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ISSN: 19837429 n.11 março de 2013 - Linguagens www.revistaliteris.com.br ISSN: 19837429 Março de 2013 N.11 447 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: UMA PROPOSTA DE LEITURA DA CONDIÇÃO FEMININA NA SOCIEDADE ATUAL Adriele Gehring 1 (UEM) Maiara Cristina Segato 2 ( UEM) Wilma dos Santos Coqueiro 3 ( UFPR/UEM) RESUMO: Este artigo propõe um trabalho para as aulas de Língua Portuguesa e Literatura, no ensino médio, sob a perspectiva da Estética da recepção. Progressivamente, partimos de propagandas publicitárias, em seguida, músicas populares e, por fim, chegamos ao conto “I love my husband” de Nélida Piñon. O objetivo principal consiste em levar os alunos a refletirem criticamente sobre a representação da mulher na sociedade, por meio de papéis estereotipados, ampliando seus horizontes de expectativas em relação à temática, conforme propõe o método recepcional. Desse modo, este trabalho respalda-se nos postulados da Estética da recepção (JAUSS, 1994; BORDINI, AGUIAR, 1993) e nos estudos da Teoria Crítica feminista (BADINTER, 1986; ZOLIN, 2009; XAVIER, 1998, 1999). PALAVRAS-CHAVE: Estética da Recepção; Ensino de literatura; Crítica feminista; Representação Cultural Feminina; Conto. ABSTRACT: This article proposes a work for the classes of Portuguese and Literature in the high school, under the perspective of Aesthetics of reception. In a progressive way, the work started with advertisement genre, then, popular songs and at last, the tale I l ove my husband” by Nélida Pinõn. The main objective consists of leading the students to meditate critically about the representation of women in the society, through stereotyped roles magnifying their horizons of expectations regarding to the thematic, according to the proposal of the method of reception. This way, this work backboards the postulate of the Aesthetics of reception (JAUSS, 1994; BORDINI, AGUIAR, 1993) 1 Mestranda em Estudos Literários (Universidade Estadual de Maringá (UEM) PR, Brasil). Integrante do Grupo de Pesquisa Diálogos Literários. E-mail: [email protected] . Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8676094425864708 2 Mestranda em Estudos Literários (Universidade Estadual de Maringá (UEM) PR, Brasil). Integrante do Grupo de Pesquisa Diálogos Literários. E-mail: [email protected] . Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5617085151078381 3 Docente do Departamento de Letras (Universidade Estadual do Paraná Campus de Campo Mourão (UNESPAR/FECILCAM) PR, Brasil). Doutoranda em Estudos Literários (Universidade Estadual de Maringá (UEM) PR, Brasil). Membro dos Grupos de Pesquisa em Diálogos Literários, GELBC e LAFEB. E-mail: [email protected] . Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0153461918591041

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ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: UMA PROPOSTA DE LEITURA DA CONDIÇÃO

FEMININA NA SOCIEDADE ATUAL

Adriele Gehring1 (UEM)

Maiara Cristina Segato2 ( UEM)

Wilma dos Santos Coqueiro3 ( UFPR/UEM)

RESUMO: Este artigo propõe um trabalho para as aulas de Língua Portuguesa e

Literatura, no ensino médio, sob a perspectiva da Estética da recepção.

Progressivamente, partimos de propagandas publicitárias, em seguida, músicas

populares e, por fim, chegamos ao conto “I love my husband” de Nélida Piñon. O

objetivo principal consiste em levar os alunos a refletirem criticamente sobre a

representação da mulher na sociedade, por meio de papéis estereotipados, ampliando

seus horizontes de expectativas em relação à temática, conforme propõe o método

recepcional. Desse modo, este trabalho respalda-se nos postulados da Estética da

recepção (JAUSS, 1994; BORDINI, AGUIAR, 1993) e nos estudos da Teoria Crítica

feminista (BADINTER, 1986; ZOLIN, 2009; XAVIER, 1998, 1999).

PALAVRAS-CHAVE: Estética da Recepção; Ensino de literatura; Crítica feminista;

Representação Cultural Feminina; Conto.

ABSTRACT: This article proposes a work for the classes of Portuguese and Literature

in the high school, under the perspective of Aesthetics of reception. In a progressive

way, the work started with advertisement genre, then, popular songs and at last, the tale

“I love my husband” by Nélida Pinõn. The main objective consists of leading the

students to meditate critically about the representation of women in the society, through

stereotyped roles magnifying their horizons of expectations regarding to the thematic,

according to the proposal of the method of reception. This way, this work backboards

the postulate of the Aesthetics of reception (JAUSS, 1994; BORDINI, AGUIAR, 1993)

1 Mestranda em Estudos Literários (Universidade Estadual de Maringá (UEM) – PR, Brasil). Integrante

do Grupo de Pesquisa Diálogos Literários. E-mail: [email protected]. Currículo Lattes:

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2 Mestranda em Estudos Literários (Universidade Estadual de Maringá (UEM) – PR, Brasil). Integrante

do Grupo de Pesquisa Diálogos Literários. E-mail: [email protected]. Currículo Lattes:

http://lattes.cnpq.br/5617085151078381 3 Docente do Departamento de Letras (Universidade Estadual do Paraná – Campus de Campo Mourão

(UNESPAR/FECILCAM) – PR, Brasil). Doutoranda em Estudos Literários (Universidade Estadual de

Maringá (UEM) – PR, Brasil). Membro dos Grupos de Pesquisa em Diálogos Literários, GELBC e

LAFEB. E-mail: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0153461918591041

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and on the studies of the Feminist Critical Theory (BADINTER, 1986, ZOLIN, 2009;

XAVIER, 1998, 1999).

KEYWORDS: Aesthetic of Reception; Teaching of Literature; Feminist Criticism;

Feminine Cultural Representation; Tale.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A escola se reformula a cada dia, funcionando como um elemento de iniciação à

sociedade, pregando valores ideológicos e inserindo novos cidadãos. Dessa forma, a

expansão cultural que vivemos assinala o início de novas oportunidades de acesso ao

saber, sendo que a maior de todas elas é o direito de todos de frequentar a escola e

usufruir dela tudo o que lhe for necessário. Uma das melhores e principais

consequências da escola na vida de uma pessoa é o domínio da habilidade de ler, fato

que percebemos essencial para a democratização do saber. A partir disso, podemos

utilizar o caráter humanizador da literatura, que é segundo Candido (1989), a principal

função da literatura.

Justamente por desencadear esse processo de democratização do saber e maior

contato com nossos bens culturais, a escola não pode negligenciar de seu papel de

transformação social, partindo daquilo que seu aluno traz em sua bagagem e ampliando

seus horizontes e expectativas. Nesse sentido, um trabalho bem elaborado de recepção

de leitura pode auxiliar alunos e professores na busca pelo saber, pois, conforme

Bragatto Filho (1999, p.14), “o texto literário não constitui, a priori, um texto utilitário.

São os seus leitores que, a partir do diálogo com o mesmo, lhe atribuem diferentes

funções ou finalidade”, sendo este o objetivo fundamental do trabalho com a leitura:

permitir que os alunos sejam capazes de utilizar suas leituras em diferentes níveis e

situações.

Nessa perspectiva, o trabalho com a Estética da Recepção se mostra eficiente, se

levarmos em consideração o fato de que esse método busca não só a apresentação de

grandes textos literários, mas que parte do conhecimento prévio do aluno, utilizando-se

de todas as suas leituras de mundo até chegar, então, ao novo, que deveria ser

desconhecido, mas que após esse processo, torna-se mais fácil e agradável.

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Por força da ordem patriarcal, que tem caracterizado a nossa sociedade ao longo

dos séculos, ainda são comuns as piadas, músicas, comerciais, filmes, novelas, etc., que

disseminam representações degradantes e constrangedoras sobre mulheres, reforçando a

rotulação feminina. Podemos notar a imagem da mulher como “objeto”, como dona de

casa submissa, sem identidade própria, que vive para o marido e para o lar, como

símbolo sexual, como no caso de propagandas de cervejas nas quais, com raras

exceções, a estrutura dos comerciais não muda: a mulher quase desnuda, a cerveja

gelada e o homem ávido de sede. A mulher não é “como se fosse a cerveja”: ela é a

própria cerveja. Está ali para ser consumida silenciosamente, passivamente, sem esboçar

reação, pelo homem. A mulher é vista ainda como promíscua e, ao mesmo, tempo

independente e liberada, retratada nas músicas de forma depreciativa, representando

mulheres que cedem prontamente aos convites sexuais masculinos.

Portanto, a escolha temática da representação social feminina, como objeto de

reflexão nas aulas de Língua Portuguesa e Literatura, no Ensino Médio, nos gêneros

propaganda, música e conto, deve-se ao fato de que estão explícitas as representações

dos estereótipos femininos em tais gêneros.

A seguir, discutiremos tanto a orientação teórica, a qual sustenta a Estética da

recepção e a Teoria crítica feminista, quanto apresentaremos encaminhamentos práticos

para efeito de trabalho em sala de aula.

1 A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E O ENSINO DE LITERATURA

A escrita é a vitória da memória, presente em todas as sociedades ágrafas e cada

vez mais valorizada nas sociedades mais desenvolvidas. A apropriação do

conhecimento, através da leitura, tem sido um dos grandes meios de aprendizado

utilizado pelas classes que detém o poder dentro das sociedades. Assim, o domínio do

código linguístico escrito divide os segmentos sociais em “cultos” e “incultos”,

estabelecendo um padrão de desigualdade entre indivíduos alfabetizados e analfabetos,

que são obrigados a viver em uma mesma sociedade, tomada de elementos que os

colocam em confronto contínuo.

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A escola, lugar de socialização do conhecimento sistematizado, deve ser também

o lugar para a identificação, leitura e trabalho de textos escritos, a todos que a ela tem

acesso. Sendo assim, “conferindo à escola a função de formar o leitor, destruiu-se a

noção de texto como representação simbólica de todas as produções humanas, restando

o livro para mediação de qualquer conhecimento” (BORDINI & AGUIAR, 1993, p.11).

O acesso aos livros que, em anos passados, era exclusividade de uma pequena elite

dominante e detentora do conhecimento, agora passa a ser mais democrático, com o

acesso facilitado que se tem à escola e os diferentes métodos de trabalho desenvolvidos

por professores de todas as áreas.

Em nossa sociedade desigual, seja no âmbito financeiro, seja no do

conhecimento, uma possível solução para a igualdade na leitura seria o pluralismo

cultural, com a oferta de diversos tipos de textos, que deem conta de nossas diferentes

classes sociais, com diferentes gostos e diferentes níveis de saberes. “Uma das unidades

fundamentais do homem é dar sentido ao mundo e a si mesmo e o livro, seja

informativo ou ficcional, permanece como veículo primordial para esse diálogo”

(BORDINI & AGUIAR, 1993, p.13). Assim sendo, tornamos mais fácil esse contato

com a leitura, quando a trabalhamos desde cedo, com métodos específicos, que visem

valorizar o leitor e seu conhecimento de mundo.

Esse método surge com a Estética da recepção, teoria literária oriunda de um

movimento estudantil, no ano de 1967, que pedia reformas educacionais e questionava

os métodos tradicionais de ensino de leitura, pois, na concepção de seu criador, Hans

Robert Jauss (1994, p.23), “ambos os métodos o formalista e o marxista, ignoram o

leitor em seu papel genuíno”. A Estética da recepção surge como uma tentativa de

superar o formalismo, pois, para Jauss (1967), a obra de arte não está somente nos

textos, nem somente nas leituras, mas entre os dois. Acontece um ponto de

convergência entre o texto e o leitor, mas que não era levado em conta nos métodos

utilizados até então, pelo meio dos quais os alunos tentavam entender “o que o autor

quis dizer”, ou aceitavam a leitura que era feita pelo professor ou pelo crítico literário,

detentores de todo o saber.

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Nessa perspectiva, o autor não é mais considerado o dono do sentido de seu

texto, mas um mero personagem dele. Por outro lado, o texto também não é mais uma

mera organização linguística, que transmite as ideias de seu autor. Assim, “o leitor é a

instância responsável por atribuir sentido àquilo que ele lê. A materialidade do texto, o

preto no branco do papel, só se transforma em sentido quando alguém resolve ler”

(ZAPPONE apud BONNICI; ZOLIN, 2009, p.154). Dessa forma, podemos dizer que o

princípio da estética da recepção, seja qual for sua vertente, é recuperar os

conhecimentos prévios do leitor e utilizar isso a favor de sua leitura e do estudo da

história literária, já que ler é também criar o texto.

O trabalho com a leitura, por meio da estética da recepção, se dá a partir de

textos que corroborem para o aprendizado e assimilação dos conhecimentos dos alunos,

pois cada obra que surge “não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio,

mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou

condições implícitas, que predispõem seu público para recebê-la” (JAUSS, 1994, p.28).

Essas leituras prévias despertam lembranças de conhecimentos prévios que auxiliam no

processo de aquisição do conhecimento. Além disso, ensejam expectativas no leitor,

antecipando seu horizonte de compreensão e determinando sua postura emocional, com

relação ao que virá posteriormente.

De acordo com essa nova vertente, temos uma nova categoria para pensar no que

realmente seria a literatura e como pode ser trabalhada de maneira eficiente, visto o

grande déficit que se tem na educação pública em todo o país. Percebemos, então, que

os textos são passíveis de diferentes recepções, quando lidos por públicos de diferentes

idades, credos, sexo, classe social, o que modifica o status do texto e nos dá novos

critérios para definição do que é ou não é literatura. Para Jauss (1994, p.24), esses novos

critérios são estabelecidos através do “experiênciar dinâmico da obra literária por parte

de seus leitores”.

Nesse viés, o autor aponta um novo modo de ver a literatura, por meio da

recepção de seu público, pensando-a como uma categoria histórica e social, que está em

contínua transformação, privilegiando não mais componentes estáticos, que se

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apresentem isoladamente na composição do significado, mas um conjunto indispensável

a todo trabalho com leitura, que não pode ser visto separadamente: autor/obra/leitor.

Desse modo, baseados no trabalho com a estética da recepção, as autoras, Maria

da Glória Bordini e Vera Teixeira Aguiar, criaram o método recepcional, a fim de

formular possibilidades mais eficientes ao ensino de literatura. Esse método fundamenta

o ensino de literatura nas escolas, conforme os critérios pré-estabelecidos pelas DCEs

(2008).

Sob esse enfoque sugere-se, nestas Diretrizes, que o ensino da literatura seja pensado a partir dos pressupostos teóricos da Estética da

Recepção e da Teoria do Efeito, visto que essas teorias buscam formar

um leitor capaz de sentir e de expressar o que sentiu, com condições de reconhecer, nas aulas de literatura, um envolvimento de

subjetividades que se expressam pela tríade obra/autor/leitor, por meio

de uma interação que está presente na prática de leitura. (DCEs, 2008,

p.58)

Para esse trabalho, utilizaremos como embasamento teórico-metodológico o

Método Recepcional, a partir da Estética da Recepção. O Método Recepcional

fundamenta-se na atitude participativa do aluno com os diferentes textos, do qual ao

defrontar-se com esses textos, mobiliza as lacunas nele existentes, através das suas

experiências linguísticas e sociais. O Método Recepcional é composto por cinco etapas,

sendo elas: (1) Determinação do Horizonte de Expectativas; (2) Atendimento do

horizonte de expectativas; (3) Ruptura do horizonte de expectativas; (4)

Questionamento do horizonte de expectativas e (5) Ampliação do horizonte de

expectativas.

Através do Método Recepcional, o primeiro passo a ser tomado é o de

determinar o horizonte de expectativas da classe, como valores, crenças, estilos,

preferência de leitura, interesses e etc. O segundo passo é atender o horizonte de

expectativas, permitindo o acesso e experiências com os textos que satisfaçam suas

necessidades. Em seguida, o terceiro passo é abalar as certezas dos alunos, fazendo

uma ruptura no horizonte de expectativas, levando-os às diferentes interpretações, às

discussões e reflexões, a fim de que, no quarto passo, questionem o horizonte de

expectativas, resultando, no quinto passo, em uma tomada de consciência, ou seja, uma

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ampliação do horizonte de expectativas. Essa tomada de consciência é uma atitude

individual e grupal dos próprios alunos. Deve-se salientar que sua verbalização acontece

por iniciativa dos mesmos, sem intervenção direta do professor. O papel do professor é

o de provocar seus alunos e criar condições para que eles avaliem o que foi alcançado e

o que resta a fazer. Desse estágio em diante, reinicia-se todo o processo do método,

com a ressalva de que a etapa inicial já conta com a participação dos estudantes e,

portanto, proporciona uma carga de motivação bem mais elevada.

Ao final da etapa proposta no método, objetiva-se o aprimoramento da leitura

numa percepção estética e ideológica mais aguda e com a visão crítica sobre sua atuação

e a de seu grupo. Portanto, o aluno torna-se agente de aprendizagem, determinando ele

mesmo a continuidade do processo, num constante enriquecimento cultural e social.

2 A CONDIÇÃO FEMININA NA SOCIEDADE E A EMERGÊNCIA DA

LITERATURA DE AUTORIA FEMININA

A crítica feminista, Elisabeth Badinter, afirma que, no decorrer da história, em

diferentes sociedades, o patriarcado mostrou faces diversificadas, mas sempre marcadas

pela exclusão da mulher. Para ela, esse não foi “um simples sistema de opressão sexual.

Também é a expressão de um sistema político que, em nossas sociedades, se apoiou

numa teologia” (BADINTER, 1986, p. 125). Desse modo, ela evidencia o papel das

religiões na dominação masculina. Na opinião da autora, “a relação homem-mulher

inscreve-se num sistema geral de poder que comanda as relações dos homens entre si”

(BADINTER, 1986, p. 125).

Isso fez com que, historicamente, a mulher sempre ocupasse uma posição de

inferioridade e submissão no meio social e na hierarquia familiar. Sendo assim, em

meados da década de 60, em meio a vários movimentos de contestação, começam a

emergir lutas, conquistas e inquietações femininas na busca por um espaço, por

autonomia, por uma identidade própria, questionando os valores conservadores

impostos e mostrando a insatisfação com o lugar ocupado.

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As mulheres se tonam libertárias e revolucionárias, passam a ter controle sobre o

próprio corpo, em virtude das pílulas anticoncepcionais, conquistam um espaço no

mercado de trabalho, ocupando profissões tidas como masculinas. De certa forma,

ocorre a emancipação política e social feminina. Nesse contexto, surgem discussões e

estudos feministas, dos quais se observam um interesse pela questão da alteridade. O

espaço relegado à mulher, na sociedade, fez com que seu papel, tanto no âmbito social

quanto no acadêmico, ficasse à margem do papel central ocupado pelo homem,

atribuindo-lhe assim, uma alteridade, ou seja, uma exterioridade em relação ao que é

considerado centro.

A partir do movimento político e social feminista, nasce a crítica feminista que

atua interferindo na ordem social, pois trabalha no sentido de desconstruir as ideologias

de gênero construídas e sustentadas pela cultura, desmistificar a oposição homem-

dominador/mulher-dominada, desestabilizar a legitimidade da representação, ideológica

e tradicional, da mulher na literatura canônica, despertando, assim, o senso crítico em

relação às convenções sociais e transformando a condição de subjugada da mulher:

Trata-se de romper com os discursos sacralizados pela tradição, nos quais a mulher ocupa, à sua revelia, um lugar ocupado pelo homem,

marcado pela marginalidade, pela submissão e pela resignação. Tais

discursos não só interferem no cotidiano feminino, mas também acabam por fundamentar os cânones críticos e teóricos tradicionais e

masculinos que regem o saber sobre a literatura. Assim, a crítica

feminista trabalha no sentido de desconstruir a oposição homem/mulher e as demais oposições associadas a esta, numa espécie

de pós-estruturalismo. (ZOLIN apud BONNICI; ZOLIN, 2009, p.

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A mulher não existia como sujeito social, tampouco como sujeito literário, pois

se manteve por muito tempo invisível, no que se refere à produção literária e à produção

crítica e teórica, espaço tradicionalmente demarcado pelo homem. Do mesmo modo, as

produções literárias canônicas sempre foram ocupadas por escritores masculinos, os

quais representavam a mulher, ideologicamente, sob um estereótipo negativo, por meio

de emblemáticos papéis femininos associados à passividade e à objetificação,

chancelando a ideologia patriarcal e legitimando as ligações entre sexo e poder.

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A crítica feminista tem o objetivo de contestar o patriarcado, reivindicando a

visibilidade e legitimidade da mulher como sujeito histórico nos contextos sociais e

literários, “questionando fatores como poder, valor, hierarquia, responsáveis pela

canonização de uns e pela exclusão de outros” (XAVIER apud RAMALHO, 1999,

p.15). Entretanto, a crítica feminista não prega a abolição do cânone, mas sim a sua

flexibilidade, permitindo a valorização de obras invisíveis, até então.

Embora não tenha aparecido na historiografia literária, a mulher sempre

produziu literatura. Desse modo, a norte-americana Elaine Showalter investiga a

trajetória da literatura de autoria feminina no romance inglês a fim de “perceber a

recorrência de geração para geração, a determinados padrões, temas, problemas e

imagens” (ZOLIN apud BONNICI; ZOLIN, 2009, p. 329), ou seja, as características

dos textos femininos de cada época, denominada por ela de: “female literary tradition”.

Elaine Showalter descreve, então, três fases percorridas: “a de imitação e de

internalização dos padrões dominantes; a fase de protesto contra tais padrões e valores;

e a fase de autodescoberta, marcada pela busca da identidade própria” (ZOLIN apud

BONNICI; ZOLIN, 2009, p. 330).

A partir do estudo de Elaine Showalter, a pesquisadora carioca Elódia Xavier

(1998) pesquisa a trajetória da narrativa de autoria feminina na literatura brasileira e

observa que esta é marcada pela: fase feminina, em que as mulheres, enquadrando-se

nos padrões românticos, baseavam-se nos escritores masculinos, iniciada pela

publicação de Úrsula (1859), de Maria Firmino dos Reis; pela fase feminista,

representada por contestações aos valores dominantes, apresentando a repressão

feminina nas práticas sociais e pondo em questão a relação de gêneros, inaugurada pela

escritora Clarice Lispector com a publicação Perto do coração selvagem (1944); e pela

fase fêmea, iniciando-se nos anos 90, fase de autodescoberta, de construção de uma

nova identidade, englobando temas existenciais e universais, marcada por erotismo,

sedução e contestação.

No cenário brasileiro, é a escritora Clarice Lispector a precursora da tradição

literária feminina. A partir do espaço aberto por Clarice, as contribuições literárias

femininas que estiveram por muito tempo escondidas e isoladas na história da literatura,

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começam a aparecer nos anos 70 e 80, ao lado de consagrados escritores masculinos.

Para citarmos apenas algumas: Lígia Fagundes Telles, Lya Luft, Marina Colasanti,

Márcia Denser e Nélida Piñon, autora do conto “I Love my husband”, utilizado como

instrumento didático em nosso trabalho.

3 PROPOSTA DE LEITURA PARA AS AULAS DE LITERATURA, COM BASE

NA ESTÉTICA DA RECEPÇÃO

Para a concretização dessa proposta, a qual tem como tema a representação

social feminina, a fim de analisar a configuração do papel da mulher na sociedade,

fazem-se necessários: uma propaganda televisiva da cerveja “Kaiser”; uma propaganda

televisiva do chinelo “Havaianas”; uma propaganda televisiva da margarina “Delícia”;

uma propaganda televisiva do tempero “Sazon”; uma música funk “Piriguete” (DJ

Thiago); uma música MPB “Cotidiano” (Chico Buarque); e o conto “I love my

husband”, de autoria da escritora contemporânea Nélida Piñon.

A partir do Método Recepcional, determinaríamos, na primeira etapa, quais são

os horizontes de expectativas dos alunos para que pudéssemos elaborar estratégias de

ruptura e transformação desses horizontes. Consideraríamos nesta etapa, os valores

prezados pelos alunos, suas ideias, preferências e comportamentos. Para tanto,

utilizaríamos algumas questões referentes ao tema e ao conhecimento prévio dos alunos,

instigando-os a discutir sobre o termo patriarcal, sobre as diferenças estabelecidas,

culturalmente, entre homens e mulheres e sobre a posição ocupada pela mulher

antigamente. Após as discussões, faríamos uma explicação sobre o sistema patriarcal, o

qual o homem é a maior autoridade e os outros indivíduos subordinados a ele, fazendo

com que as relações entre as pessoas (seja em uma família ou uma comunidade) sejam

desiguais e hierarquizadas. Ao dar continuidade a essa etapa, refletiríamos com os

alunos sobre a posição ocupada pela mulher na sociedade atual, se, de fato, hoje, as

mulheres conquistaram uma independência em relação ao homem e liberdade na

sociedade ou se ainda podemos ver resquícios ideológicos do sistema patriarcal na

representação da mulher como estereótipos.

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Tendo detectado as aspirações dos alunos em relação ao tema proposto,

consideraríamos dois aspectos importantes: primeiro, ofereceríamos aos alunos textos

que correspondam ao esperado por eles. Segundo, organizaríamos estratégias de ensino

que sejam do conhecimento dos alunos para, aos poucos, acrescentarmos elementos

novos nas atividades desenvolvidas.

Nesse sentido, inicialmente, apresentaríamos duas propagandas televisivas que

são da realidade e de conhecimento dos alunos: cerveja “Kaiser” e chinelo “Havaianas”,

as quais representam a mulher sob um estereótipo de símbolo sexual. Contemplaríamos

esta etapa com alguns questionamentos sobre a representação das duas mulheres nas

duas propagandas, a qual contribui para demarcar um estereótipo feminino, tendo em

vista as estratégias publicitárias, fazendo com que o consumidor veja a cerveja como um

poderoso afrodisíaco, tornando os homens irresistíveis às mulheres lindas, jovens e de

corpos mais que perfeitos.

Para reforçar a ideia da representação do papel feminino visto a partir de um

estereótipo ideológico deixado como herança do sistema falocêntrico, apresentaríamos

mais duas propagandas televisivas: margarina “Delícia” e tempero “Sazon”. Após a

apresentação das duas propagandas, as quais representam a mulher como dona de casa,

esposa, mãe, vivendo em múltiplas funcionalidades a serviço da família, realizaríamos

mais alguns questionamentos/discussão sobre as características e diferenças entre a

mulher nas propagandas cerveja “Kaiser”, chinelo “Havainas”, margarina “Delícia” e

tempero “Sazon”. Nesse momento, refletiríamos com os alunos sobre os dois

estereótipos femininos presentes hoje em nossa sociedade, ressaltando a característica

multifuncional da mulher moderna.

Ainda atendendo ao horizonte de expectativas dos alunos sobre o tema em

questão, abordaríamos duas músicas que representam a mulher sob os dois estereótipos:

Símbolo sexual e mulher submissa ao homem e a serviço do lar, a fim de confirmar

essas duas representações conferidas à mulher, de acordo com os padrões da sociedade

patriarcal, que perduram ainda hoje, na sociedade contemporânea. Primeiro,

apresentaríamos a música “Cotidiano”, de autoria de Chico Buaque, representando a

mulher que vive reduzida aos limites do lar. Segundo, apresentaríamos a música funk

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“Piriguete”, escrita por MC Thiago, na qual ocorre uma distorção da imagem da mulher,

ao utilizar expressões que reforçam o estigma da mulher como objeto sexual e do corpo

como valor de troca, denegrindo sua imagem.

Para esta etapa, faríamos uma discussão em relação às duas músicas. Quanto a

musica “Piriguete”, discutiríamos a respeito das representações identitárias femininas

construídas nas letras de músicas funk; do papel social prescrito para mulheres e homens

nesses textos; e dos recursos linguísticos/discursivos presentes na música que mostram

as representações ideológicas sexistas sobre a mulher. Quanto à música “Cotidiano”,

discutiríamos a respeito da mulher que todos os dias faz tudo sempre igual e espera o

marido no portão, como se fosse algo prescrito e mecanizado.

Atendido devidamente o horizonte de expectativas dos alunos, iniciaríamos a

terceira etapa prevista no método. Assim, introduziríamos o conto “I Love my

husband”, publicado por Nélida Pinõn, em 1980, a fim de propiciar uma ruptura no

horizonte de expectativas. Faríamos a leitura do conto e suscitaríamos questões que

criem condições para que os próprios alunos percebam que há algo de estranho e de

novo no modo de proceder no, até então, conhecido. Promoveríamos tal ruptura tanto

pelo conteúdo do conto, que visa a representação feminina sob uma nova perspectiva,

quanto por trabalharmos o gênero conto, ou seja, não midiático, que estava sendo

trabalhado.

Esse conto pode ser lido como uma metáfora do casamento burguês no qual a

mulher era alienada. No conto, há duas vozes: a social, do pai e do marido que a

protagonista, inserida no espaço patriarcal e reduzida às atividades de mãe e esposa,

repete e reproduz, e a voz dela que questiona esse modelo. Desse modo, por meio de

uma profunda ironia, a narrativa engendra uma figura feminina que busca

independência e libertação, mas, por medo de não se enquadrar socialmente, ainda

sente-se presa ao modelo patriarcal.

Após a leitura coletiva do conto, suscitaríamos novamente algumas questões

reflexivas acerca da representação das relações de gênero; da reprodução dos valores da

sociedade patriarcal, por meio do discurso do pai e do marido; dos valores da

protagonista que se sente em dúvida entre os deveres e desejos; do ambiente em que a

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protagonista está inserida; do foco narrativo, como um fator que influencia no modo

como são narrados os fatos; dos “atos de pássaros” a que a protagonista faz alusão; da

não nomeação da personagem durante toda a narrativa; da contradição entre os sonhos e

a realidade da personagem; e da (in) certeza do amor da personagem pelo marido.

Na quarta etapa, que se trata do questionamento do horizonte de expectativas, os

alunos já deverão estar aptos para refletirem sobre o trabalho desenvolvido com o tema,

comparando as etapas anteriores, a fim de julgar qual delas exigiu maior grau de

dificuldade e qual lhes proporcionou maior satisfação. Dessa forma, provocaríamos um

debate para que os estudantes possam comparar as propagandas e músicas com o conto

ora apresentado. Nesse momento, solicitaríamos aos alunos a produção de um texto no

qual houvesse uma reflexão fecunda sobre quais as semelhanças e diferenças entre as

figuras femininas representadas nas propagandas, nas músicas e no conto.

No processo dinâmico da recepção, previsto no Método Recepcional, a quinta e

última etapa, que consiste na ampliação do horizonte de expectativas, coincide com o

início de uma nova aplicação do método, porém, com a grande vantagem de poder

contar com a participação dos alunos desde o início do processo. A partir do conteúdo

previamente trabalhado, tendo os alunos elevado o nível de conhecimento e relação ao

tema abordado, proporíamos, para a ampliação do horizonte de expectativas, uma

atividade na qual os alunos escolheriam duas músicas, uma antiga e outra mais atual,

que representassem a mulher sob os estereótipos vistos até então. A partir das duas

músicas escolhidas, eles deveriam fazer uma produção textual, analisando a

representação feminina, bem como uma apresentação oral para a turma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho com a Estética da Recepção propõe um olhar à literatura e o modo

como é ensinada. Partimos dos conhecimentos prévios dos alunos, o que nos dá um

norte para o trabalho e direciona o conteúdo de maneira eficiente, mostrando àquele que

recebe o conteúdo, que não se trata de algo novo e inacessível, mas de algo cotidiano,

conhecido e que pode ser facilmente discutido. O conhecimento de mundo não apenas

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nos motiva a um novo conhecimento que esteja relacionado, mas também nos antecipa

possibilidades de novas análises daquilo que já se apresenta como consolidado.

A literatura, quando bem trabalhada, nos permite fazer diferentes leituras do

meio em que vivemos. Nesse sentido, por meio da Estética da recepção, propomos a

desconstrução de estereótipos acerca da representação feminina, que são passados de

geração a geração e reforçados por um sistema patriarcal, que perdurou por séculos e

ainda apresenta alguns resquícios na sociedade atual, com o intuito de abrir novos

horizontes de discussão e interpretação do tema, mais críticos, mais humanos e mais

sociais.

Os encaminhamentos de leitura ora propostos, sob a perspectiva da Estética da

recepção, não se esgota nos elementos aqui abordados, mas pretendemos demonstrar, a

título de exemplificação, como seria possível orientar-nos por essa prática em contexto

de ensino e aprendizagem nas aulas de Língua Portuguesa/Literatura.

REFERÊNCIAS

BADINTER, Elisabeth. Um é o outro: Relações entre homens e mulheres. São Paulo:

Círculo do Livro, 1986.

BORDINI, Maria da Glória & AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do

leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Ática, 1993.

BRAGATTO FILHO, Paulo. Pela leitura literária na escola de 1º grau. São Paulo:

Ática, 1999.

BUARQUE, Chico. Cotidiano. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=FB4IaqWITB8. Acesso em: 10/11/2012.

CANDIDO, Antonio. Direitos humanos e literatura. São Paulo: Brasiliense, 1989

DCEs: PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Superintendência da Educação.

Departamento de Educação Básica. Diretrizes Curriculares da Educação Básica.

Português. Curitiba, 2008.

DJ Thiago. Piriguete. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=i1x-y4-

CFBI. Acesso em: 11/11/2012.

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JAUSS, Hans Robert. A História da literatura como provocação à teoria literária.

(Trad. de Sérgio Tellaroli). São Paulo: Ática, 1994.

PIÑON, Nélida. I Love my husband. In: O Calor das Coisas. Rio de janeiro: Editora

Record, 1998.

Propaganda cerveja “kaiser”. Disponível em:

http://www.youtube.com/watch?v=vXndJMcbSdE. Acesso em: 13/11/2012.

Propaganda chinelo “Havaianas”. Disponível em:

http://www.youtube.com/watch?v=8xUFYnXvNRs&feature=related. Acesso em

13/11/2012.

Propaganda margarina “Delícia”. Disponível em: http://youtu.be/Wxt_S02gZwk.

Acesso em: 13/11/2012.

Propaganda tempero “Sazon”. Disponível em:

http://www.youtube.com/watch?v=EQoAtJCDcHw. Acesso em: 13/11/2012.

ZAPPONE, Mirian Hisae Yaegashi. “Estética da Recepção”. In: BONNICI, Thomas;

ZOLIN, Lúcia Osana. (Orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências

contemporâneas. 3 ed. Maringá: Eduem, 2009.

ZILBERMAN, Regina (org). Leitura em crise na escola: As alternativas do professor.

4º ed. Porto Alegre: Mercado aberto, 1985.

ZOLIN, Lucia Osana. Desconstruindo a opressão: A imagem feminina em A

República dos Sonhos de Nélida Piñon. Maringá: Eduem, 2003.

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ANEXO:

“I love my husband”

Nélida Piñon

Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele

suspira exausto da noite sempre mal dormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta

três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não

quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas

vezes por semana, especialmente no sábado.

Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a

parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranquilo, capaz de enfrentar a vida

lá fora e trazer de volta para a sala de visita um pão sempre quentinho e farto.

Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por

cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda

que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo esforço de

criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis.

A mim também me saúdam por alimentar um homem que sonha com casas-

grandes, senzalas e mocambos, e assim faz o país progredir. E é por isto que sou a

sombra do homem que todos dizem eu amar. Deixo que o sol entre pela casa, para

dourar os objetos comprados com esforço comum. Embora ele não me cumprimente

pelos objetos fluorescentes. Ao contrário, através da certeza do meu amor, proclama que

não faço outra coisa senão consumir o dinheiro que ele arrecada no verão. Eu peço

então que compreenda minha nostalgia por uma terra antigamente trabalhada pela

mulher, ele franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo uma teoria que

envergonha a família e a escritura definitiva do nosso apartamento.

O que mais quer, mulher, não lhe basta termos casado em comunhão de bens? E

dizendo que eu era parte do seu futuro, que só ele porém tinha o direito de construir,

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percebi que a generosidade do homem habilitava-me a ser apenas dona de um passado

com regras ditadas no convívio comum.

Comecei a ambicionar que maravilha não seria viver apenas no passado, antes

que este tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos amar. Ele

aplaudiu o meu projeto. Dentro de casa, no forno que era o lar, seria fácil alimentar o

passado com ervas e mingau de aveia, para que ele, tranquilo, gerisse o futuro.

Decididamente, não podia ele preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia

pertencer-lhe de modo a não precisar cheirar o meu sexo para descobrir quem mais,

além dele, ali estivera, batera-lhe à porta, arranhara suas paredes com inscrições e datas.

Filho meu tem que ser só meu, confessou aos amigos no sábado do mês que

recebíamos. E mulher tem que ser só minha e nem mesmo dela. A ideia de que eu não

podia pertencer-me, tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o

primeiro sobressalto na fantasia do passado em que até então estivera imersa. Então o

homem, além de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre para viver a

vida a que ele apenas tinha acesso, precisava também atar minhas mãos, para minhas

mãos não sentirem a doçura da própria pele, pois talvez esta doçura me ditasse em voz

baixa que havia outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de pêlo felpudo, e

com a ajuda da língua podia lamber-se o seu sal?

Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de

tigre que reforçavam a minha identidade, grunhiam quanto à verdade do meu sexo.

Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por

revesti-las de ouro, prata, o ímpeto do sangue de um animal abatido no bosque? Ou

porque o homem adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto

surpreende-se com uma face que Ihe é estranha, que ele cobriu de mistério para não me

ter inteira?

De repente, o espelho pareceu-me o símbolo de uma derrota que o homem trazia

para casa e tornava-me bonita. Não é verdade que te amo, marido? perguntei-lhe

enquanto lia os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa cuspidas no

chão logo após ele assimilar a notícia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer

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que eu fale de amor quando se discutem as alternativas econômicas de um país em que

os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de escravo.

Eu lhe disse então, se não quer discutir o amor, que afinal bem pode estar longe

daqui, ou atrás dos móveis para onde às vezes escondo a poeira depois de varrer a casa,

que tal se após tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa?

Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro com

cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma aventura africana recém-

iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e ansiedade, eu

abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto

Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em convulsão, ia pedindo de joelhos o

meu amor. Sôfrega pelo esforço, eu sorvia água do rio, quem sabe em busca da febre

que estava em minhas entranhas e eu não sabia como despertar.

A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os meus lábios pela

primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquanto o pajé salvava-me a vida com

seu ritual e seus pelos fartos no peito. Com a saúde nos dedos, da minha boca parecia

sair o sopro da vida e eu deixava então o Clark Gable amarrado numa árvore,

lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me

assaltara as forças, evitando as quedas d'água, aos gritos proclamando liberdade, a mais

antiga e miríade das heranças.

O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão,

pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranquilidade,

enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal se

deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te

entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe

permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de mulher? Ah,

marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo

sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te?

Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lágrimas, tragou a fumaça do

cigarro com volúpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria homem como ele

no nosso edifício de dezoito andares e três portarias. Nas reuniões de condomínio, a que

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estive presente, era ele o único a superar os obstáculos e perdoar aos que o haviam

magoado. Recriminei meu egoísmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia

recuperar-se para a jornada seguinte.

Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate. Ele

aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balanço da firma

ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse com a minha

colaboração, dispensaria o sócio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de

um ato que nos faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria

sonhado tão alto. Encarregava-me eu à distância da sua capacidade de sonhar. Cada

sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal direito, eu pagava a vida com

cheque que não se poderia contabilizar.

Ele não precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeição dos sentimentos,

que lhe bastava continuar em minha companhia para querer significar que me amava, eu

era o mais delicado fruto da terra, uma árvore no centro do terreno de nossa sala, ele

subia na árvore, ganhava-lhe os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos.

Durante uma semana bati-lhe à porta do banheiro com apenas um toque

matutino. Disposta a fazer-lhe novo café, se o primeiro esfriasse, se esquecido ficasse a

olhar-se no espelho com a mesma vaidade que me foi instilada desde a infância, logo

que se confirmou no nascimento tratar-se de mais uma mulher. Ser mulher é perder-se

no tempo, foi a regra de minha mãe. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a

condição feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo não é o envelhecimento da

mulher, mas sim o seu mistério jamais revelado ao mundo.

Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ninguém

colheu senão o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram

graves, ele dava brilho de prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao

não se cumprir a história da mulher, não lhe sendo permitida a sua própria biografia,

era-lhe assegurada em troca a juventude.

Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás

a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre.

Eu não sabia como contornar o júbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e ir ao

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seu coração, surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu não

ambicionara antes, por distração talvez. E todo este troféu logo na noite em que ia

converter-me em mulher. Pois até então sussurravam-me que eu era uma bela

expectativa. Diferente do irmão que já na pia batismal cravaram-lhe o glorioso estigma

de homem, antes de ter dormido com mulher.

Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido

seu sexo pelo homem. Antes dele a mãe insinuou que o nosso sexo mais parecia uma

ostra nutrida de água salgada, e por isso vago e escorregadio, longe da realidade cativa

da terra. A mãe gostava de poesia, suas imagens sempre frescas e quentes.

Meu coração ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo que me

haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano acomodado. As

mãos do marido me modelariam até os meus últimos dias e como agradecer-lhe tal

generosidade? Por isso talvez sejamos tão felizes como podem ser duas criaturas em que

uma delas é a única a transportar para o lar alimento, esperança, a fé, a história de uma

família.

Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de

atraso. O que não faz diferença. Levo até vantagens, porque ele sempre a trouxe

traduzida. Não preciso interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras

inquietantes que terminam por amordaçar a liberdade. As palavras do homem são

aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. Não tenho que assimilar um

vocabulário incompatível com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento.

Assim fui aprendendo que a minha consciência que está a serviço da minha

felicidade ao mesmo tempo está a serviço do meu marido. É seu encargo podar meus

excessos, a natureza dotou-me com o desejo de naufragar às vezes, ir ao fundo do mar

em busca das esponjas. E para que me serviriam elas senão para absorver meus sonhos,

multiplicá-los no silêncio borbulhante dos seus labirintos cheios de água do mar? Quero

um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme algumas vezes numa torta

de chocolate, para ele comer com os olhos brilhantes, e sorriremos juntos.

Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que

não é o meu, mergulho numa exaltação dourada, caminho pelas ruas sem endereço,

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como se a partir de mim, e através do meu esforço, eu devesse conquistar outra pátria,

nova língua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro,

olho os que passam com um apetite de que não me envergonharei mais tarde.

Felizmente, é uma sensação fugaz, logo busco o socorro das calçadas familiares, nelas a

minha vida está estampada. As vitrines, os objetos, os seres amigos, tudo enfim orgulho

da minha casa.

Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido.

Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais

tentações. Ele parece perdoar-me à distância, aplaude minha submissão ao cotidiano

feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. Confesso que esta ânsia me envergonha,

não sei como abrandá-la. Não a menciono senão para mim mesma. Nem os votos

conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho. Estes votos que

ruborizam o corpo, mas não marcaram minha vida de modo a que eu possa indicar as

rugas que me vieram através do seu arrebato.

Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele não suportaria

o peso dessa confissão. Ou que lhe dissesse que nessas tardes penso em trabalhar fora,

pagar as miudezas com meu próprio dinheiro. Claro que estes desatinos me colhem

justamente pelo tempo que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas

vezes e com razão. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para sempre

mergulhada.

Não posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a versão do espelho.

Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. Não sou em verdade as sombras, as

rugas com que me vejo. Como o pai, também ele responde pela minha eterna juventude.

É gentil de sentimentos. Jamais comemorou ruidosamente meu aniversário, para eu

esquecer de contabilizar os anos. Ele pensa que não percebo. Mas, a verdade é que no

fim do dia já não sei quantos anos tenho.

E também evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, já não visto os

modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armário, para serem discretamente

apreciados. Às sete da noite, todos os dias, ele abre a porta sabendo que do outro lado

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estou à sua espera. E quando a televisão exibe uns corpos em floração, mergulha a cara

no jornal, no mundo só nós existimos.

Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda

que sem vontade às vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que não é o dele, de um

desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto então a boca seca, seca

por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará

amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos

pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher.

Ah, sim, eu amo meu marido.