Este Nosso Mundo Dos Fracos - Friedrich Nietzsche

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    CAPTULO 1 - ESTE NOSSO MUNDO DOS FRACOS

    (Do livro: Nietzsche: a vida como valor maior, Alfredo Naffah Neto, FTD, So Paulo, 1996)

    Um pensamento distorcido

    Apenas os medocres tm perspectivas de prosseguir, procriar - eles so os homensdo futuro, os nico sobreviventes: "sejam como eles! Tornem-se medocres!", diz a nicamoral que agora tem sentido, que ainda encontra ouvidos.

    Friedrich Nietzsche, Alm do bem e do mal, 262

    No dia 15 de outubro de 1844, na cidade de Rocken (antiga Prssia, atualAlemanha), nascia aquele que se tornaria um dos pensadores mais importantes dacontemporaneidade: Friedrich Wilhelm Nietzsche.

    Desprezado e incompreendido em sua poca, seu pensamento acabaria por ser

    distorcido, utilizado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial como justificativa para "apurificao de uma suposta "raa ariana". A que levou essa ideologia racista o mundo todosoube atravs do massacre de milhes de judeus, comunistas, homossexuais, deficientesfsicos e mentais, considerados pelos nazistas como a escria da humanidade.Infelizmente, Nietzsche permaneceu confundido com o pensamento nazista at h poucotempo. S muito recentemente - e por iniciativa de alguns pensadores franceses, comoMichel Foucault, Gilles Deleuze e Pierre Klossowski, entre outros - iniciou-se um processode releitura dos textos nietzschianos. Descobriu-se, ento, que Nietzsche havia sido umdos mais contundentes crticos do anti-semitismo apregoado pelos nazistas. Em1885/1886, no aforismo 251 deAlm do bem e do mal, ele escrevera:

    Os judeus so, sem qualquer dvida, a raa mais forte, mais tenaz e rnais pura queatualmente vive na Europa; eles sabem se impor mesmo nas Piores condies (at mais

    que nas favorveis), merc de virtudes que hoje se prefere rotular de vcios. [...] O queeles desejam e anseiam, COM insistncia quase importuna, serem absorvidos eassimilados na Europa, pela Europa; querem finalmente se tornar estabelecidos, admitidos,respeitados em algum lugar, pondo um fim sua vida nmade, ao "judeu errante"; essempeto e pendor (que talvez j indique um abrandamento dos instintos judaicos) deveriaser considerado e bem acolhido: para isso talvez fosse til e razovel expulsar do pas osagitadores anti-semitas.

    A origem do mal-entendido deveu-se a dois fatos distintos. O primeiro deles que anica irm de Nietzsche, Elizabeth - ela sim, claramente anti-semita -, deturpou vrios dosseus textos, chegando mesmo a forjar

    O segundo motivo do mal-entendido deveu-se a incompreenses do prpriopensamento de Nietzsche, notadamente de suas crticas aos rumos que havia tomado omundo ocidental. Autor de uma obra assistemtica por natureza, ou, mais do que isso,

    avessa idia de sistema, escrevia por meio de aforismos, o que d margem a diferentesleituras, articulaes, ngulos de viso.

    Isso contribui para que cada qual a utilize do jeito que bem entender. Alm disso,as noes controvertidas de nobre e de escravo ajudariam a "colocar mais lenha nafogueira". Embora seja muito difcil sintetizar seu pensamento, convm, pelo menos,tentar esclarecer os mal-entendidos que cercam essas noes bsicas.

    Nietzsche via na cultura judaico-crist, dominante no mundo ocidental, umapreponderncia de valores fracos, escravos, em oposio aos valores fortes, nobres, suehaviam vigorado em pocas passadas, notadamente na Grcia arcaica, na cultura trgica.Mas, para ele, nobre e escravo compunham dois tipos bastante caractersticos, bemdiferentes dos que comumente se entendem por esses termos.

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    O tipo nobre define umaforma de existir capaz de dizer "sim" vida integralmente,em todos os seus aspectos, afirmando-a, criando valores e participando ativamente daproduo de sentido do mundo. Isso caracteriza uma maneira de viver expandida, potente,onde estar-a significa acolher e amar a existncia, com tudo o que ela traz de prazer,alegria, mas tambm de dor, sofrimento, pois nessa perspectiva as imperfeies da vida -geradoras de infelicidade - so a prpria condio de o homem crescer, Potencializar-se,tornar-se capaz de se vergar sem se despedaar. Por isso, esse tipo de vida implica

    fundamentalmente uma capacidade de esquecer: metabolizar as injrias, ofensas,transformando-as em proveito desse existir exuberante, que soe quer pleno de riscos, deaventura, sabendo-se habitar em um mundo que no feito de permanncia, mas demovimentos perenes de transformao. E, pois, uma vida que se desdobra em morte erenascimento contnuos, em movimentos de destruio e de construo, como parte domesmo devir criador.

    A vida denegrida

    Dominncia de valores escravos queria dizer a propagao de uma forma de ser,ocupada apenas com a sobrevivncia, sem qualquer ambio de dar forma ao mundo. Porestar atravessado por uma impotncia paralisante, aprisionado por um passado no-digerido, no-metabolizado, o tipo escravo vive perdido no tempo, incapaz de viver no

    presente e de criar qualquer coisa que seja. Cultua uma memria prodigiosa que- no lhepermite superar as amarguras, as humilhaes, os ultrajes vividos, vivendo amarrado aessas experincias. , pois, incapaz de acolher e aceitar as imperfeies da vida. Estpermanentemente buscando culpados por seus infortnios, puro ressentimento e desejode vingana. Assim, incapaz de caminhar por seus prprios ps. Vive deriva, esperade uma redeno vinda de fora, de um Outro, concebido como Poderoso, Absoluto ePerfeito, seja ele Deus, uma Sociedade Irrepreensvel ou uma Outra Vida, de prefernciaEterna, Pois o escravo no tolera a fatalidade da morte.

    Resumindo, trata-se de uma forma de vida alienada de sua potncia criadora eculpada de existir. Essa alienao-tornada-impotncia que, ao se perpetuar comomemria, envenena o mundo real para depois rejeit-lo; esse veneno que cresce e que senutre com a iluso de recompensas em mundos imaginrios, Nietzsche os via corno uma

    criao da sociedade de massas e de seus valores morais corporificados especialmente nosvalores cristos (tais quais expressos pelas mximas de So Paulo).Se o cristianismo no inventou os valores escravos, sem dvida trouxe-lhes novo

    sangue, novas justificativas, universalizando-os e refundando-os na idia de Eternidade;com isso, eles cresceram, alastraram-se, tornando-se os valores dominantes no mundoocidental. E por essa razo que Nietzsche foi um dos mais contundentes crticos docristianismo, embora se preocupasse, em seus ltimos escritos, em discriminar ocristianismo como doutrina instituda, da figura de Jesus , por quem at sentia algumasimpatia pois o considerava um homem adiante de sua poca, tendo sido capaz de ensinaraos homens como morrer com serenidade.

    A utilizao de Nietzsche pelos nazistas imprimiu aos termos escravo e nobre, fracoe forte conotaes de cunho racial e poltico que eles jamais tiveram. Ao se identificar afora nobre com os valores arianos e com os poderes nazistas institudos, invertia-se

    totalmente o sentido que Nietzsche lhes dera, j que, em vez do amor incondicional vidaque definia o nobre nietzschiano, o "nobre" nazista fazia a apologia do dio, doressentimento, da busca de bodes expiatrios para os infortnios da humanidade,massacrando judeus, comunistas, homossexuais, deficientes fsicos e mentais.

    Mas na poca, e durante muito tempo, essa deturpao no se fez visvel. Isso veiolanar uma maldio sobre o filsofo, somente revista a partir dos anos 60, quando sevoltou a ler sua obra. Ainda assim, essas questes esto longe de qualquer consenso nomoldo da filosofia.

    Nietzsche continua at hoje louvado por uns, execrado por outros. Uma coisa,entretanto, ningum pode negar: desde que seu nome voltou baila, no cessam deproliferar admirao e espanto diante de um pensamento cuja fora demolidora s encontra

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    equivalentes, desde a Segunda metade do sculo XIX, na obra de um Marx e de um Freud.Uma filosofia a marteladas, como ele costuma dizer. Na mira: os valores ocidentaisdominantes, que ele descreveu como valores escravos.

    TEXTOS SELECIONADOS

    1. A aurora de uma contraculturaAqui, o filsofo francs Gilles Deleuze, um dos mais importantes comentadores da

    obra nietzschiana, traa adiferena de sentido, para o mundo contemporneo, das obrasde Marx, Freud e Nietzsche.

    Se perguntarmos o que ou o que vem a ser Nietzsche hoje em dia, sabemos muitobem a quem preciso se dirigir. preciso se dirigir aos jovens, que esto lendo Nietzsche,que esto descobrindo Nietzsche. Quanto a ns, j somos muito velhos na maioria aqui.

    O que que um jovem descobre atualmente em Nietzsche, que certamente no aquilo que minha gerao descobriu nele, que certamente no era aquilo que as geraesprecedentes tinham descoberto? Como que acontece quejovens msicos de hoje sintam-se ligados a Nietzsche naquilo que fazem, embora no faam absolutamente uma msica

    nietzschiana no sentido em que Nietzsche a fazia? Como que ocorre que jovens pintores,jovens cineastas sintam-se ligados a Nietzsche? O que acontece, ou seja, como que elesrecebem Nietzsche?

    A rigor, tudo o que se pode explicar, olhando de fora, de que maneira Nietzscheexigiu para si mesmo e para seus leitores, contemporneos e futuros, um certo direito aocontra-senso. No um direito qualquer, alis, porque ele tem suas regras secretas, masum certo direito ao contra-senso a respeito do qual eu gostaria de me explicar logo mais, eque faz com que no se trate de comentar Nietzsche como se comenta Descartes, Hegel.

    Eu digo a mim mesmo: quem hoje em dia o jovem nietzschiano? Ser aquele queprepara um trabalho sobre Nietzsche? possvel. Ou bem ser aquele que, voluntria ouinvoluntariamente, pouco importa, produz enunciados particularmente nietzschianos nodecorrer de uma ao, de uma paixo, de uma experincia? Isso tambm acontece.

    Pelo que conheo, um dos textos recentes mais belos, mais profundamentenietzschianos, o texto em que Richard Deshayes escreve: "Viver no sobreviver",exatamente antes de receber uma granada durante uma manifestao. Talvez os doiscasos no se excluam. Talvez se possa escrever sobre Nietzsche e depois produzir, nodecorrer da experincia, enunciados nietzschianos.

    Sentimos todos os perigos que nos espreitam nesta questo: o que Nietzschehoje? Perigo demaggico ("os jovens conosco..."). Perigo paternalista (conselhos a um jovem leitor de Nietzsche ... ). E em seguida, sobretudo, perigo de uma snteseabominvel. Toma-se como aurora da nossa cultura moderna a trindade Nietzsche, Freud,Marx. Pouco importa que todo mundo esteja aqui desarmado de antemo. Marx e Freudtalvez sejam a aurora de nossa cultura, mas Nietzsche claramente outra coisa, ele aaurora de uma contracultura. evidente que a sociedade moderna no funciona a partir decdigos. uma sociedade que funciona sobre outras bases.

    Ora, se considerarmos Marx e Freud, no literalmente, mas o devir do marxismo oudevir do freudismo, v-se que eles se lanaram paradoxalmente numa espcie de tentativade recodificao: recodificao pelo Estado, no caso do marxismo ("vocs esto doentespelo Estado, e sero curados pelo Estado", no ser o mesmo Estado) - recodificao pelafamlia (estar doente pela famlia, curar-se pela famlia, no a mesma famlia). E isso querealmente constitui, no horizonte de nossa cultura, o marxismo e a psicanlise, como asduas burocracias fundamentais, uma pblica, outra privada, cujo objetivo operar bem oumal uma recodificao daquilo que no cessa de se codificar no horizonte.

    O caso de Nietzsche, ao contrrio, no absolutamente esse. Seu problema estem outro lugar. Atravs de todos os cdigos, do passado, do presente, do futuro, trata-separa ele de fazer passar algo que no se deixa e no se deixar codificar. Faz-lo passar

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    num novo corpo, inventar um corpo em que isso possa passar e fluir: um corpo que seria onosso, o da terra, o do escrito...

    (DELEUZE, Gilles. "Pensamento nmade.",. In, Marton, Scarlett (org). Nietzschehoje? So Paulo, Brasiliense, 1985, p. 56-7)

    2. Nietzsche, o antiprofeta

    O filsofo Eugene Fink, outro dos im portantes intrpretes do pensamentonietzschiano, fala das nuances, sutilezas e artifcios que caracterizam o estilo literrio efilosfico deste antiprofeta, na sua misso demolira dos valores contemporneos.

    Com suas contradies, suas mscaras e suas mudanas, quase no h pensadorque d lugar a mltiplas interpretaes como Nietzsche. L-se em seus "Pstumos": "Souo mais dissimulado entre todos os dissimulados" e "Tudo o que profundo ama a mscara".Toda exegese da obra de Nietzsche empresa arriscada e, no melhor dos casos,perspectiva. Estilizaram o pensador como heri de lenda, celebraram suas "conquistaspsicolgicas", e, graas sua prpria psicologia desmascaradora, descobriram-no como umhomem que sofre profundamente e sonha com a riqueza de uma vida forte e s;denunciaram-no como precursor o fascismo, como anunciador do niilismo ascendente, etc.

    Vrios filosofemas tentaram abusivamente invoc-lo e lhe impuseram desvios desentido. Empresa facilitada por sua maneira de ser, suas vises a mergulharem no coraomesmo do vivido, a colorao apaixonada e o brilho indito de suas formulaesexpressivas, sua habilidade em acionar todos os registros de uma grande arte dalinguagem, capaz no seu conjunto de persuadir e convencer.

    Essa multiplicidade de faces provm de sua desconfiana frente ao rigor do conceito, sua exatido e fora petrificante, de sua recusa em sacrificar universalidade do Logos oconcreto com seus meios-tons e suas nuances intermedirias e, sobretudo, do invocarimagens sugestivas, figuras de visionrio e falar por metforas inslitas. Some-se a issoum estilo fragmentrio, aforstico, imperioso, sedutor e provocante.

    Mas para compreender seu pensamento melhor partir de sua pessoa, de suahumanidade emprica, ou antes, de preferncia, considerar suas enunciaes sobre a

    essncia do homem? A fascinao que exerceu sua obra literria, principalmente nocomeo do sculo; o encanto com que ela entreteve espritos de grande classe intelectual euma juventude capaz de entusiasmo tudo isso pertence ao passado. O duplo combate deNietzsche, contra a tradio ocidental e as "idias modcrna.5" perturbou, sem dvida, oesprito do tempo; ele no o transformou em profundidade.

    A realidade efetiva da tecnocracia, a racionalidade planificadora estendida a todo oplaneta, a influncia crescente, nos dois hemisfrios, do igualitarismo provindo daRevoluo Francesa - tudo isso os fatos confirmam, contra o sonho nietzschiano do alm-do-homem senhor da Terra. Hoje o pathos dessa linguagem para ns s vezesintolervel, mesmo sendo necessrio admitir que Nietzsche enriqueceu maravilhosamente opotencial expressivo da lngua alem, que a tornou mais sensvel s ressonncias afetivasdo sublime, s nuances do pensamento e do sentimento, que tornou seu ritmo mais leve.

    com uma mistura de admirao e mal-estar que, presos ao aparelho de uma

    civilizao racionalmente tecnicizada, lemos hoje, impassveis, as obras de um escritor que,para descrever a situao e os problemas do homem, recorre quase sempre aos conceitosromnticos de natureza e paralelamente pratica o modo de pensar desmistificador dafilosofia das Luzes, ousa falar no estilo potico dos mais altos mistrios, no teme opomposo hieratismo e se faz de imitador da Bblia para volt-la contra o cristianismo.

    A conscincia plena de estilo de uma misso a cumprir, o prazer em aturdir esubjugar, o amor pela mise-en-scne, a est o que desconcerta e incomoda em Nietzsche.Ele domina com virtuose os artifcios da sugesto, sabe destacar com vigor posies esituaes fundamentais diante do mundo e das coisas, delinear um retrato do homem econferir-lhe o esplendor de um dolo.

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    (FINK, Eugene. "Nova experincia do mundo em Nietzsche." In: Marton,Scarlett (org. ) Nietzsche hoje? So Paulo, Brasiliense, 1985, p. 168-9)

    3. Moral nobre e moral escrava

    Aqui, Nietzsche traa, com seu estilo direto e irreverente, as caractersticas quedemarcam os dois tipos de vida, representados pelas duas morais: a nobre (ou dos

    senhores) e a escrava.

    Numa perambulao pelas muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras, queat agora dominaram e continuam dominando na terra, encontrei certos traos queregularmente retornam juntos e ligados entre si: at que finalmente se revelaram doistipos bsicos, e uma diferena fundamental sobressaiu. H uma moral dos senhores e umamoral de escravos; acrescento de imediato que em todas as culturas superiores e maismisturadas aparecem tambm tentativas de mediao entre as duas morais, e, com aindamaior freqncia, confuso das mesmas e incompreenso mtua, por vezes inclusive duracoexistncia at mesmo num homem, no interior de uma s alma.

    As diferenciaes morais de valor se originaram ou dentro de uma espciedominante, que se tornou agradavelmente cnscia da sua diferena em relao dominada, ou entre os dominados, os escravos e dependentes de qualquer grau. No

    primeiro caso, quando os dominantes determinam o conceito de "bom", sao os estados dealma elevados e orgulhosos que so considerados distintivos e determinantes dahierarquia. O homem nobre afasta de si os seres nos quais se exprime o contrrio dessesestados de elevao e orgulho: ele os despreza. Note-se que, nessa primeira espcie demoral, a oposio "bom" e "ruim" significa tanto quanto "nobre" e "desprezvel"; a oposio"bom" e "mau" tem outra origem.

    Despreza-se o covarde, o medroso, o mesquinho, o que pensa na estreita utilidade;assim como o desconfiado, com seu olhar obstrudo, o que rebaixa a si mesmo, a espciecanina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e, sobretudo, omentiroso - crena bsica de todos os aristocratas que so, o mesquinho, o que pensa naestreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar obstrudo, o que rebaixa a simesmo, a espcie canina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e,

    sobretudo, o mentiroso - crena bsica de todos os aristocratas que o povo comum mentiroso. "Ns, verdadeiros"- assim se denominavam os nobres da Grcia antiga. bvio que as designaes morais de valor, em toda parte, foram aplicadas

    primeiro a homens, e somente depois, de forma derivada, a aes: por isso um grandeequvoco, quando historiadores da moral partem de questes como "por que foi louvada aao compassiva?". O homem de espcie nobre se sente como aquele que determinavalores, ele no tem necessidade de ser abonado, ele julga: "o que me prejudicial prejudicial em si", sabe-se como o nico que empresta honra s coisas, que cria valores.Tudo o que conhece de si, ele honra: uma semelhante moral glorificao de si.

    Em primeiro plano est a sensao de plenitude, de poder que quer elevada, aconscincia de uma riqueza que gostaria de ceder e presentear - tambm o homem nobreajuda o infeliz, mas no ou quase no por compaixo, antes por um mpeto gerado pelaabundncia de poder.

    O homem nobre honra em sio poderoso, e o que tem poder sobre si mesmo, queentende de falar e calar, que com prazer exerce rigor e dureza consigo e venera tudo queseja rigoroso e duro.

    "Um corao duro me colocou Wotan no peito", diz uma velha saga escandinava:uma justa expresso potica da alma de um orgulhoso viking. Uma tal espcie de homemse orgulha justamente de no serfeito para a compaixo: da o heri da saga acrescentar,em tom de aviso, que "quem quando jovem no tem o corao duro, jamais o ter". Osnobres e bravos que assim pensam esto longe da moral que v o sinal distintivo do que moral na compaixo, na ao altrusta ou no desintressement [desinteresse]; a f em simesmo, o orgulho de si mesmo, uma radical hostilidade e ironia face "abnegao"

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    pertencem to claramente moral nobre quanto um leve desprezo e cuidado ante assimpatias e o "corao quente".

    So os poderosos que entendem de venerar, esta sua arte, o reino de suainveno. A profunda reverncia pela idade e pela origem - todo o direito se baseia nessadupla reverncia -, a f e o preconceito em favor dos ancestrais e contra os vindouros soalgo tpico da moral dos poderosos; e quando, inversamente, os homens das "idiasmodernas" crem quase instintivamente no progresso" e no "porvir", e cada vez mais

    carecem do respeito pela idade, ia se acusa em tudo isso a origem no-nobre dessas"idias"O que faz uma moral dos dominantes parecer mais estranha e penosa para o gosto

    atual, no entanto, o rigor do seu princpio bsico de que apenas frente aos iguais existemdeveres; de que frente aos seres de categoria inferior, a tudo estranho-alheio, pode-se agirao bel-prazer ou como quiser o corao", e em todo caso "alm do bem e do mal": aquipode entrar a compaixo, e coisas do gnero. A capacidade e o dever da longa gratido eda longa vingana - as duas somente com os iguais -, a finura na retribuio, orefinamento no conceito de amizade, de uma certa necessidade de ter inimigos (comocanais de escoamento, por assim dizer, para os afetos de inveja, agressividade, petulncia- no fundo, para poder ser bem amigo): todas essas so caractersticas da moral nobre,que, como foi indicado, no a moral das "idias modernas", sendo hoje difcil perceb-la,portanto, e tambm desenterr-la e descobri-la.

    diferente com o segundo tipo de moral, a moral dos escravos. Supondo que osviolentados, oprimidos, prisioneiros, sofredores, inseguros e cansados de si moralizem: oque tero em comum suas valoraes morais? Provavelmente uma suspeita pessimistaface a toda a situao do homem achar expresso, talvez uma condenao do homem eda sua situao. O olhar do escravo no favorvel s virtudes do poderoso: ctico edesconfiado, tem finura na desconfiana frente a tudo "bom" que honrado por elegostaria de convencer-se de que nele a prpria felicidade no genuna.

    Inversamente, as propriedades que servem para aliviar a existncia dos que sofremso postas em relevo e inundadas de luz: a compaixo, a mo solcita e afvel, o coraoclido, a pacincia, a diligncia, a humildade, a amabilidade recebem todas as honras - poisso as propriedades mais teis no caso, e praticamente todos os nicos meios de suportara presso da existncia.

    A moral dos escravos essencialmente uma moral de utilidade. Aqui est o foco deorigem da famosa oposio "bom" e "mau"- no que mau se sente poder e periculosidade,uma certa terribilidade, sutileza e fora que no permite o desprezo. Logo segundo a moraldos escravos o "mau" inspira medo; segundo a moral dos senhores e precisamente o "bom"que desperta e quer despertar medo, enquanto o homem "ruim" sentido comodesprezvel. A opresso chega ao auge quando, de modo conseqente moral dosescravos, um leve aro de menosprezo envolve tambm o "bom" dessa moral - ele pode serligeiro e benvolo porque em todo caso o bom tem de ser, no modo de pensar escravo, umhomem inofensivo: de boa ndole, fcil de enganar, talvez um pouco estpido, ou seja,un bonhomme [um bom homem]. Onde quer que a moral dos escravos se tornepreponderante, a linguagem tende a aproximar as palavras "bom" e "estpido".

    Uma ltima diferena bsica: o ser, no modo de pensar escravo, um homeminofensivo: de boa ndole, fcil de enganar, talvez um pouco estpido, ou seja, unbonhomme [um bom homem]. Onde quer que a moral dos escravos se tornepreponderante, a linguagem tende a aproximar as palavras "bom" e "estpido".

    Uma ltima diferena bsica: o anseio de liberdade, o instinto para a felicidade e assutilezas do sentimento de liberdade pertencem to necessariamente moral e moralidadeescrava quanto a arte e entusiasmo da venerao, da dedicao, sintoma regular do modoaristocrtico de pensamento e valorao.

    Com isso, pode-se compreender por que o amor-paixo - nossa especialidadeeuropia - deve absolutamente ter uma procedncia nobre: notrio que ele foi inven odos cavaleiros-poetas provenais, aqueles magnficos, inventivas homens do gai saber[gaia cincia], aos quais a Europa tanto deve, se no deve ela mesma.

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    (NIETZSCHE, Friedrich. Alm do bem e do mal, 260. Trad. Paulo Csar deSouza. So Paulo, Companhia das Letras, 1992, p, 172-5)

    ATIVIDADES

    1. Procure, em um bom dicionrio, o significado dos verbetes nobre e escravo e

    compare os seus sentidos correntes com os que Nietzsche lhes deu.2. Assista a um captulo de uma novela de televiso e identifique, nas falas daspersonagens, valores escravos e valores nobres.

    VAMOS REFLETIR

    1. Pelo que entendeu do texto, voc acha que os valores escravos e os valoresnobres tm a ver com o poder aquisitivo das pessoas, com as classes sociais, ouindependem disso? Explique.

    2. Descreva as ressonncias que estas afirmaes de Nietzsche encontram emvoc, sem sua vida: "quem chegou, ainda que apenas em certa medida, liberdade darazo, s pode sentir-se sobre a terra como um andarilho. [...] Bem que ele quer ver e ter

    os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo; por isso no podeprender o seu corao com demasiada firmeza em nada de singular; tem de haver neleprprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudana e na transitoriedade"(Humano, demasiado humano 638)

    3. Comente a afirmao de Gilles Deleuze presente nos textos selecionados:"toma-se como aurora de nossa cultura a trindade Nietzsche, Freud, Marx".

    4. Nos eu modo de ver, difcil viver segundo os valores nobres apresentadospor Nietzsche?

    5. Comente o texto de Nietzsche usado como epgrafe no incio deste captulo.

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