Estética política

15
  Estética política: sobre grafite e subjetividade na América Latina

description

grafite e subjetividade

Transcript of Estética política

  • Esttica poltica: sobre grafite e

    subjetividade na Amrica Latina

  • Resumo Este artigo analisa como o grafite latino americano subverte a esttica da ordem e a substitui pela tica da visibilidade, da inconformidade e da resistncia. Considera-se aqui o grafite como um discurso visual, intrinsicamente relacionado vida e pratica social, que ao ocupar o espao urbano, abre novas possibilidades de percepo da cidade e amplia as relaes do ser humano com a realidade, modifica estas relaes e rompe com a concepo clssica de esttica. Palavras-chave: Grafite, Amrica Latina, territrio, identidade, esttica Resumen Este artculo examina cmo el graffite Latinoamericano subvierte el orden esttico y sustituye a la tica de la visibilidad, del inconformismo y de la resistencia. Se considera aqu el graffiti como un discurso visual, intrnsecamente relacionado con la vida y la prctica social, que para ocupar el espacio urbano, abre nuevas posibilidades de percepcin en la ciudad y se extiende a la relacin entre los seres humanos y la realidad, modifica estas relaciones y rompe con la concepcin clsica de la esttica. Palavras clave: Graffiti, Latinoamrica, territorio, identidad, esttica Abstract This paper examines how the Latin American graffiti subverts the aesthetic order and replaces the ethics of visibility, nonconformity and resistance. This work considers graffiti as a visual discourse, intrinsically related to life and the social practice, which to occupy urban space, opens up new possibilities of perception of the city and extends the relationship between human beings and the reality, modifies these relations and breaks with the classical conception of aesthetics. Keywords: Graffiti, Latin America, territory, identity, aesthetic

  • 1. Territrios de poder Sincrtico e transcultural. assim que Canclin1 define o grafite. Uma prtica hbrida, efmera e marginalizada, um modo de assumir novas relaes entre o privado e o pblico, entre a vida cotidiana e a poltica. Espaos onde se encontram o literrio e o visual, o culto e o popular e aproximam-se o artesanal da produo industrial e da comunicao de massa. Com referncias sexuais, polticas e estticas, so expresses do modo de vida e pensamento de grupos que no dispe de circuitos comerciais, polticos e da mdia de massa para se posicionarem. Com um trao manual e espontneo, o grafite contrape-se publicidade e s legendas polticas visualmente estruturadas e organizadas, provocando-as: o grafite afirma o territrio, mas abala as colees de bens materiais e simblicos. Em suas mais diversas formas, os grafites fundem palavras, imagens, signos, mensagens e ideologias em um estilo descontnuo, fragmentado e heterclito: uma sntese da topografia urbana2 que elimina as fronteiras entre o que se escrevia nos banheiros ou nos muros. Uma postura efmera e marginal de estabelecer relaes entre privado e o pblico, entre a vida cotidiana e a poltica. Dessa maneira, o grafite pode ser entendido como uma marca poltica e simblica, uma forma de expresso popular que critica a ordem imposta pelo Estado e pelas classes dominantes. Assim, o grafite se localiza dentro de uma relao de luta, que, de acordo com Foucault3, tambm uma relao de afrontamento e fora, uma situao estratgica em que h presena e disputa pelo poder. Um territrio simblico de expresso cultural e contraposio, gerador de um contra-poder no hegemnico. O grafite exerce uma fora de resistncia, uma fora que, de acordo com Focault, seja como o poder: inventiva, mvel e produtiva. Uma potncia que venha de baixo e se espalhe taticamente, visto que onde h uma relao de poder, h uma possibilidade de resistncia. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua

    1 CANCLINI, 2003. 2 CANCLINI, 2003, p. 339. 3 FOUCALT, 1985.

  • dominao em condies determinadas e segundo uma estratgia precisa4. Para Certeau5, as estruturas de resistncia so as mesmas, de uma poca para outra, de uma ordem para outra, pois mantm vigorando a mesma repartio desigual de foras e os mesmos procedimentos de desvio servem ao fraco como ltimo recurso. Tratam-se de processos desiguais que propagam a contraposio, a resistncia. Canclini6 afirma que o grafite uma escrita territorial dos locais urbanos, que consolida a luta, a presena e a posse pelo controle do espao atravs de inscries prprias, e expressa as ideias e os modos de ser e pensar de seus produtores. Trata-se de uma relao dialtica de dominao e contra-dominao, onde o contra-espao da resistncia manifesta-se, na tentativa de poder invisibilizar a essa dominao. De acordo com Mondardo e Goettert7 a cidade antes de tudo um discurso, onde a padronizao marcada por casas, edifcios, muros e monumentos, revela uma suposta harmonia entre as classes sociais: o padro se faz presente na ordem que no deve e no pode ser manchada, suja, rabiscada. O grafite e a pichao enfeiam, emporcalham, desorganizam. Violentam a ordem e podem assim revelar a dominao e a contra-dominao. O grafite subverte a esttica da ordem e a substitui pela tica da visibilidade, da inconformidade e da resistncia. Muitas vezes, uma presena incmoda, que permite ao invisvel tornar-se visvel, um territrio de crtica popular ordem imposta pela sociedade burguesa e pelo estado. Uma maneira simblica e material de demarcar espaos da cidade utilizada por diversos sujeitos, ou ainda, uma apropriao do ambiente urbano por meio de marcas de expresso cultural e resistncia ordem hegemnica estabelecia. 2. Discurso e identidade De acordo com Mondardo e Goettert8, os muros so elementos essenciais para a expresso da resistncia do contra-poder do grafite enquanto marcas polticas. Os muros possuem a funo primordial de separar e delimitar territrios e determinar os 4 FOUCAULT, 1985, p. 241. 5 CERTEAU, 1994. 6 CANCLINI, 2003. 7 MONDARDO; GOETTERT, 2008. 8 MONDARDO; GOETTERT, 2008.

  • limites ente o pblico e o privado, entre uns e outros, entre o que pode ser mostrado e o que pretende-se ocultar: protegem, definem caminhos, escondem, restringem o olhar, limitam a passagem, so barreiras entre territrios e espaos. Barreiras que transformam-se no local do discurso poltico da resistncia, da crtica e do contra-poder. Barthes afirma que

    A cidade um discurso, e esse discurso verdadeiramente uma linguagem: a cidade fala aos seus habitantes, ns falamos nossa cidade, a cidade onde nos encontramos simplesmente quando a habitamos, a percorremos, a olhamos. 9

    O discurso, enquanto prtica social deve ser entendido com um processo de significaes. Na definio de Orlandi10, o discurso a palavra em movimento, uma prtica de linguagem, j Possenti11 afirma que trata-se de um efeito de sentido, uma posio, uma ideologia que se materializa atravs da lngua. O discurso pode ainda ser definido como os enunciados produzidos numa determinada interao verbal, na qual os sujeitos so constitudos de acordo com suas posies sociais e ideolgicas, o que demonstra que os discursos no so fixos, visto que os sujeitos so influenciados pelo meio ao qual pertencem e portanto esto propensos a constantes mudanas. Para Certeau12, o discurso uma estrutura social e histrica que comunica, modifica-se, ultrapassa qualquer tentativa coerente de planejar as etapas, de compreend-la como a uma mquina. O homem que nela habita no somente um ser da razo, mas sobretudo um ser criativo, que constitui relaes afetivas, imaginrias e estticas com o entorno urbano, construindo e constituindo-se nele, relacionando-se com as pessoas tendo esse entorno como contexto. Considerando o grafite como um discurso visual e uma vez que o discurso est intrinsicamente relacionado vida e pratica social, para analisa-lo necessrio considerar o sujeito do discurso, ou o sujeito produtor do grafite. Trata-se da lngua em funcionamento num determinado contexto de crtica e resistncia. Dessa maneira, torna-se necessrio observar a produo de sentidos como parte fundamental desse processo, visto que um mesmo grafite pode ter diferentes sentidos em funo do lugar 9 BARTHES, 2001, p. 224. 10 ORLANDI, 1999. 11 apud DANTAS, 2007, p.86. 12 CERTEAU, 2000.

  • em que produzido e da ideologia na qual o sujeito que o executou est inserido, bem como as condies em que se deu a sua produo e da identidade social desse sujeito. De acordo com Nery13, as identidades sociais no podem ser construdas fora do discurso, apesar delas serem inerentes aos indivduos, elas surgem a partir da interao entre eles. Dessa maneira os sujeitos se tornam participantes nos processos de construo de significado na sociedade. Por isso torna-se necessrio entender os discursos como sendo produzidos em locais histricos e institucionais peculiares. Essa percepo do discurso como parte do processo de construo social possibilita posies de resistncia frente a discursos hegemnicos, onde o poder no tomado como monoltico e as identidades sociais no so fixas. Ao se engajar em um discurso atravs do grafite, o sujeito est ao mesmo tempo considerando o discurso do outro e reconstruindo sua prpria identidade. Uma questo que no est relacionada apenas a quem este sujeito e qual seria a sua origem, mas sobretudo, quem este sujeito se torna a partir desta relao. Isso implica tambm em como esse sujeito representado e como essa representao afeta a forma desse sujeito representar-se. Ainda de acordo com a autora, simultaneamente ao papel social que este sujeito exerce, e que tambm determinam sua identidade, esto os esteretipos sociais que intervm diretamente nas aes praticadas por ele: atravs desses esteretipos este sujeito submetido a determinados grupos que acabam por influenci-lo. Esteretipos que esto vinculados estrutura dominante e ao poder convencionado pela estrutura social ao qual pertencem. Por outro lado, podemos pensar o grafite para alm da lgica da produo de sentidos e de identidades, tomando-o em sua materialidade mais concreta, enquanto inscrio ou trao que marca a interveno de um algum que pode ser qualquer um e todos, evidenciando a dimenso poltica da subjetividade. 3. A esttica poltica do grafite 13 NERY, 2010.

  • O grafite rompe com os espaos de exposio tradicional, como museus e galerias, para criar dilogos com lugares e recolocar o campo da criao artstica entre os objetos do cotidiano e mesmo industriais. Assim, ao ocupar o espao urbano, o grafite abre novas possibilidades de percepo da cidade e provoca a desautomatizao da percepo ampliando as relaes do ser humano com a realidade , modificando essas relaes e os prprios sujeitos e rompendo com a concepo clssica de esttica. Silva14 aborda o grafite como um processo de comunicao urbana que possui caractersticas e imperativos especficos. Uma escritura que perverte o espao fsico e ideolgico e relativiza a correlao de propriedade e territrios, e, expressa assim, a desarticulao das cidades e da cultura. Para o autor, a Amrica Latina, na dcada de 1980, representa o terceiro grande momento do grafite contemporneo, precedido por Paris em 1968 e Nova York na dcada de 1970. Em maio de 1968, na Frana, protestos de estudantes universitrios e secundaristas organizados contra os ditames reacionrios do governo de Charles de Gaulle, reivindicavam a reformulao dos currculos e mtodos de ensino e criticavam o autoritarismo, a poltica hegemnica e o domnio do capitalismo na economia mundial. Aes que repercutiram internacionalmente: microfones, tiras de quadrinhos, msicas, grafites, bales pintados invadiram as estaes de metr, ruas e universidades de Paris com palavras de ordem antiautoritrias, utpicas e fins macro polticos. De acordo com o Jornal do Brasil, de 11 de maio daquele ano

    Pelo menos 60 barricadas, algumas com at trs metros de altura, foram erguidas ontem em Paris, no tradicional bairro do Quartier Latin, pelos estudantes em protesto desde o incio do ms pela reforma no sistema de ensino francs. Nos confrontos com policiais, cerca de mil pessoas ficaram feridas e 80 carros foram incendiados. Maio promete ser o ms das barricadas e das passeatas na Frana, num movimento contestatrio que comeou com os estudantes que agora planejam ocupar a Sorbonne e j est ganhando apoio de outros segmentos sociais, que tentam organizar uma greve-geral, qual esperam conseguir a adeso de mais de 10 milhes de trabalhadores. Os tumultos atingiram tal proporo que os organizadores do Festival de Cinema de Cannes temem pela realizao do evento. O Maio de 68 tambm promete perpetuar palavras de ordem, como proibido proibir, escritas em muros de toda a cidade de Paris.15

    14 SILVA, 1987. 15 XAVIER, 2003, s/p.

  • Para Bueno16, estes grafites inseriram uma inovao ao colocar a subjetividade e a experincia pessoal como questes polticas, onde os jovens de classe mdia se apropriavam da superfcie da cidade como suporte para seus protestos. As palavras de ordem grafadas nos muros procuravam proclamar o ideal revolucionrio e mostravam a vontade dos estudantes de reescrever o contexto da poca. Frases como a vontade geral contra a vontade do general, todo conhecer um fazer, a imaginao no poder e transformar para conhecer so ilustraes contundentes do perodo. Os muros transformaram-se em painis fundamentais de comunicao e disseminao dos ideais revolucionrios, nas palavras de Satre a poesia francesa est nos muros da Sorbonne17 Segundo Baderna18, Nada havia a defender nem reivindicar, exceto a demolio da sociedade espetacular mercantil como um todo. Os grafites de 1968 marcaram uma ofensiva selvagem que mudou de contedo e terreno a prtica poltica e artstica. Estabelecia-se uma forma coletiva de conectar anarquismo, criatividade e juventude. Disseminados pelas cidades, em largas propores, os grafites tornaram-se uma mediao de forte aceitao e repercusso internacional, criando um novo tipo de revoluo, entusiasmando a juventude de diversos pases. Em Nova York, como aponta Veneroso19, o grafite surgiu como forma de resistncia, praticado por indivduos pertencentes a duas expressivas e especficas minorias tnicas: os negros e os porto-riquenhos. Uma manifestao caracterstica dos guetos do Bronx e do Brooklyn, com suas prprias leis, normas e propsitos micro polticos. Uma forma de expresso subversiva e transgressora, dos oprimidos que no tendo onde se expressar, se expressavam nas ruas, inscrevendo a sua marca, inicialmente grafitavam as ruas e metrs da cidade com seus apelidos seguidos do nmero de suas casas. Magnani20 cita exemplos como STITCH 1, Freddie 173, CAT 187, T-REX 131, SNAKE 1 e RAY-B 954. Uma maneira grfica de demonstrar e reforar que pertenciam quele espao urbano e quela cultura, smbolos que tinham como 16 BUENO, 1999. 17 FONSECA, 2007 18 BARDENA, 2003, p.27. 19 VENEROSO, 2012. 20 MAGNANI, 2005.

  • objetivo subverter o sistema comum dos nomes. Em contrapartida, tambm eram encontradas palavras como SUPERBEE, SPIX, COLA, KOOL, CRAZY e CROSS, termos retirados de histrias em quadrinhos que ao serem projetados nos muros e metrs se inseriam em um espao fora do lugar como anti-discurso, recusando todas elaborao sinttica, potica e poltica.

    Irredutveis por sua prpria pobreza, eles resistem a toda interpretao, a toda conotao, e tambm no denotam nada nem ningum: nem a denotao nem conotao, eis como escapam ao princpio de significao e, na qualidade de significantes vazios, irrompem na esfera dos signos plenos da cidade, que eles dissolvem por sua mera presena.21

    Os grafites produzidos nas laterais dos trens do metr transitavam por toda a malha viria urbana, transformando-se assim em mensagens mveis, que levavam aos mais distintos lugares os dizeres de um determinado grupo ou sujeito. Ainda em Nova York, o grafite tornou-se um dos pilares do movimento hip-hop, juntamente com a dana (break) e a msica (rap). Diferentemente dos grafites franceses, nos grafites produzidos em Nova York, as letras tomaram a forma de ilustraes elaboradas com a insero de cores e traos ousados, transcendendo assim a simples grafia de uma expresso.

    uma escrita na maior parte das vezes ilegvel, para quem est de fora, pois uma linguagem codificada, de um grupo, ou grupos. Esses graffiti, muitas vezes incompreensveis, deixam vislumbrar somente alguns trechos de palavras e nomes, que chegam, no entanto, carregados de significados e de fora que t6em origem exatamente na forma como esses grafitti so feitos e refeitos, revelia de todas as tentativas de acabar com eles. 22

    A cidade como um espao neutralizado e homogeneizado, impassvel e fragmentado, ao segregar e excluir nos guetos urbanos certos grupos sociais, produz as condies para que o grafite surja e ganhe fora. Em Nova York, nas dcadas de 1970 e 1980, a transgresso do grafite alcana um nvel diferente na luta de classes, como uma manifestao do tribalismo, uma manifestao da cidade tpica no mais como lugar do poder poltico-econmico, mas espao/tempo do poder terrorista dos meios de comunicao de massa. 21 BAUDRILLARD, 1996, p. 102. 22 VENEROSO, 2012, p. 211.

  • 4. Grafite na Amrica Latina Na dcada de 1980 comeam a surgir manifestaes de desordem urbana com a perda da credibilidade nas instituies polticas e o desencanto utpico 23 : grafites figurativos, irnicos, debochados e cnicos, que superavam a vocao lingustica de lemas polticos. Segundo Silva24, alguns fatores como aumento da prtica do grafite, o fato do mesmo manter-se fora dos circuitos comerciais e a opresso dos governos autoritrios, fez com que o grafite se tornasse uma outra expressiva fonte de opinio pblica, ligada literatura e s canes de protesto.

    O grafite, pois, junto denuncia e aos anseios de uma novas ordens sociais, tambm possui opes para ser compreendido como arte e literatura, como expresso e comunicao, enfim, como realidades sociais e utopias urbanas, com a privilegiada condio de tratar-se de uma escritura criada coletivamente (traduo nossa).25

    Particularmente na Amrica Latina, os grafites carregam uma questo que bastante legtima, trata-se da ocupao das cidades, s que desta vez, conforme aponta Melendi26, no a autoridade que invade os espaos da populao, mas uma fora que sa das margens da repblica democrtica, um produto residual dos longos anos da ditadura e do descaso do estado neoliberal. Para Martin-Barbero27, trata-se do espao da mestiagem da iconografia popular com o ideal poltico dos universitrios. Enquanto a doutrina ideolgica escapa formalidade e ao objetivismo panfletrio, o grafite sai da ilegalidade dos sanitrios e espalha sua iconografia desbocada e blasfematria pelos muros da cidade. A crtica poltica se abre potica e a potica popular se reveste de densidade poltica. Diversas maneiras de rebeldia se encontram e se fundem, registrando protestos pelos espaos urbanos. Um dos fatores que tambm contriburam para a intensificao dos grafites na Amrica Latina, alm dos processos de emancipao e da imigrao, foi a pintura de murais em espaos pblicos que havia se tornado uma tradio nas zonas suburbanas 23 CANCLINI, 2003, p. 337. 24 SILVA, 1987. 25 SILVA, 1987, p.17. 26 MELENDI, 2003. 27 MARTIN-BARBERO, 1997.

  • e bairros industriais. Uma tradio iniciada com a prtica da pintura mural mexicana, que trazia consigo forte apelo poltico e social e impulsionou o aparecimento de diversas formas de arte em espaos pblicos. A pintura mural que j era usual nas paredes das construes pr-colombianas deu origem ao Muralismo, que desenvolveu-se no Mxico, a partir da revoluo de 1910, unindo a monumentalidade arquitetnica Asteca, o grafismo indgena e uma pintura projetada para alm do ento tradicional limite da tela. Seus principais representantes foram Diego Riveta, Jos Clemente Orozco e David Alfaro Siqueiros. De acordo com Viana28, estes artistas acreditavam que este tipo de arte poderia redimir artisticamente um povo que se esquecera da grandiosidade de sua civilizao durante tantos sculos de opresso estrangeira e de espoliao por parte das oligarquias nacionais. Dessa maneira, produzir pinturas em locais pblicos, onde todos pudessem ter acesso, era uma maneira de evitar que elas acabassem em propriedade de algum colecionador. O estilo colaborou para reafirmar a identidade cultural dos mexicanos, criando uma das mais importantes formas de arte de sentido popular e poltico, do sculo XX, que se expandiu e criou ramificaes em diversos pases principalmente na Amrica Latina. De acordo com Petersen29, a passagem de David Siqueiros por Buenos Aires aqueceu o ambiente poltico e intelectual com suas concepes estticas vanguardistas e ideais revolucionrios. Siqueiros realizou diversos experimentos grficos preocupando-se em adaptar os conhecimentos tcnicos pratica poltica concreta, tendo em vista a militncia poltica, o que propicia inclusive o aparecimento de uma tcnica at ento desconhecida o stencil. De acordo com Silva30, durante a dcada de 80 os grafites se expandiam na Amrica Latina; na Colmbia, no Peru, no Equador, na Argentina, no Brasil, no Uruguai, no Mxico e na Venezuela pela mesma razo das lutas de libertao, por tradio guerrilheira e pelos novos ares de renovao esttica e movimentos polticos e universitrios. Em todos os casos estava em questo buscar outras formas de tomar posio conta a hipocrisia social e o autoritarismo. No Chile, surgiram as brigadas 28 VIANA, 2007. 29 PETERSEN, s/d. 30 SILVA, 2001.

  • muralistas. Uma experincia nica, onde grupos compostos por operrios e estudantes produziam pinturas coloridas que mesclavam iconografia popular, fatos cotidianos com forte contedo poltico e artstico. Essas brigadas nasceram de maneira clandestina como forma de luta contra o poder hegemnico, ganharam fora e tiveram grande propagao durante a dcada de 1970. Atualmente as mais variadas vertentes do grafite se misturam em grandes cidades da Amrica Latina: da iconografia popular monumentalidade dos murais, passando pelas mensagens de cunho poltico, crtica social e anti-hegemnicas at mesmo a movimentos mais recentes que o aproximam ainda mais das artes plsticas. A intencionalidade poltica destes grafites funciona no como tomada de poder, mas como desejo de um mundo participativo, de ao cidad e de exerccio de autonomia. O grafite, juntamente com a publicidade, as manifestaes sociais e polticas e os monumentos so linguagens que representam as principais foras que operam na cidade. De acordo com Canclini31, os monumentos so, quase sempre, obras em que o poder poltico exalta pessoas e acontecimentos ligados ao Estado. J a publicidade busca estabelecer uma relao entre a vida cotidiana com o poder econmico. Enquanto os grafites expressam a crtica e a insatisfao popular ordem imposta:

    Os grafites (como os cartazes e os atos polticos da oposio) expressam crtica popular ordem imposta. Por isso so to significativos os anncios publicitrios que ocultam os monumentos ou os contradizem, os grafites inscritos sobre uns e outros. s vezes, a proliferao de anncios sufoca a identidade histrica, dissolve a memria na percepo ansiosa das novidades incessantemente renovadas pela publicidade.32

    Ainda de acordo com o autor, no movimento urbano os interesses comerciais fundem-se com os interesses histricos, estticos e comunicacionais. As batalhas semnticas travadas na busca de neutralizar, confundir e alterar a mensagem alheia ou transformar o seu significado, e subordinar os demais prpria lgica, so metforas do conflitos entre foras sociais: entre o mercado, a histria, o estado, a publicidade e a luta para sobreviver. 31 CANCLINI, 2012. 32 CANCLINI, 2012, p. 302.

  • Assim, a trocas entre os monumentos e as mensagens publicitrias e polticas situa em redes heterclitas a organizao da memria e da ordem visual e consequentemente uma outra apreenso e apreciao esttica do meio urbano. Um processo sociocultural de hibridizao, no qual estruturas ou prticas que existam de forma independente, se misturam para gerar novas estruturas, objetos e prticas. Um processo que surge da criatividade individual e coletiva, no s no campo artstico como tambm na vida cotidiana, onde procura-se reconverter um patrimnio para reinseri-lo em novas categorias de produo33. Rancire34 sugere a redefinio do conceito de esttica a partir de sua inter-relao com a poltica em uma diviso poltica do sensvel que seria significativa para pensar a constituio da sociedade e a configurao da comunidade em seus modos de organizao a partir dos nveis de delimitao do sensvel. A poltica da esttica combateria assim as hierarquias configurando um sistema de igualdade artstica que seria anlogo decadncia das hierarquias polticas e sociais. O entrelaamento entre a esttica e a poltica se evidencia no espao comum ao tornarem visveis as formas de fazer da arte que consequentemente influenciam as formas de fazer na sociedade atravs de sua linguagem particular que atinge de maneira ampliada os diversos sentidos. A comunho entre a esttica e a poltica viabiliza este deslocamento de papis sociais levando a uma situao de compromisso poltico diferenciado em funo do movimento de compaixo, que significa se colocar no lugar do outro. Olhar esteticamente estes grafites amplifica as possibilidades de relao com a cidade, com os objetos, com os outros e consigo mesmo, visto que os sujeitos, observando-os por outro ngulo e estabelecendo outras combinaes, criam para si novas formas de vida, compondo outras tramas de existncia, novos valores e novas sensibilidades, modificando-se profundamente neste processo. De acordo com Vigotski35, podemos pensar que trata-se de relaes estticas que possibilitam produzir outros sentidos para o que visto e reconhecido, assim como reconstruir o olhar sobre o mundo.

    33 CANCLINI, 2012, p. XXII. 34 RANCIRE, 2009. 35 VIGOTSKI, 1993.

  • Referncias BADERNA, Marieta. In Situacionista; Teoria e prtica da revoluo. So Paulo: Conrad, 2002. BARTHES, Roland. Semiologia e urbanismo. In: A aventura semiolgica. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 224. BAUDRILLARD, Jean. A troca simblica e a morte. So Paulo: Edies Loyola, 1996. BUENO, Maria Lcia. Artes Plsticas no sculo XX; modernidade e globalizao. Campinas, So Paulo: UNICAMP, 1999. CANCLINI, N. G. Culturas hbridas: estratgias para entrar e sair da modernidade. 4 ed. So Paulo: EdUSP, 2003 CANCLINI, N. G. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. CERTEAU, M. de. A inveno do cotidiano: artes de fazer. Petrpolis, RJ: Vozes, 1994. DANTAS, A. de M. O discurso e seus textos. In: Sobressaltos do Discurso: Algumas Aproximaes da Anlise do Discurso, Campina Grande: EDUFCG, 2007, p.87-96. FONSECA, Cristina. Grafite no sculo XX. Palestra concedida na Casa das Rosas, So Paulo, set. 2007. FOUCAULT, Michel. Microfsica do Poder. 5 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. MAGNANI, Jos Guilherme Cantor. Circuitos dos jovens urbanos. Tempo soc., So Paulo, v. 17, n. 2, 2005. Disponvel em: . (Acesso em 26/06/2012 s 22:30h) MARTN-BARBERO, Jess. Dos Meios s Mediaes: comunicao, cultura e hegemonia. 2. Ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2001. MELENDI, Maria Anglica. Imagens e Palavras. In ALMEIDA, Maria Ins de (org). Para que serve a escrita? So Paulo: EDUC, 2003. MONDARDO, Marcos Leandro; GOETTERT, Jones Dari. Territrios simblicos e de resistncia na cidade: grafias da pichao e do grafite. In Terr@Plural, n 2, Universidade Federal da Grande Dourados, 2008. NERY, Luciana Fernandes. A identidade do sujeito politico construda atravs da leitura de charges. In Anais do 4 CELLI Colquio de Estudos Lingusticos e Literrios. Maring, 2010. ORLANDI, E. P. Anlise do discurso: princpios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999. PETERSEN, Emlio. El graffiti en Buenos Aires. In http://www.elportaldemexico.com/arte/artesplasticas/graffiti.htm. (Acesso em 26/06/2012 s 22:30h) RANCIRE, Jaques. A partilha do sensvel. 2. Ed. So Paulo: Editora 34, 2009. SILVA, Armando. Imaginrios urbanos. So Paulo: Perspectiva, 2001.

  • SILVA, Armando. Punto de vista ciudadano; focalizacin visual y puesta en escena del graffiti. Bogot: Publicaciones Del Instituto Caro Y Cuervo, 1987. VENEROSO, Maria do Carmo Freitas. Caligrafias e escrituras: dilogo e intertexto no processo escritural nas artes no sculo XX. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2012. VENEROSO, Maria do Carmo Freitas; MELENDI, Maria Anglica (org.). Dilogos entre linguagens: artes plsticas, cinema, artes cnicas.. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2009. VIANA, Maria Luiza Dias. Dissidncia e subordinao: um estudo dos grafites como fenmeno esttico/cultural e seus desdobramentos. Tese (doutorado) Universidade Federal de Minais Gerais, Escola de Belas Artes, 2007. Vigotski, L. S.. La imaginacin y el arte en la infancia. Madrid: Akal, 1993. XAVIER, Marcelo. Paris, maio de 1968: A irreverncia e a rebeldia dos estudantes franceses arrancaram paraleleppedos e deixaram sementes de mudana. Rabisco Revista de Cultura Pop, 18. ed. 8 a 21 maio 2003.