Estilo e Política

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    Estilo e poltica: a questo da terra e a matriz cultural do mandonismo em O rei do gado, de Benedito Ruy Barbosa Reinaldo Maximiano Pereira e Simone Maria Rocha Introduo

    Neste captulo, o nosso esforo de anlise do estilo televisivo se orienta na identificao e

    compreenso de qual matriz cultural sustenta a tematizao da terra em sequncia extrada na tele-

    novela O rei do gado1, de Benedito Ruy Barbosa. Seguindo os aportes apresentados na introduo e

    no captulo um deste volume apoiamos-nos na metodologia de anlise da forma textual televisiva

    ficcional, que nos permita observar as conexes a atravessamentos que existem entre a telenovela e

    a cultura. Assim, o nosso trajeto reflexivo parte do meio, da compreenso dos produtos televisivos

    como prtica cultural, para as questes relacionadas cultura a se considerar a dimenso visual.

    A teledramaturgia de Barbosa reconhecida, no Brasil, por pesquisadores (LOPES, 2003;

    FANTINATTI, 2004; ROMANO, 2003; PORTO, 1994) como a que mais lida com a temtica rural.

    Ns concordamos, em parte, com essa perspectiva, mas constatamos, nesta teledramaturgia, a exis-

    tncia de um tema transversal: a terra. Cremos que a partir da terra que as questes de nossa cul-

    tura poltica so debatidas e fornecem entrechos para a composio do melodrama.

    Cremos, ainda, que a articulao interna da temtica da terra na tessitura televisual (a mon-

    tagem, a mise-en-scne, o posicionamento dos atores, a banda sonora, etc.) faz ascender uma poti-

    ca, que nos permite reconhecer no apenas a existncia do estilo televisivo (BUTLER, 2010), mas

    o papel que ele exerce na complexidade e nas mudanas das narrativas em fico seriada (MITTEL,

    2006. THOMPSON, 2003), ao se apropriar de tcnicas de composio, como as do cinema, por

    exemplo, para solucionar questes do processo criativo no meio televisivo. Assim, observamos a

    televiso como um meio sincrtico, antropofgico, e com potencial artstico, aspecto esse negligen-

    ciado pela maioria dos estudos de televiso, ainda hoje.

    Por essa visada, ns acreditamos que a terra, em sua dimenso visual, no est relacionada

    apenas circunstncia de lugar, em um tempo especfico, ou contextual, mas condio de narrado-

    ra-personagem, no intratexto, dotada, em certa medida, de oniscincia (h saberes e movimentos

    que provm da terra) e onipresena (a terra est sempre presente quer visualmente ou nas falas das

    personagens), ou seja, a terra espao, tempo, personagem e enredo. Desse modo, ao obser-

    varmos a telenovela O rei do gado, objeto de nossa anlise, temos, de um lado, a constatao de que

    Barbosa trabalha a questo da terra em suas obras de teledramaturgia; e, de outro lado, que esta

    questo assenta-se em determinadas matrizes culturais, o que, cremos, mais complexo que dizer

    1 Exibida pela Rede Globo entre 17 de junho de 1996 e 14 de fevereiro de 1997. A reprise foi exibida pelo Canal Viva (Canais Globosat) entre 9 de fevereiro de 2011 e 30 de novembro de 2011.

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    que a temtica da telenovela rural. Observamos, ainda, que a questo da terra, nas obras de Barbo-

    sa, faz ressaltar as relaes de mando, de poder, de desigualdade e de subjugo, traos longevos da

    cultura poltica brasileira.

    Falamos de matrizes culturais tendo por base a influente obra de Jess Martn-Barbero (2001) e o

    que tal conceito significa ao evocar toda a riqueza de determinaes locais e histricas que ficam fora tanto

    do cdigo quanto do prprio texto, cuja abordagem mostra-se necessria anlise que pretendemos empre-

    ender, se desejamos proceder a uma investigao do papel da televiso na cultura que no resulte por empo-

    brec-lo. A noo de matriz assumida como metfora para evidenciar aquilo que se mostra incalculvel

    (histrico, processual, local, popular) no mbito da comunicao massiva mas que a subjaz e a sustenta. No caso especfico de O rei do gado, a existncia de um ncleo dramtico composto por tra-

    balhadores rurais sem terra ancora o enredo nas tenses e conflitos entre agentes latifundirios em-

    poderados e agentes no revestidos de poder interagindo no contexto de luta pela terra, no Brasil

    dos anos 1990. Elegemos, ento, para escrutnio um evento narrativo, unidade de anlise explicitada

    no captulo trs, extrado dessa telenovela o qual nomeamos como A marcha dos sem-terra para

    ocupar uma fazenda improdutiva, no Mato Grosso do Sul, exibida entre os captulos 45, 46, 47,48 e

    492.

    Elementos para uma anlise de estilo

    Buscar uma metodologia de anlise da forma textual televisiva exige a explorao de um

    mtodo coerente de observao das materialidades visuais. Para tanto, destacamos a proposta de

    W.J.T. Mitchell (2005), no campo dos Estudos Visuais como uma via promissora de abordagem de

    produtos televisuais que incluam sua proeminente dimenso visual. O autor distingue Estudos Vi-

    suais de Cultura Visual, definindo o primeiro como o campo e o segundo como o objeto de estu-

    do. Dessa forma, ele prope que os Estudos Visuais seriam um campo acadmico recente que busca

    entender as visualidades como prticas sociais, culturais e polticas. Assim esto envolvidas nesse

    campo, a construo visual do social e a construo social do visual. Nesse aspecto, um conceito

    importante entra em cena: a visualidade que, para o autor, vem a ser um conjunto de prticas de ver

    o mundo em que se processam os regimes de visibilidade, o modo como as questes socioculturais

    so representadas. Ao propor essas novas relaes que problematizem a experincia do olhar no

    mbito da cultura, entre um sujeito que olha e um objeto contemplado, Mitchell coloca a noo de

    visualidade no centro dos estudos de cultura visual. A partir dela possvel entender nossos modos

    de ver (e de perceber) no apenas como uma operao fisiolgica mas, tambm, como um gesto

    cultural, a viso to importante como a linguagem, como mediador das relaes sociais e, portan-

    to, no se pode reduzir a linguagem a um signo ou a um discurso (GUASCH, 2003, p. 11).

    2 Entre 7 a 12 de agosto de 1996, da exibio original. Entre 1 a 6 de abril de 2011, da reprise.

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    O campo dos Estudos Visuais composto por atravessamentos de aportes conceituais da his-

    tria da arte e da esttica, mas tambm dos estudos sobre a tica fsica, do cinema, da televiso, da

    mdia digital, etc. Abrange, ainda, as contribuies da semitica, da filosofia, da sociologia, da an-

    tropologia, da comunicao e outras reas afins. Nesse percurso, Mitchell introduz o conceito de

    picture, isto , o conjunto complexo de elementos virtuais, materiais e simblicos, e de significan-

    tes virtuais e reais, em uma situao de contemplao3 (MITCHELL, 2005, p.68 traduo nossa).

    Segundo o autor, poderamos entender as pictures como a situao na qual uma imagem faz a sua

    apario, e por extenso, a imagem em situao.

    Esse gesto interpretativo nos parece adequado, pois buscamos no confinar o objeto de estu-

    do e televiso em uma teoria cultural dada, a piori, que, geralmente, enquadra o meio numa relao

    de dependncia com outras artes, como o cinema, por exemplo, ou que observa a televiso com um

    meio meramente transmissivo e insatisfatrio em termos estticos e artsticos. Como esse movimen-

    to requer como amostra a forma textual, ns recorremos s dimenses de anlise do estilo televisivo

    propostas por Butler (2010) como forma de materializar como certa visualidade dar a ver fenme-

    nos scio-histricos que, embora constituintes, ficam fora tanto do cdigo quanto do prprio texto.

    Em sntese, tentaremos, pois, exercitar um instrumental metodolgico em dilogo com o

    gesto interpretativo das pictures proposto por Mitchell, cujo esforo analtico parte da questo pro-

    posta pelo prprio autor: O que as pictures querem? A questo sugere que o pesquisador, ao se

    defrontar com as pictures, no lance significados de antemo, mas se questione sobre o seu desejo,

    pois elas devem ser observadas como seres vivos que podem ter algo a dizer. Nossa hiptese a de

    que, por meio da anlise de estilo, elas digam de um determinado aspecto da figurao da terra e

    qual matriz a subjaz.

    Anlise do evento: Mas que terra?

    Para compreenso o excerto posto em anlise , pois, necessrio uma contextualizao do

    enredo e dos principais ncleos da trama4.

    O Reio do Gado uma novela composta por duas fases. A primeira comea retratando o

    dio entre duas famlias, Os Mezenga e os Berdinazzi que, sendo vizinhos, vivem em conflito por

    causa de uma cerca que delimita os limites de suas respectivas propriedades. Em virtude dessa con-

    tenda ambas as famlias probem seus filhos de viverem o grande amor recproco de Henrico

    (Leonardo Brcio) por Giovanna (Letcia Spiller). Mesmo casados, ser preciso que fujam da locali-

    dade para construrem sua vida a dois e criarem seu nico filho, Bruno Mezenga.

    3 Preservamos a grafia em ingls, pois a definio envolve elementos que expandem o sentido de quadro, imagem ou retrato, e abarcam materialidades, sensorialidades e contemplao. 4 Sinopse baseada nas informaes disponveis no site http://www.teledramaturgia.com.br/, acesso em 24 jul de 2015.

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    Na segunda fase Bruno Mezenga (Antnio Fagundes), j homem feito, transforma-se num

    dos maiores criadores de gado do pas, conhecido como o Rei do Gado. Ele no tinha nenhuma con-

    tato com o que restou da famlia de sua me, at se apaixonar pela jovem Luana (Patrcia Pilar),

    uma bia-fria, sem conhecimento de seu prprio passado, e que vem a ser a sobrinha e nica herdei-

    ra de Jeremias Berdinazzi (Raul Cortez), tio de Bruno. Nesta segunda fase, Benedito Ruy Barbo-

    sa retorna as discusses sobre a reforma agrria, abordada anteriormente em sua outra telenove-

    la, Meu Pedacinho de Cho, e a vida dos trabalhadores do Movimento dos Sem Terra (MST) pela

    luta da posse de terras.

    Na economia da narrativa de O rei do gado, aps algumas tentativas frustradas de assentar

    um grupo de trabalhadores rurais sem-terra, o lder do movimento, Regino (Jackson Antunes), bus-

    ca por mais uma possibilidade de assentar trabalhadores rurais em alguma extenso de terra impro-

    dutiva, no interior do estado de Mato Grosso do Sul, no captulo 45 da telenovela.

    No captulo 46, o grupo aguarda um sinal de Regino para ocupao de uma fazenda que no

    est destinada nem para a agricultura e nem para a pecuria. Mesmo ciente de que as terras esto

    porm protegidas por jagunos5 armados, o lder decide que chegado o momento de ocupar. Tal

    feito acontece no captulo 47 quando Regino e os trabalhadores sem-terra seguem em marcha para o

    lugar. Outras aes do captulo suspendem esse evento narrativo, temporariamente, para que outros

    possam ser desenvolvidos. No ltimo bloco do captulo 476, a marcha alcana a fazenda. Em Bras-

    lia, em ao simultnea, o senador Caxias (Carlos Vereza) conversa ao telefone com o proprietrio

    das terras e informado que os jagunos esto prontos para defend-las.

    Nossa anlise se concentra nos 2min30 iniciais da invaso e comea pela descrio dos ele-

    mentos que compem a forma textual televisiva. Alguns elementos dessa sequncia so notveis

    como a trilha sonora, os enquadramentos e a montagem que corroboram para construo do con-

    fronto em iminncia, em curso ou, sugestivamente, em marcha. A sequncia abre ao som dos versos

    vocs que fazem parte dessa massa, que passa nos projetos do futuro, da msica Admirvel gado

    novo, do cantor e compositor brasileiro Z Ramalho. A msica embala toda a sequncia e seus ver-

    sos, por vezes, casam-se com as personagens em ao e com as situaes. Um movimento de grua

    enquadra a marcha dos trabalhadores sem-terra e, em seguida, um plano aberto mostra um terreno

    rido que pouco ou nada se produz e um grupo de pessoas que marcham em direo ao centro do

    quadro dramtico (Fig. 1).

    5 No contexto histrico, de acordo com Carvalho (1997) e Leal (1997), o termo designa um fora da lei ou homem vio-lento contratado para fazer a guarda de um fazendeiro e/ou poltico e por este homiziado. 6 Cada captulo de O rei do gado durava 50min e eram divididos em cinco blocos de 10min.

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    Fig. 1: movimento de grua enquadra a marcha dos trabalhadores sem-terra e um pano aberto mostra sua ocupa-o

    H um corte e, Regino que est vestido com uma camisa verde, enquadrado em primeiro

    plano (PP). O lder dos sem-terra prossegue a marcha aumentando a sua proporo no quadro al-

    ando o primeirssimo plano (PPP). A personagem sai do quadro e a cmera se move em sentido

    esquerdo para enquadrar, em plano conjunto (PC), os sem-terra que o seguem. Neste instante, ou-

    vimos os versos eeeeh! Oh! Oh! Vida de gado! Povo marcado, h! Povo feliz! (Fig. 2).

    Fig. 2: Alternncia do PP para PPP e PC, ao som de Admirvel gado novo, de Z Ramalho

    Outro corte (Fig. 3) e desta vez a marcha dos sem-terra enquadrada pelas costas numa po-

    sio de cmera que despersonaliza ao no identificar os rostos desses trabalhadores, ao mesmo

    tempo em que sinaliza um trao de semelhana que os une na luta. Em mais um corte, Jacira (Ana

    Beatriz Nogueira), esposa de Regino, enquadrada, pela primeira vez, com expresso inquieta. A

    cmera deriva pela direita e enquadra Regino numa feio que chega a lembrar a passagem Blblica

    do xodo, quando Moiss, no deserto, sustenta o olhar alando o horizonte, a terra prometida

    mais adiante.

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    Fig 3: A marcha segue em direo sede da fazenda

    Em seguida, um novo movimento de grua (aps um corte) repete o enquadramento inicial

    derivando desta vez para direita. No quadro, vemos a extenso da terra rida e os trabalhadores ru-

    rais quase reduzidos dimenso de formigas (pequenas obreiras da terra). Isso denota, cremos, a

    importncia que a terra tem como tema desta telenovela e deste evento narrativo, em especfico

    (Fig. 4).

    Fig. 4: a terra assume a maior poro do quadro

    H um corte, para uma ambiente interno e o cenrio o de um apartamento funcional em

    Braslia, residncia do Senador Caxias (Carlos Vereza). Pelo telefone, o senador informado pelo

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    dono daquelas terras que um forte esquema de segurana aguarda os sem-terra. Nesta sequncia,

    percebemos uma variao na fotografia, pois o apartamento de Caxias escuro e ele confinado

    num enquadramento em PP. Quando o poltico recomenda ao fazendeiro: Voc me tira esse pesso-

    al da, rapaz! No v provocar uma mortandade!, temos o primeiro dilogo dessa sequncia, mo-

    mento em que o tema musical tem seu volume reduzido para o prximo proferimento do senador:

    Eu seu. Eu sei. Mas nada justifica essa violncia. Escuta, o que que voc tem l?. O som sobe e

    ouvimos os versos L fora faz um tempo confortvel / A vigilncia cuida do normal. H uma fu-

    so e vemos um dos jagunos, de costas e armado, enquanto prossegue a msica: Os automveis

    ouvem a notcia / Os homens a publicam no jornal.

    Deste momento em diante, a montagem permite-nos acompanhar quatro aes simultneas

    que potencializam a tenso e sugerem a iminncia do massacre (Fig. 5): i) a marcha dos sem-terra

    em direo sede da fazenda; ii) o senador, em Braslia, tentando negociar com o fazendeiro a reti-

    rada dos jagunos e evitar o confronto; iii) o fazendeiro irredutvel no intento de evitar o que se en-

    tende por invaso. Sugestivo neste ponto que essa personagem seja inominada, no vista e

    nem ouvida pelo espectador; iv) os jagunos se preparando para a chacina. Os versos de Z Rama-

    lho so significativos nesse contexto ao expressarem o conflito eminente, a notcia que estar por vir.

    Fig. 5: A montagem auxilia na composio das aes simultneas marcha dos sem-terra.

    A alternncia de situaes instaura o conflito em cena e ele est associado ao status impro-

    dutivo daquelas terras. Assim temos, a convergncia de quatro instncias com demandas em relao

    ao acesso terra: i) o senador na posio de apaziguador e representante de uma poltica de distri-

    buio de terras, a Reforma Agrria; ii) o fazendeiro como a fora conservadora que entende a mo-

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    bilizao dos sem-terra como invaso de propriedade privada e que exerce sua expresso de man-

    do ordenando a retirada dos sem-terra de modo arbitrrio; iii) os jagunos como executores do po-

    der arbitrrio; iv) os sem-terra como agentes de uma mobilizao social que demanda de instncia

    de representao poltica a desapropriao de terra devolutas e improdutivas para Reforma Agrria.

    O dilogo do senador, ao telefone, se intensifica, assim como a movimentao dos homens

    armados que fazem a segurana da propriedade. O chefe dos jagunos, Luprcio (Fig. 6), visto

    saindo armado de uma tapera. Em outro plano, o poltico questiona o latifundirio sobre a natureza

    daquela propriedade rural: Plantao? Plantao de qu?. Segue-se a imagem em PPP da terra

    rida, sugerindo como resposta indagao do Senador de que o lugar improdutivo. O movimento

    de cmera se arrasta rente ao solo at mostrar Regino, seguido dos sem-terra, caminhando em dire-

    o sede da fazenda. quando ouvimos a reprimenda de Caxias: Se voc no tem nada l, voc

    ta defendendo o qu?. Outro corte, em contra-plonge vemos Luprcio armado; os jagunos de

    entreolham e, em seguida, ouvimos a fala do senador: Mas que terra?. Na tessitura televisual,

    esses elementos expressam a iminncia do conflito na telenovela.

    Fig. 6: Mas que terra?: A montagem potencializa a tenso e auxilia na composio pr-conflito

    Consideraes sobre a terra: o mandonismo e o latifndio

    A anlise formal do texto televisivo nos permitiu, neste caso, observar como enquadramen-

    to, montagem e a trilha sonora constroem significados sobre as relaes de mandonismo e seu car-

    ter longevo na cultura poltica brasileira. H um sentido arbitrrio expresso na presena/ausncia do

    fazendeiro, interlocutor de Caxias, inominado e no visto, tornado visvel apenas de maneira imi-

    nente, como aquela voz que est por trs dos massacres, que ordena, que manda. Seu argumento

    o de defender e/ou preservar a posse e terras a partir de uma noo de direito propriedade.

    No apenas esse fazendeiro age assim. Outros como Bruno Mezenga e Jeremias Berdinazi, prota-

    gonistas da trama, entendem a mobilizao dos sem-terra como uma ao de invaso s proprieda-

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    des privadas e exercem presso em representantes polticos para proteger suas terras e as reguar-

    darem como produtivas, assim, elas permancem fora do alcance das polticas de assentamento de

    trabalhadores rurais.

    Um exemplo disso a forma como Mezenga acossa o Senador Caxias para pressionar os

    demais senadores em Braslia uma soluo para a Reforma Agrria, sem interferir nos latifndios, e

    para retirar da fazenda, em Pereira Barreto (SP), um grupo de sem-terras que esto l acampados,

    no captulo 12 da telenovela: Eu no vou recorrer justia nenhuma, senador, os responsveis por

    essa situao vo ter que resolver essa situao. Se no, eu tiro as minhas 15 mil cabeas que eu

    tenho l e trago aqui pra Praa dos Trs Poderes. Venho de ponteiro com o meu berrante na mo.

    E o que a matriz do mandonismo?

    As expresses de mandonismo (LEAL, 1997; CARVALHO,1997) referem-se existncia

    local de estruturas oligrquicas e personalizadas de poder. H vrias designaes: mando, potenta-

    do, chefe e coronel. Geralmente, qualifica o indivduo que tem a posse algum recurso estratgico,

    notadamente, a terra, e que exerce poder arbitrrio sobre a populao e sobre representantes polti-

    cos (Carvalho, 1997). Esse poder era expresso, por exemplo, no perodo do Coronelismo (1889 a

    1930), na deteno de cargos pblicos, por representantes dos mandes locais, que tinham acesso ao

    errio e facilidades de crdito, pelo voto de cabresto, pelas relaes de troca de natureza cliente-

    lstica, compadrio e pelas disputas com outros mandes. importante ressaltar, em concordncia

    com esses autores, que o mandonismo no um sistema, uma caracterstica da poltica tradicional

    existente desde colonizao e que, ainda, sobrevive dada a extenso do territrio brasileiro e as de-

    sigualdades regionais.

    Segundo Carvalho (1997), a tendncia que o mandonismo desaparea medida que os di-

    reitos civis se estendem para a populao em todo territrio nacional. No evento narrativo em apre-

    o, fizemos notar que, justamente, o latifundirio no aparea nomeado e personificado. Ele aparece

    justamente recorrendo representao poltica e alertando que suas terras no sero invadidas.

    uma voz que no se ouve, mas que se manifesta pelas vias da violncia e no pelas vias legais.

    pois importante entender que o mandonismo e o clientelismo so matrizes culturais, so fenmenos

    polticos amplos que mudam, historicamente, de acordo com os recursos controlados pelos atores

    polticos, em nosso caso pelos mandes e pelo governo (CARVALHO, 1997).

    No Brasil, segundo o INCRA, 3% do total das propriedades rurais do pas so latifndios e

    corresponde a quase 60% das terras agricultveis. Na vasta extenso do territrio brasileiro as ga-

    rantias de permanncia em assentamentos operam-se de forma desigual a ponto de ainda registrar-

    mos tenses e conflitos em torno da terra, inclusive em reas de reserva indgenas e comunidades

    quilombolas visadas por estruturas locais de mando ali remanescentes.

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    De acordo com Nakatani, Faleiros e Vargas (2012), h um obstculo para as polticas de re-

    forma agrria no pas que a crescente aquisio de terra agricultveis por grandes empresas de

    capital estrangeiro para a produo de etanol e outras agroenergias. Assim, em termos histricos, a

    concentrao de terra est relacionada, conforme Carvalho (1997), propriedade de recursos estra-

    tgicos para o nosso modelo econmico. Hoje, esse modelo altamente dependente de commodities

    produzidas em larga escala, da a manuteno dos latifndios e a reduo do crdito destinado

    poltica de assentamentos agrrios, somado ao alto preo da terra.

    No Brasil, as polticas de Reforma Agrria se caracterizam como um longo processo de luta

    no apenas contra concentrao de grandes extenses de terras como, tambm, contra a excluso

    dos trabalhadores rurais no acesso s polticas sociais trabalhistas (GARCIA JR, 1983). Em 1930,

    por exemplo, no governo de Getlio Vargas, o Brasil vivia discrepncia em termos do projeto de

    desenvolvimento, pois de um lado tnhamos as indstrias de base (Companhia Siderrgica Nacional

    (CSN), a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e a Companhia Hidreltrica do So Francisco

    (CHESF)) e de uma estrutura fundiria que era um reflexo do Brasil Imprio com grandes proprie-

    dades decadentes voltada para a monocultura do caf.

    Na agenda poltica daquele momento histrico havia a demanda do tenentismo7 por uma po-

    ltica de reforma e a presso dos latifundirios para manuteno de suas propriedades. Segundo

    Afrnio Garcia Jnior (1983), apenas nos anos 1950, registraremos as primeiras organizaes de

    trabalhadores rurais como as Ligas Camponesas, em decorrncia de uma srie de conflitos em dife-

    rentes regies do territrio brasileiro. Apoiadas pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), as Ligas

    se concentram em regies do norte e nordeste (MARTINS, 1981). Nos anos 1960 (FAUSTO,

    2006), a reforma agrria estava nas chamadas Reformas de Base (agrria, urbana, bancria e es-

    tudantil). Em 1964, j aps o golpe militar que deps Joo Goulart, foi aprovada Lei N. 4.504 so-

    bre o Estatuto da Terra que IBRA e o INDA (Instituto Brasileiro de Reforma Agrria e Instituto

    Nacional de Desenvolvimento Agrrio, respectivamente). Mas a ao dos militares favoreceu e au-

    mentou o nmero de latifndios, atrasando o processo de reforma. A pauta retorna com nfase no

    ps Diretas j, em 1984 e nos anos 1990, com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    (MST).

    As lutas e conflitos por terra alaram a agenda pblica de debates, poca de O rei do gado

    com o Massacre de Corumbiara, em 9 de agosto de 1995, no estado de Rondnia; e o Massacre de

    7 O tenentismo foi um movimento que ganhou fora entre militares de mdia e baixa patente durante os ltimos anos da Repblica Velha. No momento em que surgiu o levante dos militares, a inconformidade das classes mdias urbanas contra os desmandos e o conservadorismo presentes na cultura poltica do pas se expressava. Ao mesmo tempo, o te-nentismo era mais uma clara evidncia do processo de diluio da hegemonia dos grupos polticos vinculados ao meio rural brasileiro. Disponvel em http://www.brasilescola.com/historiab/tenentismo.htm, consultado em 24 jul. 2015.

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    Eldorado dos Carajs, em 17 de abril de 1996, no Par. O primeiro foi um confronto entre policiais

    e pistoleiros recrutados por fazendeiros no entorno da Fazenda Santa, um latifndio improdutivo, e

    camponeses sem-terra. O conflito resultou em um nmero ainda impreciso de mortos mas, especu-

    la-se em cem. J o Massacre de Eldorado dos Carajs alcanou repercusso na imprensa internacio-

    nal quando 1500 trabalhadores integrantes do Movimento dos Trabalhadores rurais Sem Terra

    (MST)8 protestavam, na BR-155, no estado do Par, contra a demora da desapropriao de terras da

    Fazenda Macaxeira. O ento governador Almir Gabriel, designou Polcia Militar (PM) uma ao

    para desocupar a via que liga a regio capital Belm e ao sul do estado.

    Houve confronto e 19 trabalhadores rurais foram mortos com tiros queima roupa e mais de

    50 feridos.O caso evidenciou que a questo agrria, no Brasil, em pleno perodo de redemocratiza-

    o, estava insoluta. Naquele contexto, a televiso exerceu um papel importante na construo de

    determinada visualidade do MST bem como a imprensa escrita, com destaque para o caso da revista

    Veja que, na edio de 1441, de 24 de abril de 1996, investiu na tese de que o MST era cooptado

    por sindicatos e partidos de esquerda e reunia homens armados com tradio de enfrentar a polcia.

    A imagem construda sobre os sem terra, ento, se dava no embate de perspectivas que iam do mo-

    vimento legtimo de luta por reconhecimento, na dimenso do direito (HONNETH, 2003) concep-

    o de sindicado-partido cujos integrantes so treinados pelas Foras Armadas Revolucionrias da

    Colmbia (Farc) com o objetivo de invadir de propriedades privadas, conforme podemos ver na

    figura 7.

    Fig. 7: Edio 1441 da revista Veja dando destaque para o Massacre de Eldorado dos Carajs, no estado do Par.

    Em O rei do gado, o ncleo de trabalhadores rurais sem terra tinha como lder o agricultor

    Regino. Na economia do enredo, trata-se de um homem honesto, com vocao para o trabalho com

    8 Criado no ps Diretas J como uma mobilizao de luta pela Reforma Agrria no Brasil cuja agenda estava suspensa desde a deposio de Joo Goulart pelos militares.

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    terra, sem filiao partidria e que entra em confronto com outras lideranas do movimento por ser

    contrrio cooptao do movimento por partidos polticos. A interlocuo desse lder com as ins-

    tncias de representao da poltica formal est personificada no senador Caxias9, um poltico ho-

    nesto que defende a reforma agrria. O Massacre de Carajs mencionado na novela em diferentes

    ocasies polarizando os sentidos de ocupao e invaso.

    A referencialidade poltica de O rei do gado no tema da reforma agrria, nos anos 1990, em

    pleno governo Fernando Henrique Cardoso (de 01/01/1995 a 01/01/2003), veio em um momento

    oportuno pois a visibilidade de casos como os massacres de Eldorado dos Carajs e de Corumbiara

    (1995) colocavam a a necessidade de uma poltica de assentamentos em curso que garantam: acesso

    a terra; acesso poltica de aplicao de crdito; assistncia tcnica e meios de preservao dos re-

    cursos naturais; dignidade e bem o estar social. Em 1996, ano da novela, os assentamentos de traba-

    lhadores rurais, em nmeros oficiais, segundo INCRA (2013), era de 62.044 (no total das regies do

    pas). Em 2011, ano que a novela foi reprisada pelo Canal Viva, esse nmero era de 22.021. Os n-

    meros mais altos de assentamentos esto compreendidos entre os governos Fernando Henrique

    (101.094 famlias, em 1997) e Luis Incio Lula da Silva (2003/2010), 136.358, em 2006. A dificul-

    dade, hoje, garantir s famlias assentadas a infra-estrutura para se instalar, manter e produzir.

    Entendemos que a visualidade do evento analisado nos deu a ver tanto as matrizes do man-

    donismo e do latifndio que subjazem os conflitos de terra no Brasil quanto nos abriu caminho para

    adentrarmos na questo que perdura at hoje, envolvendo novos atores, novos aspectos, no s pol-

    ticos como econmicos e nos permitiu entender que a dimenso visual dos produtos televisivos so

    potncias de significado que se situam para alm do texto; no contexto e na cultura.

    Referncias bibliogrficas BERGAMO, M. e CAMAROTTI, G. Sangue em Eldorado. Veja, So Paulo, ED. 1441, p. 34-43, 24 abril de 1996. BUTLER, J. Television style. New York: Routledge, 2010. CARVALHO, J. M de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discusso Conceitual. Dados, Rio de Janeiro , v. 40, n. 2, 1997 . Disponvel em . ltimo acesso em 01 Maio de 2014. FANTINATTI, M. M. C. M. A nova Rede Globo: trabalhadores e movimentos sociais nas telenove-las de Benedito Ruy Barbosa. 2004. Tese (Doutorado em Cincias Sociais) Universidade Estadual de Campinas, So Paulo, 2004. GARCIA JR., A. R. Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. GOHN, G. M. Os sem-terra, ONGs e cidadania. So Paulo: Cortez, 1997. GUASCH, A. M. Los estudios visuales, un estado de la cuestin. Estudios Visuales, n. 1, nov, 2003.

    9 No Brasil, o nome Caxias , geralmente, associado pessoa que cumpre com extremo escrpulo suas obrigaes e exige dos subordinados a mesma postura. , amplamente, aceita a tese de que o termo deriva do comportamento do Duque de Caxias.

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    HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramtica moral dos conflitos sociais. Trad. de Luiz Repa. So Paulo: Ed. 34, 2003. INCRA. Assentamentos De Trabalhadores(as) Rurais - Nmeros Oficiais. 31 de dezembro de 2013. Disponvel em: http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/reforma-agraria/questao-agraria/reforma-agraria/02-assentamentos.pdf. Acesso em: 8 de outubro de 2014. LOPES, M. I. V. A telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nao. Revista Comunicao & Educao, 25. So Paulo, jan/abr de 2003. LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto. So Paulo: Nova Fronteira, 1997. NAKATANI, P.; FALEIROS, R. N.; VARGAS, N. C. Histrico e os limites da reforma agrria na contemporaneidade brasileira. Serv. Soc. Soc., So Paulo , n. 110, p. 213-240, June 2012. Dispo-nvel em . ltimo acesso em 01 Maio de 2014. MARTN-BARBERO, J. Dos meios s mediaes. RJ: Editora UFRJ, 2001. MARTINS, J. S. Os Camponeses e a poltica no Brasil. Petrpolis: Editora Vozes, 1981. MITCHELL, W.J.T. What do pictures really want? The University of Chicago Press, 2005. MITTELL, J. Television and American Culture. New York: Oxford University Press, 2010. PORTO, M. P. Telenovelas e imaginrio poltico no Brasil. Petrpolis: Editora Vozes, 1994, Vol. 88, n. 6, novembro-dezembro, 2004. ROMANO, M. C. J. S. Telenovela e representao social. Benedito Rui Barbosa e a representao do popular na telenovela. Rio de Janeiro: e-papers editora, 2003. THOMPSON, K. Storytelling in Film and Television. Cambridge/Londres: Harvard University Press, 2003. Telenovela: O REI DO GADO. Novela roduzida e exibida pela TV Globo. De Benedito Ruy Barbosa. Escrita por Benedito Ruy Barbosa, Edmara Barbosa e Edilene Barbosa. Direo: Luiz Fernando Carvalho. Elenco: Antnio Fagundes, Patrcia Pillar, Raul Cortez, Carlos Vereza e outros. Rio de Janeiro, 20h, 17 de junho de 1996 a 15 de fevereiro de 1997, 209 captulos, cor. (acervo pessoal)