Estatuto das Cidades, mais de 10 anos depois
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213rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013
fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois
edsio fernandes*
ESTATUTO DA CIDADE, MAIS DE 10 ANOS DEPOIS:razo de descrena, ou razo de otimismo?
resumo A Lei Federal de Poltica Urbana o Estatuto da Cidade, de 2001 tem sido amplamente considerada interna-cionalmente como um esforo pioneiro no sentido da construo de um marco regulatrio mais adequado para oferecer suporte s tentativas governamentais e sociais de promoo da reforma urbana. Contudo, passados mais de 10 anos de sua aprovao, h muitos debates significativos sobre sua eficcia. Mas o que exatamente se pode esperar da nova legislao urbanstica? O que preciso para que a lei possa ser plenamente aplicada e socialmente eficaz? Quais so a natureza, as possibilidades e as restries de uma tal legislao progressista em face do processo sociopoltico mais amplo? Este artigo pretende discutir tais questes por meio de uma avaliao crtica da aplicao especfica do Estatuto da Cidade, visando tambm a fornecer elementos para uma discusso mais geral sobre as expectativas, reais e falsas, existentes em torno das leis urbansticas que tm sido aprovadas em diversos pases para regulao de direitos e gesto fundiria, ordenamento territorial, planejamento urbano e habitao social.
palavras-chave Legislao urbana. Estatuto da Cidade. Reforma urbana.
keywords Urban legislation. City Statute. Urban reform.
* Professor e consultor internacional. Membro da DPU Associates (Inglaterra) e da Teaching Faculty of the Lincoln Institute
of Land Policy (Estados Unidos da Amrica). E-mail: .
CITY STATUTE, MORE THAN TEN YEARS LATER:a reason for disbelief, or for optimism?
abstract Brazils national urban policy law - the 2001 City Statute - has been widely regarded internationally as a groun-dbreaking effort to conceive a regulatory framework more conducive to providing adequate legal support to governmental and social attempts to promote urban reform. However, more than 10 years have passed since its approval, and there are significant debates about its efficacy. But, what exactly can be expected of the new urban law? What is required for it to be fully enforced, and socially effective? What are the nature, possibilities and constraints of such a progressive urban law vis--vis the broader sociopolitical process? This paper aims to discuss such questions through a critical assessment of the enforce-ment of Brazils City Statute, also aiming to provide elements for the more general discussion on the growing, real as well as false, expectations existing around the newly approved urban laws in other countries governing land rights and management, territorial organization, urban planning, and social housing.
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fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois
A Lei Federal de Poltica Urbana o Estatuto da Cidade foi aprovada em 2001 depois de doze anos de intensas discusses e negociaes no Congres-so Nacional. Desde ento, a lei tem sido aclamada internacionalmente, a ponto de
o Brasil ter sido inscrito no Rol de Honra da ONU (UN-HABITAT) em 2006 to
somente por t-la aprovado. Abertamente invejado por formuladores de polticas
pblicas e gestores urbanos de diversos pases, o Estatuto da Cidade tem sido repe-
tidamente promovido pela importante iniciativa internacional Aliana das Cidades/
Cities Alliance como sendo o marco regulatrio mais adequado para oferecer bases
jurdicas slidas para as estratgias governamentais e sociopolticas comprometidas
com a promoo da reforma urbana.
No entanto, nos ltimos anos tem crescido entre diversos setores no Brasil o
sentimento de descrena nessa lei-marco que na melhor das hipteses no teria
pegado, ou que na pior das hipteses teria contribudo para agravar ainda mais o
processo histrico de segregao socioespacial das cidades brasileiras. Este artigo
pretende examinar a validade dessa crtica ao Estatuto da Cidade, e para tanto me
proponho a discutir como os princpios e possibilidades da nova ordem jurdico-
urbanstica consolidada pela lei federal tm sido efetivamente compreendidos e
assimilados por juristas, urbanistas, gestores pblicos e pela sociedade brasileira,
especialmente no contexto dos novos Planos Diretores Municipais que tm sido
aprovados desde 2001.
A aprovao da lei federal em 2001 foi em grande medida resultado de um
amplo processo nacional de mobilizao sociopoltica clamando pela promoo de
reforma urbana no Brasil. O Estatuto da Cidade regulamentou o captulo original
sobre poltica urbana que tinha sido aprovado pela Constituio Federal de 1988,
captulo esse que tambm tinha sido precedido por uma mobilizao sociopoltica
sem precedentes, e que se manifestou especialmente por meio da Emenda Popular
pela Reforma Urbana.
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fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois
J discuti o captulo consti-
tucional e o Estatuto da Cidade
em detalhe em outros trabalhos;1 para os fins
deste artigo, basta destacar que a lei fe-
deral:
- firmemente substituiu a no-
o dominante na ordem
jurdica de propriedade
privada individual sem maiores
qualificaes pela noo das
funes sociais da proprieda-
de e da cidade, de forma a dar
suporte s polticas pblicas de incluso socioespacial
e s estratgias de democratizao do acesso ao solo urbano e moradia nas
cidades;
- criou diversos processos sociopolticos, mecanismos jurdico-institucionais, ins-
trumentos jurdicos e urbansticos, bem como recursos financeiros destinados
a viabilizar a implementao de uma gesto urbana justa e eficiente, tendo co-
locado nfase na necessidade de captura pela comunidade de pelo menos parte
da enorme valorizao imobiliria que tem sido gerada pela comunidade e pela
ao estatal, mas que tem sido tradicionalmente apropriada quase que exclusi-
vamente pelos proprietrios de terras e imveis;
- props um sistema de governana urbana amplamente descentralizado e de-
mocratizado, no qual diversas dinmicas de articulao intergovernamental e
parcerias do setor estatal com os setores privado, comunitrio e voluntrio fo-
ram concebidas juntamente com diversas formas de participao popular nos
processos decisrios e de elaborao legislativa; e
- reconheceu os direitos coletivos dos residentes em assentamentos informais
consolidados segurana jurdica da posse, bem como a regularizao susten-
tvel de seus assentamentos.
Juntas, essas dimenses certamente constituram um novo marco de governana
da terra urbana no Brasil.
1. Vide, entre outros, Fer-nandes (1995, 2007, 2011); Fernandes e Rolnik (1998).
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fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois
Dada a natureza altamente descentralizada do federalismo brasileiro
considerado para muitos analistas como sendo o sistema mais descentralizado
no mundo hoje , a materializao efetiva desse novo marco jurdico inovador foi
colocada em grande medida nas mos das administraes municipais, especialmente
por meio da formulao de Planos Diretores Municipais PDMs. Anteriormente
aprovao da lei federal, a enorme maioria dos municpios no tinha um
marco jurdico minimamente adequado para a disciplina dos processos de uso,
ocupao, parcelamento, desenvolvimento, preservao, conservao, construo, e
regularizao do solo urbano. A maioria dos municpios no tinha sequer dados e
informaes bsicas, mapas, fotos areas e outros materiais relevantes sobre seus
prprios territrios e processos socioespaciais. Dos cerca de 1.700 municpios que
passaram a ter a obrigao legal de aprovar PDMs de forma a materializar o Estatuto
da Cidade, cerca de 1.450 j o fizeram de alguma forma fato que em si mesmo
sem dvida admirvel.
Contudo, desde a aprovao do Estatuto da Cidade, ao longo desta primeira d-
cada do novo sculo, as cidades e as realidades urbanas brasileiras tm passado por
mudanas profundas. As taxas de crescimento urbano no pas certamente caram,
mas ainda so relativamente altas, agora especialmente nas cidades pequenas e de
mdio porte, levando formao de um novo sistema de regies metropolitanas,
com 30 delas j reconhecidas oficialmente. O crescimento econmico do pas e a
formao de uma nova classe mdia/classe trabalhadora precria tm agravado
problemas urbanos h muito existentes de transporte pblico e mobilidade, impac-
to ambiental e violncia urbana. Diversos problemas de infraestrutura urbana e a
crise energtica nas cidades tambm tm se manifestado e agravado de diversas
formas. A crise fiscal das administraes pblicas, especialmente no mbito muni-
cipal, generalizada.
A profunda crise fundiria e habitacional no Brasil constituda ao longo de
sculos tem ganhado novos contornos. O dficit habitacional continua enorme
(calculado entre 6 e 7 milhes de unidades), e, apesar dos nmeros impressionan-
tes de unidades j construdas e/ou contratadas no contexto do Programa Nacional
de Habitao Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), esse esforo do governo fede-
ral ainda no chegou plenamente aos setores mais pobres, sendo que o programa
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tem sido criticado, entre outras razes, por ter reforado processos histricos de
segregao socioespacial e especulao imobiliria. Os nveis de valorizao de
terras, construes e aluguis nas reas urbanas tm batido recordes histricos,
agora no contexto de um mercado imobilirio cada vez mais globalizado. H nas
cidades brasileiras um enorme estoque de terras urbanas providas com servios
pblicos mas mantidas vazias por seus proprietrios (correspondendo em alguns
casos a 20% da malha urbana do municpio/regio metropolitana), bem como de
construes vazias, abandonadas e/ou subutilizadas (que chega a 5,5 milhes de
unidades, de acordo com certos clculos). H tambm um enorme estoque, ain-
da no devidamente calculado, de bens de propriedade pblica da administrao
direta e indireta, em todos os nveis governamentais, que no tm claramente
cumprido uma funo social.
As taxas de crescimento urbano informal seguem altas, agora com a maior den-
sificao/verticalizao de assentamentos antigos; formao de novos assentamentos
(favelas e loteamentos irregulares) usualmente em reas perifricas e cada vez mais
em cidades pequenas e de mdio porte; bem como o surgimento/renovao de ou-
tras prticas informais como casas de frente e fundo, aluguel informal, cortios
etc. O desenvolvimento urbano nas novas fronteiras econmicas, especialmente na
Amaznia Legal, tem se dado amplamente mediante processos informais. H um
nmero crescente de disputas fundirias e conflitos socioambientais por todo o pas.
Tambm entre os grupos sociais mais privilegiados tm sido muitas as prticas
que envolvem alguma forma de violao das leis fundirias, urbansticas, ambien-
tais e edilcias. A proliferao de condomnios urbansticos prtica que no tem
base jurdica slida no pas e de loteamentos fechados prtica manifestamente
ilegal que tem ocorrido nas reas perifricas dos grandes municpios, ou mesmo
em outros municpios metropolitanos, tem feito com que pela primeira vez ricos e
pobres estejam disputando o mesmo espao nas cidades.
Por um lado, ao longo das duas ltimas dcadas, um volume gigantesco de re-
cursos pblicos imveis, isenes tributrias, crditos de todo tipo, subsdios finan-
ceiros, incentivos fiscais, direitos de uso e construo tem sido cada vez mais
transferido pelas administraes pblicas em todos os nveis governamentais
para o setor privado, promotores urbanos, construtores e agentes imobilirios.
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Esse deslocamento crescente de recursos pblicos tem se dado geralmente no
contexto de programas de renovao urbana, revitalizao de reas centrais, re-
qualificao de centros histricos, grandes projetos urbanos, modernizao de
infraestrutura urbana/portos/aeroportos, bem como de grandes eventos esportivos
como a Copa do Mundo e os Jogos Olmpicos. Por outro lado, alm dos dados sobre
os processos de especulao imobiliria e gentrificao de reas, o nmero de des-
pejos e remoes foradas de comunidades que vivem em assentamentos informais
consolidados h muitas dcadas, em muitos casos cada vez mais assustador,
no apenas no Rio de Janeiro e em So Paulo, mas tambm em outros municpios
anteriormente comprometidos com a promoo de reforma urbana, como Belo Ho-
rizonte e Porto Alegre. O processo de reforma urbana que tinha sido to eloquente
nas dcadas de 1980 e 1990 e que foi fundamental para a aprovao do Estatuto da
Cidade parece ter perdido flego, e a questo fundamental que tem repetidamente
sido colocada por diversos setores sociais tem sido: de quem e para quem so as
cidades, e quem tem sido efetivamente beneficiado pelas enormes transferncias de
recursos pblicos?
Nesse contexto, o que aconteceu ento com o Estatuto da Cidade e sua agenda de
reforma urbana? A lei federal teria fracassado, como um grupo crescente de cticos
parece acreditar? Ao invs de contribuir para a promoo de incluso socioespacial,
a lei teria perversamente contribudo para o processo crescente de mercantilizao
das cidades brasileiras e para a maior periferizao dos pobres como muitos tm
argumentado?
Passados mais de dez anos da aprovao da lei federal, uma avaliao ampla e
crtica do j no to novo marco jurdico de governana da terra urbana por ela con-
solidado e especialmente das iniciativas municipais encarregadas de implemen-
t-lo se faz urgentemente necessria. Trata-se de um momento de reflexo que
requer organizar as principais ideias, debates e experincias que esto por trs da
aprovao do Estatuto da Cidade, assim como recuperar seus princpios e objetivos
histricos. Fazer a crtica da ao dos principais atores envolvidos fundamental
para corrigir erros, mudar rumos e fazer avanar a reforma urbana no pas. Uma
tal avaliao necessria sobretudo para determinar se e como os PDMs tm efeti-
vamente traduzido os princpios gerais do Estatuto da Cidade em regras e aes,
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fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois
identificar e discutir quais tm sido os principais obstculos jurdicos e sociais
implementao plena da lei federal, bem como para discutir se e como a sociedade
brasileira tem feito uso efetivo das diversas possibilidades jurdicas e sociopolticas
criadas pelo Estatuto da Cidade para reconhecimento de uma srie de direitos cole-
tivos e sociais criados pela nova ordem jurdico-urbanstica.
Meus comentrios a seguir so baseados em minha experincia pessoal lidando
diretamente com o tema, bem como em uma srie de estudos de casos, levantamen-
tos e estudos comparativos que j se encontram disponveis.2
A descrena no Estatuto da Cidade
Antes de se fazer qualquer avaliao sobre a lei federal, preciso destacar que o Estatuto da Cidade Lei Federal n 10.257/2001 se insere em amplo processo de reforma jurdica que tem sido promovido no Brasil h pelos
menos trs dcadas, tendo como principais antecedentes diretos as Leis Federais
n 6.766/1979 (Parcelamento do Solo Urbano), n 7.347/1985 (Ao Civil Pbli-
ca) e n 9.790/1999 (OSCIPs); a Constituio Federal de 1988 (especialmente os
2. Vide, especialmente, Santos Jr. e Montandon (2011); Schult, Silbert e Souza (2010); Cymbalista e Santoro (2009); vide, tam-bm, o Banco de Experin-cias regularmente mantido e atualizado pela Secretaria de Programas Urbanos do Ministrio das Cidades (disponvel em: ).
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arts. 182 e 183, que dispem sobre a Poltica Urbana); e a Emenda Constitucional n
26/2000 (que incluiu o direito de moradia no rol dos direitos sociais).
Desde sua aprovao, a lei federal tem sido complementada por uma longa srie
de outras leis federais: Medida Provisria n 2.220/2001 (Concesso de uso espe-
cial para fins de moradia); Leis Federais n 11.079/2004 (Parcerias pblico-priva-
das); n 10.931/2004 (Crdito e registro imobilirio); n 11.107/2005 (Consrcios
pblicos); n 11.124/2005 (lei de iniciativa popular que criou o Fundo Nacional de
Habitao de Interesse Social FNHIS); n 11.445/2007 (Poltica de Saneamento);
n 11.481/2007 (Terras da Unio); n 11.888/2008 (assistncia tcnica para comu-
nidades); n 11.977/2009 (criou o Programa Minha Casa, Minha Vida PMCMV
e disps sobre regularizao fundiria); n 11.952/2009 (Amaznia Legal); n
12.305/2010 (Poltica de Resduos Slidos), a mais recente sendo a Lei Federal n
12.608/2012 (Poltica Nacional de Defesa e Proteo Civil).
Todas essas so direta ou indiretamente leis urbansticas aprovadas na esfera
federal, sem falar das diversas convenes e tratados internacionais que o Brasil tem
assinado e ratificado (especialmente sobre direitos de moradia); nas incontveis leis
ambientais e sobre patrimnio cultural, desapropriao e registro imobilirio apro-
vadas tambm na esfera federal; nos projetos de leis em discusso (especialmente
o PL n 3.057/2000, que trata do parcelamento do solo urbano e dos condomnios
urbansticos, e o chamado Estatuto da Metrpole); nos anteprojetos (especialmente
o que dispe sobre resoluo de conflitos fundirios); bem como nos igualmente
incontveis Decretos, Resolues do Conselho Nacional das Cidades, Resolues do
CONAMA e Instrues Normativas da Caixa Econmica Federal.
A mera listagem dessas leis e outras normas federais em vigor deixa claro que
uma nova ordem jurdico-urbanstica, articulada e compreensiva, sofisticada mes-
mo, se constituiu no Brasil nas ltimas trs dcadas, inclusive com o reconhecimen-
to constitucional do Direito Urbanstico como ramo autnomo de Direito Pblico
que tem como princpios paradigmticos prprios as funes socioambientais da
propriedade e da cidade e a gesto democrtica das cidade. Diretamente com-
prometida com a agenda sociopoltica da reforma urbana e etapa crucial na cons-
truo nacional e internacional do to clamado direito cidade , a ordem jurdica
brasileira j mudou significativa e estruturalmente.
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221rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013
fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois
Alm disso, essa ordem jurdico-urbanstica federal tem sido ainda mais am-
pliada desde 2001 com a aprovao de centenas de leis urbansticas em todas as
esferas governamentais, e especialmente com a aprovao dos mais de 1.400 Planos
Diretores Municipais.
Ao mesmo tempo, tambm uma nova or-
dem institucional de natureza urbanstica
se constituiu na esfera federal com a cria-
o em 2003 do Ministrio das Cidades; a convocao de
Conferncias Nacionais/Estaduais/Municipais das
Cidades bienalmente desde ento; a instala-
o e ao do Conselho Nacional das Cidades;
a ao da Caixa Econmica Federal considerada
como o maior banco pblico em ao no mun-
do; bem como os diversos planos e programas
federais sobre temas urbanos, especialmente o Plano de
Acelerao do Crescimento (PAC) e o mencionado PMCMV, que, considerados jun-
tos, constituem o maior investimento jamais feito na histria das polticas pblicas
da Amrica Latina.
A constituio tanto dessa nova ordem jurdico-urbanstica, quanto dessa nova
ordem institucional sobre poltica urbana, fundamentalmente uma conquista
social, resultado de um processo histrico de mobilizao social renovada envol-
vendo milhares de atores: associaes comunitrias, movimentos sociais de todo
tipo, ONGs, Igrejas, sindicatos, municpios, partidos polticos, e mesmo setores do
capital imobilirio. Em especial, desde a dcada de 1980 inicialmente com a mo-
bilizao pela aprovao da Emenda Popular pela Reforma Urbana , o Frum Na-
cional de Reforma Urbana (FNRU) tem lutado pelo reconhecimento constitucional
pleno, ainda que tardio, da questo urbana e habitacional; pela descentralizao,
democratizao e participao popular dos/nos processos decisrios; pela completa
regulamentao do captulo constitucional sobre poltica urbana; e pela criao de
um aparato institucional slido na esfera federal sobre a chamada questo urbana.
Contudo, nos ltimos anos o FNRU, entre outros importantes atores sociopol-
ticos, tem fortemente denunciado:
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- o crescimento absurdo da especulao imobiliria no pas, com frequncia como
resultado da utilizao elitista dos novos recursos gerados (venda em leiles de
Certificados de Potencial Adicional de Construo CEPACs e outros) como
resultado das novas estratgias de gesto territorial e urbana;
- a suposta liberao dos valores imobilirios por grandes eventos e projetos,
levando renovao dos processos de segregao socioespacial;
- o abuso dos argumentos jurdicos de interesse pblico e de urgncia, que
tem justificado toda uma srie de desrespeitos sistemticos da ordem jurdico-
administrativa pelas administraes pblicas;
- o enorme impacto socioespacial e socioambiental dos programas federais e outros;
- o aumento alarmante dos conflitos fundirios, dos preos de aluguis, da infor-
malidade urbana, dos despejos e remoes; e
- o agravamento dos problemas urbano-ambientais tradicionais, como as crises do
sistema de transporte pblico e mobilidade e do sistema de saneamento bsico.
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223rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013
fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois
Acima de tudo, por toda parte muitos setores sociais tm criticado a mercantili-
zao crescente e abusiva das cidades brasileiras, que, para alm de serem o lugar da
produo capitalista ps-industrial, so tambm cada vez mais o objeto mesmo dessa
produo capitalista na escala global. Esse processo de mercantilizao das cidades
tem demandado o reforo da cultura jurdica individualista e patrimonialista tradi-
cional, vigente e dominante pr-Estatuto da Cidade, com a propriedade imobiliria
concebida quase que exclusivamente como mercadoria, seu valor de troca prevale-
cendo sobre qualquer valor de uso, e a possibilidade de usar/gozar/dispor do bem
imvel sendo tambm interpretada como a possibilidade livre de no usar/gozar/
dispor do bem em outra palavras, de especular.
O que aconteceu, ento, com a reforma urbana? Como explicar a enorme de-
fasagem entre essa ordem jurdica ampla e sofisticada; essa ordem institucional
compreensiva e mais do que nunca dotada de enormes recursos financeiros; e as
alarmantes realidades urbanas e socioambientais do pas?
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224 rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013
fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois
Por um lado, a nova ordem jurdico-urbanstica em grande parte ainda
desconhecida por juristas e pela sociedade, sendo tambm em grande parte objeto
de disputas jurdicas e disputas sociopolticas que colocam enormes desafios
sua eficcia jurdica e social. Por outro lado, o Ministrio das Cidades tem sido com
frequncia esvaziado e/ou atropelado financeira e politicamente pela Presidncia
da Repblica e/ou por outros Ministrios; e o Conselho das Cidades tem sido
sistematicamente esvaziado e/ou atropelado pelo Ministrio das Cidades e por
outros Ministrios, tendo tido dificuldades de renovao da mobilizao dos atores
sociopolticos envolvidos. Quando no faltam projetos, h duplicidade, ineficincia,
desperdcio, falta de continuidade e muita corrupo na gesto urbana
fragmentada em todas as esferas governamentais.
nesse contexto que tm crescido as reaes de descrena em relao ao Estatuto
da Cidade por parte de urbanistas, gestores pblicos e setores da sociedade. A lei fe-
deral tem sido mesmo abertamente demonizada por muitos, declarada culpada pelos
processos recentes de segregao socioespacial e pela apropriao dos instrumentos
de gesto territorial urbana como os CEPACs por setores conservadores, que es-
tariam assim gerando novas formas de velhos processos de socializao dos custos
e privatizao dos ganhos e de reconcentrao de servios e equipamentos pblicos.
A crtica legtima?
Mas, o problema mesmo da lei federal? Pessoalmente, acredito que esta a hora de se perguntar: houve mesmo uma compreenso adequada por urbanistas, gestores e juristas e pela sociedade acerca da natureza e das implica-
es da nova ordem jurdico-urbanstica? Os novos espaos jurdicos e sociopolti-
cos criados tm sido ocupados? Seus princpios esto sendo traduzidos em polticas
urbanas? Seus direitos coletivos e sociais esto sendo demandados pela populao?
Seus princpios paradigmticos esto sendo defendidos pelos tribunais?
Na base da descrena acerca do Estatuto da Cidade, h diversos fatores culturais
e sociopolticos de fundo que devem ser considerados com o devido flego, mas que
para fins deste artigo sero apenas brevemente mencionados:
- a percepo ainda dominante no Brasil acerca do Direito e da lei, dada a forte
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225rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013
fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois
tradio cultural e sociopoltica de legalismo messinico, com o Direito
geralmente considerado como sistema objetivo, fechado em si mesmo, neutro e
a-histrico, levando assim a uma viso meramente instrumental (para resolver)
e no processual da lei; so poucos os que compreendem que, muito mais
do que mero instrumento tcnico, o Direito campo aberto de disputas, (mais)
uma arena sociopoltica para manifestao, confrontao e, em alguns casos,
resoluo de conflitos;
- o imediatismo das demandas sociais que certamente compreensvel, se con-
siderados o volume dos problemas urbanos e socioambientais acumulados e a
urgncia de seu enfrentamento, mas que ignora a histria secular de abandono
da questo urbana e a necessidade de mais tempo e especialmente de continui-
dade de aes para seu efetivo enfrentamento e superao;
- a percepo ainda dominante do Estado e do aparato estatal, ainda essencial-
mente assistencialista e clientelista, consequncia da tradio de positivismo e
formalismo jurdicos que ainda reduz o pblico ao estatal; e
- a percepo ainda dominante do planejamento territorial urbano como sen-
do a narrativa espacial exclusiva, dotada de racionalidade tcnica e expres-
sando valores ideais, e como tal totalmente desvinculada das dinmicas dos
mercados imobilirios.
Sobretudo, uma avaliao justa do Estatuto da Cidade requer a devida compre-
enso de como seus principais contedos tm sido materializados pelas leis urba-
nsticas especialmente na esfera municipal e pelas polticas urbanas em todas
as esferas, quais sejam: as funes socioambientais da propriedade e da cidade; os
princpios de poltica urbana includente; os instrumentos, mecanismos, processos e
recursos de gesto urbana justa e eficiente; a incorporao da participao popular;
e a regularizao de assentamentos informais.
Em termos conceituais, o Estatuto da Cidade consolidou um novo paradigma
jurdico sobre a questo da propriedade imobiliria, concebida no mais apenas em
funo do reconhecimento dos direitos individuais, mas tambm e sobretudo em
funo do reconhecimento das responsabilidades e obrigaes sociais que resultam
da condio de ser proprietrio de um bem imvel, bem como dos direitos coletivos
e sociais sobre o solo urbano e seus recursos. A funo social que na nova ordem
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226 rev. ufmg, belo horizonte, v. 20, n.1, p.212-233, jan./jun. 2013
fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois
jurdico-urbanstica a condio mesma de reconhecimento do direito privado de
propriedade deve ser determinada por planos diretores e leis urbansticas e am-
bientais, especialmente na esfera municipal. Alm de consagrar a separao entre
direito de construir e direito de propriedade, promovendo uma plena ruptura com
a tradio de civilismo jurdico e mesmo com o avano do Direito Administrativo
nesse sentido, o Estatuto da Cidade consolidou a interpretao de que, muito mais
do que mera limitao administrativa da propriedade, a funo social acarreta o
poder de obrigar o proprietrio a certos comportamentos. Trata-se assim menos do
reconhecimento de um direito de propriedade, e mais de direito propriedade:
um direito sem contedo predeterminado e cujos valores sociais de uso coexistem
e em muitos casos superam o seu valor econmico de troca.
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fernandes, e. estatuto da cidade, mais de 10 anos depois
O Estatuto da Cidade bebeu assim na
fonte do Direito Pblico contemporneo,
expressando uma ordem pblica
maior do que a ordem estatal
tudo o que estatal pblico, mas
nem tudo o que pblico es-
tatal , e como tal reconheceu
um conjunto de direitos coletivos:
ao ordenamento territorial; preser-
vao ambiental; regularizao
fundiria dos assentamentos infor-
mais consolidados; participao
em processos descentralizados
e democratizados, bem como o
direito social de moradia. A possibili-
dade de defesa coletiva em juzo desses direitos
coletivos e interesses difusos em matrias de
ordem urbanstica mesmo contra o Estado foi reconhecida e aberta para indi-
vduos, grupos, ONGs e para o Ministrio Pblico. Ainda est para ser devidamente
enfrentada a discusso acerca do significado e das implicaes jurdicas da noo
das funes sociais da cidade, bem como sobre a necessidade de reconhecimento
da responsabilidade territorial do poder pblico para alm das j reconhecidas for-
mas de responsabilidade poltica, administrativa e fiscal da administrao pblica.
A ordem jurdica consolidada pelo Estatuto da Cidade requer uma mudana
significativa tambm quanto compreenso da natureza jurdica do planejamento
territorial: trata-se de obrigao do poder pblico, direito coletivo da sociedade, e
como tal no apenas uma poltica discricionria a falta de seu cumprimento
gera improbidade administrativa, sendo que Prefeitos j perderam seus mandatos
como consequncia. Alm de regular os processos de uso/ocupao/parcelamento
do solo urbano, cabe ao poder pblico induzir diretamente os movimentos do mer-
cado imobilirio, atuando assim sobre os terrenos vazios e propriedades abandona-
das e/ou subutilizadas. Alm de reconhecer e promover a valorizao da posse, cabe
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tambm ao planejamento territorial determinar as condies de cumprimento da
funo social da propriedade pblica.
Uma questo fundamental de poltica urbana, mas que sempre foi negligencia-
da na tradio do urbanismo brasileiro, foi finalmente enfrentada pelo Estatuto da
Cidade: quem paga, e como, a conta do financiamento do desenvolvimento urbano.
Afirmando o princpio da justa distribuio dos nus e benefcios da urbanizao,
o Estatuto da Cidade estipulou a outorga onerosa de direitos de construo e uso;
a existncia de diferentes categorias de indeniza-
o, com a desapropriao sendo exceo no regi-
me da funo social da propriedade; a captura
de mais-valias e a gesto social da valorizao
imobiliria; bem como a noo de que
mera expectativa de direito no direito,
sendo que no h direitos adquiridos
em matria urbanstica.
A natureza da gesto urbana tam-
bm foi profundamente alterada: em
especial, a participao popular foi
tida como critrio de validade jurdica, e no apenas de legitimidade de sociopol-
tica das leis e polticas pblicas. Planos Diretores Municipais inclusive o de So
Paulo j foram anulados por falta de participao adequada. A importncia de se
criar um projeto sociopoltico de cidade que se traduza em um pacto socioterritorial
fundamental para a materializao dessa nova ordem jurdico-urbanstica, sendo
que surgiu da a Campanha pelos Planos Diretores Participativos liderada pela Se-
cretaria de Programas Urbanos do Ministrio das Cidades.
Em suma, Direito e planejamento urbano foram colocados pela ordem jurdica
no lugar onde sempre estiveram, isto , no corao do processo sociopoltico, espe-
cialmente na esfera municipal processo esse cuja qualidade que vai determinar
o maior ou menor alcance da noo da funo social da propriedade e as condies
de gesto democrtica das cidades.
So certamente muitos os limites dessa nova ordem jurdico-urbanstica con-
solidada pelo Estatuto da Cidade, muitos so os gargalos que ainda requerem um
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tratamento jurdico e legislativo adequado, mesmo levando em conta toda a srie de
leis federais aprovadas desde 2001 natureza, dinmicas e custos dos procedimen-
tos judiciais; falta de funo social e custos do registro imobilirio; falta de apoio
dos PDMs em um sistema articulado de gesto urbana; municipalismo exagerado
e mesmo artificial; falta de uma dimenso regional/metropolitana; falta de compre-
enso das realidades especficas dos pequenos e mdios municpios, especialmente
no Norte e Nordeste etc.
Contudo, os avanos promovidos so inegveis.
Mas o que aconteceu de fato com a nova gerao de PDMs aprovados desde
ento?
Os estudos e anlises j existentes demonstram que houve certamente avanos
importantes na promoo pelos PDMs do discurso da reforma urbana, bem como
em setores especficos especialmente nas polticas de meio ambiente e patrim-
nio cultural. Outro avano de enorme importncia foi a criao por toda parte de
Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) cheias, isto , correspondendo aos as-
sentamentos informais existentes. O carter participativo de muitos desses PDMs
inegvel, ainda que a qualidade sociopoltica dos processos participativos tenha
variado significativamente, expressando assim a diversidade de situaes existentes
nos diferentes municpios brasileiros. Talvez o avano mais importante tenha sido a
produo recorde de informaes sobre as cidades brasileiras.
Contudo, ainda so muitos os problemas de eficcia jurdica que afetam os
PDMs. Muitos deles tm sido marcados por formalismo jurdico e burocracia ex-
cessivos, sendo que em muitos casos houve remessa de regulamentao dos PDMs
para outras leis municipais posteriores (no caso de um municpio importante, para
16 leis posteriores!). A modificao pontual dos PDMs por leis posteriores mas
que no tm envolvido participao popular tem com frequncia comprometido
seus objetivos originais. Linguagem jurdica excludente e tcnica legislativa impre-
cisa a maioria das leis urbansticas no sendo escrita por juristas somente tm
ampliado o espao das disputas jurdicas e sociopolticas.
Alm das questes jurdicas, so tambm muitos os problemas de eficcia social
que afetam a nova gerao de PDMs. Os novos planos so ainda essencialmen-
te planos urbansticos tradicionais, meramente tcnicos e regulatrios, e de modo
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geral no houve uma territorializao adequada e firme de suas boas propostas e
intenes. Poucos promoveram alguma interveno significativa na estrutura fun-
diria e nas dinmicas dos mercados imobilirios. Os novos instrumentos de gesto
urbana foram usados sem que existissem projetos de cidade claramente definidos
e acordados. So pouqussimos os casos de PDMs nos quais se props a captura das
mais-valias urbansticas, mas, quando h tal previso, no h uma poltica clara de
redistribuio socioespacial desses novos e generosos recursos financeiros decor-
rentes do planejamento territorial.
E mais... poucos PDMs propuseram opes de moradia social nas reas cen-
trais; a enorme maioria no reservou terras para produo habitacional de interesse
social (as ZEIS vazias); de modo geral no houve uma distino clara entre zona
urbana e zona de expanso urbana (especialmente no que toca obrigao de
implementao de infraestrutura pelos promotores imobilirios); no houve deter-
minao de funo social da propriedade pblica; e tampouco uma proposta so-
cioambiental articulada. Os grandes projetos que tm sido aprovados em muitos
municpios dos quais tantos despejos coletivos tm decorrido com frequncia
tm atropelado frontalmente os objetivos declarados dos PDMs. De modo geral,
falta integrao entre polticas fundirias, urbanas, habitacionais, ambientais, fis-
cais e oramentrias. A regularizao fundiria continua sendo vista como poltica
setorial isolada, e tm sido enormes as dificuldades tcnicas colocadas pelos PDMs
legalizao de assentamentos informais.
A gesto dos novos PDMs fundamentalmente burocrtica, sendo que a falta
de capacidade de ao na esfera municipal um problema generalizado mesmo
grandes municpios no tm tido condies apropriadas de fazer uso adequado do
enorme volume de recursos financeiros que o Governo Federal tem disponibiliza-
do. Muitos PDMs so meras cpias de modelos, com frequncia como resultado da
verdadeira indstria de consultores que se constituiu. A linguagem do urbanismo
tem sido to obsoleta e excludente quanto a linguagem jurdica.
Como mencionado, na esfera federal, os problemas da gesto institucional ainda
so muitos e falta integrao plena das polticas setoriais, dentro e fora do Ministrio
das Cidades, especialmente com a poltica ambiental. No h uma poltica nacional
urbana/metropolitana e um sistema de cidades claramente definidos. Falta uma pol-
tica nacional de ordenamento territorial (geral e da Amaznia Legal). Na sua enorme
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maioria, os Estados-membros no tm polticas urbanas. Sobretudo, em todos os n-
veis governamentais, falta entre os gestores pblicos uma compreenso de que cidade
essencialmente economia, requerendo polticas prprias, e no apenas polticas
sociais e/ou polticas de infraestrutura para o crescimento econmico.
Concluso
Parece ento que estamos diante de mais um cenrio de plus a change... plus cest la mme chose. A confirmao de processos de segregao socioespacial pelo Estado em todos os nveis governamentais mostra como os urbanistas e ges-
tores pblicos continuam cada vez mais refns de mercados imobilirios ex-
cludentes que eles mesmos criaram e fomentam, bem como de polticas pblicas
segregadoras que eles mesmos implementam.
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Romper com essa l-
gica perversa requer um
esforo fundamental de
enfrentar as disputas ju-
rdicas e polticas renovadas
acerca do solo urbano e das
cidades, e em especial
juristas e urbanistas
tm que repensar sua
atuao histrica nesse
processo. Uma ampla
compreenso acerca da natureza e das possibili-
dades da nova ordem jurdico-urbanstica requer de imediato um trabalho intensivo
de informao e sensibilizao dos operadores do Direito, juzes, promotores e re-
gistradores, bem como dos planejadores e gestores urbanos. Tambm importante
reconhecer que tem havido pouca demanda dos direitos coletivos e sociais pelos
beneficirios da nova ordem jurdica.
O Direito brasileiro mudou significativamente. Mas ser que os juristas enten-
deram? Ser que o urbanismo brasileiro mudou? Ser que os gestores pblicos as-
similaram as novas regras? Ser que a sociedade brasileira acordou para as novas
realidades jurdicas? Jogar o jogo de acordo com as novas regras imperativo para
que se possa avanar na promoo da reforma urbana de modo a construir coletiva-
mente cidades sustentveis para presentes e futuras geraes.
Proponho, ento, um otimismo muito cauteloso... O futuro do Estatuto da Ci-
dade requer sobretudo um ampla renovao da mobilizao sociopoltica em torno
das questes fundirias, urbanas, habitacionais e ambientais. Trata-se de tarefa de
todos defender o Estatuto da Cidade das muitas propostas essencialmente negati-
vas de mudanas que se encontram no Congresso Nacional; superar os obstculos
e aprimorar ordem jurdica; mas acima de tudo lutar pela implementao plena do
Estatuto da Cidade.
Se leis ruins podem dificultar e muito o reconhecimento de direitos coleti-
vos e sociais, bem como a formulao e a implementao plena de polticas pblicas
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progressistas, boas leis por si ss no mudam as realidades urbanas e sociais, por
mais que expressem princpios de incluso socioespacial e justia socioambiental,
ou mesmo, como no raro caso do Estatuto da Cidade, quando fazem com que os
novos princpios e direitos coletivos e sociais reconhecidos sejam acompanhados
por uma gama de processos, mecanismos, instrumentos e recursos necessrios
sua efetiva materializao. Se foram necessrias dcadas de disputas sociopolticas
para que a reforma da ordem jurdico-urbanstica tenha se dado, uma outra etapa
histrica se abriu com a aprovao do Estatuto da Cidade, qual seja, a das disputas
sociopolticas em todas as esferas governamentais, dentro e fora do aparato estatal,
pelo pleno cumprimento dessa lei.
A verdade que o Brasil, e os brasileiros, ainda no fizeram por merecer o Es-
tatuto da Cidade.
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