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Estão voltando as flores

Com a chegada da primavera, a hora é de repensar as cores e os odores doRio da nossa melhor memória afetiva. Quem viveu a cidade nas décadas de 50 e60 sabe perfeitamente que me refiro às flores, como os jasmins, que eramobjeto de muitos cuidados dos atentos jardineiros antigos (quase sempre imi-grantes portugueses, como portugueses também eram os motoristas e os tro-cadores dos bondes). Era delicioso passar por bairros inteiros das zonas Sul eNorte e sentir – sobretudo nas noites quentes de verão – aquele odor meiodoce, meio selvagem, de damas-da-noite, murtas, manacás, jasmins-estrela emanga, misturado com resedás, margaridas e amores-perfeitos, lírios, gérbe-ras e heras diversas. Não tenho qualquer ilusão de que boa parte dos perfumo-sos odores do Rio vinham dos jardins das casas, destruídas pela falta de pla-nejamento urbano e pela ganância imobiliária.

Seja como for, estamos em plena campanha, aqui na CarioquiceCarioquiceCarioquiceCarioquiceCarioquice, pelaauto-estima do Rio. Cabe, pois, uma Prefeitura Dona-de-Casa recuperar os odo-res e as cores de um Rio que já foi amável, amorável e civilizado. Ao menos nosespaços públicos, ou seja, nos parques, nas praças, nos calçadões e em jardi-neiras de rua dos bairros. Estas, de resto, com ajuda necessária dos morado-res e/ou comerciantes locais.

Até porque as flores praticamente sumiram do Rio há três décadas: cadê aencantadora simplicidade e graça dos gerânios, das margaridas, dos hibiscos,das alamandras ou até das fáceis marias-sem-vergonha? Isso, para não exigiras difíceis rosas, como na maioria dos jardins públicos dos irmãos latino-ame-ricanos, Argentina e Chile à frente.

E as flores sumiram logo aqui no Rio, um absurdo dos absurdos num climaameno como o carioca, sem neve, sem geada, sem afinal as oscilações bruscasde temperatura dos países citados ou os do Hemisfério Norte. Pois é exata-mente neles, com todas as adversidades, que as flores se constituem num es-petáculo de beleza e de renascer a cada primavera-verão, bem-cuidadíssimas,protegidas e até exigidas pelos moradores de cada cidade que se preze.

Portanto, vale exortar a que se devolvam as cores e os odores tradicionaisdo Rio à cidade toda. Aliás, agora mesmo acode-me à memória uma bela cam-panha empreendida pela atriz Sônia Braga em fins do século passado (1999).Ela envergou uma vassoura numa mão e flores na outra e saiu pelas ruas doRio. A limpá-las e a provocar a necessidade de mais flores para o Rio. Que talpropor à cidadania carioca repetir Sônia Braga?

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Ele já nos guiou, através de seu livro “Guim-baustrilho e Outros Mistérios Suburbanos”, numpasseio pela geografia e as histórias saborosasda Zona Norte carioca e Baixada Fluminense. Ele-mentos que povoam o universo das composi-ções do sambista, advogado, pesquisador dacultura afro-brasileira e escritor, com uma deze-na de livros publicados e mais três prontos parasair, Nei Lopes.

“O subúrbio é a matriz da cultura carioca”,afirma Nei. Embora admita que na Zona Sul exis-tam bolsões de comportamento suburbano, dasturmas de botequim, de vizinhos. “Tudo no bomsentido, claro”, esclarece.

Vale explicar que, para o carioca, o Rio estádividido entre a Zona Sul (com os bairros daorla), a Zona Norte (longe do mar) e os subúr-bios da Central e da Leopoldina. Mas Nei diz quetem muita preocupação em não colocar o subúr-bio como algo idealizado. Como a fonte, por ex-celência, de todos os costumes. “O que aconte-ce é que, pelas próprias condições geográficas,o subúrbio foi obrigado a formular sua própriapolítica cultural, digamos assim”, explica Nei.

E falar em subúrbio é falar em samba. E Neiaponta que hoje o gênero está vivendo momen-tos de grande diversificação. Ao mesmo tempoem que a escola de samba, musicalmente, estámuito ruim: “Privilegiaram o espetáculo em de-trimento da qualidade musical.” Nei chega a di-

Saindo do Centro, passando

pela Tijuca e seguindo pelos

subúrbios da Central e da

Leopoldina, o samba carioca vai

capilarizando o restante da

cidade com a pulsação da vida

percussionando em forma de

canção. Os bambas Nei Lopes,

Moacyr Luz e Aldir Blanc

fizeram um eletrocardiossamba

do Rio e afirmam que vai tudo

bem. Bate cada vez mais forte o

nosso coração.

samba, coração da cidade

minha alma canta

p o r vera de souza f o t o s adriana lorete

Moacyr Luz e Aldir Blanc

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minha alma canta

zer que as escolas de samba estão com seusdias contados, porque nasceram com uma fina-lidade: a de legitimar as comunidades negras. Eelas criaram esse tipo de manifestação que for-matou o samba no Rio de Janeiro. Mas ele seapressa em dizer que não é uma maneira derro-tista de pensar: “Antes de haver as escolas desamba, havia outras expressões que inclusivemorreram para que a escola de samba sobre-xistisse. Então, é um processo natural de esgo-tamento, que certamente vai dar origem a outracoisa.”

Mas ele lembra que, quando se fala em sam-ba, não se pode nem se deve ficar restrito àsescolas de samba. Muitas coisas acontecem,como os bailes, as gafieiras, os pagodes, asfestas familiares. E destaca que, fora da escolade samba, se faz samba muito bem. Nei sabe oque está falando, pois na década de 80 liderouo movimento do pagode de fundo de quintal,que foi uma das grandes revoluções aconteci-das na música popular brasileira, depois da BossaNova. Foi um movimento de típica resistência cul-tural, que deu origem a uma nova estética e queNei bem define como sendo “típico do caráterguerrilheiro das culturas africanas na diáspora”.

Mesmo dando a volta por cima, Nei tem umagrande preocupação com o que ele chama deuma estratégia, vinda de fora para dentro, nosentido de tornar a música do mundo inteiro umacoisa só. E ele diz que o grande empecilho é osamba, que é muito difícil, cheio de células rítmi-cas, de nuances. E chega a dizer que “tentaramfazer isso na década de 90, criando um sambapop, o breganejo, que teve vida curta, por seruma mentira”. De tudo isso uma certeza, muitagente nova e com um trabalho de qualidade estáaí, ele mesmo cita a cantora e instrumentista NilzeCarvalho, já um grande sucesso em diversospaíses, Dudu Nobre e muitos outros.

Fala, moacYr!

Para o compositor, instrumentista e produtorMoacyr Luz, a geografia do samba passa pelaspessoas. E, se hoje a Lapa é a grande renova-dora, tem também um lado curioso. Para ele éótimo ver a juventude prestando atenção no sam-ba. Mas, ao mesmo tempo, destaca, produz umaadoração ao samba antigo grande demais, e nãopermite a renovação: “Fica aquela veneração, queeu considero fundamental, mas não absoluta, aícones do passado.”

Já quem vai a um pagode em Oswaldo Cruz,diz ele, também vai cantar Candeia. “Mas cantamgente nova como eu, Wanderley Monteiro e ou-tros.” E comenta que, aos 46 anos, continua novo,porque o samba tem essas coisas, exemplifican-do que Walter Alfaiate gravou seu primeiro discoaos 70; Casquinha, que foi produzido por Moa-cyr, teve seu primeiro disco-solo aos 77. É o queele define como um feitiço do samba.

E é percorrendo essa geografia da cidade queMoacyr tem levado amigos em visita ao Rio. “Osmeus amigos, que antes reclamavam que eu nãoos levava a Zona Sul, hoje estão gostando de ficarpelo Centro, Irajá e Madureira, onde a Surica estáorganizando, de novo, as feijoadas da Portela”,conta. E destaca que aquele carioca que não seidentificava mais com a cidade, durante o Carna-val, voltou. Diz que os blocos reviveram, e quemsai do Rio não sabe o que está perdendo.

“No sábado, quando sai o Cordão do BolaPreta, os bares ficam tomados a par tir das7h.” E ali, conta Moacyr, pode-se ver uma sín-tese da cidade: formam-se glebas onde cadaturma tem suas camisetas, faz sua comida. Eprofetiza dizendo que daqui a pouco as pes-soas vão passar a chegar na madrugada, co-mendo as comidas malucas do Rio, como ummocotó para segurar.

Parceiro há 20 anos de Aldir Blanc, com quem

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minha alma canta

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já gravou mais de 80 músicas, além de cerca de50 que ainda estão na gaveta, Moacyr é o cria-dor, junto com o próprio Aldir e Paulo César Pi-nheiro, de “Saudades da Guanabara”, hino não-oficial da cidade, adotado pelos cariocas.

Mas saudades mesmo ele diz ter de AlbinoPinheiro. Da lacuna que ele deixou e que ninguémestá conseguindo preencher. E conta que não éo lado mais exposto de Albino – o projeto Seis eMeia – que o faz ter saudades e, sim, das coi-sas paralelas: “Ele levava o Candonga para fa-zer cabrito na casa do João Nogueira, e essehábito eu aprendi com ele.”

Moacyr conta que uma vez Albino o convidoupara fazer um show em Magé. Quando veio bus-cá-lo, no seu Opala Diplomata, mostrou o quetrazia na mala: um isopor cheio de cervejas ge-ladas para a viagem. O comboio de três carrosseguia viagem, quando Albino chegou a Citro-lândia e disse. “Vamos parar aqui, que eu co-nheço uma cachoeira maravilhosa”. Pararam, to-maram banho, beberam suas cervejas e segui-ram. “Achei aquilo tudo fascinante. Depois fiqueisabendo que aquilo era um hábito do Candon-ga.” E continua contando que Candonga eraaquele cara gordo, que ia e voltava em todas asescolas de samba, sempre com uma toalha. Alémde ser um especialista em fazer cabrito.” Masdiz a lenda que ele comia um inteiro (risos)”.

A cozinha, sem dúvida, além das belas mú-sicas que compõe, é o seu forte. Sabe e gostade receber como poucos, preparando acepipesque são servidos na mesa de bar colocada es-trategicamente na entrada do apartamento naTijuca. E aí, entre indescritíveis fatias de carne-seca e de pernil e conservas de jiló, esse maisnovo integrante da Ala dos Compositores deVila Isabel conta com bom humor muitos e mui-tos causos. Fazendo uma verdadeira crônica dacidade.

Voltando ao tema comida, Moacyr diz que háalguns meses vem acontecendo uma coisa deli-ciosa. Há mais de cinco anos ele comprava ca-marões na barraquinha da Tânia e do Naldo, nafeira da sua rua na Tijuca. No início do ano, eleslhe ofereceram ostras, a R$ 4 a dúzia. Moacyrargumentou que nem a R$ 1 seria possível levá-las, pois não teria como abri-las. Eles deram asolução: iam abri-las e ele poderia levá-las. Moa-cyr inverteu a proposta. Disse que iria buscarumas cervejas em casa, que ficariam num iso-por, e comeria por lá. Feito isso, conseguiram ocaixote onde vem as frutas na barraca ao lado.Moacyr comprou alguns panos de prato, Tâniaconseguiu um pratinho e, por sorte, ele acredi-ta, passou um homem vendendo banquinhos.Pronto, estava feito o ambiente.

Batendo o ponto

Isto se transformou num ritual de toda sema-na, e numa roda de respeito no circuito do sambada cidade. Um dia, conta ele, apareceram uns si-ris maravilhosos e ele usou o liquinho (fogareiroa gás) de D. Teresa, que prepara os bijus, e umapanela levada de casa. De lá para cá, ele e maisonze amigos alugaram uma barraca, e toda se-mana preparam camarões, siris, queijo de coa-lho... Ah, ele conta que agora tem seu próprio li-quinho. E nisso ele diz que tem que ter sorte. D.Teresa precisou comprar um novo e eles herda-ram o antigo. As cervejas em lata foram substituí-das por garrafas, as ostras, agora, são servidasem bonitas travessas de louça. E a churrasquei-ra, perguntamos? “Já tínhamos a do bar...” E nesseencontro já estiveram Luiz Carlos da Vila, Maca-lé, Zé Renato, Antônio Pedro. Este último, aliás,quando esteve por lá levou um chef de cozinha.Moacyr conta que ele alucinou. “Mas para quemgosta de cozinhar é o máximo, está tudo ali, aslulas, os pimentões, os tomates, o manjericão”.

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A equipe de CarioquiceCarioquiceCarioquiceCarioquiceCarioquice foi conhecer a fa-mosa feira. Numa sexta-feira de sol brilhante,chegamos às 11h30 e os comensais já estavamem seus postos. Moacyr, Zé Luiz do Império, Wil-son Flora (o Baiano), Silu (Luis Moraes), SérgioTouro, Nilson Gouvêa e muitos outros que foramchegando. Todos amigos de mais de 20 anos.

A mesa é farta. As ostras abrem os traba-lhos. Como se sabe, os moluscos são grandesprodutores de ácido úrico. Baiano desdenha orisco e diz que o grupo empreendeu um movi-mento pela mudança da taxa máxima de ácidoúrico no organismo, de 6% para 12%. O espa-ço é pequeno, mas a acolhida é garantida. Cadaum com seu copo de alumínio personalizado,por nomes e escudos de times de futebol.

Um pouco mais e é Aldir Blanc quem chega.Saudado com efusão pelos amigos, o vascaínoestá impossível naquele dia. O Flamengo acaba-ra de perder para o Santo André a Copa do Bra-sil. Mansamente, vai contando inúmeras piadas,tendo como mote o Flamengo, claro. Diz que nãocostuma pegar no pé dos adversários, mas contaque as comemorações do dia anterior tinhamcomeçado cedo, quando o Flamengo perdeu nobasquete para o Uberlândia (risos ).

As vésperas do centenário da Tijuca, Aldir dizque nunca deixou o bairro ou porque não podiaou porque não queria. E explica: “Poder eu po-

minha alma canta

dia, mas não quis”. Nascido no Estácio, viveu avida toda na Tijuca, mesmo depois de casado.Seus pais e, hoje, as filhas, também sempre vi-veram por lá. Conta que houve uma época emque morou num apartamento que dava fundospara a quadra do Salgueiro e tinha uma sinucapor perto. Melhor, impossível.

Orgulhoso com o arrojado projeto em quevem trabalhando e que será lançado em setem-bro, “Heranças”, Aldir conta que é um mapea-mento do samba sem nostalgias e trazendo aopúblico compositores pouco conhecidos. A pri-meira parte será um livro escrito por Aldir epelos jornalistas Hugo Sukman e Luiz Fernan-do Vianna. Depois, a proposta é montar umaexposição e, quem sabe, o lançamento de CDs,biografias etc. desses compositores de imen-so talento, marginalizados por excesso de co-mercialismo.

“Pegamos o samba da Lapa, do Cacique deRamos, e às vezes jogamos um pouco para Ma-dureira e Tijuca. Eu acho que hoje é muito maisdifuso, mais complexo, dizer quais são os redu-tos do samba no Rio. Está tudo muito mais es-palhado. Mas também existe um abismo imensoentre uma mídia mais imediata, como a TV e orádio, que tocam o tempo todo música sertane-ja ou sambola, e esses compositores sobrequem vamos falar, mais do que 40, 80, 100, são

“Quando vou para feira encontrar

os amigos e beber, as pessoas logo

perguntam: já vai beber? Ninguém

faz a pergunta no mesmo tom

quando você diz que vai trabalhar”.

Wilson Flora, o Baiano

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Zé Luiz do Império, Sérgio Touro,Silu, Moacyr Luz e Aldir Blanc

minha alma canta

todos talentosíssimos. Vai ter erro, vai ter omis-são. Mas pelo menos vamos começar o jogo.”

Aldir cita a famosa frase do samba de NélsonSargento, “agoniza, mas não morre”, que pres-supõe a eternidade para o samba. “Não se podebrincar com isto. Eu, que já fui médico de UTI,sei bem. É fogo, tem uma hora que morre. En-tão precisa tomar cuidado, tratar direitinho.”

Um dos pontos emocionantes do livro adian-ta Aldir, é uma homenagem a Nei Lopes, “que detão jovem nem entra na relação, porque é umpouco pai de todo mundo”. Outro lado que tocao coração é estabelecer uma importante linha-gem no samba. “O Luiz Carlos da Vila é o filhoespiritual do Candeia”. Salve!

Fala ainda da coragem do baterista Wilsondas Neves que, aos 60 anos, foi para o quintalde sua casa na Ilha do Governador, pegou umcavaquinho e começou a compor. “E todo mun-do está gravando o cara. Isso é moral!”.

Nesse momento, a mesa em coro começa achamar por alguém que passa: “E aí, Cecéu?”.

Cecéu é seu Alceu, pai de Aldir, um senhoresguio de 82 anos e fala mansa, que vem se

juntar ao grupo. Aldir conta que o pai, hoje viú-vo, segue uma dieta rigorosa: rabada, feijoa-da, mocotó (risos ). Apesar de toda a brinca-deira, fica claro o carinho pelo pai. “Ele e minhamãe completaram 56 anos de casados, viviamcomo gato e cachorro, mas se amavam profun-damente”.

Hoje, de uma forma sutil controla os passosdo pai, ligando para ele duas vezes ao dia. Pelamanhã, as ligações são assim: “E aí, pai, viu ojogo do Vasco ontem?” E o pai, em tom de bron-ca: “Você fica perdendo tempo com essas por-carias. Devia estar trabalhando. Vá compor”.

No fim da tarde, nova ligação: “Pai, tudobem?” E o pai, depois de algumas cervejas comos amigos, responde em tom afetuoso: “E aí,meu garoto...?” Aldir o define como o próprio“Dr. Jeckyl e Mr. Hyde”.

A tarde corre solta e, depois de tantos acepi-pes, Baiano anuncia, com grande alegria, queSérgio Touro e Silu vão começar a servir o chur-rasco. Diante do espanto de todos, ele diz: “Poisé, agora gordo, fumante e serial killer são a mes-ma coisa.” (gargalhada geral )

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Carioquice14

mpB em sete cordas

lira carioca

Com Canhoto, Jacob do Bandolim, BeneditoLacerda e outros grandes e raros músicos bra-sileiros, Dino foi por quase sete décadas um dosresponsáveis pela segurança de alguns dos maisilustres sucessos de Francisco Alves a Sílvio Cal-das e Orlando Silva, de Gilberto Gil a João Bos-co. Para ser mais claro, de alguns dos mais ilus-tres sucessos de toda a história da arte musicalpopular brasileira.

Foi uma época que ele atravessou correndode um lugar para outro, gravando o tempo todoe às vezes tocando rock em bailes de fim denoite. Se foi recompensado financeiramente pelacontribuição inestimável? Muito aquém do mere-cido por seu estilo que vem de Donga e Tute e játinha sido transmitido ao herdeiro Waldir, quedefini num texto de 1976 como “seu mais pro-vável sucessor” (profecia frustrada por um aci-

Violão, meu pecado é você. Ou será virtude? No caso de Horondino

Silva, maestro com “M” maiúsculo que o Brasil aprendeu a reconhecer

tão-somente por Dino, não resta dúvida: o violão foi uma dádiva de

Deus. E sua alcunha não poderia ser outra, Dino Sete Cordas. Durante

décadas, bastava ligar o rádio e percorrer o dial para ouvir aquele

dedilhado único de um ourives do instrumento. O toque de Dino

transformava harmonia em ouro.

dente doméstico: Waldir hoje empresta seu ca-vaquinho ao regional Chapéu de Palha).

Naquela altura, assinei alguns artigos claman-do, no coro dos ecologistas, que assim como aarara-azul e o mico-leão-dourado, havia na nos-sa música popular instrumentos em fase de ex-tinção. Andávamos (e andamos) precisados deum Partido Verde sonoro, que organizasse pas-seatas pela preservação do bombardino, do sax-barítono, do fagote e do oboé, entre outros tim-bres que nos parecem subtraídos para sempre.Era o caso, então, do violão de sete cordas, maisimportante que todos para os brasileiros, já queé o único instrumento de harmonia genuinamen-te brasileiro, na concepção e na linguagem.

A sétima corda é afinada em dó. Durante mui-to tempo, Dino fazia segredo da corda que usavapara obter aquela sonoridade. Dizia que manda-

p o r roBerto m. moura

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lira carioca

va fazer. Entretanto, de tão simples, o segredoacabou descoberto: a quarta corda do violonce-lo, de espessura pouco mais grossa que o mi doviolão, adaptava-se perfeitamente ao instrumen-to, sem forçar demasiadamente o cavalete.

Oscar Castro Neves, compositor e arranjadorradicado nos Estados Unidos, mostrou-se deci-dido, certa vez, a passar para a partitura os fra-seados que Dino criava nas sete cordas. Justifi-cou a decisão alegando que o estilo era único e,portanto, estava fadado a morrer junto com oviolonista. Dino, no entanto, jamais se conside-rou criador de uma escola de violão – mas seusfraseados repetem-se em cada roda de choro ede samba, país afora.

Na verdade, mesmo tendo ficado na sombra,semi-anonimamente, ao largo dos fachos dosspots que iluminavam as nossas estrelas musi-cais, Dino produziu um prodígio: o milagre damultiplicação dos violões de sete cordas, que aessa altura já podem ser retirados sem riscosda lista dos instrumentos ameaçados do nossoIbama musical. Esse milagre deveu-se não aosmúsicos maduros, das gerações posteriores a

Dino, como Voltaire e os irmãos Walter e Waldir,mas a um surpreendente e quase inexplicável re-nascimento do choro pelas mãos quase infantisde uma geração em que cintilavam os talentosde Raphael Rabello, Maurício Carrilho, Luciana Ra-bello, Luiz Otávio Braga, Afonso Machado e tan-tos outros meninos que é até injusto não men-cioná-los aqui.

Nada do que existe hoje, da Lapa ao Candon-gueiro, de Yamandu Costa e Tereza Cristina, se-ria exeqüível sem a explosão dessa geração tãomusical e de relação tão abnegada e desinteres-sada com a música. E o nome de Dino, entre osde Pixinguinha, Jacob, Nazareth, Chiquinha, Pa-tápio, Callado, sempre foi parte fundamental nopanteão dessa garotada abençoada.

Repare-se que, naqueles idos setenta, o tomlamentoso do texto aludia ao fato de Dino, “comquarenta anos de serviços prestados”, ainda ser“forçado a passar os seus dias e noites dentrodos estúdios de gravação que, basicamente, seconstituem ainda em sua única fonte de sobrevi-vência”, apesar do seu “invejável currículo pro-fissional.”

Em 2004, mirando esta paisagem, outrosgrandes instrumentistas, de currículo semelhan-

“Dino produziu um prodígio: o milagre da

multiplicação dos violões de sete cordas,

que a essa altura já podem ser retirados

sem riscos da lista dos instrumentos

ameaçados do nosso Ibama musical.”

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locam o instrumentista. A coisa chega ao ab-surdo de nos convidarem para tocar receben-do 1/200 avos do cachê do cantor. Está certoque o cantor é a estrela e deve ganhar mais, sóque essa diferença é absurda e humilhante.

“De repente, o samba e o choro voltaram ainteressar às gravadoras. O mercado, então, fi-cou mais amplo para o músico brasileiro. Mes-mo assim, nós temos de pular de um estúdiopara o outro, pois se paga muito pouco.

“A década de 60 foi um dos piores momentospara nós. As gravações eram raras, já que o gê-nero importado atendia plenamente às exigênciasde mercado e os conjuntos nacionais de rock eiê-iê-iê eram os mais solicitados. Muitos músicosde grande categoria ficaram sem emprego. Algunschegaram a passar fome. Eu, quando senti a bar-ra, pensei: ‘vou aderir’. afinal, tinha braços e ouvi-do, uma família para sustentar e precisava traba-lhar. Comprei uma guitarra elétrica e fui tocar embailes... Já toquei de tudo e toco sempre que épreciso. Só que, na minha casa e para os meusamigos, prefiro tocar samba e choro.

“O falecido violonista Arthur do Nascimento,o Tute, foi o primeiro que eu vi tocar um setecordas. Eu ficava fascinado com o som daque-las baixarias, mas achava impossível vir a tocarum. Tute tocava com Pixinguinha, na antiga Rá-dio Mayrink Veiga e, com a sua morte, resolvi ex-perimentar o instrumento. Encomendei um violãoidêntico ao seu e iniciei um auto-aprendizado. Le-vei uns três meses e, por fim, consegui domá-lo.A vontade de tocar um sete cordas nasceu, tam-bém, da necessidade de florear o acompanha-mento do choro com fraseados mais graves. Oviolão de sete cordas, assim como o cavaquinhode cinco cordas, é um instrumento genuinamentebrasileiro, de autor ainda desconhecido.”

te, vão certamente estender o olho comprido deuma inveja salutar: como eram bons aquelesmaus tempos – esta, aliás, uma frase do cronis-ta Guilherme Figueiredo que insiste em se fazercada vez mais atual, sempre que se consulta opassado, pelo menos o nosso passado musical.

Na mesma página amarelada sobre o Dino,editei sob este enorme nariz-de-cera uma entre-vista do então jovem repórter Ruy Fabiano como mestre. Irmão de Raphael Rabello, com quemDino gravou o seu único álbum-solo, Ruy tam-bém se desincumbia no violão e se hoje não seise insiste no instrumento é porque deixou o Rioe se tornou, há mais de duas décadas, assessorde imprensa no Senado Federal, em Brasília.

Peço licença ao Ruy para pinçar ali algumasfrases do grande Horondino Silva, este cariocado Santo Cristo, nascido em 1918, profissionaldesde 1936, quando substituiu Nei Orestes noregional de Benedito Lacerda. Elas jogam luzsobre a arte que o mundo reconhece como anossa melhor contribuição à cultura universal: anossa música popular:

“Enquanto essa mentalidade não mudar, nãovejo solução para a nossa situação, (...) nãoconcordo com a posição secundária em que co-

Roberto M. Moura é mestre em Comunicação e Culturapela ECO/UFRJ e doutor em Música pela UNIRIO.

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EPIFania DE Caniço e samburá

poética do encontro

t e x t o JorGe ferreira f o t o s marcelo carnavalResponsável pela coluna “Iscas & Anzóis”

Carioquice18

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19Jul/aGO/Set 2004

Há muito mais que peixe numa pescaria. Há uma espera sem

ansiedade. Adversário não é quem compartilha o mágico instante

da fisgada, surpreendente tanto para o pescador quanto para o

pescado. Há a expectativa de fazer contato com aquele ser,

conhecedor sabe-se lá de que mistérios, que habita uma outra

dimensão do planeta, mais fluida e mais profunda. A Guanabara

é desses lugares onde a mágica acontece.

Urc

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Carioquice20

Niterói

poética do encontro

Se o pescador não conhece o

caminho das pedras, o jeito é

buscar o esquivo peixe em

longos arremessos sobre as

águas que o mar do Rio ora faz

mansas como superfícies de

azeite, ora espumosas e

revoltas como se guardassem a

lembranças de distantes

tempestades. Em comum, há

uma esperança de vitória em

cada lance.

Marina da Glória

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21Jul/aGO/Set 2004

ArpoadorLeme

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Carioquice22

Pescadores podem ser solidários ou solitários, mas nunca são

amargos. Não há derrota na pescaria. Afinal, como ser um

perdedor aquele que desfruta a beleza das ondas, das nuvens e

das luzes à beira-mar? Alguns são mais recatados. Na sua espera,

lembram João Cabral de Mello Neto, que do pescador de caniço

disse que ele parece se encerrar numa redoma.

poética do encontro

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23Jul/aGO/Set 2004

Niterói

Ilha do Governador

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Carioquice24

Os pés descalços enfrentam a

aspereza das pedras ou

aproveitam as carícias da areia,

mas tudo são texturas dos

debruns que contornam o mar.

E tudo é suave e belo se, no

fim do dia, mas não

necessariamente da pescaria, o

Cristo parece preparar um

imenso mergulho nas águas

ainda pródigas da Guanabara.

poética do encontro

Niterói

Arpoador

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25Jul/aGO/Set 2004

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Carioquice28

muralistas contemporâneos

cheGou a hora do grafiteiromostrar seu valor

Carioquice28

Há algo de novo na pólis, muito além das belezas convencionais que

bem antes da primeira edificação já fulguravam nestas terras. São

figuras do imaginário urbano materializadas nos muros através do spray

ou tinta. É a arte de grafiteiros e muralistas, que elegeram o espaço

público como local para a expressão de suas idéias. Com eles, as ruas

passaram também a fluir cultura. São artistas do concreto que nos

brindam com uma nova estética. Bem-vindos sejam.

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29Jul/aGO/Set 2004

A linha evolutiva das intervenções urbanas nacidade do Rio de Janeiro passa pelos painéis dopoeta Gentileza, concebidos na década de 60 ehoje tombados como patrimônio da cidade. Afrase “Celacanto provoca maremoto”, espalha-da por “Lerfa Mú”, ficou célebre ao povoar acidade nos anos 70. Ainda na mesma época, Gil-son – o poeta dos tapumes – deixava versos edesenhos nas fachadas que encobriam as obrasdo metrô.

Hoje, quem circula pelas ruas da cidade játeve seu olhar atraído pelo traço de Acme, umdos nomes que se destacam no cenário do gra-fite carioca. Por influência de seu desenho ani-mado preferido – o Looney Tunes –, Carlos Es-quivel adotou o nome Acme. A marca que po-voava os quatro cantos da cidade da animação

despertou nele o mesmo sonho. O desejo se rea-lizou. Seu desenho, no espaço urbano, que podeser visto de norte a sul do Rio, agora também jáé encontrado no mais tradicional dos suportes,a tela.

Depois de ganhar as ruas, a arte de Acme seexpandiu e chegou à galeria. E adquirir um dosseus trabalhos tornou-se possível. Eles estãona Haus Arte Contemporânea, que fica no bairroonde vive, Copacabana. “Já observava os grafi-tes pela cidade, e o trabalho do Acme sempreme atraiu. Quando decidi abrir a galeria, em2003, não tive dúvida, fui atrás dele”, conta Mar-cus Aurelius de Macedo Soares, curador da Haus.As telas de Acme estão avaliadas entre R$ 4 mile R$ 8 mil, e já foram exportadas para paísescomo França e Estados Unidos.

Grafite no muro do Jockey Club, no Jardim Botânico

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Carioquice30

Grafite do Grupo El Ninho, no Galpão dasArtes Recicladas Hélio Pellegrino, na Gávea

Nascido e criado no Complexo Pavão-Pavão-zinho, Acme estreou no grafite em 96, numa pis-ta de skate do Arpoador. Ex-caserna do Exérci-to, ele comemora o fato de poder viver de suaarte – facilmente identificada por seus traçosmarcantes e pela temática abordada, que incluitodos os signos urbanos. “Minha inspiração vemdo meu cotidiano, o que eu vejo nas ruas: con-trastes sociais, o capitalismo selvagem”, expli-ca. Ele também se preocupa em imprimir umaidentidade brasileira a seu trabalho. “Procuroinserir elementos nacionais e colocar referênciascariocas na minha pintura”, diz Acme, que já pin-tou um mural onde apresenta sua versão bem-humorada da garota de Ipanema.

A brasilidade também se destaca no trabalhode Carlos Contente, estudante de Belas-Artes daUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

muralistas contemporâneos

Grafite no CAP Lagoa

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Em 99, ele levou dos quadrinhos para os murosda cidade o personagem “Paraíba Ninja”, suaversão de super-herói brasileiro. Adepto de umestilo peculiar de construção de imagem, emquase todos os seus grafites, como o da PraçaQuinze, há uma máscara com contorno preto,que é o seu auto-retrato. “Fiz isso para resolvero problema de estar presente em vários locaisao mesmo tempo”, brinca. Contente vê a ruacomo um espaço nobre para mostrar suas idéi-as. “Gosto do impacto que o grafite tem e daforma como ele potencializa o alcance do meutrabalho, que passa a ser conhecido por um pú-blico bem diversificado”, afirma.

Raimundo Rodrigues e Júlio Sekiguchi, artis-tas plásticos do grupo Imaginário Periférico, tam-bém vêem nos murais uma forma de socializa-ção da arte. Desde 97, eles trabalham com pro-jetos de capacitação de jovens na pintura. Noprograma Murais Urbanos, ensinaram essa for-ma de expressão a cerca de mil alunos da Esco-la Municipal Martin Luther King, situada na Praçada Bandeira. O resultado é que as pichações dasparedes da escola deram lugar a alegres mu-rais. A mesma proposta foi levada pela dupla àSupervia, através do Arte na Linha. Mas as ofici-nas de grafite não têm somente a função de cor-rigir pichações. É uma forma de os artistas co-

Tela do grafiteiro Acme, na galeria Haus Arte Contemporânea, em Copacabana

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Carioquice32

muralistas contemporâneos

optarem novos adeptos para sua arte. “Tenho apreocupação de passar mais que técnica. Meuobjetivo é envolver os alunos num clima de cultu-ra, ampliar os horizontes”, explica Acme, que dáaulas de grafite na Fundição Progresso e no pro-jeto Talentos da Vez, da Prefeitura do Rio.

A estratégia vem funcionando. O El NinhoCrew, formado por alunos do curso de Dese-nho Industrial da PUC, nasceu de uma dessasoficinas. “Começamos a grafitar no fim de 2001,após passarmos por um curso ministrado peloNação Crew na PUC”, conta o “ninho” João Bur-le. O resultado das aulas pode ser visto nosmuros não só do bairro onde mora, Laranjei-ras, mas também em Cosme Velho, Humaitá, La-goa, Rocinha, Lapa e Glória. O trabalho do gru-po já rendeu uma exposição no Galpão das Ar-tes Recicladas Hélio Pellegrino, de junho a agos-to deste ano.

Foi também em 2001, numa aula do grafitei-ro Fábio Ema, na sede da Associação de Mora-dores de Santa Teresa, que Anderson dos San-

tos, o Duim, aprendeu a “falar para o mundo oque pensa, através do grafite”. Desde então,Duim já se expressou com sprays na sua vizi-nhança, no Morro do Fallet, em Santa Teresa; noCentro da cidade; na Vila Vintém, e até no murodo Maracanã. E sua arte já lhe deu retorno. “Jápintei um hotel na Lapa, lojas e até o quarto deum playboy em Copacabana”, orgulha-se.

Apesar da reconhecida qualidade de muitosdesses ar tistas urbanos que vêm ampliandoseus espaços, ainda há quem confunda grafitecom pichação. Prova disso é que quase todografiteiro tem uma dura da polícia no currículo.Um dos casos de maior repercussão ocorreuem 2003, quando Acme e o rapper Facão fo-ram presos por grafitar o muro do Jockey Club.O mesmo clube que vai liberar seus muros aintervenções plásticas, a partir de outubro. OJockey está promovendo um concurso em que,além de prêmio em dinheiro, oferece a possibi-lidade de os melhores grafites ocuparem o co-biçado espaço. A arte agradece.

Grafite de Acme, em Botafogo

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Carioquice34

relicário das encostas

largo da mãe do Bispo

Júlio Senna era, na verdade, um artista poli-valente. Emprestou sua criatividade às mais di-versas áreas: música, pintura e a arquitetura deinteriores. E foi com esta última que tornou refe-rência por transformar simples espaços em am-bientes ousados, sempre com um toque bembrasileiro. Desta forma, Júlio Senna, entre os anos50 e 60, mudou os padrões da arquitetura na-cional, numa época em que todas as modas eestilos vinham da Europa.

Mas Júlio também fez-se conhecido por suafaceta de grande anfitrião. Dedicar-se à arte dobem receber era um de seus prazeres.

Em 1960, pôs um anúncio no jornal: “Procu-ra-se, urgente, cobertura em prédio baixo comvista para o mar, terraço, árvores frutíferas e,eventualmente, espaço para pouso de helicóp-tero.” A cobertura, situada num prédio simplesda Urca, conseguiu reunir a tropicalidade comque ele sonhou. Num pequeno prédio dos anos

30, encostado na montanha, mais precisamenteno Morro da Urca, a cobertura de quase 200metros quadrados está fincada numa área de2 mil metros quadrados, com parte da MataAtlântica. A construção, um apartamento dúplex,tem nos fundos uma escadaria que leva a umplateau, batizado por Júlio de Largo da Mãe doBispo, por imitar a fachada da Casa da Mãe doBispo, na atual Praça Floriano.

Lá ele encontrou o espaço perfeito para dei-xar sua criatividade fluir nas recepções que reu-niam a nata da sociedade carioca. Quem pôdeparticipar jamais se esqueceu: eram eventos úni-cos, daqueles para se guardar eternamente namemória. Como não podia deixar de ser, as his-tórias em torno das festas eram muitas, algu-mas verdadeiras, outras revistas sob a inspira-ção da fantasia.

Danuza Leão lembra um desses causos emseu livro “Na Sala com Danuza”. Ela conta que,

O Instituto Cultural Cravo Albin (ICCA) é detentor de uma jóia do

patrimônio urbano: o Largo da Mãe do Bispo. Naquele espaço de

encantamento, residem lembranças de um Rio inesquecível. O local

foi palco das famosas festas de Júlio Senna, repletas de requintes de

criatividade, para a sorte dos poucos privilegiados que puderam

freqüentá-las. Assim como revestiu a decoração com um caráter

brasileiríssimo, Júlio também levou as cores do Brasil e o jeito carioca às

suas festas. E provou que chic mesmo era ser brasileiro! Aliás, très chic.

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em um jantar oferecido a uma princesa real(talvez da Noruega), o tempo estava meioduvidoso. Quando o segundo prato ia serservido, caiu uma chuva torrencial. Diz o pro-tocolo que, à mesa com uma royaltie , só selevanta após ela assim o fazer. Pois bem,Sua Alteza permaneceu sentada. Lagostasboiavam, maquiagens se desfaziam e o jan-tar seguiu normalmente, exatamente comomanda o protocolo.

Protocolo esse seguido à risca por Júlio,no Rio do glamour dos anos 60. Ele só re-cebia em black-tie , mas havia um certo cli-ma de descontração que permeava os en-contros. A indumentária dos convidados nãoera mesmo a atração principal da noite. “Euia sempre com vestido de baile, mas nãochegava a encomendar uma roupa específi-

relicário das encostas

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ca para as recepções do Júlio. Fundamental mes-mo era passar no cabeleireiro antes para fazero penteado bolo-de-noiva, muito usado àquelaépoca”, recorda Carmem Mayrink Veiga, uma dashabituées do Largo.

Júlio dava um toque especial aos eventos queorganizava. No jantar em homenagem ao ReiOlav, da Noruega, no Copacabana Palace, um dosdestaques da noite foram os cestos de palhacom flores tropicais espalhados pelo salão dohotel. Mas era em suas próprias festas que eledeixava sua imaginação fluir à vontade; arruma-va o Largo como se fosse um cenário. E nin-guém jamais sabia como iria encontrá-lo. O ele-mento-surpresa era peça fundamental. Cada jan-tar era diferente do outro: seja pelo cenário, sejapela disposição das mesas ou mesmo pela for-ma de servir. “Júlio sempre conseguia surpreen-der”, lembra o arquiteto Hélio Fraga. “Mas umadas noites inesquecíveis foi o jantar que ele ofe-receu à Aimée de Hereen. Eu estava à esquerdadela. Eram 40 pessoas sentadas. Aimée estavanuma das cabeceiras e elogiou: o Júlio pensa emtudo, ele até se lembrou em colocar duas ima-gens de black-moores nos dois portais da igre-ja (referência ao prédio do Largo). Eu disse: Ai-mée, não são imagens. São dois rapazes vesti-dos de black-moore!”, diverte-se.

Os convites para as festas de Júlio eram bilhe-tes para uma viagem no tempo. Como que numpasse de mágica, o anfitrião transportava todospara o Brasil Colônia, mais especificamente parauma tela de Debret, forte influência no trabalhodo decorador. A presença de micos e papagaiosreforçava o ar tropical. A cada noite, um cenáriodiferente. Os convidados podiam ainda ser rece-bidos por duas filas de rapazes negros, usandocalças e turbantes, dispostos ao longo da esca-daria. A influência do pintor também se evidencia-ria na adoção das cores da bandeira nacional na

decoração. Um dos donos da noite carioca, Ri-cardo Amaral escreveria mais tarde sobre JúlioSenna: “Caso você entre numa festa e veja árvo-res cheias de flores, assim como um abacateirocarregado de cravos, ou uma laranjeira com ro-sas, posso garantir que é coisa de Júlio Senna.”

A encenação era fundamental e evidenciava oclima fantasioso com o qual Júlio revestia o Lar-go. Uma das cenas memoráveis criadas por Júliofoi a entrada triunfal de Dona Maria Cecília Fon-tes no jantar em sua homenagem. Causou gran-de impacto sua chegada subindo ao Largo deliteira, como uma verdadeira imperatriz, carre-gada por quatro rapazes que representavamescravos. A idéia foi mais uma solução genial deJúlio para continuar o show, já que, doente, ahomenageada não conseguiria subir as escadas.

A criatividade de Júlio não o deixava passarpor apertos. Na noite do jantar para Evelina Cha-ma chovia copiosamente. Não seria possível re-ceber as pessoas no Largo. E o apartamento nãoera grande o suficiente para abrigar a mesa para40 pessoas. Desespero total? Não. Júlio serviutodos os convidados com bandejas em acrílico,

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Carioquice38

com compartimentos para diversas porções. To-dos comeram de pé e se divertiram muito.

Júlio gostava de homenagear artistas e escri-tores. Em comemoração aos 80 anos de Gilber-to Freyre, ele criou um cenário à altura do des-crito em “Sobrados e Mocambos”. Copeiros detúnicas brancas e turbantes vermelhos, mucamastopless, serviam frutas em cestas de palha, aosom de harpas e violões. O ballet de MercedesBatista apresentou-se ao som de tambores eatabaques. Tudo observado atentamente por fi-guras variadas, como Sonia Braga, Renata Fron-zi, Maria do Carmo Nabuco, ente outras presen-ças elegantes.

Pelas escadas que levam ao Largo passaramainda nomes internacionais como o do cantorJean Sablon, o príncipe Faucigny e a bailarina doRoyal Ballet de Londres Margot Fonteyn. Esta,aliás, protagonizou uma das cenas folclóricas deJúlio. No jantar em sua homenagem, Júlio levouuma escola de samba semicompleta para o Lar-go. E a bailarina clássica caiu no samba. Numaépoca em que a influência européia reinava, JúlioSenna surpreendeu ao criar cenários com ele-mentos que não deixavam dúvidas de que seestava realmente no Brasil.

Após a morte de Júlio Senna, em 1988, Ri-cardo Cravo Albin correu e conseguiu arremataro imóvel. “Foi como acertar na loteria”, conta,com prazer. Algumas reformas foram feitas,como a do casarão que fica no Largo, e que hojeabriga um espaço para exposições.

As festas, antes exclusivas para a nata dasociedade e alguns intelectuais, deram lugar aoutras reuniões, com artistas e intelectuais, emsua maioria. Lá foram comemorados os 80 anosde Herivelto Martins e os 40 de Fafá de Belém eZezé Mota, entre outras datas.

Em 2001, Ricardo fundou o Instituto CulturalCravo Albin (ICCA), doando todos os seus bense coleções para a entidade, e, materializou umsonho que acalentava há mais de 10 anos: trans-formar o local em um centro especializado namemória da música popular brasileira e na valo-rização da cultura do Rio, aberto ao público.

Em comum com o antigo dono, a paixão pelaarte brasileira e o prazer em receber bem. Emais um, só agora descoberto por Ricardo. Osmenus de Senna incluíam a brasileiríssima car-ne assada com molho ferrugem, pièce de ré-sistence também de Ricardo nos seus tradi-cionais almoços.

relicário das encostas

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Sempre tive curiosidade de conhecer esse

espaço, porque me identifico muito com o tra-

balho do Júlio Senna. Ele fazia uma releitura das

formas e das cores do Brasil. Principalmente

dessa coisa mais mineira, que eu chamo de bar-

roco gaiato. Isso porque o barroco do Rio de Ja-

neiro e da Bahia é mais sério, tem mais doura-

do. Enquanto isso em Minas, há mais cor e as

igrejas, de certa forma, são mais despidas de

riquezas, os querubins são mais gordinhos e sor-

riem mais. É algo mais limpo. E as formas que

vemos aqui, como as treliças, são isso. O Júlio

ousava ao brincar com as cores e as formas. E

esse espaço é o retrato de uma pessoa super

criativa e lúdica.

Mas há toda uma diferença do Rio de Ja-

neiro de hoje para aquele. A época de Júlio era

a das Carmens, Terezas e Lourdes. Ou seja,

uma época de muito glamour, que se por um

lado se rendia aos modismos europeus, espe-

cialmente vindos da França e Inglaterra, com

paredes de boiserie com estantes, por outro

respeitava e permitia que essas coisas maravi-

lhosas fossem criadas. Hoje, continuamos a

sofrer influências externas, as pessoas querem

“O Júlio fazia uma releitura das formas

e das cores do Brasil. Principalmente

dessa coisa mais mineira, que eu chamo

de barroco gaiato.”

coisas modernas. Mas modernas com cara de

lá, de hemisfério norte. Os clientes querem que

suas casas sejam como em Nova York ou Mi-

lão. Raros são os que querem uma casa brasi-

leira. Os nossos elementos na decoração são

considerados por muitos como pobres. Ou seja,

as pessoas estão em busca de upgrade.

Júlio Senna redecorado por Chicô Gouvêa

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Carioquice42

Se todos fossemiguais a você...

Eu sei que vou te amar

p o r vera de souza

Dona Lily Marinho é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa... E o seu

jardim, o Rio de Janeiro. Nele, florescem exemplos de fidalguia,

generosidade, paixão pelas artes e uma nobreza bossa nova. São

tantas histórias, que Carioquice se sentiu ébria na obrigação de

escolher somente algumas e, escolhendo, despetalar delícias de uma

vida em flor. Para acompanhá-las, só mesmo a poesia de Vinícius de

Moraes. Ah, Dona Lily, se todos fossem iguais a você...

ao ver uma rosa branca / o poeta disse:

que linda! / cantarei sua beleza / como

ninguém nunca ainda!

“A cidade maravilhosa possui um extraor-dinário tesouro que mistura belezas naturaisinacreditáveis com um patrimônio histórico earquitetônico incomparáveis. Não é mais a ca-pital federal que conheci, em 1939, com a ani-mação bem par ticular que dava uma tonalida-de tão característica ao Rio: a presença dopresidente da República, dos ministros, dossenadores e deputados, dos embaixadores,de toda a administração federal, dos estran-geiros. E também de uma turma eclética, a qualsempre existe em volta do poder, mantendouma energia e um ritmo diferentes dos de hoje.

O Rio é uma cidade lindíssima, amável, irreve-rente e animadíssima.”

Quem és, que transfiguras as maçãs / em

iluminações dessemelhantes / e enlouqueces

as rosas temporãs / rosa dos ventos, rosa

dos instantes?

“Cada período tem as suas qualidades e osseus ícones, mas vivi com grande intensidadeos anos 40 do Copacabana Palace, do Quitandi-nha de Petrópolis e do Theatro Municipal. A de-cisão do presidente Dutra de proibir os cassi-nos, em 1946, mudou um pouco o astral da ci-dade. Além de ser a capital política e administra-tiva, o Rio era como as grandes cidades balneá-rias da Europa da época, como Vichy, Biarritz,

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Dona Lily e seu filho Horacinho, nos anos 40

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Carioquice44

Cannes, Wiesbaden e Monte Carlo, que tinhammuitos teatros, atores e cantores famosos liga-dos aos cassinos. Havia muita animação na Urca,no Cassino Atlântico e em outros lugares da fa-mosa noite carioca, além da intensa vida culturaltradicional do Rio. A Europa e mesmo os Esta-dos Unidos tinham muitas estrelas acostumadasa passar vários meses por ano na América doSul. A chegada ainda se fazia de navio, os enor-mes paquebots . E provocava arrepios por cau-sa do fantástico espetáculo da vista da cidade,bem instalada entre a floresta da Tijuca, o mar ea Baía, cujas águas eram transparentes.”

COISa milagrosa / de rosa de mate / de bom

para mim / rosa glamurosa? / oh rosa que

escarlate: / no mesmo jardim!

“Tornei-me brasileira por amor. Casei muitojovem com um brasileiro, Horacio de Carvalho, enaturalmente obtive a nacionalidade brasileira. Éverdade que nunca perdi o meu sotaque fran-

Eu sei que vou te amar

cês, mas conheço bem a língua portuguesa e falofluentemente. O Horacinho, meu filho, era brasilei-ro, como o João Batista, meu segundo filho. Souprofundamente brasileira. Não diria que, apesardas minhas origens, sou cidadã do mundo. Eusou antes de tudo brasileira e carioquíssima. Olugar onde eu gosto de viver, onde me sinto bem,é no Rio. Nunca viveria em um outro lugar. Ape-sar dos problemas da vida moderna e dos par-ticulares do Rio, amo esta cidade. É o meu lar.”

nasceste para o sol; és mocidade /

em plena floração, fruto sem dano / rosa

que enfloresceu, ano por ano / para uma

esplêndida maioridade

“Eu era viúva havia alguns anos, o Robertoapaixonou-se, pediu o divórcio e nos amamosdurante 14 anos. O Roberto tinha 84 anos quan-do casamos e eu, 67. É a prova de que nuncaninguém pode se desesperar para encontrar oamor. O amor não tem idade; ele chega sem se

Em 1938, ela encantou os franceses e foi elei-

ta miss em seu país. No ano seguinte veio para

o Brasil. Filha de um oficial da Marinha britâ-

nica e de mãe francesa, escolheu o Brasil para

viver. Como fruto de uma paixão, adotou a na-

cionalidade brasileira e se diz, antes de tudo,

carioquíssima. Há 65 anos no país, ela é Lily

Marinho, ou simplesmente Lily, a brasileira. Para

resumir, bastaria cantarolar Tom e Vinícius:

“ela é carioca, ela é carioca...”

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anunciar. Isto é a lição da nossa histó-ria. É maravilhoso ter visto o meu amorpelo Rober to crescer ano após ano.Quando casamos, ele falava do tempo,do nosso encontro no Copacabana Pa-lace. Parece que ele ficou muito impres-sionado. Mas, para ser sincera, eu não.Em 1941 eu era jovem, casada e amavao meu marido. E o solteiro Roberto eraaté um amigo de juventude dele. Na épo-ca, Roberto ainda não era o mais pode-roso dos homens da comunicação doBrasil. Às vezes ouço um conto que nãotem nada a ver com a realidade. É verda-de que me apaixonei por ele. Porém, maisde 50 anos depois deste encontro.”

amada anadiômena / saindo do

banho / qual rosa morena / mais

chá que laranja

“Sempre morei em lugares tradicio-nais da cidade: Copacabana, que se tornou mui-to importante já um pouco antes de eu chegarao Rio, e o muito antigo bairro do Cosme Ve-lho, onde o Roberto residiu uma grande partede sua vida e onde morei com ele 14 anos. Fi-quei em sua casa após sua morte, e acho im-possível, para mim, deixar este lugar onde fuimuito feliz. A casa é mesmo um museu, porcausa das obras de arte do meu marido. Massem o lado, às vezes pesado, de um lugar dearte. Ela tem um jardim cortado pelo rio Cario-ca, charmoso e situado no meio da Mata Atlân-tica. Um verdadeiro cartão-postal. É um gran-de privilégio poder viver aqui, com as escultu-ras do Roberto e o balé dos flamingos. Esselugar é carioca, carioquíssimo, o reflexo da almado Roberto e agora da minha. Eu me sinto mui-to bem neste lugar, nesta cidade. Não sou dagema, mas sou carioca para sempre.”

rosa pra se ver / pra se admirar / rosa

pra crescer / rosa pra brotar / rosa pra

viver / rosa pra se amar / rosa pra colher /

e despetalar

“Quando cheguei ao Rio, a cidade já era acapital das artes. Tinha uma vida artística muitointeressante, porque os pintores Guignard, DiCavalcanti e Portinari estavam estabelecendouma vertente especificamente brasileira da Mo-dernidade. Imediatamente, me interessei mui-to. Comprei obras que ainda são da minha co-leção. Nunca parei de comprar e nunca excluíqualquer forma de ar te. A primeira vez queemprestei uma obra foi para a bonita exposi-ção do Facchinetti que aconteceu este ano, noCentro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio.Os pintores viajantes são importantes para anossa história, como também todos os artis-tas do período barroco brasileiro.”

Em visita à Exposição de Bourdelle, na Casa França-Brasil, 1998

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E foi como se eu tivesse procurado e

sido atendido / vi rosas selvagens cheias

de orvalho, de perfume eterno e boas

para matar a sede

“Há pouco mais de 10 anos aconteceu a pri-meira grande exposição no Rio feita a partir deum acervo histórico vindo da França, mais exa-tamente do Museu Rodin. O adido cultural doconsulado francês na época, Romaric SulgerBüel, me pediu apoio. Era, para mim, uma opor-tunidade de participar da descoberta, pelos ca-riocas, das obras-primas a que a grande maio-ria dos meus compatriotas nunca teve acesso.Pedi ao meu marido a ajuda da Fundação Ro-

berto Marinho. O resultado é que, entre o Rio eSão Paulo, mais de 650 mil pessoas, principal-mente estudantes, visitaram a exposição. Sem oRoberto, nada teria acontecido. O meu ‘grão desal’, como se diz em francês, foi talvez reunir emvolta do Roberto, para jantares no Cosme Velho,amigos, empresários, políticos e diplomatas ca-pazes de facilitar os contatos e a busca de pa-trocínio. Algumas vezes conseguimos. Lembrodo silêncio quando, depois do sucesso do Ro-din, durante um jantar entre parentes e amigosda casa, eu disse maliciosamente: ‘E agora... por-que não Monet?’ Até hoje, quando me lembro daminha provocação, eu rio. Mas o resultado é que,

Eu sei que vou te amar

Dona Lily em um de seus trabalhos comunitários

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desta vez, mais de um milhão de visitantes apro-veitaram, no Rio e em São Paulo, as obras doMuseu Marmotan de Paris. O meu papel é mo-desto em relação à amplitude das mudanças. Master participado me deixa, como brasileira e cario-ca, sobretudo feliz e orgulhosa.”

e o poeta vê uma criança / suja, esquálida, an-

drajosa / comendo um torrão da terra / que

dera existência à rosa

“Não gosto muito de falar das minhas ati-vidades em favor das pessoas em dificulda-des e particularmente a favor das crianças. Achoimpor tante fazê-lo e fazer da melhor formapossível, mas não quero aparecer, não queromisturar o apoio, a ajuda que estou dando àsentidades as quais se consagram a criar e edu-car, com qualquer vaidade ou orgulho. A únicacoisa que vou confessar é que não possoagüentar ver uma criança infeliz. Há cinco anosaceitei o cargo de Embaixadora de Boa Vonta-de da Unesco. Imagine como ainda tem traba-lho a fazer!”

inelutavelmente tu / rosa sobre o passeio /

branca! e a melancolia / na tarde do seio

“A convivência com o Roberto era fabulosa,agradável. Muitas vezes as pessoas de seu co-nhecimento me perguntavam se ele não era difí-cil, fechado e autoritário. Posso lhe afirmar queele era o contrário disto. Se ele era assim, nuncanotei, nunca foi comigo. Ele era do tipo de ho-mem que sabia de seus valores, mas eu nuncame apaixonaria por um homem que não fossefora do comum. Quando nos casamos, o seusucesso profissional era total. Todos, tanto noBrasil como no exterior, sabem qual foi o seupapel na construção de uma rede de TV de ta-manho continental. Sem ele, o país não teria atin-gido o nível que atingiu. Eu não poderia ter ama-

do um homem a quem não admirasse. Além deser um grande brasileiro, o Roberto tinha cultu-ra, charme, era atencioso e muito carinhoso.Durante 14 anos foi tão bom de conviver, de di-vidir a sua vida... Amávamos as mesmas coisas:a música, o Rio, os jardins, a pintura e tantasoutras... Nunca tive tempo de me aborrecer. Seiporque ele dizia o quanto gostava da minha de-dicação por ele. Eu sou, antes de tudo, esposa.Aliás, sempre fui assim. Durante o meu primeirocasamento de 45 anos com o Horacio de Carva-lho, nunca falhei em ser esposa. Depois, eu eRoberto ficamos unidos até o fim, e felizes.”

E se ter mais uma rosa mulher / é

primavera / é a rosa em botão / ai, quem

me dera / uma rosa no coração

“O Roberto cuidava muito da minha seguran-ça. Não gostava que eu saísse do Rio sem pro-teção para o Vale do Paraíba. Exigia que eu via-jasse de helicóptero. Tenho medo destes apare-lhos! Quando começamos a namorar, ele me per-guntou se eu gostaria de fazer com ele um vôo

Com Roberto Marinho, na inauguraçãodo parque gráfico do jornal “O Globo”

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Eu sei que vou te amar

sobre o Rio. Adoro o Rio, adorei o Roberto, maseste vôo em volta do Corcovado, perto demaisdo Pão de Açúcar, me deixou arrasada! Nuncaquis lhe confessar.”

como uma jovem rosa, a minha amada... /

morena, linda, esgalga, penumbrosa / parece

a flor colhida, ainda orvalhada / justo no

instante de tornar-se rosa

“O amor do Roberto pelo Rio era uma verda-deira paixão! Foi dito até que ele não gostava deviajar! Não é verdade, viajamos muito. Mas cami-nhar no Alto da Boa Vista, observando o nossojardim, o Cristo Redentor, passar uma noite demúsica no Theatro Municipal eram para ele osmelhores dos prazeres. A casa do Cosme Velhorepresentava um lugar importantíssimo de bele-

za e ideal para pensar no futuro do grupo. Acasa do Cosme Velho é a casa do Roberto. Eu,como sua esposa, deixei meu apartamento daAvenida Atlântica para viver em sua casa. E asfestas do Cosme Velho nunca foram extravagan-tes. Em primeiro lugar, porque o meu maridosempre considerou tudo o que tem de excessi-vo, com toda razão, inadequado. Mas recebermuito dignamente a rainha da Dinamarca, a prin-cesa Anne, da Inglaterra, David Rockefeller, oministro das Relações Exteriores da França ou opresidente Bush, pai do atual presidente dos Es-tados Unidos, era um dever absoluto.”

ah, porque não a deixas entocada / poeta,

tu que és pai, na misteriosa / fragrância

do seu ser, feito de cada / coisa tão frágil

que perfaz a rosa...

“É muito emocionante falar a este respeito.Faz um ano exatamente que faleceu o Roberto.Não estou me acostumando com sua ausência,o tempo passa devagar, penoso e triste. Es-crever um livro a respeito dos 14 anos maravi-lhosos do nosso casamento não é para mimuma comemoração, mas sim um testemunho,uma necessidade para bem memorizar os anosde felicidade. O Mauro Salles está também reu-nindo, em um livro, textos de várias pessoasque vão escrever a respeito de vários aspectosimpor tantes da obra do Roberto. E Pedro Bial,jornalista da TV Globo, está trabalhando paraescrever a sua biografia. O secretário e acadê-mico Arnaldo Niskier criou um comitê do anodo centenário do Roberto. Já se sabe que a Aca-demia Brasileira de Letras fará uma homena-gem. Sem contar as iniciativas das Organiza-ções Globo e dos seus filhos Roberto Irineu,João Roberto e José Roberto, os quais, comsuas mulheres, me dão uma força, um carinhomuito precioso e muito forte.”

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Amor, sublime amor

Trechos inéditos do livro que D. Lily estáescrevendo sobre os 14 anos de vida emcomum com Roberto Marinho

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“Foi assim, em meio ao sobressalto e à sur-

presa, que vivi o desaparecimento daquele que

eu não sabia que podia um dia partir. Esse ser tão

querido que muitos diziam ter sido, para minha

felicidade, esquecido pela morte. Que nada! O

barulho terrível da foice acaba por se lembrar,

cedo ou tarde, de todos nós! Ela desempenha seu

sinistro papel, sem escutar súplicas ou prantos.”

* * *

“Desejo a todos que por vezes perdem a es-

perança na vida, nos sentimentos, nos homens e

nas mulheres, que se lembrem de que o milagre

existe. O que vivi, o meu milagre, foi, sem dúvida

alguma, mais excepcional, mais luminoso, mais

forte que os conhecidos, mas ele me confirmou

ser preciso acreditar que a vida pode nos trazer

a felicidade, quando já não mais a esperamos ou,

até mesmo, quando não mais a julgamos possí-

vel. É verdade que o que a vida nos dá, toma,

voraz, nos deixando desamparadas na mesma

proporção em que nos tiver mimado.”

* * *

“Nosso corpo feminino deve ser dotado de

um senso inato ou então de antenas invisíveis com

tantos minúsculos captadores de ondas, de si-

nais, mesmo ínfimos, que permitem, a nós mu-

lheres, com algumas raras exceções, termos a

prerrogativa de sentir o que os homens, também

com raras exceções, não saberão jamais ver ou

compreender.”

* * *

“Finalmente adormeci, depois de horas imer-

sa em pensamentos e lembranças os mais con-

traditórios que, em apenas uma noite, me haviam

feito reviver o essencial de minha vida. Imaginem

uma espécie de grande “caleidoscópio” onde os

fragmentos, misturados em uma multiplicidade

de imagens como um quebra-cabeça, tivessem

tomado forma em meu espírito, deixando-me, à

hora em que muitos despertavam, mais serena e

mais calma. Eu ainda rememorava os deliciosos

momentos do jantar, as palavras, a voz de meu

extraordinário vizinho de mesa, contando um en-

contro excepcional. O sono se apoderou de mim,

ainda impressionada pela força do relato. Eu me

dizia, pensando na emoção contida que ele ma-

nifestara durante todo o jantar, na incrível manei-

ra de relatar nosso encontro, de descrever seus

sentimentos de então, aqueles que havia guarda-

do no fundo do coração, até o seu 84o aniversá-

rio, quando o destino o colocava, bem tarde é ver-

dade, em contato comigo.”

O livro será lançado até outubro pela Editora Record.

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o xerife da av. rio Branco

flores do asfalto

Carioquice50

Nelson Couto, o Xerife da “Confraria da Maturidade” (vulgo “do Garoto”),exibe a planta original da Avenida Central, a nossa Rio Branco

Imagens: coleção nelson couto

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A antiga Avenida Central é a artéria aorta da cidade. É nas suas

calçadas que o presidente da Confraria do Garoto, Nelson Couto, o

Xerife, apronta as suas travessuras. Mas pouca gente sabia que o

traquinas é dono de uma das maiores coleções de fotos e documentos

sobre o Centro do Rio. Em forma de carinhosa missiva embalamos uma

inesperada dobradinha: o centenário da Rio Branco e o acervo do Xerife.

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“Meu neto, você está aí em São Paulo, qua-rentão, ganhando muito dinheiro, escritório gran-de na Paulista, sei. Mas dia desses seu pai leupara mim um artigo citando uma bela coleção de18 mil fotos, postais e revistas e outros docu-mentos antigos. Tudo garimpado pelo NelsonCouto, o Xerife, presidente da Confraria do Ga-roto, que eu tanto freqüentei. Saiba, meu neto,que poucas coisas são tão cariocas quanto a ale-gria circense desse grupo brincalhão que feste-ja o folclore e as peculiaridades da cidade com omaior bom-humor. Estava lá no seu acervo todaa história da minha avenida, a Avenida Central,Rio Branco, que seja. Mas a avenida do Rio quelevou o Brasil para o moderno.

“Garoto, deixa eu contar nestas linhas que diteie seu pai escreveu pra mim. Como você sabe,cheguei ao mundo no primeiro dia de janeiro de1900. E uma de minhas primeiras lembrançasfoi uma bela parada em uma rua grande, bonita,

que não tinha igual. Foi no Sete de Setembro de1904, e meu pai, que Deus o tenha no Reino daGlória, me contava, orgulhoso, que o nome eraAvenida Central.

“Quando eu já tinha quase 6 anos, a Avenidafoi inaugurada de verdade. Está tudo lá, na cole-ção do Xerife, que tem até a planta original. Mil eoitocentos metros de comprimento por trinta etrês de largura, uma beleza, saindo do Cais doPorto e indo até o Cais da Lapa, onde hoje estáa Avenida Beira-Mar.

“Nós já éramos República desde 1889. Masfoi a partir dali que o Rio e o Brasil começaram aganhar um ar cosmopolita, novo, deixando defi-nitivamente para trás os tempos de Colônia.

“Eu passeava muito na Avenida com seu bi-savô. E ele me apontava uma por uma as gran-des empresas de exportação e importação, osbelos magazines, os poderosos jornais da épo-ca, que se alinhavam lado a lado.

Av. Central, com vista para a Baía de Guanabara. Ao fundo, à direita, o Theatro Municipal ainda em construção, em 1906

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Restaurante Alvear, point da Avenida Rio Branco, 1922 O corso, nos anos 30

Hotel Avenida, considerado o coração do país, em 1921

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“Quando eu tinha 11 anos, meu pai me levoupara conhecer uma nova maravilha: o Hotel Ave-nida. Mas maravilha, mesmo, era o que ficava aliembaixo do hotel, a Galeria Cruzeiro. Ah, que lu-gar. Ali atravessei gloriosamente o caminho daadolescência para a idade adulta. A Leiteria Sil-vestre, o Café Nice, o bar da Brahma...

“Era entrar e esbarrar com Noel Rosa, Gran-de Otelo, Jorge Amado, os craques do foot-ball .Onde mais você veria um Ernesto Nazareth to-cando em uma loja de pianos? Era fácil chegar,tinha até uma linha de bonde passando em fren-te. Está lá, nas fotos do Xerife.

“Logo depois, em 1912, a Avenida mudoude nome em homenagem ao Barão do Rio Bran-co, que tinha batido as botas. Mas tudo conti-nuou o mesmo, meu neto. O footing , a paradaem uma loja de refrescos, aquela onde o CoelhoNeto falou que a cidade era mesmo maravilho-sa, e inspirou o bordão...

“E o corso? Você sabe o que é isto, menino?Dá uma olhada na coleção do Couto. Rapazes emoças, todos vestidos igualzinho, de carro, fa-zendo a farra no Carnaval. Claro que estamosfalando de coisa de rico, porque automóvel erasó pra quem tinha muita gaita.

“Ah, meu neto, mas nada era o bastante paraa nossa Belle Époque... Lá no fim da Avenidatinha o Convento da Ajuda. A Praça Marechal Flo-riano, ao lado, era grande, o povo se reunia lá.Mas derrubaram o convento, e foi pra melhor.Na flor dos meus 25 anos eu já estava diante danossa Broadway. Subiram megacinemas como oOdeon, o Pathé, o Rex... Foi numa dessas tar-des de fita na Cinelândia que eu conheci sua avó.

“É, casei, seu pai nasceu, fiquei mais madu-ro e o Brasil, também. Na coleção do Xerife lem-brei-me de tudo, meu neto, tanto carro na rua,prédio novo subindo. Meu garoto, a Avenidacontinuou tendo carnaval, com desfile de ran-

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Terminal dos bondes sob a marquise do Hotel Avenida, em 1908

Milhares de pessoas assistem ao desfile deMiss Universo na Rio Branco (1930)

chos e marchinhas do meu amigo Lamartine.Teve até eleição de Miss Universo, em 1930,quando pela primeira vez uma brasileira ganhou,imagina... Mas também foi na Avenida onde,chorando, fui ver seu pai em 1945, na paradados pracinhas que voltaram da Itália.

“É, garoto, depois veio muito mais coisa. OHotel Avenida e a Galeria Cruzeiro se foram maleu completei as 60 primaveras. Quando eu já ti-nha 76 anos, foi a vez do Palácio Monroe, queembelezava o finzinho da Rio Branco – um ver-dadeiro crime. Vi também a multidão de luto peloGetulio, a passeata dos Cem Mil, a parada dostricampeões de 70. E já pela TV, o povo na Cine-lândia pelas diretas e pelo impeachment.

“Mas a Avenida do meu tempo sempre vaiser mesmo aquela, que está na coleção do Xeri-fe. Em preto e branco nas fotos, mas semprecolorida e carioca no meu coração.

“Um abraço carinhoso do avô.”

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“Meu neto, ia esquecendo de dizer que nunca é tardepara se corrigir uma injustiça. Foi o Pereira Passos, comseu jamegão de prefeito do Distrito Federal, quem levou afama. Mas o pai da Avenida Central foi o Lauro Müller, umcatarinense que era o ministro da Indústria, Viação e ObrasPúblicas.

“Se duvidar, pergunta ao Xerife. Foi o alemão quemprimeiro defendeu empreitadas como uma grande aveni-da que, saindo do Largo da Prainha, atravessasse o cen-tro da cidade e chegasse à Lapa.

“Outra coisa, meu garoto. Em 1903, o Lauro Müllerconvenceu o presidente Rodrigues Alves a liberar muitodinheiro para que o Brasil participasse, um ano depois,da Exposição Universal de Saint Louis, nos Estados Uni-dos. O pavilhão que nós erguemos lá recebeu o grandeprêmio de arquitetura, de tão bonito. Inauguramos um igualem 1906, no fim da Avenida. Era o Monroe, aquele mes-mo que você, com seu olhar de criança, dizia que era opalácio mais bonito do mundo.”

P.S.: Lauro Müller, o pai da criança

Acima, telegrama em que Lauro Müllercomunica que o presidente Rodrigues Alveshavia liberado a verba para o Brasil participarda exposição internacional em Saint Louis,em julho de 1903. À esquerda, o PalácioMonroe.

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nosso polvilho de luxo

acepipe do cotidiano

Ele é carioca da gema há 50 primaveras. Não perde um dia de praia,

faça sol ou faça chuva. E nem jogo no Maracanã, muito menos o desfile

das escolas de samba. Como é filho de paulista, também é sempre

visto em um bom engarrafamento. O Biscoito Globo é uma doce mania

— ou será salgada? — do jeito de ser carioca.

Seu João: 75 anos de idade e 50 anos trabalhando no local de onde hoje sai o Biscoito Globo

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As duas embalagens tradicionais e a nova versão: aprimeira mudança no Biscoito Globo em 50 anos

A receita da rosquinha de polvilho nasceu nosfundos de uma padaria do bairro paulistano doIpiranga, é verdade. Mas nem sequer tinha umnome quando, um ano depois de criado, come-çou a ser vendido no Rio, em 1954, pelos ir-mãos Milton, Jaime e João Ponce Fernandes. Umano depois, começou a ter grife ao sair dos for-nos da Padaria Globo, na Rua São Clemente, emBotafogo, onde o trio passou a trabalhar.

Em terras cariocas, o petisco ganhou popu-laridade. Um dos segredos de seu sucesso éestar sempre fresquinho – até porque o esto-que não dura mais do que dois dias. O outro é opróprio ingrediente principal: o polvilho. O doBiscoito Globo vem diretamente de Cachoeira deMinas, em Minas Gerais mesmo. A combinaçãode receita paulista e ingrediente mineiro agra-dou em cheio aos cariocas.

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Nos dias de maior movimento, de 200 a 300vendedores fazem fila porta da fábrica, desde1965 a Panificação Mandarino, um galpão de400 metros quadrados na Rua do Senado, Cen-tro da cidade. Vinte e dois funcionários se en-carregam da produção, que sai dos fornos em16 minutos. Incluindo o que é vendido atravésde 200 padarias, mas aí sem a marca Globo,são de nove mil a dez mil saquinhos por dia, noauge do consumo.

A fórmula do biscoito continua a mesma des-de sua invenção: polvilho azedo, ovos, leite,água, gordura vegetal hidrogenada, sal e açú-car. A produção é quase artesanal e o biscoitonão leva conservantes ou corantes. Por isso, oGlobo só tem dois sabores: salgado (o do sa-quinho verde) e doce (vermelho).

O Biscoito Globo sempre foi embalado ma-nualmente. O desenho do pacote também é o

mesmo há meio século – o famoso bonequinhofoi inspirado naquele de O Globo, que é publica-do há décadas junto com a crítica de cinema.

Recentemente, um dos brindes mais disputa-dos do Fashion Rio, realizado no Museu de ArteModerna, eram as rosquinhas. Ano passado, umaconhecida confecção chegou à loucura: paramarcar a inauguração da nova loja em São Pau-lo, encomendou centenas de saquinhos e levoutudo de avião, inclusive os vendedores...

Só agora o fabricante da tradicional rosqui-nha adotou a primeira mudança de seus 50 anosde história: lançou uma versão em saco plástico,fechado. Tudo para conquistar uma outra clien-tela, a das cantinas escolares, onde antes nãoentrava por conta das exigências da vigilânciasanitária. Em menos de um mês de lançamento,60 escolas já estão entre a clientela. Biscoito Glo-bo até longe da praia. Sorte da garotada.

William, um dos 22 funcionários da Panificação Mandarino responsáveis pela produção de um patrimônio carioca

acepipe do cotidiano

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“É irresistível. Na praia, tem aquela “hora do

Biscoito Globo”, logo após um mergulho ou

uma partida de frescobol. Também cai bem no

trânsito ou no Maracanã. Meu favorito é o

salgado.”

Cynthia Howlett,apresentadora de TV

Salgadoou doce?Conheça a

preferência de

alguns cariocas

famosos

“O Biscoito Globo é a uma marca carioca,

uma tradição de quem freqüenta as praias da

cidade. Sempre fui um fã do biscoito e sou

louco pelo biscoito doce.”

Tande,jogador de vôlei de praia

“Em 2000, participei da peça “Céus”, que foi

patrocinada pelo biscoito. Na apresentação, eram

distribuídos saquinhos do Globo para a platéia,

que fazia até guerra de biscoito. Foi muito

divertido. Eu prefiro o doce.”

Evandro Mesquita,ator e cantor

“Adoro Biscoito Globo! E é a cara do Rio! Quando

eu era pequena, minha mãe comprava para mim

na praia. E hoje sou eu quem faz isso com

minhas filhas. E ainda compro quando estou

parada no trânsito. Eu prefiro o salgado!”

Fernanda Abreu,cantora

“A rosquinha de polvilho é uma unanimidade

entre os cariocas e uma das melhores coisas

do Rio de Janeiro. Gosto do doce e do salgado.

Se colocar na balança, o doce ganha, mas por

pouco.”

Flávia Quaresma,chef e proprietária do Bistrô Carême

“Adoro Biscoito Globo, mas até hoje não

consegui chegar a uma conclusão: sal ou

doce? Isso é uma dúvida que me atormenta

desde a infância (risos ). Acabo comprando

um pacote de cada um.”

Regina Casé,atriz

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ambrosia com picardia

o suculento quituteda Guanabara

Reza a lenda que o Picadinho à Carioca veio ao mundo, em 1946, pelas

mãos do barão Von Stuckart, na boate Vogue, em Copacabana. Verdade

ou não, o fato é que o prato fazia enorme sucesso na década de 50 e

encantava a boemia carioca em endereços como o Sacha’s e o Meia-

Noite, do Copacabana Palace. Também estava garantido em festas de

colunáveis, merecedoras dos registros de Ibrahim Sued. O Instituto Cultural

Cravo Albin (ICCA) foi boa mesa para um apetitoso debate sobre o manjar.

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Para saborear e falar sobre esse que é umdos mais típicos pratos cariocas, Ricardo Cra-vo Albin recebeu na sede do Instituto uma se-leta confraria, que em comum tem o exercícioda gastronomia, como prazer cultural e desa-fio filosófico. São eles: o publicitário Lula Viei-ra, o jornalista político Villas-Boas Corrêa, ofundador e ex-presidente do Companheiros daBoa Mesa Reinaldo Paes Barreto, a carismáti-ca pastora da Velha Guarda da Por tela Tia Su-rica e o chefe da sucursal carioca da revistaÉpoca, Thomas Traumann.

Perguntados sobre a origem do Picadinho,Reinaldo Paes Barreto foi o primeiro a se ma-

nifestar e disse que em tudo que diz respeito àculinária carioca as opiniões se dividem. Masele credita boa parte da influência à cozinha por-tuguesa. “Toda comida simples que conhece-mos foi trazida pelos portugueses. Depois, ageração de brasileiros, não encontrando os ele-mentos corretos, adaptou ou incluiu, como é ocaso da banana-da-terra, que está no picadi-nho e no cozido”.

Toda essa aculturação resultou em igua-rias como o nosso popular picadinho cario-ca, que também conhece a versão Rio de Ja-neiro, feita de frango. Esta variação, muitoapreciada pelo ex-presidente Fernando Hen-

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ambrosia com picardia

rique Cardoso, encontrava-se freqüentemen-te no menu do Planalto, pelas mãos da chefRober ta Sudback.

Ao ver que Reinaldo trazia consigo algumasreceitas, Thomas pergunta se tinha alguma coi-sa diferente no picadinho Rio de Janeiro.

Reinaldo diz que não, mas relembra uma his-tória curiosa. Conta que uma vez, em Roma,quando Fernando Henrique estava em visita ofi-cial, pediu que o embaixador incluísse o picadi-nho no menu para dizer que estava levando al-guma coisa brasileira. “Porque vatapá seria oexcesso”, conta rindo.

Mas voltando ao nosso popular carioca,Villas-Boas diz que apesar de nunca ter sidoboêmio, sabia que o prato era conhecido comoo forro da madrugada.

Reinaldo lembra que como as cozinhas dasboates não tinham grandes recursos, podiamfazer o picadinho, que é um prato muito sim-ples. “Era só cortar uma carne, ter um molhoclássico... e Lula complementa, “um pouquinhopra lá vira strogonoff e pra cá, um picadinho”. EReinaldo conclui que, depois da água, o ovo é acoisa mais primária do mundo. Está pronto opicadinho! Comida essencial para depois do por-re, enfatiza Reinaldo.

Lula, a essa altura, diz que estava sonhan-do com as boates de antigamente e com a can-ja. Mas Reinaldo lembra que a canja tinha umdefeito. “Uma água quente vai mal com um uís-que com gelo. Cria uma contradição. Então, émais lógico ficar no picadinho para continuara beber...” E Thomas dá a perfeita definição:“O picadinho é o intervalo e a canja, o fim dojogo.”

Nesse ponto, Lula filosofa e diz que o pi-cadinho tem uma função cívica: “Mantém vocêbebendo!”. E todos concordam que a canja ea sopa sinalizam um fim, uma certa prepara-

“O picadinho tem

um função

cívica: mantém

você bebendo.”

Lula Vieira

“Lá em casa nunca

faço picadinho,

porque recebo 300

pessoas por vez e a

comida tem que

ser de sustança.”

Tia Surica

“Canja não serve,

porque vai mal

com uísque e

gelo.”

Reinaldo PaesBarreto

“Apesar de nunca

ter sido boêmio,

sei que o prato

era o forro da

madrugada.”

Villas-Boas Corrêa

“O picadinho é o

intervalo e a canja,

o fim do jogo.”

Thomas Traumann

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RECEITA DE PICADINHO À CARIOCARecitada por Procópio Ferreira à Myrthes Paranhos

(Guilherme Figueiredo em “Comidas, meu Santo!”,

Editora Civilização Brasileira, 1964)

Alguma carne cozida, embora filé “mignon”, devida-

mente passada no moedor ou cortada em pedacinhos.

À parte, faça um molho do que lhe vier à cabeça, cal-

do de carne, cebola picada, pimenta do Reino ou ma-

lagueta esmagada, extrato de tomate, água. Misture

tudo à carne picada, leve ao fogo numa panela que

deitará um pouco de água. Quando a matéria mostrar-

se um pouco granulosa e com pouca umidade, é hora

de servir. Deite-lhe em cima um ovo estrelado. E arru-

me ao lado de um pequeno promontório de farofa feita

de farinha de mandioca torrada com manteiga. Se

servir a visitas esnobes, diga que aprendeu no Vogue,

no Sacha’s, no Copa ou no Calvados. Todos pasmarão.

Guilherme Figueiredo, em seu livro

“Comidas, meu Santo!”, destaca que

uma grande vantagem do prato é que

“vai com whiskey mesmo — bebida

que acompanha o grã-fino na terra do

champagne e do Chateau Latiffe”.

ção para dormir. “Depois da canja, o pijama.Depois do picadinho, voltamos ao uísque”,conclui Lula.

Guilherme Figueiredo, em seu livro “Comidas,meu Santo!”, destaca que uma grande vantagemdo prato é não precisar deitar falação sobre vi-nhos: “vai com whiskey mesmo – bebida queacompanha o grã-fino na terra do champagne edo Chateau Latiffe”.

Ainda se deleitando, eles dão as dicas para oprato perfeito. Lula diz que o contra-filé ou o mig-non tem que ser puxado na faca. “E essa é umaciência. Não pode amassar as fibras da carne.”

Quanto a dar uma leve fritada na carne, di-zem que não é absurdo, porque dá uma seladi-nha, embora Reinaldo discorde dizendo quepode virar bife bourguignonne. Mas confessamque fazem direto.

Como acompanhamento, a farofa, o arroz, abanana e, fundamental, o ovo pochê sobre a car-ne para manter o calor.

Tia Surica, dona do famoso Cafofo em Madu-reira que abriga rodas de samba e comilançashistóricas se diz encantada com o almoço. E res-salta a maravilhosa farofa. Com o que todos con-cordam. Mas conta que em sua casa, onde cos-tuma receber mais de 300 pessoas por vez, se-ria impossível preparar um picadinho, e lembraque já fez 96 rabadas para um almoço.

“É muita gente pra servir e todos repetem maisde uma vez. Então, a comida tem que ser de sus-tança como mocotó, tripa à lombeira, feijoada,cozido, galinha com macarrão”, conta, sorridente.

E conclui dizendo que faz tudo isso com mui-to amor. “Esse negócio de embrulha e mandanão é comigo”.

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olha o maraca aí, minha Gente!

Inesquecíveistardes de domingo

O Rio de Janeiro sem Maracanã seria como Fellini sem Giulietta

Massina, Woody Allen sem Manhattan, Michelângelo sem a Capela

Sistina. A importância do Maraca transcende as quatro linhas. Suas

partidas não apenas elegeram craques ou decidiram campeonatos, mas

ajudaram a delinear os hábitos e costumes do Rio de Janeiro e a

definir o espírito do carioca. Carioquice amarra as chuteiras, faz o sinal

da cruz, entra em campo e convida o leitor a viajar por algumas das

grandes tardes de domingo. Um convite, aliás, feito na “voz” dos

locutores que marcaram época no eterno maior do mundo.

p o r Claudio Fernandez

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“minha Gente, 16 de julho de 1950”“É hooooje!”. Eram sete e quinze

da manhã, quando Demerval abriu ajanela do quar to e acabou com o si-lêncio que imperava na Rua Uruguai.No mesmo instante, passava o bon-de 64. Um passageiro de sapato bi-color, chapéu panamá e terno chei-rando a sábado devolveu a sauda-ção: “Brasil, Brasil, Brasil”. Demer-val ainda acenava, quando sua mu-lher, de volta de padaria, entrou emcasa cantarolando: “Esta mocinhacatita / tão corada e tão bonita / não faz se-gredo / seu lema é tomar Vic-Valtema”.

Desde que começara a tomar a vitamina, ha-via dois meses, Yolanda perdera seis quilos. Nãosabia se era por conta do remédio ou por causadas quatro horas semanais de aula de dança quefazia no Tijuca Tênis Clube. Na dúvida, não para-va com nenhum dos dois. Yolanda apressou De-merval. Teriam um dia cheio. Iriam almoçar nacasa da mãe de Yolanda, em Copacabana. Nocaminho, aproveitariam para olhar um aparta-mento à venda no Edifício Santa Alice, no núme-ro 168 da Marquês de Abrantes. “Falar com ozelador, Sr. Mario”, dizia o anúncio no Diário daManhã. Depois do almoço, Demerval seguiria parao Maracanã. Não perderia aquele Brasil e Uruguaipor nada. Yolanda se encontraria com a amigaVerinha, às quinze para as duas, em frente aoPalácio Monroe, na Cinelândia. Juntas, assistiriama “Nada Além de um Desejo”, de Frank Capra.

Demerval e Yolanda levaram duas horas parair da Tijuca ao Flamengo. Todas as ruas pareci-am a Praça Onze dos domingos de fevereiro. NaPraça Saens Peña, em frente ao Cinema Carioca,um rapaz passa em um Lincoln Continental pre-to, atravessando nos versos de “General daBanda”, o sucesso de Blecaute. Já na Avenida

Rio Branco, Demerval e Yolanda quase não con-seguem entrar na Galeria Cruzeiro, onde pega-riam um novo bonde para o Flamengo. Na Mar-quês de Abrantes, cerca de 60 homens faziamuma batalha de confete e serpentina. Que festa!Eram quase onze da manhã. Naquele momento,autoridades e dirigentes da CBD se esbarravamna concentração da seleção brasileira em São Ja-nuário. Discutiam onde seria a festa do título etomavam as providências para o feriado do diaseguinte. “Feriado, não! Feriados. Proponho umasemana de ponto facultativo na capital federal”,bradou um senador, sacudindo a camisa queacabara de ganhar de Zizinho. “É para meu neti-nho, Mestre Ziza. Mas pode ver tamanho grande.O guri é parrudo”, dizia o roliço parlamentar.

Yolanda não gostou do apartamento. “O solvai acabar com o taco, Demerval”. Marcharampara Copacabana. A esta altura, por volta dasonze e meia, os bondes já passavam apinhadosde torcedores a caminho do Maracanã. Demer-val almoçou voando. Beijou sua mulher e partiupara o estádio como um soldado pronto a de-fender sua pátria. Encontrou o amigo Régis nolocal marcado. Abraçaram-se, embrenharam-seentre a multidão e subiram a rampa de entrada.“Campeão, campeão, campeão”, gritava a tur-

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olha o maraca aí, minha Gente!

ba. No caminho da arquibancada ainda haviasacos de cimento e ferramentas. O fim das obrasficaria para o jogo das faixas. Demerval e Régispermaneceram em pé no último degrau das ar-quibancadas. “Pelo menos vamos sair antes epegar lugar no Bar da Dona Maria”, disse Régis.“Minha gente, apita o juiz, começa a decisão daCopa do Mundo”, diz Luiz Mendes no microfoneda Rádio Globo. Eram 15 horas. O domingo es-tava perfeito. Se acabasse naquele instante, nin-guém iria reclamar.

“Esfera no barrrrbante”. assim diria

Oduvaldo Cozzi, naquele 13 de maio de 1959

Naquela manhã, o carioca respirava aliviado. Acerveja gelada estava garantida. O governo afas-tou o risco de racionamento de energia que pai-rou sobre a cidade durante duas semanas. Na-quela manhã, o operário Luis Ribeiro respiravaapaixonado. Era uma hemorragia de felicidade.Estava exponencialmente apaixonado pela própriacunhada, a irmã de sua mulher. Maria Ribeiro (coin-cidentemente também Ribeiro) fora morar na mes-ma casa da irmã. Chegara como quem baixa emum sanatório. Fora se curar de uma moléstia noamor: o seu marido, Francisco Cândido, preso

por tráfico de drogas. Acabou encontrando o re-médio no cunhado Luis e passaram a ter um caso.Naquele dia, Luis sonhava com um fim de semanacom a amada na Bahia. Lamentou não ter os 17mil cruzeiros necessários para comprar duas pas-sagens na Empresa de Turismo Tana. Estava cegode amor. Só naquela manhã, ao chegar em casa,percebeu que havia algo de estranho com acunhada. Perguntou, questionou, apertou-a e elaconfessou. Sua doença era terrível e exigia doseextra de remédio. Assim, além de Luis, Maria pas-sou a ter um caso com um vizinho, José Barbosada Silva, que carregava a alcunha de “Pearão”.Luis Ribeiro não suportou: sua amante tinha umamante. Pegou um revólver e foi para a rua, de-sesperado, demolido por dentro. Não tardou aencontrar Pearão. Não lhe disse nada. “O safa-do sabe porque está morrendo”, pensou, se-gundos antes de apertar o gatilho três vezes.Fugiu sem rumo. No dia seguinte, dividia as pá-ginas dos matutinos com Julinho Botelho, gran-de estrela do amistoso entre Brasil e Inglaterra.Enquanto Pearão morria, Julinho ressuscitava deimpiedosa vaia. Ao verem Garrincha no banco,130 mil pessoas apuparam Julinho em dó me-nor. O ponteiro respondeu com uma das maio-

res atuações individuais da história doMaracanã – o Brasil venceu por dois azero. Qualquer outro povo se envergo-nharia daquele linchamento. Mas o ca-rioca só se envergonha se não tiver cer-veja gelada e, depois do jogo, lotouos bares. Aquele foi um grande domin-go. Mesmo sendo uma quarta-feira.

O relógio marca...

15 de dezembro de 1963

Mas que dezembro escaldante! Overão ainda é futuro do pretérito e jáfaz calor de fevereiro no Rio de Janeiro.

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“Minha gente, apita o juiz, começa a

decisão da Copa do Mundo”, diz Luiz

Mendes no microfone da Rádio Globo.

Eram 15 horas. O domingo estava

perfeito. Se acabasse naquele

instante, ninguém iria reclamar.

A cidade se arruma para o domingo. “Cuidado,das Dor! Isso quebra”. No Cosme Velho, os ser-viçais arrumam as porcelanas e pratarias na man-são dos Austregésilo de Ataíde. Na véspera, osalunos do Colégio Santo Antônio Maria Zacaria fes-tejaram seu baile de formatura no casarão.

“Vai, das Dor ! Hoje, essa mulata não me es-capa”. Zé Rubens – mas se chamar de Volta eMeia, ele atende – arruma as cadeiras na qua-dra da Em Cima da Hora. Maria das Dores, pas-sista da gema, é paixão antiga, desde o grupode acesso. Mas Volta e Meia tem que correr. Logomais, haverá um risoto de camarão para a co-munidade de Cavalcanti, acompanhado de umshow de Calixto, que faz miséria com o pratonos desfiles da Império Serrano.

“Vamos, pai, está na hora”. Carlinhos é apai-xonado por carros de corrida. Ainda não conhe-ceu as mulatas. “Eles já devem ter largado, pai”.De fato, os carros já estão cruzando as ruas deJacarepaguá. É uma manhã diferente. Várias ruasfechadas, da Zona Oeste à Zona Norte. É dia doRallye da Guanabara, uma prova de rua na qualos carros cruzarão 185 quilômetros pela cidade.Ao lado de seu pai, Carlinhos chega à Rua Cam-pos Salles ainda a tempo de avisar os pilotos docarro 3 de que eles entraram na rua errada.

“Temos que parar o Escurinho, temos queparar o Escurinho.” Carlos Antônio, pai de Carli-nhos, só pensa em como anular o ponteiro tri-color. Mal viu os carros, mal almoçou. Sai de casa

e por toda Mariz e Barros e na Professor Gabi-zo repete o mantra. “Temos que parar o Escuri-nho.” Quase não consegue ingresso – todos os177 mil bilhetes são vendidos. Carlos Antôniose senta próximo à Charanga Rubro-Negra. Ba-tuca no cimento da arquibancada, mas não con-segue acompanhar a torcida que canta “O teucabelo não nega, mulata, porque és mulata nacor”. Batucava e pensava. “Temos que parar oEscurinho.”

Começa o jogo, partida tensa. Oldair não deixaCarlinhos e Nelsinho jogarem. Intervalo de jogo.Carlos Antônio desce para tomar um Matte Leão,mordisca a borda do copo e pensa. “Temos queparar o Escurinho.” Na volta, sem lugar, tem quever o segundo tempo em um dos túneis que le-vam para a arquibancada. O tempo passa e ozero a zero que dará o título ao Flamengo per-siste. Quarenta e quatro minutos: surgem os pri-meiros gritos de campeão na torcida rubro-ne-gra. O time ataca e Carlos Antônio tem a visãofatal. “Meu Deus, o Escurinho está sozinho. Se oFluminense toma essa bola...” Acontece o pior.O Fluminense toma a bola e lança nas costas dadefesa do Flamengo. Escurinho parte sozinhoem direção à área. O goleiro rubro-negro Marci-al fica indeciso, não sai. Escurinho entra na área,pára e olha. Carlos Antônio não olha e parte.Vira de costas e começa a descer o túnel. Escu-rinho toca por cima de Marcial. Gritos na arqui-bancada. “Eu sabia. Tínhamos que parar o Es-

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olha o maraca aí, minha Gente!

curinho!” Carlos Antônio desce a rampa desola-do. “Maldito Escurinho!” De repente, vê um su-jeito, de camisa do Flamengo, gritando histeri-camente. “Marcial, Marcial, que defesa! Que go-leiro! Meeengo! É campeão!” Era Volta e Meia,que havia abandonado o show de Calixto e o re-quebrado de das Dor para ver o Flamengo cam-peão. Afinal, no Rio de Janeiro, o samba nãomorre jamais. Mas tira um cochilo quando o Fla-mengo joga.

anotem! Tempo e placar no maior

do mundo. 18 de dezembro de 1966.

Ah! Quem não estava nas areias de Ipanemanaquela manhã de domingo jamais conheceu abeleza. Os 30 graus pareceram ser 90 quandoMárcia Rodrigues chegou à praia, como, aliás,fazia todo o santo domingo. Com 17 anos, aquelamorena encantara Vinícius de Moraes e o cineas-ta Leon Hirszman. Entre 130 candidatas, foi es-colhida para ser a Garota de Ipanema nos cine-mas. Sob o sol, suas formas encantaram o jo-vem Plínio, 16 anos, aluno do Colégio Militar, que

sonhava em ser general. Enquanto a patente nãochegava, era fã, de carteirinha e roupa no armá-rio, do Capitão Aza. Plínio suspirava. “Ah, se eutivesse 85 mil cruzeiros. Comprava um ternoContour Look nas Casas Tavares e levava essebroto para ver ‘Dr. Jivago’ abraçadinha comigo.Ai, eu com um Karmann-Ghia na mão”. Se dessesorte e conseguisse convencer o porteiro do CineÓpera, na Praia de Botafogo, que tinha 18 anos,o máximo que Plínio faria na noite daquele do-mingo era assistir “Toda Donzela Tem um Paique é uma Fera”, com Vera Vianna e ReginaldoFarias. Antes, no entanto, Plínio queria estar noMaracanã e ver seu Flamengo contra o Bangu.Era a final do carioca. Havia três dias, Plínio játinha ganhado um troféu. Foi visitar uma tia emCopacabana e viu o atacante Almir, o Pernambu-quinho, sentado em um bar, tabelando com umaCaracu preta. Pediu um autógrafo. Antes de as-sinar no guardanapo, Almir limpou a espuma doslábios com a mão direita, mirou nos olhos dePlínio e disse: “Moleque, eu não perco esse jogode domingo por nada.” Com aquela promessa

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deja de ovos rosas e um pernil já desfigurado.Dali, Edinélson foi aproveitar o sol e o mar. Nun-ca tinha visto o mar. Nem ele e nem centenas decorinthianos que mergulharam nas águas de Co-pacabana e rolaram na areia. De repente, erammais de dois mil paulistas no Posto Cinco. Al-guns garotos começaram a jogar areia e cascasde laranja nos torcedores. Os surfistas saíramda água. A madame com o seu bassê ajeitou ochapéu e voltou para casa.

Meio-dia e as redondezas do Maracanã já fer-viam. Diversos estudantes não conseguiram che-gar a tempo nem ao Cefet nem ao Colégio Militare perderam os exames de madureza do 1º grau.Surge a Gaviões: cem, duzentos, quinhentos, milônibus se espalham por Maracanã, Tijuca e Pra-ça da Bandeira. Os torcedores do Fluminensecomeçam a estacionar a dois, três quilômetrosdo estádio. Às três da tarde, tricolores e corin-thianos dividem o anel das arquibancadas e atéa geral.

Havia mesmo algo de estranho naquele do-mingo carioca. O clima também paulistou. O solda manhã deu lugar a nuvens cinzas e a um agua-ceiro de fechar a Marginal. Na geral, os corinthi-anos pulam e gritam: “Timão, Timão!”. Pintinhofaz a metade carioca do Maracanã festejar e Ruçoresponde, levantando a paulistada e fazendoEdinélson dar três socos na placa do Banerj: uma um. Prorrogação e nada de gols. Nos pênal-tis, a Máquina tricolor emperra, marca só um gol,contra quatro do Corinthians. Os mais de 60 milcorinthianos – muitos vieram de carro – ficaramcerca de meia hora pulando na chuva do Maraca-nã. Edinélson pensava numa desculpa para ma-tar o trampo também na segunda-feira. Foi umatarde épica e os paulistas viveram uma dádiva:tiveram o seu domingo de cariocas.

na memória, Plínio foi confiante ao Maracanã. Uma zero Bangu. Dois a zero Bangu. Três a zeroBangu. Era demais para Plínio. E para o Pernam-buquinho também. Almir transformou o Maraca-nã no Coliseu. Brigou com todo o mundo e apartida terminou aos vinte e cinco minutos dosegundo tempo. A promessa estava cumprida:o Flamengo perdeu o jogo, Almir venceu a briga.E lá se foi Plínio. Naquele fim de domingo, naúltima fila do Ópera, o futuro general teve comVera Vianna o prazer que Márcia Rodrigues e oFlamengo lhe negaram.

apite comigo, galera! 5 de dezembro de 1976.

“Ei, ei, olha a fila, rapá !”. Otávio acordara àsquatro da manhã. Às quatro e meia daquele sá-bado, o último cliente do Amarelinho ainda pe-dia a saideira e Otávio já estava perfilado na portado Teatro Municipal. Daria a vida por aquele lu-gar. Às noves horas, a Cinelândia era um mar degente. Até quem não era tricolor queria assistiràquele Fluminense e Corinthians que levaria umdos times à final do Campeonato Brasileiro.

À meia-noite de sábado, Edinélson Jesus daSilva é um dos mais de 40 mil corinthianos quedeixam São Paulo rumo ao Rio de Janeiro. Na sex-ta-feira, faltou ao trabalho para arrumar as faixase bandeiras da Gaviões. Chegou ao Rio por voltadas seis da manhã daquele domingo. Pouco apouco, os 1.500 ônibus da Fiel começaram a rom-per a Avenida Brasil. Logo, se espalharam peloCentro e pela Zona do Sul da cidade.

O Rio começava a ficar estranho naquela ma-nhã. Havia um certo cheiro de Tietê. Às oito damanhã, Edinélson entra em uma padaria na Ba-rata Ribeiro. “Ô, mano. Me vê essa porpeta secae um refresco”. “O que, meu filho?”, respondeuo portuga. “A porpeta sem molho e um refres-co”, repetiu, desta vez apontando para os cro-quetes de carne que repousavam entre uma ban- Claudio Fernandez é jornalista.

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média com pão com manteiGa

Ela, autêntica filha do Rio, nascida no Jardim Botânico. Ele, mineiro por

acidente, quase nascido na Lapa. Não é exagero dizer que os dois

formam um “casal 20” da moderna crônica carioca. Os jornalistas

Heloísa Seixas e Ruy Castro transformam causos em pérolas. Os dois

falaram a Carioquice cercados por uma coleção que inclui mais de dois

mil livros e diversos objetos sobre o Rio.

toDO o nosso amorà beira do rio

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do Posto 6, e o motorista contempla Copacaba-na, é freqüentíssimo ouvi-lo dizer: “P.Q.P., masé muito bonito!” Nem o morador da cidade nãose contém.

Helô – O que dá a personalidade ao Rio nãoé a praia, não é o mar, são as montanhas. É esseperfil, a sensualidade, essa ondulação que estápor toda parte.

Ruy – E as montanhas permitiram que o Riofosse a primeira cidade do mundo a ser ‘retrata-da de avião’, antes mesmo que houvesse avião.Mais precisamente, o Rio foi mostrado do altodo Corcovado, onde alguns artistas subiam parapintar ou para fotografar, por volta de 1850. Isto,num tempo em que se precisava carregar umequipamento gigantesco, chapas de vidro enor-mes... Não havia a facilidade de hoje... Então, osartistas ficavam a 700 metros de altura, acimada altitude que, cinqüenta anos depois, os pri-meiros aviões iam alcançar. Por isso, temos essaquantidade de imagens, tanto de fotógrafoscomo de pintores, do Rio visto do alto. Não ha-via isso em qualquer outro lugar.

A ligação do Rio com todo o Brasil é umacoisa profunda. É a única cidade em que real-mente qualquer pessoa, não importa de ondevenha, é plenamente adotada. Todos viram cario-cas, porque a cidade os acolhe. O Rio foi feitopara acolher e receber, isso desde 1502, quan-

Helô – Eu sempre fui muito observadora dacidade. Tenho alma de arquiteta. Há alguns anos,o JB fez um concurso para que se identificasseum prédio a partir de um detalhe da fachada.Uma tia minha resolveu participar e me pediaajuda. Normalmente, eu descobria de que pré-dio se tratava. Ela acabou acertando tudo. Mas,para falar a verdade, muitas outras pessoas tam-bém acertaram.

Ruy – O impressionante é o fato de muitagente ter acertado. Isto significa que existe umenvolvimento enorme do carioca com sua cida-de. Para ter a exata noção disso, você precisamorar fora do Rio por algum tempo, como eu,que vivi em Portugal e São Paulo. Observa-se,em outros lugares, que as pessoas estão alhei-as ao que acontece em volta delas. Estão aliporque querem trabalhar, ganhar dinheiro, maspensam em ir embora o mais depressa possí-vel. Pretendem voltar para sua terra, ou coisaparecida. Pode pegar fogo na cidade, que aspessoas não estão nem aí. Aqui, não é assim...

Helô – O carioca, de maneira geral, reparana sua cidade. Os motoristas de táxi são umexemplo. O que eles se deslumbram com a be-leza do Rio!

Ruy – Eu, que só ando de táxi, sinto isso otempo todo. Pego o táxi e peço para pegar apraia, para ir ao Centro. Quando chega na altura

“As montanhas permitiram que o Rio

fosse a primeira cidade do mundo a

ser ‘retratada de avião’ antes que

houvesse avião.”

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média com pão com manteiGa

do os primeiros brancos botaram o pé aqui,apenas dois anos depois de Cabral ter chegadoao Brasil. Isto não acontece em todos os luga-res do país, em muitos se é até rejeitado. O Rioé a única cidade verdadeiramente de todos osbrasileiros.

Se você perguntar aos oriundos de italianos,no Rio, se cozinham macarrão todo dia, se põemaquele babador, vai receber como resposta um“não”. Lá em casa nunca houve esse negócio.Ou seja, os italianos do Rio são cariocas. Nãoimporta que o avô ou até o pai seja italiano, elessão cariocas. Nas outras cidades, não. O sujeitotem um tataravô italiano e se sente mais italianodo que brasileiro.

Helô – Sou carioca, filha de baianos por to-dos os lados. Meus pais vieram para cá em 1948e eu nasci quatro anos depois, no Jardim Botâni-co. Com sete anos de idade fui morar no Leblon.

Ruy – Até 1947, quando voltaram para MinasGerais, meus pais tinham uma pensão familiar,que servia refeições e ficava quase ao lado deonde hoje é o (Bar) Ernesto. Na época, era oCabaré Brasil, o mais chique da Lapa. Em baixoda pensão, tinha uma barbearia muito querida,porque o dono, chamado Machado, emprestavalivros de medicina e direito a estudantes. Minhastias moravam na Lapa e minha família toda con-tinuou vivendo no Rio. Meu pai tinha 11 ou 12

irmãos e irmãs, espalhados por Lapa, Flamen-go, Cascadura, Copacabana... A partir de 1954,passei a vir mais regularmente ao Rio com meupai e tive uma infância tão ou mais carioca doque mineira. Minhas recordações são do Tabu-leiro da Baiana, dos bondes...

Helô – Eu, quando criança, vi o Leblon cres-cendo. Foi muito marcante para mim. Havia tan-tos terrenos baldios em torno do meu prédioque normalmente armavam num deles um circo,ao qual eu ia com a minha babá e o meu irmãopequenininho. Isto, na Ataulfo de Paiva! Quandocomecei a escrever os “Contos Mínimos”, no“Jornal do Brasil”, dei este título porque penseiem fazer ficção. E, no entanto, acabei virandoum pouco cronista. Volta e meia faço crônica, enão conto. E a principal razão de ter tomado esterumo foi o Rio. Ele me chamou. A observação dacidade foi tão forte e tão necessária, por causadessa história da violência. Eu senti ser precisotomar posição.

Ruy – Era preciso denunciar esse excesso deexploração da violência.

Helô – As pessoas observam as paisagensda cidade o tempo todo, e o Rio é muito visíveltambém em outros sentidos, bons e maus. Éexposto demais. A violência existe, claro, mas écomo a sensação térmica. A temperatura podeestar em cinco graus, mas, se ventar, a sensa-

“Desde 1860 tem sempre alguém

dizendo que o Carnaval está

acabando ou que acabou.”

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ção térmica é de menos cinco. Existe uma sen-sação de violência, provocada, entre outras coi-sas, pela visibilidade do Rio. Como se não bas-tasse, alguns falam de decadência, que as coi-sas não são mais como eram, que algumas aca-baram. É assim com o Carnaval. Se você ler arti-gos antigos, vai ver as mesmas coisas sendoditas.

Ruy – Desde 1860, dizem que o Carnavalacabou. Em 1880, ou 1900, ou 1910, havia sem-pre alguém dizendo que o Carnaval estava aca-bando ou tinha acabado. Aí, chegamos ao sécu-lo 21 e, quando é fevereiro, a gente sai à rua evê, como aconteceu nos últimos dois anos, umaprofusão de blocos. O Carnaval popular está devolta. Está certo, não tem mais as marchinhasde antigamente, mas a festa existe há mais de200 anos, e só teve marchinhas durante 30 anos.Na verdade, as pessoas têm uma saudade imen-sa da infância e acham que o cenário da menini-ce era melhor do que o de hoje. E se lamentam“Ah, a noite do Rio acabou...” Eu já passei dos50, mas sei relativizar as coisas. Não digo: “Nomeu tempo é que era bom, porque se podia fa-zer isso ou aquilo.” Não, era bom porque eu erajovem.

No livro “A Cidade e o Império”, da historia-dora Maria Fernanda Bicalho, ela demonstra queo Rio de 1710, 1711 era muito mais perigoso

do que é hoje. Era uma cidade de cerca de 30mil habitantes, em que não se podia sair à noite,porque não havia iluminação pública. Praticamen-te não existia lugar para ir. E, se quisesse ir da-qui para ali, o sujeito ia ser assaltado por escra-vo fugido, por capoeira, por cigano, por bandi-do comum, por um elemento perigoso qualquer,porque havia muitos. Ou seja, a insegurança dacidade era total, e ainda havia a ameaça externa,das invasões de piratas e corsários estrangei-ros, como aconteceu em 1710 e 1711, quandoa cidade foi bombardeada. Na primeira invasãodos franceses, em 1710, o povo, ali na alturadas ruas Evaristo da Veiga e Riachuelo, prendeue matou os atacantes, com pedradas, com óleoquente jogado da janela, com golpes de pane-las, com tiros, com o que fosse possível... Porcausa dessa derrota, no ano seguinte a Françamandou uma expedição chefiada por René Du-guay-Trouin, com milhares de soldados e nãosei quantos navios, mais de 400 canhões... To-maram a Baía de Guanabara e apontaram os ca-nhões para a cidade. Exigiram pagamento deresgate e a libertação dos que foram presos noataque anterior. A cidade vacilou em pagar o res-gate e os franceses a bombardearam, incendia-ram e saquearam. Foi em 1711. Então, concluí-mos que o Rio era mais perigoso do que é hoje.

A época mais bonita do Rio, segundo os sau-

“A violência existe, mas é como a

sensação térmica. Está a cinco graus,

mas se estiver ventando, a sensação

térmica é menos cinco.”

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média com pão com manteiGa

dosistas de 1930, foi a Belle Époque , entre 1890e 1910. Os personagens de então eram como oOlavo Bilac da porta da Colombo, eram aquelespoetas parnasianos de colarinho duro, aquelasmoças de anquinhas que passavam, e eles fa-zendo versos para elas, uma coisa bonita. Masnesta mesma época aconteceram três revoltasque quase destruíram a cidade. Uma foi a Revol-ta da Armada, em 1893. Na tentativa de derru-bar o Floriano Peixoto, a Marinha bombardeou acidade com canhões, e o governo respondeuatirando dos navios, dos morros e das fortale-zas. E a cidade no meio! Então, já havia balaperdida, só que era bala de canhão (risos ). Em1903, houve a Revolta da Vacina, em protestocontra a imunização obrigatória imposta peloOswaldo Cruz. Nesse episódio, incendiaram acidade durante uma semana. Em 1910, foi a Re-volta da Chibata. Desta vez foram os marinhei-ros que atacaram a cidade e os fortes respon-deram. De novo, as balas de canhão passavampelos ares. E as pessoas ficam reclamando,como se as coisas que ocorrem hoje fossemalgo excepcional.

Helô – O Rio perde para numerosas cidadesbrasileiras em estatística de violência, em diver-sos tipos de crimes. Recentemente, saiu umapesquisa em que o Estado do Rio aparecia emprimeiro lugar em homicídios. Veja bem, o Esta-

do do Rio inclui a Baixada Fluminense, que his-toricamente é uma região problemática. Mas, acidade do Rio, até muito pouco tempo atrás,ocupava o quinto ou o sexto lugar em vários ti-pos de crimes.

Ruy – Estava atrás de São Paulo, a cidade dopaís que tem mais favelas, atrás de Vitória...

Helô – E, quando há uma queda nos índices,a repercussão não é a devida. Digamos que deztipos de crimes são analisados. Oito têm quedae em dois os índices sobem ou permanecemiguais. Claro que a manchete dos jornais vai serem cima desses dois tipos de crime que tiveramaumento. Veja como são as coisas: em abril, es-távamos na Itália. Estávamos em Roma, no Cam-po Del Fiori, e houve um quebra-pau terrível. Numlugar eminentemente turístico, cheio de barzi-nhos! Cerca de 400 jovens entraram em conflitocom a polícia, que jogou gás lacrimogêneo. Foiuma loucura!

Ruy – Imagine a cena: eram uns 400 jovenscontra cerca de 20 policiais fortemente arma-dos. Mas, por mais armados que estivessem,os jovens iam levar vantagem. Foi quase umacarnificina e muitos policiais saíram machucados.

Helô – No dia seguinte, fomos conferir osjornais. Não havia nem chamada na primeira pá-gina. Tinha, sim, uma cobertura de 10 linhas.

Ruy – Tinham jogado o Flamengo e o Vasco,

“O Rio sempre teve uma vocação

oposicionista, de criação de polêmica,

o que lhe rende muitos problemas.”

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quando o Flamengo foi campeão carioca. A úni-ca notícia que eu consegui ter desse jogo, lá emRoma, dois dias depois, foi uma notinha de 10linhas, das quais as primeiras sete falavam damorte de um torcedor do Vasco esfaqueado nasaída do Maracanã. Lá no pé, estava o resultadodo jogo. Que, aliás, eu já sabia, porque tinhaacompanhado pelo telefone.

Helô – Os correspondentes estrangeiros jásabem que esse tipo de assunto desperta inte-resse. Não sei por que, mas criou-se o hábitode divulgar a violência do Rio. Acho que se preci-sa fazer uma campanha que apagasse essa máimagem. Com toda a beleza que o Rio tem, épreciso investir no turismo como maior priorida-de. Creio que os jornalistas estrangeiros que pro-pagam a violência do Rio o fazem sem maldade.É puro automatismo, inércia, porque todo omundo pergunta sobre o assunto, todos falamnisso. Então, torna-se automático: como falar noRio sem falar em violência? Até parece que asduas palavras vêm coladas.

Ruy – O Rio não merece isso. E paga por sem-pre ter acolhido todo o mundo muito bem. Aju-dou a construir Brasília, num lance político emque saiu altamente prejudicado. Foi generosíssi-mo, dando todas as condições para a constru-ção da nova capital. E Brasília foi colonizada, emgrande parte, por funcionários públicos cario-

“A população do Rio é a mais politizada

do Brasil, porque hospedou o poder

durante séculos e descobriu que o poder

não é para ser levado a sério.”

cas que aceitaram ir para lá. Em troca, Brasíliapagou nos sacaneando sistematicamente. Sópensava naquilo: esvaziar o Rio. Foi o que acon-teceu quando os militares fizeram a fusão. Di-versas leis vieram a prejudicar o Rio. E todas ascompensações que o Rio deveria ter recebido,por ter hospedado o governo federal por 200anos, nunca teve. Pior, tudo de federal que foideixado no Rio está abandonado, porque Brasí-lia não manda dinheiro. Às vezes fazem isso depropósito, para forçar a transferência de um ór-gão para lá, talvez com uma escala em São Pau-lo. Depende de quem seja o presidente.

Helô – É, o Rio sempre teve uma vocaçãooposicionista, de criação de polêmica, o que lherende muitos problemas.

Ruy – A população do Rio é a mais politizadado Brasil. Sempre foi, porque hospedou o po-der durante séculos e descobriu que o podernão é para ser levado a sério, que deve e podeser criticado. Então é uma cidade altamente poli-tizada, donde de oposição. É muito difícil serreeleito no Rio. E tem mais, o governador doRio, seja ele quem for, é sempre um candidatopotencial a presidente. Então, é também um ini-migo em potencial do presidente daquele mo-mento. O Rio já tornou a vida difícil para váriospresidentes que vinham aqui e não levavam boavida. Que comício, hein?

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papo cabeça

É cor-de-rosa-choque

Nos últimos cem anos, a carioca viveu diversastransformações físicas. Acompanhou a invenção dobatom, em 1925, do desodorante, nos anos 50,cortou os “cabelos à la garçonne ”, gesto sacríle-go contra bastas cabeleiras do século passado. Oaprofundamento dos decotes a levou a aderir àdepilação. “Manter a linha” tornou-se um culto. Amagreza ativa foi a resposta do século à gordurapassiva da Belle Époque. O jeans colado e a mi-nissaia sucederam, nos anos 60, ao erotismo damão na luva e das saias no meio dos tornozeloscaracterísticos dos anos 20. Com o desapareci-mento da luva, essa capa sensual que funcionavaao mesmo tempo como freio e estímulo do dese-jo, surgiu o esmalte de unhas. No decorrer desteséculo a mulher se despiu. O nu, na mídia, nas te-levisões, nas revistas e nas praias, incentivou o cor-po a se desvelar em público, banalizando-se sexu-

p o r marY Del Priore

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almente. A solução foi cobri-lo de cremes e colá-genos. A pele alisada apresenta-se idealmentecomo uma nova forma de vestimenta, que não en-ruga nem “amassa” jamais. Uma estética esporti-va votada ao culto do corpo, fonte inesgotável deansiedade e frustração, levou a melhor sobre a sen-sualidade imaginária e simbólica. Diferentementede nossas avós, não nos preocupamos mais emsalvar nossas almas, mas em salvar nossos cor-pos da desgraça da rejeição social. Nosso tormentonão é o fogo do inferno, mas a balança e o espe-lho. “Liberar-se” tornou-se sinônimo de lutar, cen-tímetro por centímetro, contra a decrepitude fatal,e agora, culpada, pois o prestígio exagerado dajuventude tornou a velhice vergonhosa.

O Rio de Janeiro foi palco de muitas destas trans-formações. Suas mulheres, outrora descritas pe-los viajantes do século 19, cobertas por mantilhas

negras, a olhar através das frestas das janelas,invadiram as ruas. Um deles, em 1787, deixou suasimpressões: “As mulheres, antes da idade de ca-sar, são magras, pálidas e delicadas. Seus olhossão negros e vivos e elas sabem como ninguémutilizá-los para cativar os cavalheiros que lhes agra-dam [...]s deixam crescer prodigiosamente os seuscabelos negros: as damas em forma de grossastranças que não combinam com a delicadeza dostraços”.

Cem anos mais tarde, na Rua do Ouvidor no Riode Janeiro, a loja do cabeleireiro Cabeça de Ouroexibia na vitrina uma formosa trança que mediaonze palmos e meio. O artefato, transformado emobjeto de desejo de centenas de senhoras, faziatambém sonhar os homens. É um deles quem nosconta: “Eram cabelos de comprimento extraordi-nário e de beleza notável; deviam, pois, ter sido na

Concurso “As mais belas pernas do Brasil”, no programa do Chacrinha, em 1970 (Brasil Rito e Ritmo, Aprazível Edições)

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papo cabeça

cabeça de sua dona cabelos de doze a treze pal-mos de comprimento [...] Quando ela os abando-nasse soltos, aqueles imensos e formosos cabe-los não lhe cairiam até os pés, como os imaginá-rios de uma das mais belas heroínas dos roman-ces de Alexandre Dumas, arrastar-se-iam seis ousete palmos pelo chão, como estupenda cauda deum manto de madeixas.” No passado como hoje,os cabelos femininos são altamente valorizados pe-las cariocas.

A mesma rua era famosa pela presença de inú-meras costureiras e chapeleiras francesas, bemcomo de fabricantes de flores feitas de penas deaves, para o enfeite de cinturas e decotes femini-nos. Nomes como os de Madame Dubois, a princi-pal fabricante de flores de pena no Rio, ou Mada-me Finot ficaram na história. Além das flores e cha-péus, as luvas e os sapatos eram outros acessó-rios capazes de decretar um dos lugares do dese-jo no corpo feminino. Mãos e pés atraíam olharese atenções masculinas. Grandes romances do sé-culo 19 como “A Pata da Gazela” ou “A Mão e aLuva”, revelam, em metáforas, o caráter eróticodessas partes do corpo. Ouçamos José de Alen-car descrevendo, em “Diva”, uma de suas perso-nagens, a Emília: “Na contradança as pontas deseus dedos afilados, sempre calçados nas luvas,apenas roçavam a palma do cavalheiro”.1 Não ape-nas os dedos eram alvo de interesse, mas seu to-que acusava a pudicícia de uma mulher. O ideal é

que estivessem sempre, no limite do nojo por qual-quer contato físico2.

Pequenos, os pé tinham que ser finos, termi-nando em ponta; a ponta, era a linha de mais altatensão sensual. Faire petit pied era uma exigêncianos salões; as carnes e os ossos dobrados eamoldados às dimensões dos sapatos deviam re-velar a pertença a um determinado grupo social,grupo no interior do qual as mulheres pouco saíam,pouco caminhavam e, portanto, pouco tinham emcomum com as trabalhadoras e as escravas, do-nas de pés grandes e largos. O pé pequeno, fino ede boa curvatura era modelado pela vida de ócio.Enquanto o príncipe do conto de fadas europeucurvava-se ao sapatinho de cristal da Borralheira,entre nós, os namoros começavam por uma “pi-sadela”, forma de pressionar ou de deixar marcasem lugar tão ambicionado pelos homens. Tirargentilmente o chinelo ou descalçar a mule era oinício de um ritual no qual o sedutor podia ter umavista do longo percurso a conquistar.

A segunda metade do século 19 foi marcadapela presença do romantismo na literatura e, porconseguinte, de imagens românticas associadas àsmulheres. Movimento que atingiu, sobretudo ascamadas letradas no Brasil, o romantismo propu-nha como atitude a exaltação fervorosa do eu, aexcitação sentimental. Mas, paralelamente aos es-forços para aproximá-las de uma heroína românti-ca, havia, contudo, outro movimento a empurrar

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as mulheres. Desde o início do século, na Europa,multiplicavam-se os ginásios, os professores deginástica, os manuais de medicina que chamavamatenção para as vantagens físicas e morais dosexercícios. Os novos métodos de ginástica investi-am em potencializar as forças físicas. Nos fins doséculo, mulheres começam a pedalar ou a jogartênis. Não faltou quem achasse a novidade imoral,uma degenerescência e até mesmo, pecado. Per-seguia-se tudo o que pudesse macular o papel demãe dedicada exclusivamente ao lar. Era como seas mulheres estivessem se apropriando de exercí-cios musculares próprios à atividade masculina.Algumas vozes, todavia, se levantaram contra asatanização da mulher esportiva. Confinadas emcasa, diziam os médicos, as mulheres só podiammurchar. Era preciso oxigenar as carnes e alegrar-se, graças ao equilíbrio saudável do organismo. Oesporte seria mesmo uma forma de combater osadultérios incentivados pelo romantismo. Afinal,encerradas em casa, só restava às mulheres so-nhar com amores impossíveis ou tentar seduzir omelhor amigo do marido.

A elegância feminina começou a rimar com saú-de e, se a mudança ainda se revelava hesitante,não demorou muito se instalar. Mas o leitor deveestar se perguntando como se passaram tais trans-formações entre nós.

Os banhos de mar, mesmo com muitas restri-ções, tiveram importante significado para as mu-

lheres. Encarados inicialmente como remédio, aca-baram por proporcionar uma nova oportunidadede convívio social, como informa Vítor Mello3. Aprincípio, as “mulheres de respeito” tomavam ba-nhos de madrugada, quando o dia ainda clareava,usando uma indumentária rigorosa feita de “cal-ças muito largas de baeta, tão áspera que mesmomolhada não lhe pode cingir o corpo”. Do mesmotecido, um blusão com gola larguíssima, à mari-nheira, abrigada a um laço amplo que servia deenfeite, mas também de tapume a uma possívelmanifestação de qualquer coisa que sugerisse umseio. Calças, até o tornozelo, caindo em babadosque cobriam os pés. Estes eram calçados comsapatos de lona e corda, amarradas, à romana, naperna. Na cabeça, uma touca de oleado ou chape-lões de aba larga. Mesmo com tantas precauções,a presença de mulheres na praia significava umatal revolução que era capaz até de mexer com aimaginação dos homens. Não eram, conseqüente-mente, poucas as admoestações que estes encon-travam afixadas nas casas de banho que se multi-plicavam nas praias: “É expressamente proibidofazer furos nestas cabines; os encontrados nestaprática serão entregues à ação da polícia”. Apesardos avanços, Hermínia Adelaide, conhecida artista,ainda escandalizava a população ao banhar-se naPraia do Flamengo com roupas que desenhavamsua forma física. Todos paravam para olhar; asmoças de família, encabuladas, viravam o rosto.

“Diferentemente de nossas avós, não nos preocupamos mais em

salvar nossas almas, mas em salvar nossos corpos da desgraça da

rejeição social. Nosso tormento não é o fogo do inferno, mas a

balança e o espelho.”

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Mas as mudanças caminhavam a passos largos.A 8 de fevereiro de 1920, na piscina do Fluminen-se, ocorreu a primeira competição em piscina comtrês provas femininas. Nadaram: Edith Julien, Ma-ria Augusta Lopes, Mirian Antunes e Adelia CaldasBrito. Tudo indica que desde 1919, quando a pis-cina do Fluminense foi inaugurada (a primeira noRio), mulheres, sócias do clube, já participavamde aulas de natação4. Em 1949, a ligação pelo Tú-nel Engenheiro Sodré, antes Túnel Carioca e hojeTúnel Novo, ganha uma segunda galeria. O fácilacesso às praias de Copacabana e Ipanema che-gou junto com uma nova invenção: a do biquíni. Oscinejornais de César Nunes, guardados no ArquivoNacional, mostram as cariocas em pesados duaspeças, muitas delas esquivando-se das câmaraspara não serem reconhecidas pelos parentes. Avoz de Cid Ferreira anunciava que a praia era pa-trulhada por uma “polícia marítima encarregada deimpedir os malandros de tirar casquinhas no rebu-liço das ondas da arrebentação”. Estes foram tam-bém os anos dourados da natação feminina . Napiscina do Flamengo, por exemplo, a arquibanca-da vinha abaixo com gritos de “Boa”, “Boa”, cadavez que a escultural Neusa Cordovil subia à raiapara disputar uma prova.

Nos anos 70, desembarcaram no Rio numero-sas máquinas e técnicas do corpo, instrumentosde um verdadeiro marketing de vivências corpo-rais: o body business . Graças a ele, certa indústria

cultural passou a ensinar as mulheres que cuidardo binômio saúde-beleza é o caminho seguro paraa felicidade individual. É o culto ao corpo na reli-gião do indivíduo, onde cada um é simultaneamen-te adorador e adorado5. Mas o culto não é paratodos. Ele pertence a quem possui capital para fre-qüentar determinadas academias, têm personaltrainers , investe no body fitness sendo trabalha-do e valorizado até adquirir as condições ideaisde competitividade que lhe garanta assento na ló-gica capitalista. Quem não o modela está fora, éexcluído. A beleza instituiu-se como prática corrente,pior, ela consagrou-se como condição fundamen-tal para as relações sociais. Banalizada, estereoti-pada, ela invade o quotidiano através da televisão,do cinema, da mídia, explodindo num todo – o cor-po nu, na maior das vezes – ou em pedaços – per-nas, costas, seios e nádegas. Nas praias, nas ruas,nos estádios ou nas salas de ginástica ela exerceuma ditadura permanente, humilhando e afetandoos que não se dobram ao seu império. Estar em“forma” é fetiche que mudou as formas de viver epensar, inaugurando condutas que se estendem, ine-xoravelmente, às camadas subalternas da popula-ção. As academias, nos bairros chiques, convivemcom incipientes sucedâneos em favelas.

A lição que tiramos desta breve história é quenessa entrada do século 21: as cariocas continu-am submissas! De nada adiantou a propalada re-volução sexual, a queima de sutiãs em praça públi-

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ca, a difusão da pílula. É como se quiséssemoscontinuar como as eternas representantes do “sexofrágil”, a quem tudo se impõe. Mudamos muito,mas mudamos para continuarmos as mesmas. Oque há de ruim nisso? Há um fato novo e quaseimperceptível para a maioria de nós. Trocamos adominação de pais, maridos e patrões por outra,invisível e, por isso mesmo, mais perigosa. A do-minação da mídia e da publicidade. É ruim, e atépior, pois diariamente enfrentamos a tarefa de terque ser eternamente jovens, belas e sadias. Nãohá prisão mais violenta do que aquela que não nospermite mudar. Que nos bombardeia com imagensde eterna juventude, nos doutrinando a negar asmudanças.

Como envelhecer, quando tudo que nos cerca –o outdoor , a televisão, as fotos na revista – é cons-truído de forma a negar o envelhecimento; enve-lhecimento definido, em nosso tempo, como sinô-nimo de perda? Os sociólogos têm denunciado ofato de que vivemos um terrível paradoxo: a pos-sibilidade oferecida de prolongar seus dias é vividacomo algo de negativo. Moldada em torno de valo-res como o progresso e a juventude, nossa socie-dade lida mal com o número crescente daqueles que,envelhecendo, se beneficiam de um alongamentosem precedentes da esperança de vida.

O efeito dessa constatação entre as mulheres éperverso. Em sua grande maioria, investem tudo oque podem na aparência exterior. O modelo de Gi-

Mary Del Priore é historiadora e autora, entre outros, de“Corpo a Corpo com as Mulheres”, São Paulo, SENAC, 2002.

NOTAS

1. Diva, Rio de Janeiro, José Olympio, 1977, p.115.

2. Ver sobre o assunto Luís Felipe Ribeiro, em seu belo Mulhe-res de papel, Um estudo do Imaginário em José de Alencar eMachado de Assis, Rio de Janeiro, EDUFF, 1996, p.118.

3. Ver o seu Cidade esportiva – primórdios do esporte no Riode Janeiro, Relume Dumará/FAPERJ, 2001.

4. Ver Fabiano Pries de Vide, História das Mulheres na Nata-ção Brasileira no Século XX: das adequações às resistênciassociais, São Paulo, Hucitec, 2004.

5. I. Strozemberg, De corpo e alma, Rio de Janeiro, Contempo-rânea, 1986.

seles, Xuxas, Veras parece não deixar opção. Nãohá limites para continuar magra, turbinada e vita-minada. As cirurgias plásticas, no entender de umaconhecida atriz, sé tornaram uma questão de “hi-giene”. O silicone nos seios substituiu, como ex-plicou, saudoso, o comediante Bussunda, o “tra-dicional leitinho”. Ora, a identidade corporal femi-nina está sendo condicionada não pelas conquis-tas da mulher no mundo privado ou público, maspor mecanismos de ajuste obrigatório a tríade be-leza-juventude-saúde.

Pode não parecer evidente, mas as relações quetemos tido com nossos corpos revelam o tipo deidentidade que estamos construindo. As revistasfemininas nos ensinam que vivemos um momentoideal de “otimismo”. “Que idade? Jovem!”. O anún-cio acompanha o produto anti-rugas com o rostosorridente da mulher de idade indefinida. A fotoresume bem essa disposição para fazer com quea idade madura pareça o fim da História. Nada exis-tiria depois dela. Nem mesmo aquele país cinza,da cor da cabeça de nossas avós. Bom seria co-meçar a ter uma posição crítica em relação a essesdiscursos. Discursos tão mais perigosos quantoaderem de maneira sub-reptícia a nosso quotidia-no, fazendo-nos confundir sua normalidade combanalidade. O que estamos esperando para co-meçar a reagir?

“Trocamos a dominação de

pais, maridos e patrões por

outra, invisível: a dominação

da mídia e da publicidade.”

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Carioquice82

Eu sonhei que tu estavas tão linda!

rosiska DarcYde oliveira

normalistas,graças a Deus!

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“Villa-Lobos regia no

coral do colégio um

repertório verde-amarelo

bem a gosto do Estado

Novo.”

“Normalista já é vitoriosa aos onze anos”,escrevi na revista “Tangará”, um passarinho azule branco, alusivo ao nosso uniforme. Eu já tinhaquinze. Fazia parte da nossa identidade a auto-confiança de quem passou em um concurso emque se oferecia uma vaga para trezentas candi-datas. Daí a enrolar o cós da saia para encurtá-la e abrir a gola ao primeiro pretexto de calor

era uma questão de dois ou três anos, uma ouduas listas a mais na manga arregaçada.

O casarão espanholado da Rua Mariz e Bar-ros nasceu nos anos 20, para abrigar a EscolaNormal, numa época em que Fernando de Aze-vedo se lançou na construção de prédios esco-lares de qualidade. Foi Anísio Teixeira quem, em1932, transformou-o em Instituto de Educação,monumento da cidade ao ensino público. Do ou-tro lado da rua, a Igreja de Santa Teresinha ser-via de ponto de encontro para namoros clandes-tinos, que encontravam em seus bancos um re-fúgio seguro e um álibi piedoso. Romanticamen-te, anos depois, as normalistas ali casavam. Maisabaixo, a Casa Mattos era uma extensão do co-légio, espécie de almoxarifado onde se encon-trava tudo para o uniforme, das abotoaduras aossapatos, livros, cadernos e sacas. O ano letivocomeçava quando os pais saíam da Casa Mattoscarregados de embrulhos.

O Instituto de Educação foi a fina flor da es-cola pública, em um tempo em que a educaçãogratuita e laica, de Anísio Teixeira a Darcy Ribei-ro, era uma bandeira da esquerda brasileira. Umaformação de influência européia, similar ao quese ensinava nas faculdades, introduzia Darwin nasaulas de biologia e Kant nas de filosofia. Ensinarno Instituto de Educação era uma distinção queatraía os grandes mestres. Nossos professoresde português eram filólogos, como Rocha Limae Evanildo Bechara, este hoje na Academia Bra-sileira de Letras. Villa-Lobos regia no coral docolégio um repertório verde-amarelo bem a gos-to do Estado Novo. Zelito Viana tem o seu melhormomento no filme sobre o maestro quando recriaa cena das normalistas perfiladas no campo doVasco sob a batuta do Villa, entoando o “Cantodo Pajé”, em honra ao presidente Vargas.

A ótima instrução só era superada pela me-lhor experiência que a escola da vida nos dava.

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Eu sonhei que tu estavas tão linda!

O Instituto era exatamente aquela mistura que aelite detesta tanto: todas as gamas da mulatice,lourinhas da Zona Sul, algumas famílias tradicio-nais, a sociedade sem classes do colégio ensi-nava a democracia. Talvez por isso se respiras-se política e dali tenham saído bravas “subver-sivas” nos anos 70. Tiro pela culatra do sonhoda classe média que, nos bailes de formaturano Hotel Glória, preparava o casamento, tantasvezes realizado, da professorinha com o militar.Esse casal, inscrito no futuro das normalistas,vivia de salários que eram calculados: o delascomplementando o deles. E, nos redutos do la-cerdismo, que eram a Tijuca e o Grajaú, brotava,inesperada, uma rebeldia libertária. Quando ogoverno aumentou o preço das passagens e osmeninos do Pedro II – os mais politizados dacidade – saíram à rua quebrando os bondes, asnormalistas, presas nos muros do colégio, en-rolavam os cintos como serpentinas e os atira-vam pelas janelas em sinal de solidariedade.

No começo dos anos 60, fiz no jornal muraldo colégio uma longa reportagem sobre as Li-gas Camponesas, arrancada pela diretoria es-candalizada. As jornalistas se demitiram, co-brindo o mural com uma grande faixa na qualestava escrito “Censurado!”. Foi nessa épocaque uma aluna violonista introduziu, pulando omuro, nesse colégio só de moças, um rapazque ela conhecera na véspera. Era um moreni-nho esquálido, que escondemos nos camarinsdo auditório. O rapazinho, muito tímido, morriade medo. Tínhamos lá guardado um violão e foinele que esse garoto com nome de escoteiro –Baden Powell – tocou pela primeira vez “JesusAlegria dos Homens”. Mas nem todos os rapa-zes que visitaram o colégio tinham essa expe-riência quase mística. Que o digam os estudan-tes de Coimbra, que saíram exaustos de tantosbeijos que trocaram por pedacinhos das capas

negras, reduzidas a frangalhos ao fim do dia.As meninas de azul e branco “traziam um

sorriso franco no rostinho encantador”. E ummistério. Nelson Rodrigues temperava com pi-menta as normalistas que via saltar do bondede sua janela na Muda da Tijuca. As meninas eramsapecas, ao dizer da época. Já Nelson Gonçal-ves cantava a normalista linda que tinha um pai

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anos, a entrar nas favelas, estagiárias incumbi-das de desasnar a infância carioca. Na cidade jáentão partida, fomos a primeira tentativa de pon-te entre os bairros de classe média, os subúrbi-os paupérrimos e os morros. Meninas saídasde casas com jardins e grades brancas, enfren-távamos o trem da Central, entupido de miserá-veis, defendendo-nos das agressões, das boli-nações e toda sorte de manifestação de estra-nheza pela presença daquelas adolescentes bem-vestidas no meio dos pobres. Desses estágios,saíamos já maduras. Havia uma têmpera nasnormalistas que não se encontrava nas jovensde então. Conhecíamos a crueza da vida antesda hora, perdíamos muito cedo a inocência.

No tempo do “mulher minha não trabalha”,trabalhar e ganhar a vida era de péssimo tom.Por isso eram olhadas de esguelha, as meninasde azul e branco, filhas de uma escola que culti-vou espíritos rebeldes. Uma gravata torta para aesquerda era o código de uma insurreição. Aessas se podia pedir um cigarro. Porque, claro,fumávamos. As mais ricas um LS, as pobres,Continental sem filtro. A “Esquadrilha da Fuma-ça”, como nós, as fumantes, nos intitulávamos,conhecia bem o atrás dos muros do campo deesportes. Fumar era passar por cima das con-venções e anunciar as mulheres que vinham poraí, que não acatariam proibições, nem caberiamno modelito de professorinha suburbana.

No dia em que me formei, plantei uma árvoreno jardim do colégio e, ao lado, enterrei as “Me-mórias de uma Moça Bem-comportada”. Nosjardins do Instituto de Educação dormitou a se-mente do feminismo.

“Fomos as primeiras, com menos de dezoito anos, a entrar nasfavelas, estagiárias incumbidas de desasnar a infância carioca.”

zangado e que não podia casar ainda, só de-pois de se formar.

Demonizadas e santificadas pelas duas fa-ces do machismo daqueles anos dourados, queconfundia libertárias com libertinas, éramos, naverdade, quase heróicas, e jurávamos “no ardordo civismo, nossas vidas ao bem consagrar”.Fomos as primeiras, com menos de dezoito

Rosiska Darcy de Oliveira é escritora e jornalista.

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areias escaldantes

luz, câmera, rio!

Se o cinema é a arte de representação, quan-do se trata do Rio, alguns filmes exageram. Pormeio do uso de clichês e estereótipos diversos,essas produções apresentam uma verdadeira lei-tura alegórica da cidade. Muitas vezes para obem; outras, infelizmente, não. Mas, como seconstrói a imagem do Brasil no exterior? A cine-asta Lúcia Murat transformou essa pergunta nodocumentário “O Olhar Estrangeiro”, finalizadoem agosto e ainda sem previsão de estréia.

Um dos precursores no tema foi a produçãoamericana “Voando para o Rio” (“Flying downto Rio”), cujo exotismo seria uma eterna refe-rência para a indústria cinematográfica no quese refere à Cidade Maravilhosa. A cidade é apre-sentada por uma série de cartões-postais, comoo Pão de Açúcar, que servem de cenário para asestripulias do triângulo amoroso formado pelamexicana Dolores Del Rio, o brasileiro Raoul Rou-lien e o norte-americano Gene Raymond. O filmefoi o responsável não só pela invenção, mas tam-bém pela popularização da dança “the carioca”– espécie de maxixe apresentada como coreo-grafia típica do Rio e que leva à loucura ninguémmenos que Fred Astaire e Ginger Rogers, juntospela primeira vez nas telas.

Samba, cachaça e malemolência

Em 1941, foi a vez de Walt Disney dar suacolaboração ao Rio imaginário em “Alô, Amigos”(“Saludo, Amigos”). Ao personificar a cidade noFlying down to Rio

Pensou em um cenário tropical

com inspiração afrodisíaca e

cores quentes? Pensou no Rio, é

claro. A cidade já foi o pano de

fundo de incontáveis produções

internacionais, que mostram nas

telas um Rio kitsch, onde se

dança “the carioca” e o topless

é liberado. Digam o que

disserem, o Rio sempre foi um

grande ator de cinema.

p o r kellY nascimento

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Nancy goes to Rio

personagem “Zé Carioca”, Disney incorpora doisclichês de uma só vez: o papagaio e o malandro.Bom carioca que é, Zé se revela um ótimo anfi-trião e mostra o que há de melhor para o visitan-te Pato Donald, que não resiste e cai no samba,ao som de “O Tico-Tico no Fubá”.

Um ano depois seria vez de Orson Welles,financiado pela produtora RKO Radio Pictures,ser atraído pelo tropicalismo carioca para filmaro carnaval. Além do lendário drink samba emBerlim – mistura de cachaça e Coca-Cola – a vi-sita de Welles renderia o filme “It’s All True”, que– vetado pela produtora – só seria lançado quaseduas décadas depois, em 1985. Mas a RKO vol-taria a insistir no Rio como locação com “Interlú-dio” (“Notorious”), de Alfred Hitchcock, em 46.Na trama de contra-espionagem em que a filhade um agente nazista vem ao Brasil em missãosecreta do governo norte-americano, a Bibliote-ca Nacional faz as vezes de sede da agência deespiões. Hitchcock abusa do cenário carioca, queaparece em back-projection , seja em grandesplanos abertos da Praia de Copacabana, sejatendo a Cinelândia ao fundo.

As belezas naturais da cidade também sãocelebradas na comédia de equívocos “RomanceCarioca” (“Nancy goes to Rio”). A paisagem doRio é apresentada como embalagem perfeitapara momentos de devaneios. As locações co-loridas são habitadas por moças vestindo “no-vos trajes de banho”, para êxtase do avô da per-sonagem-título. O Rio do glamour também temespaço no longa, que retrata cassinos e man-sões em harmonia com uma natureza onipresen-te. Não falta sequer um baile carnavalesco, comdireito à brasilidade exótica da (portuguesa)Carmen Miranda.

E enquanto uns apostam na paisagem, háquem diga que o grande diferencial da cidade éo ar. É o caso da protagonista de “Meu Amor

Cary Grant e Ingrid Bergman no Jockey Clubdo Rio, em Notorious, de Alfred Hitchcock

Orfeu Negro

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areias escaldantes

brasileiro” (“Latin Lover”), Lana Turner, queao voltar ao seu país, aconselha: “Deviam en-garrafar o ar do Rio e vendê-lo”. No filme, ali-ás, ela consegue a façanha de admirar da jane-la uma paisagem que unia o Pão de Açúcar e oCorcovado ao mesmo tempo.

Há também os diretores que acreditam quetodo golpe bem-sucedido deve terminar comuma fuga para o Rio. É como se a cidade fossea verdadeira recompensa internacional. Esse éum consenso em mais de 25 filmes, entre eles“Um peixe chamado Wanda” (“A Fish CalledWanda”), “Cova Rasa” (“Shallow Grave”), “Asareias do tempo” (“Sands of Time”) e “CincoDedos” (“Five Fingers”).

Já o olhar francês sobre a sobre a CidadeMaravilhosa misturaria o misticismo da umban-da e a euforia carnavalesca. No “Orfeu Negro”(França, 1958) de Marcel Camus – baseadoem “Orfeu da Conceição”, peça de Vinícius deMoraes estreada em 1956 – o Rio que surgenas telas é colorido e folclórico, espelhando oestado de espírito de um povo sensual e feliz.A combinação de Carnaval, bossa nova e fave-

la caiu no gosto da audiência internacional e ofilme faturou a Palma de Ouro em Cannes e oOscar de melhor filme estrangeiro.

E, no fim dos anos 80, não seria difícil en-contrar um francês que conhecesse Madureira– nem que fosse só de nome. Tema de “NoRio Vale Tudo” (“Si Tu Vas a Rio... Tu Meurs”),a marchinha “Madureira Chorou” se tornou umícone da música brasileira na França.

Até o mais famoso espião de Hollywood serendeu aos encantos da cidade. Em “007 Con-tra o Foguete da Morte” (“Moonraker”), o Ja-mes Bond de Roger Moore vai contar com apoioda mulata Manuela para enfrentar o vilão Jaws.Elegante em seu smoking, o agente enfrentouperseguições em plena Avenida, escapando porentre as alas de uma escola de samba. Travauma batalha surreal que começa no bondinhodo Pão de Açúcar, com a Baía Guanabara aofundo, e vai se resolver nas Cataratas do Igua-çu. Tudo isso na mesma seqüência, provandoque, nas produções estrangeiras, a geografiatambém segue regras do território livre da ima-ginação sem fronteiras.

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Os roqueiros do Sex Pistols também sonha-ram com uma aventura paradisíaca no Rio, si-mulada em “The Great Rock’n’roll Swindle”. Nofilme, em busca de diversão, os ingleses sen-tem-se à vontade até para protagonizar umacena sem qualquer peça de roupa. Deviammesmo pensar que o Rio é o paraíso. Satisfei-tos, eles partem tocando em cima de um bar-co, Baía ao fundo, enquanto que duas índiasse despedem atirando flechas.

Mas não seria essa a produção mais es-drúxula de que a cidade participaria. A essetítulo, concorrem dois produtos da fantasiaamericana – “Feitiço no Rio” (“Blame it on Rio”)e “Orquídea Selvagem” (“Wild Orchid”). En-quanto o primeiro tenta levar às telas uma ver-são paradisíaca da cidade, o último só tem com-promisso com o prazer. Em “Orquídea Selva-gem”, um batuque é a senha utilizada para in-dicar à platéia que o Rio é o cenário da produ-ção. Michael Rourke e Jacqueline Bisset são osprotagonistas de uma trama sensual sobre umatransação imobiliária em meio a pessoas semi-despidas, coqueiros e uma geografia ilusória

que mostra paisagens de Salvador como sefossem cariocas. O Rio dos bons negócio epossibilidades ilimitadas de prazer é explora-do à exaustão.

“Feitiço no Rio” prefere ressaltar a atmos-fera sedutora da cidade. O Rio é delineado atra-vés de um tropicalismo exacerbado, em quesurgem araras, papagaios, tucanos e até umpavão! A câmera passeia pela cidade: MorroDois Irmãos, a Lagoa, a Enseada de Botafo-go, Pão de Açúcar. Na praia, o personagem deMichael Caine se encanta com sem número demulheres em topless e define a cidade como“a mais excitante e sensual do mundo”. E, maisuma vez, o clima de descontração da cidadeleva a ainda adolescente interpretada por DemiMoore a se envolver com Michael Caine. Tudoculpa do Rio!!!

Cariocas não fazem topless

Baseando-se no livro do cineasta TunicoAmâncio, “Brasil dos Gringos”, que analisa omodo como o país é retratado pelo cinema mun-dial, Lúcia Murat quis desvendar o outro lado:o caminho que leva a indústria cinematográficainternacional a ter essa visão estereotipada doBrasil. “Ao participar de festivais internacionais,me incomodava com a quantidade de pergun-tas-clichê sobre nosso país. Decidi então in-verter o olhar e fazer o documentário”, explicaa cineasta.

Ela foi atrás de produtores, diretores, ro-teiristas e atores que estiveram envolvidos emfilmes que fazem referência ao Brasil com aintenção de descobrir como e por quê se che-gava ao país e, a partir daí, mostrar como sedava o processo de construção da identidadenacional nas telas internacionais. O resultadose traduz em depoimentos surpreendentes,como o de Zalman King, diretor de “Orquídea

“A imagem paradisíaca

que se tem do Brasil foi

criada pela Carta de

Caminha, que se mantém

como paradigma até hoje.”

Lúcia Murat, cineasta

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The night in Rio

Selvagem”, que pede desculpas por ter ofendi-do o público brasileiro com seus erros - como ode misturar sexo e religião (candomblé). “É oRio que sonhei”, justifica.

Larry Gelbart, um dos roteiristas de “Feitiçono Rio”, comenta as falhas do longa e credita aCarmen Miranda a imagem que os norte-ameri-canos têm do Brasil. Teoria derrubada por Mi-chael Caine, protagonista do mesmo filme, querevela desconhecer a nacionalidade de Carmen(nascida em Portugal mas, aos olhos do mun-do, um exemplo típico da brasileira/carioca).“Para mim, ela era uma invenção de Hollywood”,comenta. Bem-humorado, o ator jura ter acredi-tado em tudo o que leu no roteiro e aponta abeleza do povo brasileiro como razão para al-guns clichês mostrados no filme.

Em contraposição a esses depoimentos, Lú-cia entrevistou pessoas comuns, que apresen-tam sua visão sobre o Brasil. É quando se evi-dencia a reprodução dos clichês, e como o paísé desconhecido no exterior. Um parâmetro parase medir o grau de desconhecimento é a entre-vista da atriz Hope Davis. Ao ser questionadasobre o que conhecia do Brasil, a estrela de “Pró-xima Parada, Wonderland” (“Next stop, Wonder-

land”) responde imediatamente: “Topless!”.“Olhar Estrangeiro” também mostra a dificul-

dade que as exceções aos clichês encontram paraganhar espaço nas telas. Isso fica claro com odepoimento do francês Edmond Lutz. Ele filmouno Rio e em outros estados brasileiros “La Gra-buje”, filme radical sobre a revolução de 68, cen-surado pela Fox. Lutz passou anos brigando porseu “direito de autor” e ganhou nos tribunais odireito se exibir sua versão do filme. Em repre-sália, a Fox destruiu o filme.

O documentário aponta para o fato de que aquestão se transformou num círculo vicioso: di-retores recorrem a clichês porque é isso que in-teressa à indústria de cinema. E esta, por suavez, mostra o que as pessoas querem ver. En-tão voltamos ao imaginário coletivo dos estran-geiros? O caminho parece ser mesmo por aí. “Aimagem paradisíaca que se tem do Brasil foi cri-ada pela Carta de Caminha, que se mantém comoparadigma até hoje”, aponta Lúcia.

Enquanto isso, a recém-criada RioFilme Co-mission quer que o Rio domine o mercado ci-nematográfico latino-americano. A missão co-meçou bem. A “Film Comission” carioca voltoudo último Festival de Cannes com três produ-ções na bagagem: o franco-italo-luxemburguen-se “Cargo”, o francês “L’Exilée” e o americano“Love is a Drug”. A meta da Riofilme é ambici-osa: “Queremos transformar o Rio no maiorcentro de produção internacional de cinema daAmérica Latina”, informa André Urano, respon-sável pelo projeto, que foi lançado em maio des-te ano. Entre os atrativos que a cidade oferece,estão custos de produção mais baratos, infra-estrutura para produção e, é claro, beleza e di-versidade de suas locações. “A variedade decenários permite que sejam rodadas no Rio his-tórias que se passam em diferentes épocas epaíses”, avalia Urano.

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Sem dúvida, diversidade de locações não falta

ao Rio. Prova disso é o filme “Olga”, que estréia

esse mês. O primeiro longa do diretor Jayme

Monjardim, baseado no livro homônimo de Fer-

nando Morais e ambientado em Moscou, Muni-

que, Hamburgo, Berlim, durante a Segunda Guer-

ra Mundial, além claro do próprio Rio, foi todo fei-

to aqui, num belíssimo trabalho de estréia da di-

retora de arte, Tiza de Oliveira.

Tiza conta que trazer a Europa para um Rio

luminoso e cheio de cor foi um desafio. Mas como

a cidade ainda conta com muitas construções

do fim do século 19 e início do século 20, em

estilo europeu, as locações foram possíveis.

Para quem vê o filme, é difícil acreditar que o

campo de concentração de Ravensbrück, na Ale-

manha, tenha sido todo feito na Fábrica Bangu,

debaixo de muita neve. Com os termômetros

marcando 40 graus e aquele céu azul do Rio, foi

preciso criar um butterfly (um panejamento) de

2 mil metros cobrindo toda extensão da fábrica,

para que o fotógrafo tivesse uma luz de Alema-

nha. “Imagine que, fora do set, os operários traba-

lhavam de shorts e, dentro, os personagens em

roupas de lã, tentando se proteger do frio e da

neve”, conta Tiza.

Essa é apenas uma das muitas surpresas do

filme. A maior, sem dúvida, é a cena em que

Olga faz uma palestra na sede da Juventude

Internacional Comunista, na URSS. “Tínhamos

que arranjar não só centenas de estudantes

como um ambiente grande e com pé-direito alto.

A solução foi totalmente inusitada: o Colégio Mi-

litar”, conta Tiza. Na cena, alunos do colégio mis-

turados a russos que vivem aqui, aparecem ves-

tidos de comunistas e cantando a “Internacio-

nal Socialista”. “Cena impensável em outras épo-

cas”, diz Tiza.

Com 30 anos como diretora de arte na TV

Globo, Tiza se orgulha de ter dado início, junto

com a já falecida Lilá Bôscoli, a uma profissão

que hoje, só na televisão já conta com mais de

50 pro fissionais.

E o orgulho se justifica. As muitas pessoas

que já assistiram ao trailer do filme, perguntam

quanto tempo eles passaram rodando na Europa,

relata Tiza. E ela conta que o filme foi todo reali-

zado em 10 semanas, usando as múltiplas loca-

ções que o Rio oferece. “É uma pena que muitas

construções tenham sido postas abaixo, porque o

Rio era lindo no começo do século passado. Feliz-

mente hoje, está se tentando preservar mais, e

isso nos dá mais opções para mostrar um outro

Rio, além daquele de cartão-postal”, conclui Tiza.

A Europa também é aqui

Tiza de Oliveira, diretora de arte de “Olga”

Cena do filme “Olga”, ambientadano Ministério da Fazenda

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EmBaIXadOr do rio

Henrique LuzSócio-diretor da PricewaterhouseCoopers - Brasil

Quarto de hotel de frente para a praia de Copa-cabana. Junho de 2004. Dia lindo de sol que sómesmo São Sebastião pode produzir para presen-tear seus protegidos. Bate aquele sentimento nos-tálgico de quem vive em São Paulo há 13 anos,onde, aliás, a vida me fez muito feliz. Mas, não semuma saudade enorme do meu Rio de Janeiro!

Olhando para a areia da praia, me lembro dequantas toneladas de Biscoito Globo passaram pelaminha boca – e olhem, a paixão é tanta que seurótulo, cuidadosamente emoldurado, virou quadrona parede de minha sala de trabalho. Bem juntinhode mim, nostálgico e inspirador! (Aliás, entre mui-tas outras coisas que aguçam a saudade de quasetodo carioca apaulistado, estão as balas de tama-rindo e o sanduíche do Cervantes!).

Amantíssimo da Bossa Nova, encontro-me a 50metros de um de seus mais festejados berços: oapartamento da Nara Leão, cenário dos saraus ondeseus criadores, então jovens músicos e poetas, des-pontavam em fins da década de 50. A Bossa Nova éorgulho de todo carioca. E com toda a razão. Afinal,criada por jovens da Zona Sul do Rio de Janeiro – ébem verdade que com a agregação da batida inusi-tada de um baiano, mistura sempre bem-vinda –cruzou mares e influenciou boa parte dos grandesmúsicos internacionais das épocas que se seguiram.

Voltando a Copacabana, merecedora deste marenorme. A vista é tão linda que, com romantismo,alguma criatividade, visão e perspicácia – ingredi-entes em qualquer receita de carioquice – podía-mos até ousar querer avistar a “Costa da África”ou acompanhar “corridas de submarinos”...

Ah, Copacabana. Cada centímetro desta praiarepresenta um momento de minha vida. De minhainfância. E por falar em infância, estou justamenteem cima do terreno do velho Rian, cujas matinêsde domingo tantas alegrias me trouxeram naquelafase gostosa de vida.

Rio, rio, rio só de estar no Rio!

rio só deestar no rio

Foto

: Tadeu B

runelli

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