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177 O corporal e o incorporal na ontologia estóica Mariângela Areal Guimarães Mestranda do PPGF-UFRJ Para os estóicos, a phýsis representa o universo, isto é, o conjunto que abarca o mundo e o vazio (ESTOBEU, Ecl. I 161 8 (SVF II 503 – LS 49 A)). O mundo, no qual não há vazio, pois constitui um todo contínuo, está situado em um vazio infinito e compreende o céu, a terra e os seres vivos (DL VII 148 (LS 43 A)). Por serem filósofos materialistas e defenderem uma teoria monista, afirmaram que tudo que existe é corpo, ou seja, ser e corpo são idênticos. Essa posição é sustentada através da seguinte afirmação: para que um corpo exista é necessário que ele seja capaz de produzir ou experimentar alguma mudança e, essa condição, só pode ser plenamente satisfeita por uma corporeidade tridimensional (DL VII 135 (LS 45 E)). Assim sendo, o que um corpo deve ter, como causa e como constituição, de modo a podermos explicar sua existência? Segundo os estóicos, o critério de existência corresponde à capacidade que um corpo possui de agir ou de receber uma ação (CÍCERO. Acad. I 39 (SVF I 90 – LS 45 A) Cf. DL VII 134 (LS 44 B)). Tal capacidade derivaria de dois princípios: um princípio ativo identificado ao lógos, ao fogo (ESTOBEU, Ecl. I 213 15-21 (SVF I 120 - LS 46 D)), ao sopro vital (pneuma); elemento composto de fogo e ar; e um princípio passivo, nomeado de matéria, isto é, uma substância sobre a qual se exerce a atividade do agente (DL VII 134 (LS 44 B)). No entanto, dizer que todo o corpo é resultado de uma matéria moldada por um agente que a penetra, não significa dizer que esta matéria corresponda a uma passividade simplesmente. Mas, que há nela uma passividade, em um certo sentido, ativa, ou seja, uma disposição receptiva, aberta à geração do lógos. A partir dessa característica essencial da física estóica podemos entender que o mundo que é corpo, e portanto, possui em si o princípio ativo e passivo, é um ser vivente animado pelo lógos (CÍCERO De natura deorum II 22 (LS 54 G)). Poderíamos, então, entender que se tudo que existe é corpo, os princípios em questão também seriam corpóreos? Se cada corpo existente é constituído de lógos e matéria, isso implica que ambos são inseparáveis. Logo, não podem existir separadamente enquanto corpos, mas apenas conceitualmente. Decorre dessa concepção um outro ponto de fundamental

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O corporal e o incorporal na ontologia estóica

Mariângela Areal Guimarães Mestranda do PPGF-UFRJ

Para os estóicos, a phýsis representa o universo, isto é, o conjunto

que abarca o mundo e o vazio (ESTOBEU, Ecl. I 161 8 (SVF II 503 – LS 49 A)). O mundo, no qual não há vazio, pois constitui um todo contínuo, está situado em um vazio infinito e compreende o céu, a terra e os seres vivos (DL VII 148 (LS 43 A)). Por serem filósofos materialistas e defenderem uma teoria monista, afirmaram que tudo que existe é corpo, ou seja, ser e corpo são idênticos. Essa posição é sustentada através da seguinte afirmação: para que um corpo exista é necessário que ele seja capaz de produzir ou experimentar alguma mudança e, essa condição, só pode ser plenamente satisfeita por uma corporeidade tridimensional (DL VII 135 (LS 45 E)). Assim sendo, o que um corpo deve ter, como causa e como constituição, de modo a podermos explicar sua existência? Segundo os estóicos, o critério de existência corresponde à capacidade que um corpo possui de agir ou de receber uma ação (CÍCERO. Acad. I 39 (SVF I 90 – LS 45 A) Cf. DL VII 134 (LS 44 B)). Tal capacidade derivaria de dois princípios: um princípio ativo identificado ao lógos, ao fogo (ESTOBEU, Ecl. I 213 15-21 (SVF I 120 - LS 46 D)), ao sopro vital (pneuma); elemento composto de fogo e ar; e um princípio passivo, nomeado de matéria, isto é, uma substância sobre a qual se exerce a atividade do agente (DL VII 134 (LS 44 B)). No entanto, dizer que todo o corpo é resultado de uma matéria moldada por um agente que a penetra, não significa dizer que esta matéria corresponda a uma passividade simplesmente. Mas, que há nela uma passividade, em um certo sentido, ativa, ou seja, uma disposição receptiva, aberta à geração do lógos. A partir dessa característica essencial da física estóica podemos entender que o mundo que é corpo, e portanto, possui em si o princípio ativo e passivo, é um ser vivente animado pelo lógos (CÍCERO De natura deorum II 22 (LS 54 G)).

Poderíamos, então, entender que se tudo que existe é corpo, os princípios em questão também seriam corpóreos? Se cada corpo existente é constituído de lógos e matéria, isso implica que ambos são inseparáveis. Logo, não podem existir separadamente enquanto corpos, mas apenas conceitualmente. Decorre dessa concepção um outro ponto de fundamental

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importância para compreensão da física estóica, qual seja, a noção da completa mistura (míxis), isto é, interpenetração entre os princípios ativo e passivo na formação de toda existência corporal (DL VII 151 (LS 48 A)).

Identificando o princípio ativo ao lógos universal, deus, fogo artífice (pýr teknikón), pneuma, lógos seminal (lógos spermatikós) (DL VII 135 (LS 46 B)), os estóicos descreveram o modo como este princípio atua na matéria, isto é, trata-se de uma criação, a partir do lógos universal, integrando-o à matéria. Portanto, a natureza não é simplesmente estabilidade e mudança, mas essencialmente lógos como constituidor da própria realidade, na realidade: a completa correspondência entre lógos e phýsis. Essa concepção dual e, ontologicamente inseparável, de que tudo que existe, existe corporalmente, aparece a partir de um universo considerado como um todo em que a ação criadora consiste em uma transformação qualitativa da matéria, gerando a dualidade. Ou seja, trata-se de uma unidade constituída não como uma justaposição de partes, mas como uma total integração de forças, em que cada ser é concebido à imagem de um ser vivente, tendo em si seu princípio de atividade. Há, portanto, uma vitalidade, em que os princípios ativo e passivo estão em total mistura, em uma relação de forças (tónos), sem contudo perderem suas características singulares (Alexandre de Afrod., Mixt., 218 6 (SVF II 473 - LS 48 C9)).

Embora a dualidade dos princípios ativo e passivo decorra da filosofia aristotélica no que concerne à forma e à matéria, o estoicismo a interpretou e a utilizou de modo muito diferente. Em Aristóteles, forma e matéria são distintos e dependem de um outro princípio, do Primeiro Motor Imóvel. Nos estóicos, os princípios ativo e passivo são inseparáveis na formação de um ser único e, o princípio ativo assume não apenas constitutivamente o ser, mas também sua causa. Isto é, está sob a regência do princípio ativo, a causa. Trata-se de uma causa, de certo modo, real, em oposição a uma causa ideal. Assim, a partir da inseparabilidade dos princípios, podemos constatar que há uma dupla dualidade geradora da unidade dos seres. Há a dualidade ativa e passiva e, também, uma dualidade no próprio princípio ativo como elemento constituinte da causa e pertencente ao ser. Além disso, podemos nos direcionar ainda para uma duplicidade com relação ao princípio passivo, uma vez que este, carrega em si, a atividade de receber, pressuposta em qualquer atividade de transformação. Essa transformação é interna e não estabelece relação com o real no seu princípio, mas somente no desenvolvimento do processo, no aflorar da completude. Portanto, vemos uma dinâmica de princípios

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compondo a integralidade do ser, em um processo interno, em que a força ativa e a atividade passiva constituem a relação que a natureza revela enquanto multiplicidade, enquanto dinâmica do real do mundo no mundo. O que possibilita essa integração? O lógos. Ou seja, na multiplicidade, encontra-se esse jogo interno de forças constitutivo do real, possibilitado pelo lógos.

O princípio de atividade descrito como um movimento do lógos spermatikós, imanente ao mundo que tanto representa deus quanto o fogo artífice possibilitador do acontecimento de todas as coisas, claramente estabelece a influência da filosofia heraclítica sobre a doutrina estóica. Assim, podemos entender que, não se trata de conceber o lógos spermatikós apenas como a semeadura do mundo em que este é deixado maturando, com vistas ao desenvolvimento independente. Trata-se de uma total relação de identidade em que o lógos ou fogo artífice co-existe com o mundo, sustentando a integração e possibilitando os acontecimentos. Ou seja, a criação não pode ser entendida como um ato, mas como um processo contínuo. Como já indicamos no capítulo anterior, a afirmação de Heráclito de que um e o mesmo lógos determina a inteligência e a dinâmica da realidade, indica a fonte originária do pensamento estóico acerca do conceito de lógos universal. O mundo é entendido como um conjunto de coisas unificadas e conduzidas pelo lógos, comum a elas. Podemos, a partir dessa concepção de integração, sugerir a estreita relação entre ambas filosofias no que concerne à estrutura ordenada do mundo, que aponta para co-pertinência entre todas as coisas e o lógos, isto é, entre os acontecimentos no mundo e o lógos. Mas sendo o fogo artífice um princípio que possibilita os acontecimentos, não estaria sendo naturalmente apontada uma dinâmica de explicação providencial a partir de um elemento primordial? E ainda, não poderíamos inferir com isso um aspecto teleológico próximo ao entendimento platônico e aristotélico?

O plano cosmológico do antigo estoicismo decorre da física heraclítica, mas assume uma postura diferente do pensador originário. Ao contrário de Heráclito, os estóicos, sobretudo Crisipo, não tinham a impressão de um puro devir, de um fluxo contínuo da realidade. Para eles isso, em última instância, daria a impressão de que o lógos universal talvez pudesse não provocar no homem o melhor de si. O mundo estóico era “uma habitação feita propositalmente pelos homens e pelos deuses” (SVF II 169, 23). Esse mundo para o estóico é o melhor mundo possível. Mas considerar o melhor, pressupõe um pior. Portanto, há no melhor mundo possível um movimento de diferenciação que esgotou a diferença, indicando que só

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podem haver mundos piores que esse, que é o melhor. Ou seja, as posições extremadas tanto do pessimismo absoluto quanto do otimismo absoluto, embora em posições opostas, guardam características semelhantes. Os estóicos estavam perpassados por essa problemática de Heráclito. A consciência da fugacidade das coisas gera uma nota de pessimismo que atravessa o pensamento heraclítico. Mas o pessimismo advém, sobretudo, de reconhecer o torpor em que vive a maioria dos homens, ignorantes da lei universal que tudo rege. Para os estóicos é justamente o lógos universal, que perpassa todas as realidades, isto é, que está na integração do andamento de todos os necessários da realidade, que faz desse o melhor mundo possível. Esse otimismo faz com que toda realidade no mundo seja perfeita. Vamos ver que essa dinâmica constitui uma imanência idealizada, isto é, na tentativa de descaracterizar a idealização através da concepção imanente de toda a realidade, o estoicismo não escapa à idealização na medida em que esta é operada na própria imanência, constituindo assim um plano imanente metafísico.

Um outro aspecto indica que a idéia de que o mundo teve um começo e terá um fim, em geral imputada a Heráclito, é também admitida pelo estoicismo, porém, como pudemos ver, com uma leitura otimista. Os argumentos que fundamentam essa idéia finalista do mundo partem dos fenômenos naturais que por vezes geram grandes catástrofes. Para os estóicos, o mundo foi gerado, como todo ser vivente, por um sopro vital (pneuma). Esse elemento próprio da geração, teria tido sua origem no fogo primordial que no início do mundo ocupava o lugar vazio. A partir do fogo primitivo se produziu a ordem do mundo por uma série de transmutações dos outros elementos naturais. Esse processo implica na tese da simpatia universal (CÍCERO, De Fato, cap. 4, 5, 6) em que todas as partes do mundo estão integradas e coordenadas entre si, reciprocamente. O mundo consistia, então, em um todo engendrado que não dependia apenas do fogo originário, mas de todas as partes em relação. A idéia do fogo como deus, como lógos universal, possibilitador de toda a realidade, não implica que o mundo seja o próprio deus, o fogo, o lógos apenas. O fogo é o princípio ativo, o mundo é uma combinação de forças composta de um princípio ativo e passivo, como todo ser vivente (CÍCERO, ND II 22 (LS 54 G)). Logo, temos que os seres e o mundo são da mesma natureza, ainda que o mundo seja perfeito e os seres imperfeitos (CÍCERO ND II, 39 (LS 54 H)), posto que, na perfeição do mundo, a experiência do imperfeito é uma demonstração de perfeição. Esse elemento vital, possibilitador de toda a realidade, isto é, co-existente ao nascimento, quando está em um processo de transmutação inversa, ou seja,

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em um momento em que todos os elementos se reduzem ao fogo novamente, representa a conflagração universal (Aécio Plac. II 4, 7 (SVF II 585)). Trata-se de um momento que constitui a destruição do mundo, mas também a fase em que o fogo universal reintegra sua fragmentação anterior, operando uma transmutação em fogo, elemento originário. Temos, portanto, um recomeço, através da contração, de uma nova expansão no vazio. Segundo os estóicos, esse ciclo reproduz-se perpetuamente (Nemésio, De natura hominis, pág. 311, 2 (SVF II 625 – LS 52 C3)). Para Crisipo, não é impossível que Zeus, ou lógos universal, reproduza cada período como o antecedente (Lactâncio, Divinae Instituitiones, VII 23 (SVF II 623 – LS 52 B)). A regularidade desse ciclo, marcada pelo lógos universal, simboliza o eterno retorno rigoroso e constante, sem contudo demarcá-lo no tempo (Eusébio, Praeparatio evangélica I 5, 19 (SVF II 599 - LS 52 D)), nem tampouco garanti-lo como desdobrando-se enquanto mesmo. A atividade da conflagração é representada por um movimento cíclico e contínuo. No entanto, é importante ressaltar, como acabamos de indicar, que este movimento cíclico e contínuo não implica em uma recorrência puramente mecânica. A referência citada acima, quanto à regularidade do ciclo, fundamenta-se na unidade do princípio ativo, o fogo artífice que perpassa todas as realidades. Uma vez que esse princípio está em tudo e que, através da integração de todas as forças temos, o mundo tal qual ele é, esse processo eternaliza-se na propriedade do lógos universal em si mesmo. Portanto, o otimismo da doutrina nos assegura, através da constância, contra a instabilidade, que vivemos no melhor mundo possível, posto que animado pelo lógos. Com isso, os estóicos entenderam ser esta tanto a causa do retorno cíclico do mundo quanto sua natureza providencial, pois a perfeição do lógos recria o mundo de acordo com sua perfeição. No entanto, isso não se dá como meta, mas como processo integrador da realidade nela mesma.

A afirmação de que o universo consiste em uma estrutura ordenada é característico da filosofia grega. Tanto para Platão quanto para Aristóteles, e para os estóicos, essa noção de ordem combina com a noção de propósito. No entanto, nem Platão, nem Aristóteles concordam com o fluxo causal dos acontecimentos representados pela totalidade integradora entre o cosmos e os fenômenos na realidade. A total integração pressuposta pela doutrina estóica indica-nos que, ao contrário da tradição, em que a causa agia do exterior sobre a matéria previamente dada, sendo em Platão tal qual a participação em uma Idéia, e para Aristóteles a tendência a realizar um fim, os estóicos encontravam a razão da existência no interior do próprio corpo, constituído de lógos e matéria. Ou seja, contrários à concepção platônica,

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cuja Idéia indica os limites aos quais um ser para existir deve submeter-se, os estóicos apontaram para outra direção na consecução da compreensão acerca da causalidade e da noção de realidade que dela deriva.

Para Platão tanto quanto para Aristóteles, era necessário explicar o que havia de permanente e estável no ser para que, então, fosse possível pensá-lo através de conceitos. Sendo a natureza de uma causa determinada pela natureza das coisas que essa causa tem por missão explicar, seja ela a Idéia ou o Primeiro Motor Imóvel, ela é permanente. Portanto, tudo que é instável, que está no devir não decorre dessa causa permanente, mas do limite que esta causa tem de causar, ou seja, ao que escapa à sua determinação. Os estóicos apoiaram-se em uma outra concepção causal. Consideraram a ação da causa não como a ação de um corpo que produz outro. Mas, como já indicamos, consideraram que o corpo tem nele mesmo a fonte de seu movimento. A ontologia estóica aponta o ser não mais como uma unidade superior, mas como uma unidade de todas as partes que constituem seu ser e de todos os acontecimentos que se desdobram em sua vida ao longo do tempo e do espaço. Os estóicos partindo dessa concepção de ser, desenvolveram sua teoria da causalidade. Essa idéia nos encaminha para a compreensão de que não há na doutrina estóica a concepção de uma filosofia transcendente, mas de uma filosofia imanente às coisas. Vale ressaltar, no entanto, que isso não significa dizer que os estóicos tenham descartado a transcendência de seu sistema. Mas antes que eles a incorporaram na imanência, indicando que não há separação entre as duas instâncias. Trata-se de uma total integração em que imanente e transcendente estão implicados reciprocamente. A transcendência é estabelecida em Platão com relação às Idéias, isto é, há algo que explica, que dá inteligibilidade ao ser, às coisas. Em Aristóteles, há princípios intelectuais que explicam as coisas, às quais as coisas podem ser subsumidas. Nos estóicos, são as coisas em si mesmas, nos seus acontecimentos que se determinam. Logo, embora essa capacidade de agir ou ser agido como característica do que existe já tivesse sido admitida pela tradição platônica e aristotélica, no estoicismo tal marca não decorre da transcendência de um ser imaterial, mas de uma imanência em que a natureza de uma causa é determinada pela natureza própria das coisas. Dessa forma, podemos entender que é na interioridade do próprio ser, a partir de sua determinação e de seus limites, do lógos e da matéria, que se constitui sua existência. Portanto, o binômio causa/efeito ou princípio/finalidade, não se apresenta distintamente na filosofia estóica. Trata-se de um todo único cujas forças estão concomitantemente gerando-se

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enquanto aitia e telos. Direcionemo-nos agora para uma outra instância do real que seriam os incorporais, correspondentes a uma realidade mais ampla denominada de ��, algo (Alexandre de Afrod. In Ar. Top. Pág. 301, 19-25 (SVF II 332 – LS 27 B)). A partir de uma concepção materialista de que tudo é corpo, e de uma concepção monista da realidade, isto é, tanto deus quanto a matéria são identificados em uma única realidade que é o próprio fogo e o lógos (DL VII 134 (LS 44 B)), os estóicos admitiram que o lugar, o vazio, o tempo e o exprimível (lékton) são incorpóreos (SE CM X 218 (SVF II 331 – LS 27 D)).

Se, apesar da afirmação de que tudo que existe é corpo, os estóicos admitiram uma outra realidade, que seria incorporal, significa que ser alguma coisa não implica, necessariamente, em existir corporalmente. Nesse caso, ser alguma coisa poderia estar relacionado não diretamente a um corpo, mas a seu significado. Como indicamos acima, o tempo, o lugar, o vazio e o exprimível não existem corporalmente, mas é inegável que existam enquanto significados. Por exemplo, uma expressão temporal como “ontem” ou um ente ficcional como “centauro”, não existem corporalmente, mas existem seja como um pensamento ou uma fala. Para os estóicos, existem como algo, ti. Mas se a interação depende da corporeidade, como os incorporais podem fazer parte do mundo? De fato, o incorporal, por natureza, não pode nem agir nem ser agido. Segundo a física estóica, o corpo é o único agente e também receptor, logo somente o corpo pode ser causa e efeito. O estatuto ontológico que os estóicos atribuíram ao incorporal, à primeira vista, o tira do fluxo causal dos acontecimentos. No entanto, sendo o incorporal da ordem das realidades físicas, isto é, tempo, lugar, vazio, exprimível; temos que o incorporal, que não existe, mas é, é condição de existência para que haja corporal. Os incorporais são condições que possibilitam os acontecimentos. Por exemplo, entendemos o espaço como um sistema de posições que independe do corpo que o esteja ocupando. Ou seja, qualquer corpo pode ocupar qualquer posição no espaço. Para os estóicos, se o espaço existe como condição de existência para qualquer corpo, ele não é um sistema de posições independente. Ele só existe na relação com o corpo. Portanto, o incorporal, que não está na ordem do fluxo causal por não existir corporalmente, relaciona-se com esse fluxo causal na medida em que possibilita a ação da causa (Estobeu, Ecl. I 139 4 (SVF II 336 – LS 55 A4)). No processo do acontecimento, causa e efeito estão integrados. Essa integração precisa do acolhimento do incorporal. Os incorporais são o que possibilitam essa integração, isto é, a realização.

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Tomemos como exemplo o fogo que aquece o ferro (SE CM 9 211 (SVF II 341 –LS 55 B)). A ação do fogo sobre o ferro causa um outro corpo? Ou seja, o fogo agindo sobre o ferro, causa o ferro quente? Aparentemente, sim. No entanto, segundo a teoria da total mistura, já abordada anteriormente, o fogo não causa no ferro o calor, mas se mistura ao ferro, co-existindo. Trata-se de uma maneira de ser diferente, ou seja, um ser aquecido, mas sem deixar de ser ferro e de ser fogo. E o que possibilitou essa mistura de fogo e ferro? O que possibilitou essa integração de forças foram as condições de existência que, de acordo com a física estóica, são os incorporais: o lugar, o tempo e o vazio. O lugar não é corpo, portanto não pode ser causa, mas está na relação com o corpo de tal modo que não podemos pensar um corpo sem espaço (SE CM 10 3 (SVF II 505 – LS 49 B2)). O tempo está na relação com o acontecimento (ESTOBEU, Ecl. I 106 5 ( SVF II 509 – LS 51 B2)). O vazio contém o mundo (ESTOBEU, Ecl. 161 8-26 (SVF II 503 – LS 49 A2)). Além dessa relação corpórea entre fogo e ferro e da condição incorpórea que possibilita esse acontecimento, temos o que é afirmado sobre o objeto sem com isso ter mudado sua natureza. Essa característica que não é o ser, nem uma propriedade do ser, mas o que é dito do ser, é denominada de lekton, exprimível. Ou seja, aquilo que possibilita significar. Assim, a fundamentação ontológica que sustenta a corporeidade de tudo que há na realidade é acolhida por uma outra instância do real na condição de possibilidade de toda realização da realidade. Esse processo é povoado de corpos e condições incorporais.

Bibliografia ARNIM, Von. Stoicorum Veterum Fragmenta. Stuttgart, 1903. BRÉHIER, Émile. Les Stoïciens. Textos traduzidos por Émile Bréhier, editados sob a direção de Pirre – Máxime Schuhl. Bibliothèque de La Pleiade. Paris. Gallimard, 1962. _______. Chrysippe et l’ancien stoicisme. Paris. PUF, 1951. INWOOD, Brad. Os Estóicos. Brad Inwood (org). Trad. Paulo Fernando T. Ferreira. Odysseus, 2006. LONG, A. A. Hellenistic Philosophy – stoics, epicureans, sceptics. Ed. Duckworth, 1986. LONG, A. A. & SEDLEY, D. N. The Hellenistic Philosophers. Vol. I e II. Cambridge. Cambridge University Press, 1987.