jorge e Constantino Sakella-rides, que presidiram à ARS entre1996 e 2000, também contestaram."As conclusões do relatório de audi-toria mais não são do que o plágio(quase integral) do relatório da IGF",defendem, sublinhando que "nenhu-ma diligência probatória suscitada foianalisada e admitida" e que "a audi-toria não relevou um só facto invoca-do em sede de contraditório". Ambosrecordam ainda que os pagamentossó eram feitos com ordem do minis-tro da Saúde e defendem que o TCtambém deveria ter "recusado o vis-to prévio" ao contrato renegociadoem 2004, "com as mesmas cláusulas

agora postas em causa".

Adiamentos sucessivosAntónio Cluny requer em seguida amarcação de uma audiência prelimi-nar com vista a decidir se a acusaçãosegue para julgamento. Depois demuitos adiamentos por impossibili-dades várias e inúmeros "incidentesde intervenção", o juiz-conselheiroCarlos Morais Antunes, do TC, inde-fere um incidente suscitado pelo MP- que contestava o facto de a audito-

ria considerar válidos os pagamen-tos feitos pela ARS em 1995, quandoa sociedade gestora ainda não tinhaexistência jurídica formal - e decidepassar à análise do relatório.

A conclusão é a de que o mesmocumpre "os preceitos legais atinentesà observação do contraditório", o queleva Morais Antunes a improceder asnulidades invocadas por alguns dosacusados no processo. O juiz indeferetambém o incidente de intervençãosuscitado por Constantino Sakellari-des e outros ex-responsáveis, que re-queriam que "o Estado ou a ARS" osressarcisse dos prejuízos "na hipótesede serem condenados".

O juiz decide então marcar a audi-ência preliminar para 24 de Junho de2009, mas esta é adiada uma primeiravez para Outubro por impossibilida-des várias de agenda dos acusados.

Um deles, a ex-presidente da ARS

Margarida Bentes, morre entretan-to, o que obriga a novo adiamento. 0MP requer de seguida a habilitação deherdeiros da ex-presidente da ARS,que, por sua vez, recorrem da deci-são, alegando que a responsabilidadefinanceira se extinguiu com a morteda mãe. 0 processo sobe a plenário de

juizes do TC, que, em Abril de 2010,negam provimento ao recurso dosherdeiros. Estes voltam a recorrer esó depois das férias judiciais, a 28 deSetembro do ano passado, o recursoé novamente rejeitado.

Carlos Morais Antunes retoma o

processo a 18 de Novembro e, 12 dias

depois, ordena a citação dos herdei-ros, que contestam a acção principaljá em Janeiro de 2011. No passado dia2 de Maio, o juiz indefere em definiti-vo as pretensões dos filhos de Marga-rida Bentes. "Toda a responsabilidade

financeira não se extingue com mortedo agente. A sancionatória sim [...],mas a reintegratória só se extinguepela prescrição [do processo]."

Em Junho, Morais Antunes marca aaudiência preliminar para dia 21, mas,face às muitas questões "prévias" sus-

citadas, acaba por não tomar a deci-são de levar ou não a julgamento os

acusados. A 3 de Outubro, o processoé dado por "concluso" na secretariado tribunal e está agora no gabinetedo juiz-conselheiro, que ainda nãodecidiu o que vai acontecer aos acu-sados.

Ana Jorge "tranquila"Ao PÚBLICO Ana Jorge - que entre-tanto fora ministra da Saúde no últimoGoverno socialista de José Sócrates -disse estar tranquila, manifestando-seconvicta de que o juiz "não vai levar ocaso a julgamento". "A minha posiçãoé aguardar que o TC decida. Entendo

que é um processo muito complexo,com muitas variáveis e com muitosinteresses das mais diversas partesenvolvidas. Não tem sido fácil este

tempo de espera, mas espero que o

processo já não demore muito."E se for a julgamento? "Se houver

julgamento, não sabemos o que vaiacontecer", respondeu. Questionadasobre o facto de ter chegado a anun-ciar que iria processar o Estado junta-mente com Constantino Sakellarides,Ana Jorge revelou que "não chegou aavançar" com o processo. "[Se formoscondenados], teremos de repensar anossa posição."

Contactado também pelo PÚBLI-CO, Constantino Sakellaridades pre-feriu "não acrescentar nada, dada anatureza do processo". É "esperarpara ver".

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O relatório da IGFPagamentos excessivose em duplicado

A acção do Ministério Públicofundamenta-se no essencial notrabalho da Inspecção-Geral das

Finanças (IGF), que concluiu,num relatório divulgado em2002, que a grande maioria dos75,6 milhões de euros pagos"indevidamente" pelo Estado àsociedade gestora do hospitaltêm origem em "injustificadasinterpretações" do contrato. A

começar pela actualização dosmontantes que anualmente são

pagos pelo Ministério da Saúde

pelos cuidados prestados aos

doentes, pagamentos esses quecomeçaram a ser feitos maisde um ano antes do devido. AIGF detectou ainda cobrançasindevidas de serviços prestadosnas urgências a utentes que nemsequer eram beneficiários doSNS e pagamentos de milhões amais pelos doentes internados.Por outro lado, a sociedadegestora não usou como basede cálculo os doentes saídosdo hospital, mas contabilizouas transferências internas deutentes pelos vários serviços.Nos internamentos, tambémcobrou o tratamento de doentesde outros subsistemas de saúdee aos vários subsistemas osmontantes liquidados ao Estado.

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1995A Administração Regional deSaúde (ARS) de Lisboa e Vale do

Tejo assina o contrato de gestãocom a sociedade gestora do

Hospital Amadora-Sintra (HAS),do Grupo José de Mello Saúde. Aoabrigo do contrato, a sociedaderecebe nos anos seguintes 75,6milhões de euros do Estado.

2001A ARS, então presidida porManuela Lima, envia ao ministroCorreia de Campos um relatórioonde denuncia pagamentosindevidos à sociedade gestora entre1996 e 2001 e propõe a rescisão docontrato ou a sua revisão. Correiade Campos pede uma auditoria àInspecção-Geral de Finanças (IGF).

2002Governo anuncia programa paraa construção e gestão de dezhospitais em regime de parceriaspúblico-privadas (PPP), cujomodelo abrange a construção e

gestão clínica dos equipamentos.Cronograma inicial apontava paraque todos estivessem a funcionaraté 2010.

2002IGF conclui que houve violaçõesgraves passíveis de levar àrescisão do contrato do hospital.Ministro Luís Filipe Pereira, queantes trabalhara no Grupo Mello,não vê razões para rescindir e

anuncia a criação de um tribunalarbitrai. "Não tenho de mostrarindependência nenhuma", declara.

2003Tribunal Arbitrai condena Estadoa pagar 43 milhões de euros àsociedade gestora. MinistérioPúblico junto do Tribunal deContas mete uma acção contra26 ex-responsáveis da ARS

por pagamentos indevidos,pedindo 79 milhões de euros de

indemnização.

2003É lançado o primeiro concursopúblico para o futuro Hospitalde Loures. A José de Mello Saúdeapresenta a proposta maisvantajosa e ganha o concurso,mas, por irregularidades váriase falta de transparência do

processo, este acaba por serextinto três anos depois.

2004Governo chega a acordo com aJosé de Mello Saúde para um novocontrato do hospital. O relatóriodo grupo de trabalho criado porManuela Ferreira Leite e Luís FilipePereira admite que o contratoinicial não foi denunciado por estarem curso o programa do Governo

para as PPP.

2004Tribunal de Contas visa o "novo"contrato, apesar de o Departamentode Controlo Prévio do própriotribunal alertar que este mantém"algumas fragilidades", as quais"poderão ser susceptíveis dedificultar o acompanhamento dasua execução [...], não acautelandoeventuais novos litígios".

2005Ministro António Correia deCampos anuncia a construção de

quatro novos hospitais em regimede PPP — Loures, Cascais, Braga eVila Franca de Xira — e denunciaque o anterior programa de Luís

Filipe Pereira para dez unidadesfoi decidido "sem estudo de

sustentação conhecido".

2008José Sócrates anuncia que a gestãodo HAS regressa ao Estado em2009 e que só as PPP com concursolançado mantêm "gestão clínica".Em 2009, a ARS e a sociedadegestora não chegam a acordo parao fecho das contas e avançam paraum novo tribunal arbitrai, ainda emexercício.