Estratégia, Conhecimento e Competências

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  • Estratgia, Conhecimento e Competncias

    Viso Integrada do PotencialHumano

    Manual para um Alto Desempenho na Educaoe no Trabalho

    Renato Kraide Soffner

    2007

  • Apoio

    CrDiTos:

    Capa e Diagramao:Jelzo oliveira dos santos

    Coordenao Tcnico Editoralisabel Caroni DeGaspari

    Copyright by renato Kraide soffner

    Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/98.Proibida a reproduo total ou parcial

    sem a autorizao do autor.

    Ficha Catalogrfica

    soffner, renato KraideEstratgia, Conhecimento e Competncias Piracicaba.

    Editora Degaspari, 2007.

    118p.

    1. Literatura brasileira

    CDD. 869.97

  • Para Lourdes, Jlia e Ricardo,minhas inspiraes.

    Estratgia, Conhecimento e CompetnciasRenato Kraide Soffner

  • Prefcio

    renato soffner nos diz que, para os chineses, viver em tempos interessantes uma maldio. Que seja. nesse tipo de tempo que esta-mos vivendo. E o livro dele descreve parte daquilo que faz o tempo atual interessante e desafiador.

    Neste incio de sculo XXi ns, seres humanos, nos percebemos como tendo algumas caractersticas bastante interessantes.

    Em primeiro lugar, no nascemos prontos para a vida. Na realidade, nascemos totalmente ignorantes e incompetentes e, por isso, por um bom tempo, somos absolutamente dependentes dos cuidados dos outros.

    Em segundo lugar, bom ou ruim, a nossa natureza no totalmente programada.

    Ela deixa espao para que cada um de ns decida, no devido tem-po, o que quer ser, o que quer fazer de sua vida... Isso significa que a vida humana , em grande medida, projeto projeto da vida que escolhemos para ns mesmos.

    o que chamamos de educao o processo mediante o qual os seres ignorantes e incompetentes que somos ao nascer se transformam, gradativamente, em seres menos ignorantes, relativamente competentes, capazes de definir, com um grau potencialmente elevado de autonomia, nosso projeto de vida e a estratgia necessria para transform-lo em rea-lidade. Conhecimento, competncia, estratgia estes so os ingredientes bsicos do desenvolvimento humano, vale dizer, da educao.

    Em terceiro lugar, nascemos com uma importante na realidade, essencial e indispensvel capacidade: a de aprender. se nascemos igno-rantes e incompetentes e o objetivo da educao que que construamos conhecimentos e desenvolvamos competncias que nos permitam realizar um projeto de vida autnomo, a educao s possvel porque possumos essa notvel capacidade de aprender.

    Aprender no simplesmente assimilar e absorver, nem mes-mo reunir e coletar, informaes. Aprender tornar-se capaz de fazer aquilo que antes no conseguamos fazer. Na rea do saber, construir conhecimentos envolve, entre outras coisas, perceber semelhanas, abstrair o essencial, criar conceitos, elaborar generalizaes, construir modelos, inventar mtodos para testar generalizaes e modelos, derivar de nossos modelos formas de agir ancoradas na realidade e coerentes umas com as outras. Na rea do fazer, construir compe-tncias, ou saber-fazeres, envolve, entre outras coisas, desenvolver conjuntos integrados de habilidades de menor abrangncia, que, uma vez dominados, so postos em operao com naturalidade, quase

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  • Agradecimentos e reconhecimentos

    Jorge Luis Borges disse que dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular , sem dvida, o livro. os demais so extenses de seu corpo. o microscpio, o telescpio so extenses de sua viso; o telefone a extenso de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extenses de seu brao. o livro, porm, outra coisa: o livro uma extenso da memria e da imaginao.1

    Este livro surgiu aps muitos anos de um processo de gestao intelectual. Deve-se esperar pelo momento certo do amadurecimento do texto, se quisermos uma obra que traduza tudo o que foi meditado, pen-sado e vivido.

    Ele foi escrito para ajudar as pessoas no ato de reconhecer e empre-gar efetivamente o pensamento, o conhecimento, as competncias, as idias e as tecnologias, tanto na vida pessoal quanto na vida profissional, de um ponto de vista estratgico.

    Como motivao e inspirao tivemos as gratas amizades de alguns dos mais influentes educadores e pesquisadores da atualidade nas reas de tecnologia, educao e desenvolvimento humano.

    A maior parte de sua redao foi feita em Cambridge, Massachu-setts (EUA) num perodo de estgio de ps-doutorado conduzido no MiT Media Lab. o forte ambiente acadmico da regio, aliado a ricas e valiosas reunies e discusses das quais participei no MiT e em Harvard, alm do acesso aberto a bibliotecas e livrarias, foram fundamentais para a linha de pensamento adotada no projeto do livro. Bonum est nos hic esse.

    Tenho que agradecer a amizade de Eduardo Chaves, meu mentor na aplicao da tecnologia e da filosofia educao. Grande parte das idias deste livro nasceu de nossas discusses durante o perodo de elaborao da minha tese de doutoramento, na UNiCAMP. Eduardo teve, inclusive, a iniciativa de me fornecer material ainda indito na poca, de sua autoria. Esta obra , portanto, em grande parte influenciada pelos conceitos por ele defendidos.

    1 Borges, Jorge Luis. Cinco vises pessoais. Braslia: Editora UnB, 2002.

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    como se fossem automatizados o quase-automatismo s cedendo lugar ao controle consciente diante do imprevisto.

    Embora haja um sentido importante em que nascemos humanos, em outro, e mais importante, sentido, ns nos fazemos humanos atravs da educao. Ao nascer, somos biologicamente humanos e, por isso, me-recemos ser tratados com a dignidade devida a todos os seres humanos. Mas do ponto de vista psicolgico, social e cultural, tornamo-nos humanos medida que vamos definindo o nosso projeto de vida e nos transformando na vida que projetamos para ns mesmos.

    Por fim, em quarto lugar, possumos uma intrigante capacidade de inventar tecnologias. A definio mais ampla de tecnologia que tecnologia tudo aquilo que o ser humano inventa para tornar a sua vida mais fcil, ou, ento, mais agradvel. H tecnologias que so ferramentas coisas que so teis e que facilitam nossa vida porque nos ajudam a fazer aquilo que precisamos ou desejamos fazer. Mas tambm h tecnologias que so brinquedos coisas que no so teis e que no facilitam a nossa vida, mas que nos do imenso prazer. As artes so tecnologias desse tipo. As tecno-logias que so ferramentas nos ajudam a nos manter vivos mas so as tecnologias que so brinquedos que nos fazem querer continuar vivos.

    Esses dois tipos de tecnologia so essenciais para educao: um no plano dos meios, o outro, no plano dos fins.

    nesses espaos conceituais e tericos que se situa o livro de Renato Soffner. Desfrutem-no. uma contribuio importante causa da educao no ambiente acadmico e corporativo.

    Eduardo o. C. Chaves secretrio Adjunto de Ensino superior

    Estado de so Paulo

    Campinas, 13 de maro de 2007.

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    Tive a honra de trabalhar sob sua superviso no doutoramento. Tenho a honra de continuar merecedor de sua amizade. Espero ter a honra de, um dia, apresentar apenas parte de sua competncia.

    Agradeo, tambm, a Mitchel resnick, meu orientador de estgio de ps-doutorado no MiT Media Lab; Marvin Minsky, pela oportunidade a mim concedida de um contato pessoal no MiT, alm da troca de mensagens inspiradoras pela internet; Bruce scott, da Harvard Business school, pelas horas valiosas que me concedeu para falarmos de tecnologia, educao, democracia e academia.

    Expresso minha gratido contnua pela amizade e colaborao dos colegas e diretores do Centro Universitrio salesiano de so Paulo UNisAL e da Faculdade salesiana Dom Bosco de Piracicaba, onde tenho o orgulho de trabalhar.

    Last, but not least, reconheo o fundamental apoio edio do livro, provido pela simetrans Assessoria em Comrcio Exterior, na pessoa de seu diretor Maurcio Alexandrino de souza.

    Pois os livros, como os filhos, tornam-se independentes, uma vez que tenham deixado a casa paterna. Vivem suas prprias vidas, enquanto os autores tambm fazem o mesmo. No se deve interferir no rumo dos que

    se tornaram estranhos casa.

    Joseph E. schumpeterPrefcio Edio Inglesa de Teoria do Desenvolvimento Econmico

    The trouble with me mentally is that i do not know how to write a book. But this is better than thinking i do, when actually i do not.

    Vannevar Bush

    i heartly beg that what i have here done may be read with candour and that the defects in a subject so difficult

    be not so much reprehended as kindly supplied, and investigated by new endeavours of my readers.

    sir isaac Newton

    introduo aos Philosophiae Naturalis Principia Mathematica

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    - Companion Website -

    o meu website pessoal - em www.soffner.eng.br - apresenta ma-terial complementar e suplementar ao texto deste livro.

    A partir deste site voc poder fazer contato, tirar dvidas, solicitar palestras (que realizo com freqncia - em escolas, empresas, organiza-es privadas e pblicas), bem como conhecer as atividades disponveis online, concentradas em outro website por mim administrado, hospedado em www.potencialonline.com (cursos online).

    Voc tambm encontrar outros textos de minha autoria, e mate-rial baseado em educao, negcios e tecnologia, o trip sobre o qual se assenta meu trabalho atual.

    Utilize o endereo eletrnico [email protected] para contatos diretos.

    Nulla dies sine linea. Plnio

    simplex ratio veritatis. Ccero

    simplex veri sigillum. sneca

    sumrio

    introduo................................................................................................15

    A Centelha e o incndio ..........................................................................19

    1) Estratgias de sobrevivncia e Avano Premissas iniciais .............21

    As redes como Novo Paradigma organizacional e Educacional sobrevivendo e Avanando ..................................................................24o Poder das redes .................................................................................25redes de relacionamento, Parcerias, simbioses ..................................26Modelagem, simulao Aprendendo sobre o Mundo ..........................27Aprendizagem por Modelagem ...............................................................28sistemas ..................................................................................................29Complexidade, Caos, Negcios, Vida .....................................................33Agentes ...................................................................................................34Das Vises Metafricas das organizaes .............................................37

    2) Tecnologia: Meios de suporte aos Fins ..............................................39

    Definies de Tecnologia A techn e o logos .......................................40Tecnologia e Educao ...........................................................................41os Tipos de software Educacional..........................................................51Tecnologia e suporte aos Negcios ........................................................52Tecnologias da inteligncia .....................................................................52Tecnologia e Educao Corporativa (Andragogia) ..................................58Tecnologia e a Educao Continuada (Lifelong Learning) ......................59Tecnologia e Estratgia ...........................................................................60

    3) Educao como Desenvolvimento deCompetncias e Potencial Humano ...........................................................61

    Nota introdutria ......................................................................................61o Desenvolvimento Humano...................................................................62Um Modelo de Educao sempre Atual A Paidia Grega ...................65Competncias para a Vida Contempornea ...........................................66

  • 2 Citao em Nasar, sylvia. Uma Mente Brilhante. rio de Janeiro: record, 2002.3 Um dos hacks mais famosos do MiT foi a decorao de sua entrada principal, na Avenida Massachusetts, com o que foi batizado pelos alunos de santurio de Nossa senhora da Prti-ca da Noite Toda, analogia direta com a tradio local de longas horas de estudos noturnos.4 Neste tema, vide tese de doutoramento de soffner, renato K. (2005).5 Dertouzos tambm diz que o estudante que no faz as compras com o dinheiro que tem, ou de Harvard e no sabe contar, ou do MiT e no sabe ler. Vide Dertouzos, Michael. o que ser. so Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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    4) o Conhecimento e a intelignciaEnfoque Estratgico da Questo Epistemolgica ...................................69

    inteligncia ..............................................................................................69A Genialidade ..........................................................................................73informao e Conhecimento ...................................................................73Uma Breve Reviso Filosfica ................................................................80Conhecimento e Ao .............................................................................81

    5) Pensamento Crtico, Criativo e Estratgico.........................................85

    5.1. Pensamento Crtico o Bem Pensar ..............................................87

    Termos importantes para o Pensamento Crtico .....................................90Um Exerccio rotineiro de Anlise inteligente das Emoes ..................98o Papel das Emoes no Pensamento Crtico .......................................99

    5.2. Pensamento Criativo ......................................................................100

    Etapas do Pensamento Criativo ............................................................100A Descoberta e o Ato da Criao ..........................................................101Estudo Trabalho Jogo = cio Criativo (sociedade Ps-industrial) ........104inveno e inovao .............................................................................105Prtica de Gerao de idias ................................................................105o Quociente de inovao (Qin).............................................................106

    5.3. Pensamento Estratgico ................................................................108

    6) A Ttulo de Concluso (ou Continuao ...) .......................................109

    Referncias Bibliogrficas ..................................................................... 111

    introduo

    of all the frictional resistance, the one that most retards human movement is ignorance.

    - Nikola Tesla

    Dentro de suas meditaes sobre a vida acadmica e a pesquisa, Albert Einstein afirmou que todo acadmico em formao deveria arranjar um emprego num farol, a fim de desenvolver suas prprias idias sua prpria maneira, na solido ali presente 2 . Achei o meu farol no MiT (instituto de Tecnologia de Massachusetts), onde pude pensar, por algum tempo, de forma livre e amparado por um ambiente acadmico riqussimo. Tive longos perodos de reflexo e trabalho, de acordo com a mais tradicional atitude do MiT atravessar noites estudando como o fazem seus dedicados alunos. 3

    Uma das minhas fontes de inspirao, neste mundo da tecnologia, foi o grupo de tecnologia educacional do MiT Media Lab. Fundado por sey-mour Papert, dentro de sua atuao pioneira nas idias de Jean Piaget, com quem trabalhou por alguns anos, defende o emprego de ferramentas para gerar idias e para o pensar. ou seja, a tecnologia utilizada para dar suporte a novas formas de pensamento, aprendizagem e projeto. imagina a tecnologia como expanso das capacidades mentais e intelectuais, criando e inovando, realizando potencial humano. 4

    o trabalho de Papert de bases tecnolgicas e matemticas, mas leva em considerao os aspectos da emoo, e no apenas da tecnologia racional, j que a motivao e o gosto pelo que se faz fundamental para as idias de base do seu construcionismo.

    Tambm considerei, neste trabalho, que ao tratarmos do confronto entre a razo da tecnologia e a emoo do humano atingiremos um novo patamar para nossas vises de mundo. Michael Dertouzos 5 , falecido di-

  • 6 rubem Alves diz: Fez e ainda faz muito sucesso um livro com esse ttulo, inteligncia Emocional. Mas o meu amigo, professor Eduardo Chaves, fez uma observao muitssimo correta: No existe inteligncia emocional. o que existe emoo inteligente. a emoo que busca inteligncia, para realizar os seus sonhos. A inteligncia ferramenta da emoo. A inteligncia, em si mesma, no sente necessidade alguma da emoo.Extrado de: http://www.rubemalves.com.br/quartodebadulaquesXLiV.htm

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    retor do Laboratory for Computer science, do MiT, disse que a unio entre humies e techies, nos currculos, traria a sonhada unificao da f, razo, natureza e humanidade:

    Ento, a nova Era da Unificao nos reconciliar com a f, razo, natureza e humanidade, abrindo caminho para a Quarta revoluo, muito adiante dos artefatos humanos e suas conseq-ncias, voltada para dentro, para a compreenso de ns mesmos (DErToUZos, 1997, pg. 389).

    Pretendemos mostrar aqui que as novas vises de mundo, trazidas pelos estudos e descobertas recentes, alm das modernas tecnologias, dando suporte a um novo modelo de educao, podem nos preparar es-trategicamente para a vida pessoal e profissional. Quero aqui discutir os rumos do nosso pensamento e de nosso desenvolvimento de competncias, num universo que j no mais comparado ao mecanismo de relgio de Newton.

    Acredito que a cincia e a tecnologia ainda so os meios mais seguros de crescimento pessoal e profissional. Os melhores empregos e ocupaes ainda esto reservados para aqueles que sabem se apresentar melhor, pensar melhor, e demonstrar competncias reais ou seja as pessoas mais esclarecidas.

    Precisamos continuar popularizando a cincia, tal qual o fez Carl sagan, e ainda o fazem outros idealistas. Mesmo os temas e tcnicas mais complexos precisam ser aprendidos pela pessoa comum. Este texto apresenta, em alguns momentos, material que pode parecer complicado, primeira vista; peo ao leitor que no desista e no desanime diante desta aparente dificuldade, pois seu crescimento pessoal e profissional vir sem-pre do enfrentamento de novas situaes e novos conhecimentos. Quem busca pelo fcil e descomplicado deve manter leituras de auto-ajuda, que nas aparncias sugerem ser de grande valor, mas acabam portadoras de uma fragilidade assustadora, sendo que a maioria das pessoas que bus-cam este tipo de evento/leitura certamente se esquece do que ouviu/leu j no dia seguinte aos rentveis eventos dos quais participam (e que so to numerosos atualmente).

    A emoo, que o aspecto que a auto-ajuda mais valoriza, tem seu papel, certamente; mas tem que ser inteligente, como diz o professor Eduardo Chaves 6 . A propagada inteligncia emocional um conceito, em si, refutvel; o que buscamos, na verdade, uma emoo inteligente. A sim aliamos a razo com a emoo, numa sinergia que gerar consenso entre a maioria das pessoas.

    samos de uma sociedade industrial, mas nos prendemos numa sociedade do espetculo, dominada pelas mdias e pelos interesses co-merciais imediatistas, como diz Pierre Lvy.

  • 7 The spark and the Flame o ttulo do captulo iX do livro The Act of Creation, de Arthur Koestler, citado adiante nesta obra. Preferi traduzir flame como incndio, para dar nfase idia.

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    A Centelha e o incndio 7

    inicialmente quis dar ao livro o ttulo de A Centelha e o incndio. Foi uma imagem que me ocorreu, certa vez, durante as experincias vividas em meu passado profissional. Quem j viu de perto a queima de um canavial cheio de palhio, em dia seco de inverno, sabe do espetculo lindo e, ao mesmo tempo, aterrador. A altura das labaredas, e sua temperatura e in-tensidade, chegam a assustar. A analogia surgida, numa destas vises, foi a de uma simples fasca que acaba causando um grande incndio para mim uma metfora do prprio processo educacional, onde pequenas com-petncias, desenvolvidas de forma ordenada e planejada, podem liberar grande potencial humano.

    Acredito que o verdadeiro talento, to apregoado pelas organiza-es na atualidade, seria aquele indivduo que dominasse o contedo deste texto, e o mais importante, estivesse apto a aplic-lo. esta a hiptese maior do livro.

    A educao a centelha, o potencial desenvolvido e aplicado o incndio.

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    1) EStRatgIaS dE SobREVIVnCIa E aVanoPREmISSaS InICIaIS

    An invasion of armies can be resisted, but not an idea whose time has come. Victor Hugo

    oh brave new world, that has such people int. shakespeare

    Este captulo apresenta algumas tendncias inovadoras e novas vises de mundo que podem ser de utilidade para a compreenso do momento atual da cincia e dos negcios, e das previses concretas de curto e mdio prazo. Falaremos de redes como novo paradigma organizacional e educacional, de modelagem e simu-lao, de sistemas complexos e agentes, e das mltiplas vises que podemos ter das organizaes, j que estas se constituem em sistemas, que interagem a todo o momento com os outros elementos de um ambiente complexo e competitivo.

    - Um admirvel mundo novo?

    Existe uma apregoada maldio chinesa dizendo: - Que voc possa viver em tempos interessantes!.

    Fiz minha interpretao desta irnica afirmao. Na verdade, como a maioria de ns se sente nos dias atuais (e pelo menos desde meados da dcada de 80, quando tivemos acesso aos primeiros microcomputadores domsticos e demais gadgets avanados). Para mim, o que se pretende com tal frase mostrar a ansiedade e o sofrimento necessrios para a vida moderna, quando a cada novo dia surge algo novo em termos de tecnolo-gia, de necessidade de atualizao profissional, de manuteno de nosso estoque de informao, e que nos arrasta num turbilho de exigncias, muitas vezes reais, outras vezes fruto de um senso de urgncia falso. A ansiedade, eventualmente, alta demais para o benefcio que traz.

    ****v****

  • 8 Lipnack, Jessica; stamps, Jeffrey. The age of the network organizing principles for the 21st century. Essex Junction: omneo, 1994.

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    Dentro da escala evolutiva, o ser humano animal que herda caractersticas e comportamentos naturais de seus antecessores; estes viviam, muitas vezes, em bandos (ou seja, em sociedade), estavam sujeitos s questes relativas sobrevivncia (predao, auto-proteo). Mas a partir do momento em que o homem torna-se sapiens, ele atinge um nvel de auto-conscincia que o leva a buscar respostas sua condi-o mundana, distinguindo-se, assim, dos demais animais. Precisa criar a filosofia, a tecnologia, a cincia, a poltica, a educao, e outras reas de conhecimento terico e aplicado, para que possa justificar sua condio de animal sbio.

    De outro ponto de vista, a evoluo da humanidade percorreu eta-pas bem definidas: primeiro a caa e a coleta (geradora de ferramentas e armas rudimentares), seguida da era agrcola (representada pelo arado e demais ferramentas agrcolas), e depois pela era industrial (da mquina e do hardware). Hoje nos consideramos vivendo na era da informao (para alguns chamada de era do conhecimento) e da alta tecnologia (software, biotecnologia, nanotecnologia).

    No limiar do sculo XXi, e a partir de nossa evoluo animal e de sociedade, sentimos a nsia de determinar, modelar e mapear o que ne-cessrio para que um cidado deste sculo possa viver dentro de critrios e mtricas condizentes com todo o processo evolutivo sofrido. preciso justificar, ainda mais, nossa condio de sbios que se consideram deten-tores do domnio do mundo natural.

    Neste captulo iniciamos a descrio deste novo sujeito auto-consciente, que planeja sua participao como ser vivo neste planeta, e no mais se deixa levar pela rotina opressora (de luta pela sobrevivncia diria) a que esto sujeitos todos os outros animais. o homem moderno quer mapear as reas de conhecimento e de competncias passveis de desenvolvimento e, mais importante, as quer trilhar e incorporar. A melhor forma de nos enxergarmos no mundo real atravs da modelagem desta realidade. Vivemos no universo (ou num universo), e temos uma viso deste limitada capacidade de nossos telescpios e radiotelescpios. so nossas janelas para o espao exterior. No sabemos o que existe alm destes limites estabelecidos pela tecnologia atualmente disponvel. o conhecimento do universo limitado, portanto, pela percepo objetiva do macrocosmo.

    Eis aqui um exerccio de anlise sistmica de nossa condio humana:

    o universo conhecido composto de galxias, que por sua vez so formadas por estrelas isoladas e tambm por sistema solares, onde as estrelas dominantes so circundadas por planetas e satlites naturais. o nosso prprio sistema solar formado pelo sol e pelos planetas co-nhecidos, entre eles a nossa Terra. Esta composta dos reinos mineral, vegetal e animal.

    o ser humano, agente de nossos estudos nesta obra, pode ser representado como um ser vivo, animal, que vive num ambiente natural, em contato com os objetos minerais, com os vegetais, e com os outros animais, alm da convivncia social com membros de sua prpria esp-cie. Cada ser humano tem um componente fsico e um outro mental (ou espiritual), indissociveis, que interagem com os outros componentes da natureza j citados.

    o relacionamento cotidiano do ser humano com seu ambiente lhe d o conhecimento atravs da experincia; alm disso, o ser humano herda conhecimento da espcie em estruturas genticas, notadamente o instinto animal. Parte de sua carga de conhecimento , portanto, adquirida do contato com o lado objeto da realidade, e parte criada e transformada no sistema crebro/mente.

    Um ser humano competente, inteligente, e realizador de potencial humano estar pronto para interagir com todos os componentes citados, e de forma eficaz. A funo da educao preparar o homem para que possa atingir esse estado de prontido para a vida, alm das competncias desenvolvidas numa educao no-formal, e tambm daquela decorrente do senso comum.

    ****v****

    Podemos nos questionar sobre a formao e a manuteno das relaes sociais (e de poder) nas escalas evolutivas citadas. De acordo com Lipnack & stamps (1994) 8 , a rede est emergindo como forma de organizao dominante na era da informao, da mesma forma que a bu-rocracia marcou a era industrial, a hierarquia caracterizou a era agrcola, e o pequeno grupo dominou a era nmade. o conhecimento e a informao, em rede, passam a ter um efeito global, e no apenas local. redes de hotis, de notcias, de consultores, de desenvolvedores de software, e de pesquisa, passam a atuar de forma mundial.

  • 9 Vide Castels, Manuel. A sociedade em rede. so Paulo: Paz e Terra, 1999; idem. infor-mationalism and the network society. in HiMANEN, P. The hacker ethic and the spirit of the information age. New York: random House, 2001.

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    Os autores definem rede como sendo grupos de pessoas traba-lhando atravs de fronteiras de todos os tipos, enquanto o conhecimento substitui recursos tradicionais, sendo a nova fonte de riqueza.

    os antigos modelos (de viso de mundo) hierrquicos e burocrti-cos (mecanicistas) so representados por mecanismos de causa e efeito (modelos lineares ou newtonianos, reducionistas, que analisam as partes). J o modelo de rede (orgnico, biolgico) precisa ser estudado do ponto de vista da auto-organizao, emergncia e complexidade, da ligao entre as partes, onde a realidade um todo, que no pode ser reduzido. Da mesma forma como Manuel Castels 9 associa a viso social de rede a um novo paradigma informacional-tecnolgico, caracterstico do que ele tem chamado de era da informao (informacionalismo). Aqui o dilogo e a liderana compartilhada em rede so ferramentas essenciais na resoluo de problemas complexos. o compartilhamento e a socializao, elementos colaborativos naturais, agem na formao de alianas de competncias que podem resolver problemas e tomar decises. Potencial humano realizado, diramos.

    As redes como Novo Paradigma organizacional e Educacional sobre-vivendo e Avanando

    Decorrncia do que foi acima discutido, podemos afirmar que existe um novo paradigma nos meios acadmico, pessoal e profissional: a emergncia das redes como conceito aglutinador de diversas outras tendncias. Como visto, as redes surgem como representantes das or-ganizaes modernas da era da informao. Atravs das redes, grupos atravessam fronteiras antes delimitadoras das reas de influncia de um conhecimento individualizado e controlado; este, por sua vez, torna-se nova fonte de riqueza no sculo XXi, como j previsto por diversos autores em dcadas anteriores. A geografia e o espao no mais representam as fronteiras que separavam homens e instituies: o tempo a novssima fronteira. As redes tornam-se modelos poderosos de compreenso das complexidades naturais.

    Dentre as complexidades naturais relacionadas com as redes encontram-se as representaes e analogias que tentam explicar a or-ganizao e funcionamento do crebro humano, um dos temas a serem discutidos neste trabalho. Minsky (1988) apresentou uma teoria baseada em

    redes de agentes autnomos, cujo comportamento auto-organizado poderia representar de forma confivel as propriedades da mente, em suas funes de deciso, ao e comportamento. Num salto de criatividade e inovao, a prpria Internet a personificao do conceito de rede, implementado e disponibilizado para o uso de bilhes de pessoas no mundo todo.

    o Poder das redes

    A chamada Lei de Metcalfe garante: a soma de uma rede aumenta com o quadrado do nmero de membros da mesma. o aumento aritmtico do nmero de ns da rede gera um valor incrementado de forma exponen-cial. A adio de alguns membros rede pode aumentar dramaticamente o seu valor para todos os membros.

    outra lei bsica caracterstica das redes conhecida como a Lei dos retornos Crescentes. Esta mais que a nossa conhecida economia de escala. Ambas baseiam-se no conceito de ciclos de feedback positivo, mas a primeira alicerada no poderio de rede. o crescimento das economias de escala linear; no caso das redes exponencial. Assim, o valor explode com o nmero de componentes, atraindo mais e mais membros, gerando um crculo virtuoso. Isto contrrio Lei dos Rendimentos Decrescentes, caracterstica dos insumos em sistemas produtivos naturais, como o caso da adubao agrcola. Aqui, a resposta das plantas ao aumento dos nveis de fertilizantes tem um mximo, a partir do qual a produo observada comea a decrescer.

    Tambm os processos de comunicao parecem ter sido privilegia-dos pela inovao trazida pelos computadores conectados em rede. so a real revoluo trazida pelos aparatos digitais de nossos dias. Processos de comunicao, como o sabe qualquer pessoa atuante numa organizao moderna, so mais frgeis do que o processamento de dados automticos. Engelbart (1963) j se preocupava, na dcada de 60, em como melhorar e amplificar as capacidades humanas com o suporte de tecnologia. J meditava sobre os formatos e possibilidades nos quais os computadores e as redes pudessem ser utilizados em tais melhoramentos. imaginou um mundo de comunicao e interao entre seres humanos empenhados em alguma tarefa ou atividade comum. Em tal ambiente de melhoria e desen-volvimento humano, a inovao torna-se eixo primordial, e no apenas a otimizao de processos.

    Estamos nos conectando de forma acelerada nas ltimas dcadas. Dispositivos so conectados aos milhares, atravs de microchips, gerando padres de emergncia que tm sido muito estudados do ponto de vista da

  • 10 Dyson, Esther. release 2.0: a design for living in the digital age. New York: Broadway Books, 1997. 11 Vide Resnick, Mitchel. Turtles, termites and traffic jams. Cambridge: MIT Press, 1997.

    Estratgia, Conhecimento e CompetnciasRenato Kraide Soffner26 27

    criao de uma inteligncia coletiva (Lvy, 1999). No apenas a internet tradicional nos tem ligado, mas infravermelho e rdio, criando uma vasta teia de aparatos sem fio (wireless), maior at do que a Web atual.

    Computadores conectados so equivalentes a neurnios estrutu-rados numa complexa teia neural, caracterstica do crebro humano. Este conjunto de computadores conectados, como na internet, por exemplo, pode ter seu nvel de utilidade extremamente incrementado como visto pargrafos atrs. Partes simples, conectadas de forma apropriada, geram resultados complexos.

    Finalmente, alguns princpios caracterizam as redes: um propsito unificador, que compartilha foco em resultados desejados e bem deter-minados; independncia dos membros componentes da rede; conexes voluntrias; lderes mltiplos (portanto uma menor quantidade de chefias), sendo que vrios lderes podem aumentar a resilincia da rede, por no depender de decises lentas e direcionadas.

    Esther Dyson 10 tem sido uma divulgadora ativa das vantagens de se trabalhar numa rede descentralizada, do ponto de vista de obteno de oportunidades que antes eram devidas estruturas centralizadoras e controladoras. No apenas do ponto de vista poltico, mas tambm das vantagens pessoais e sociais. Alerta para o bom uso da rede, mas tambm reconhece o potencial uso para o mal. Como qualquer ferramenta, tem esta caracterstica dialtica. Mas pode dar poder a quem, em geral, no tem poder. E oportunidades valiosas para quem, em geral, no tm acesso s possibilidades de nosso tempo.

    redes de relacionamento, Parcerias, simbioses

    A metfora da rede utilizada, tambm, para representar os rela-cionamentos pessoais e profissionais que cada um de ns deveria manter registrados e mapeados. A parceria um dos modelos de trabalho con-junto mais adotados na atualidade, porque gera efeito de sinergia entre os parceiros, sem demandar grandes esforos de manuteno de conexes formais. ou seja, podemos nos associar a outros colegas, empresas e organizaes, sem que uma ligao forte em termos burocrticos e legais tenha que ser mantida.

    Modelagem, simulao Aprendendo sobre o Mundo

    You cant think seriously about thinking without thinking about thinking about something.

    seymour Papert

    Existe outro velho ditado, muito citado nos trabalhos de lngua inglesa, que diz algo como: - D a uma pessoa um martelo, e o mundo todo parecer um prego.

    Uma das possveis interpretaes desta frase poderia ser: a forma pela qual enxergamos o mundo diretamente influenciada pelas ferra-mentas e meios de que dispomos em determinado momento histrico, conforme resnick (1999). se dermos apenas lpis e papel a um cientista, como suas ferramentas de trabalho, isto o levar a ver o mundo no formato de equaes diferenciais. Concluso direta deste fato que se tivermos novas ferramentas e meios de trabalho, poderemos apreciar o mundo sob uma nova tica.

    Mitchel resnick, do MiT, mostrou que as noes arraigadas de poder central e de mindset (vises de mundo, modelos mentais) centrali-zado 11 so caractersticos de nossa educao e do desenvolvimento do nosso senso comum. Crescemos com a noo de que necessrio um controle centralizador para que as coisas aconteam. isto vale para gover-nos, para formaes de pssaros, para congestionamentos de veculos, e para formigueiros. Cabe-nos aqui discutir os efeitos polticos, sociais e epistemolgicos do pensamento centralizado, bem como a viso alternativa de um mindset descentralizado, como o proposto por resnick. A viso de complexidade e de auto-organizao talvez seja a prxima revoluo na gesto de negcios, como vrios autores j apregoam. A prpria educao prev a existncia de um ente centralizador, na figura do professor, que teoricamente ensina, enquanto os demais componentes do sistema (os alunos), dominados pelo agente detentor do controle, aprendem. Esta viso distorcida do processo de ensino e aprendizagem, e sua renovao por um modelo baseado em tecnologias de desenvolvimento de potencial humano, foram analisadas por soffner (2005).

  • Estratgia, Conhecimento e CompetnciasRenato Kraide Soffner28 29

    Aprendizagem por Modelagem A modelagem, que a representao da realidade atravs de mo-

    delos, atividade permanente na vida do ser humano. Quando modelamos alguma coisa, fazemos de conta que dominamos esta coisa. Nos damos os poderes de representar sua realidade, e de simular suas caractersticas e funes.

    Quando criana, eu adorava representar a realidade atravs do desenho, da massa de modelar, dos carrinhos em miniatura, dos soldadi-nhos, dos kits de avies e navios de plstico, dos aeromodelos controlados por cabo, e mesmo de brinquedos mais avanados como simuladores de equipamentos eletrnicos, que no deixam de ser modelos de dispositivos maiores. Lembro-me da admirao que senti ao ver, numa exposio, uma cidade construda de caixas de fsforo, e tambm das ferrovias em escala que vi orgulhosos construtores exibindo.

    os computadores tambm modelam e simulam. os exemplos citados acima, extrados do trabalho de resnick, e que so pedaggicos, cientficos, do dia a dia, demonstram que atividades de modelagem com-putacional poderiam auxiliar pessoas comuns e gestores de negcios na passagem de modelos mentais centralizados para vises descentraliza-das do mundo e dos negcios. Novos insights e apreciaes inovadoras seriam, ento, providos pelo emprego de tais ferramentas e mtodos.

    Para tal tarefa, h que se adotar alguns princpios centrais, caracte-rsticos da modelagem descentralizada: encorajar a construo de modelos (e no apenas a manipulao dos modelos j existentes); repensar o que foi aprendido (e no apenas como aprendido); estudar as possibilidades de conexo pessoal entre assuntos (e no apenas as abstraes matemticas); e, finalmente, focar na estimulao, e no apenas na simulao.

    Este um novo tipo de projeto: o designer controla as aes das partes, e no mais do todo. os padres resultantes no podem ser previstos ou projetados, j que so resultantes de um processo de emergncia de comportamentos individuais.

    Tal iniciativa, a de permitir s pessoas uma nova forma de aquisio de conhecimento, atravs da construo de artefatos, foi citada por Papert (1980) como sendo de intensa influncia em sua prpria formao. Estas idias construtivistas (a partir do trabalho de Piaget, seu mentor nos anos em que com ele trabalhou na sua) acontecem j na sua infncia, quando componentes mecnicos e engrenagens influenciaram seu interesse na construo de artefatos. Nas suas palavras:

    i believe that working with differentials did more for my mathematical development than anything i was taught in elementary school. Gears, serving as models, carried many otherwise abstract ideas into my head (PAPErT, 1980).

    o interesse de Papert pelas engrenagens modela sua viso constru-tivista do aprendizado; para ele, o entendimento do processo de aprendiza-gem deve ser gentico, j que se refere gnese do conhecimento. O que um indivduo pode aprender, e como ele aprende, dependem dos modelos de que dispe. Retornamos, assim, proposta inicial deste trabalho, que defende o contato com novos modelos de realidades pelos gestores de negcios e pelas pessoas comuns.

    Para Papert, os computadores podem gerar inmeras formas de representao, diferentemente dos artefatos materiais e analgicos. sua essncia universal, inclusive seu poder de simulao. seu modelo epistemolgico compartilha a conotao de aprendizagem como sendo a construo de estruturas de conhecimento, independentemente das cir-cunstncias deste aprendizado. E acrescenta a idia de que o aprendente est inserido num contexto de engajamento consciente na construo de uma entidade pblica, seja esta um castelo de areia na praia ou uma teoria do universo (Harel & Papert, 1991). Para nossos propsitos, um modelo de mercado seria um excelente exemplo desta discusso.

    Dentro da proposta piagetiana de pensamentos concreto e formal, Papert acredita ser o computador um meio de se concretizar o formal. Co-nhecimentos que eram trabalhados apenas atravs de processos formais podem agora ser acessados concretamente. A educao tradicional no trabalha esta questo de forma sistemtica. Ambientes ricos em computao podem alterar este quadro, pelo emprego de modelagem e simulao (veja mais abaixo, neste mesmo captulo).

    sistemas

    sistemas so conjuntos de componentes inter-relacionados que so, por sua vez, constitudos por sub-sistemas a eles subordinados. A viso sistmica do mundo e de seus componentes tem sido o grande mo-delo de representao da natureza desde o surgimento da Teoria Geral dos sistemas, a cargo de Ludwig von Bertalanffy e outros.

    No existe apenas uma viso de sistemas, mas uma amplitude de diferentes propostas. Temos, na realidade, diversos enfoques sistmicos, acompanhados de suas teorias e metodologias, que se relacionam e, s vezes, se complementam.

  • Estratgia, Conhecimento e CompetnciasRenato Kraide Soffner30 31

    Apresentaremos, nesta seo, uma viso global e integrada dos principais elementos de sistemas aceitos atualmente, inclusive propostas avanadas que ainda esto em fase de estabelecimento, mas que j repre-sentam e modelam fenmenos naturais que eram particularmente difceis de serem trabalhados e simulados.

    A importncia deste assunto diz respeito s vises de mundo que nos guiam nas nossas atitudes e aes. por isso que o trabalhamos agora.

    Sistemas e seus processos podem ser classificados da seguinte forma:

    1) sistemas Complexos1.1. Adaptativos: apresentam um nmero razovel de indivduos ou agentes; estes utilizam conjuntos de regras bsicas para agir, podendo alter-las e mesmo cri-las, quando necessrio. Exem-plos: Vida Artificial, Algoritmos Genticos. Tm por base histrica a Fsica do Estado slido e da Matria Condensada, e a Biologia Evolucionria.1.2. No-Adaptativos: representam as interaes fsicas entre cor-pos e elementos naturais. Exemplos desta categoria so os siste-mas Dinmicos No-Lineares, inclusive a Teoria do Caos (que so originados dos sistemas Dinmicos representados por equaes diferenciais, da Teoria das Catstrofes, e da Geometria Fractal). Alimentam os conceitos dos sistemas Adaptativos.

    2) sistemas simples, simplificaes didticas dos elementos da na-tureza, como aquelas ensinadas nas Cincias e na Fsica.

    3) Teoria da Computao, fruto da Ciberntica, da Inteligncia Artificial, da Teoria da informao, e da Teoria dos Jogos.

    4) Teoria da informao, que surgiu da Ciberntica.5) Dinmica de sistemas, que veio da evoluo dos conceitos da Te-

    oria Geral dos sistemas. Trata de espirais positivas e negativas (ci-clos de retro-alimentao - feedback), vises de mundo (mindsets), e das Cinco Disciplinas de senge (1990). A aplicao em negcios foi pioneiramente trabalhada por Jay Forrester, e atualmente por John sterman.

    6) redes Neurais, tentativa de simulao da estrutura e funcionamento da mente e do crebro humanos.

    7) sinergtica, tratamento terico da sinergia entre componentes associados de um sistema.

    A conjuno de todos os modelos de sistemas citados gera o nvel maior pelo qual enxergamos os fenmenos naturais no dias de hoje: os sistemas Auto-organizados e Emergentes.

    Vamos descrever alguns dos componentes deste sistema maior.

    Para os sistemas complexos adaptativos, o nmero de cone-xes entre os agentes determina as caractersticas de funcionamento do sistema: se tivermos poucas ligaes, a dinmica geral estvel; os padres so bem estabelecidos e previsveis. No entanto, se o nmero de conexes for alta, a dinmica torna-se instvel; observamos conflitos nas estruturas.

    o agrupamento (patching) dos agentes reduz o nmero de res-tries conflitantes. O texto de Resnick mostra esta questo de forma definitiva. Podem estabilizar o sistema atravs de auto-organizao. Tais agrupamentos (clusters) so autnomos em seu comportamento. Como exemplo, as pessoas nas empresas se agrupam naturalmente, mas po-dem estar atentas ao todo do sistema. Mas a hierarquia fora um baixo nmero de conexes, o que restringe a atuao dos componentes. Esta a explicao moderna das desvantagens do modelo hierrquico. Quando as pessoas se agrupam, praticam um patching que acaba surgindo da interao mediada pelos processos de comunicao. Aqui a importncia e o comprovado papel de destaque da comunicao nos processos organi-zacionais e humanos, em geral.

    Para se aprender sobre sistemas dinmicos e complexos, temos que desenvolver ferramentas que modelem sua natureza, alm de mtodos de simulao que representem tais sistemas e nos permitam trabalhar sobre suas caractersticas. simulaes so tcnicas para se obter entendimento sobre, e mesmo prever, o comportamento de sistemas (simon, 1969). Po-dem existir em diversos formatos, como modelos matemticos de algum fenmeno natural, at rplicas funcionais de mquinas (como modelos de aeronaves estudadas num tnel de vento); a utilizao de computadores digitais nas simulaes tem sido de fundamental importncia, pelo potencial de clculo disponvel e pelo tratamento de imensas quantidades de dados e informao, humanamente impossveis antes do advento das mquinas digitais.

    Tais ferramentas supem que o aprendente esteja no controle da mquina. Ele programa o computador, e desta forma embarca numa explorao sobre como ele prprio pensa, j que as rotinas, algoritmos e recurses so fruto de sua prpria forma de enxergar e atacar os proble-mas a serem modelados. De acordo com Papert, esta experincia pode

  • 12 Stewart, Ian. Ser que Deus joga dados? A nova matemtica do caos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1991.

    Estratgia, Conhecimento e CompetnciasRenato Kraide Soffner32 33

    ser fantstica: pensar sobre o pensar faz do aprendente um epistemlogo, algo raramente realizado pela maioria dos gestores de negcios.

    Mas a questo que nos interessa neste trabalho, ao supor que tais ferramentas podem ser consideradas linguagens de simulao disposio de gestores e aprendentes (nas reas de administrao e negcios), para a construo de micromundos e cenrios, saber como pode uma simulao dizer algo que ainda no sabemos, o que epistemologicamente interes-sante. A implicao usual desta questo, segundo simon (1969), de que elas no podem nos dizer qualquer coisa a respeito, j que:

    - Uma simulao no melhor do que as suposies nela empregadas;- Um computador pode fazer apenas o que foi programado para fazer.

    Simon acredita, no entanto, que apesar das duas afirmaes serem aparentemente corretas, as simulaes podem nos trazer algo de novo em termos de conhecimento, ou seja, algo que no conhecemos, como nas concluses advindas de resultados proporcionados por tais simulaes.

    outra questo a ser discutida a utilidade de simulaes no enten-dimento de sistemas complexos. sem dvida este um nobre emprego de computadores digitais e seus recursos de forma exploratria e eficaz.

    Complexidade, Caos, Negcios, Vida

    With a little push we can set it off, we can send it rocketing skywards. Paul McCartney

    Como visto, sistemas complexos caracterizam-se por mostrar comportamento global a partir de unidades dotadas de regras simples. ou seja, agentes simples e instrudos de forma simples podem gerar sistemas maiores de comportamento imprevisvel (caticos). O caos pode ser defi-nido, do ponto de vista cientfico e de acordo com Ian Stewart 12 , como o comportamento estocstico que ocorre num sistema determinstico. uma viso oposta ao universo newtoniano (do relgio preciso e previsvel), e das bases matemticas e fsicas supostamente previsveis, de Laplace.

    Estocstico quer dizer aleatrio, irregular, governado pelo acaso.

    Esta viso de mundo, ou de micromundos, exige que os modelos mentais centralizados tambm passem a descentralizados, num processo de emergncia das vrias influncias intelectuais e cognitivas. Num contexto epistemolgico, formas alternativas de conhecimento podem ser geradas. As decises gerenciais poderiam, desta forma, ser simuladas e estudadas atravs deste novo modelo mental descentralizado.

    Padres macroeconmicos surgem da interao local entre milhes de compradores e vendedores. Da mesma forma age o sistema imuno-lgico: no existe nenhum general na batalha entre os anticorpos e os microrganismos invasores.

    Uma viso gerencial que podemos ter nesta linha de pensamento a questo das estruturas hierrquicas descentralizadas dentro de uma organizao, com a possibilidade de processos de auto-organizao serem determinados pelos funcionrios. surgem destas iniciativas organizaes hierrquicas do tipo moebius strip (sem topo nem base), com times sem gerentes, onde os nveis hierrquicos inferiores passam a ter uma maior participao na gesto estratgica da empresa e mesmo nas suas rotinas operacionais.

    A teoria da complexidade prev que um grupo de indivduos distin-tos age de forma livre, mas pode coletivamente se comportar como uma

  • 13 Behe, Michael J. A caixa preta de Darwin: o desafio da bioqumica teoria da evoluo. rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1997. 14 Vide Colella, Vanessa s.; Klopfer, Eric; resnick, Mitchel. Adventures in modeling exploring complex, dynamic systems with starLogo. New York: Teachers College Press, 2001.

    15 Como diz Douglas Hofstadter, computadores fazem apenas o que as pessoas pedem que eles faam, mas ningum sabe, com antecedncia, as conseqncias do processamento, que pode muitas vezes ter resultados imprevisveis e surpreendentes (como no caso das simulaes maciamente paralelas por agentes mltiplos). Vide Hofstadter, Douglas. Gdel, Escher, Bach an eternal golden braid. New York: Vintage Books, 1989.

    Estratgia, Conhecimento e CompetnciasRenato Kraide Soffner34 35

    entidade nica. Pode-se, desta forma, predizer o comportamento do grupo, mesmo que no se possa prever o comportamento individual.

    os gerentes de algum tempo atrs sempre cuidaram de suas fbricas de acordo com um complexo planejamento top-down, de forma a acompanhar todos os eventos do processo de produo. Mas agora as coisas esto mudando. os bilogos, estudantes da mente e do crebro e economistas - crentes ou no na teoria da complexidade - esto se tornando interessados em teorias que descrevam o mundo no de cima para baixo, mas de baixo para cima. Em outras palavras, o mercado livre dominar em termos de mercado, mas tambm em ns mesmos, nossa sociedade, e a natureza.

    Behe 13 discute o relacionamento da complexidade e da auto-organizao com a realidade biolgica. Critica a falta de relao que as simulaes da vida artificial tm com a bioqumica, j que, segundo o autor, estas ficam apenas na dimenso do computador. Questiona a relao que, por exemplo, uma concha criada por um computador tem com a fisiologia celular real. Ainda, como explicar a relao das aes do DNA com os processos de emergncia? Estas crticas so importantes, para que as novas vises de temas to avanados estejam sempre prova, como tudo o que se faz em cincia.

    Deve-se descrever o mundo em toda a sua complexidade, e no somente atravs de relaes lineares. Aceitam-se descries no-lineares de eventos e processos. suportam-se perspectivas multi-dimensionais no limitadas por parmetros euclideanos.

    Existe a necessidade de se desenvolverem critrios e regras de deciso para se trabalhar com a complexidade, e de se buscarem meios pouco bvios e indiretos de se atingir objetivos.

    Agentes

    simulao baseada em agentes mltiplos 14 no busca uma mo-delagem perfeita do mundo real, ou do sistema em estudo, mas de seu comportamento global gerado por iniciativas determinsticas de seus agen-tes. Trata-se de pensar a descentralizao, e no reproduzir a realidade de forma perfeita. o objetivo o de forar o usurio da simulao a pensar como o sistema real, e no entender como pensa o sistema real.

    Busca-se explorar micromundos, e no simular a realidade. os micromundos so criados para se trabalhar conceitos e formas de pensar. Algo fundamentalmente epistemolgico. Como diria Papert, os micromun-dos so incubadores de conhecimento.

    stagg (2000) faz uma esclarecedora discusso sobre simulaes por agentes. De acordo com a autora, num modelo baseado em agentes um sistema representado como uma coleo de entidades autnomas e sob estreita interao, chamadas de agentes. o comportamento destes agentes decorrente de regras internas estabelecidas para cada um. Estas regras podem variar desde estruturas de deciso padro de programao, tipo if-then, at algoritmos de aprendizagem como redes neurais ou mesmo redes bayesianas. A simulao baseada na modelagem destes agentes executa-da, ento, num determinado nmero de iteraes. Ao final da execuo, sua dinmica interna e output externo do aos usurios uma boa idia de como o sistema do mundo real se comportaria sob tais condies.

    Estas simulaes so poderosas ferramentas estratgicas para anlises de cenrio do tipo what-if. Enquanto os usurios das simulaes alteram as regras do agentes, o impacto da mudana pode ser facilmente observada. E mais, o computador pode gerar estratgias que o usurio poderia nunca levar em considerao nas suas anlises. ou seja, modelar o mundo real de forma muito interessante e s possvel pela tecnologia e poder de processamento hoje disponveis.

    o emprego de modelagem de sistemas e posterior simulao atravs de software adequado gera um melhor entendimento e acessibili-dade pelos estudantes. A simbologia abstrata do clculo substituda pelo emprego de computadores, que hoje so de aceitao ampla por qualquer faixa de idade de interessados em seus recursos 15 .

    Ferramentas de simulao em computao, utilizadas em modela-gem de cenrios descentralizados, podem ser de extremo valor e utilidade na capacitao de gestores e administradores, dentro de uma viso mais sistmica e realista do mercado e do mundo dos negcios, e objetivando um desempenho humano desejado para os dias modernos de incerteza e complexidade.

    Estas tcnicas e utilitrios devem ser empregados de forma sistem-tica na formao de todo tipo de gestor, e tambm na educao continuada e permanente que desejvel para qualquer profissional preocupado com atualizaes e desenvolvimento de novas competncias.

  • Estratgia, Conhecimento e CompetnciasRenato Kraide Soffner36 37

    Soffner (2001b) cita Stacey (1996) ao afirmar que a Cincia da Complexidade seria uma das propostas de tratamento de tais problemas modernos; seriam propriedades fundamentais de redes de retro-alimen-tao no-linear, em particular das redes adaptativas complexas. Tais propriedades imitam, assim, a prpria vida das organizaes, com seus paradoxos e diferenas (o mundo dos negcios seria um sistema complexo onde os agentes so as empresas interagindo entre si e gerando padres adaptativos e emergentes).

    Apesar da impossibilidade de se conhecer o futuro, os esforos organizacionais de antecipao da mudana (pr-ativo) e de provocao dessa mudana (pr-ativo) podero revelar-se cruciais para a renovao e para a sobrevivncia a longo prazo. Assim, cenrios futuros, tanto tec-nolgicos quanto mercadolgicos, deveriam ser imaginados e projetados de alguma forma, impedindo-se o estabelecimento da inrcia estrutural. organizaes aprendentes tm, por hbito, gerar tais cenrios. Anlises complexas podem ser as ferramentas indicadas para estas projees pou-co determinsticas do futuro. sabemos que as organizaes, assim como tudo na vida, so um jogo que jogamos sem regra definida: a regra muda a todo momento, o que torna o jogo imprevisvel. Talvez a complexidade funcione como metfora, onde o curto prazo imprevisvel mas o longo prazo mostra padres, a partir do comportamento de agentes adaptativos. Soffner (2001a) define agente adaptativo como sendo aquele que respon-de ao seu ambiente, seja por reao (clusulas when e if-then), raciocnio (inferncias), aprendizagem (lifelong learning) ou evoluo (geraes su-cessivas via seleo natural, o gentipo versus o fentipo, a competio e a cooperao entre mltiplos agentes, alm dos memes, responsveis pela transmisso cultural).

    Como disse Toffler (1985): A melhor maneira de organizar no burocraticamente, mas ad-hocraticamente, a fim de que cada componente organizacional seja modular e descartvel, que cada unidade se integre com muitas outras unidades lateralmente, e no apenas hierarquicamente, e que as decises, como bens e servios, sejam individualizadas, e no padronizadas. isto sugere uma atitude descentralizada e bastante condi-zente com as discusses propostas por este trabalho.

    De forma conclusiva, podemos desenvolver modelos de negcios e de educao bastante avanados e inovadores atravs do emprego de padres, relacionamentos, agentes, simulaes, idias, insights, conheci-mento e inteligncia. Ou seja, se considerarmos um grupo especfico de competncias de ampla aplicao em negcios, estaremos criando reais condies de estabelecimento do modelo avanado de educao baseada no desenvolvimento de competncias, do qual trataremos adiante.

    indivduos empenhados em alavancar grandes mudanas a partir de pequenas intensidades de variveis sujeitas a comportamentos caticos, podem fazer da centelha um incndio de grandes propores. Pequenas alteraes podem criar um efeito de massa crtica, j que juntas podem constituir uma fora de grande intensidade.

    Das Vises Metafricas das organizaes

    Uma forma de viso de mundo que discutiremos para encerrar o captulo aquela correspondente s vises metafricas das organizaes. Gareth Morgan 16 descreve, em seu clssico livro, as diversas imagens que as organizaes podem apresentar. Assim, organizaes vistas como mquinas so caracterizadas como sistemas fechados, baseados em mecanismos de causa e efeito; so racionais, planejadas, estruturadas, mecanicistas, determinsticas, newtonianas, lembrando os mecanismos de um relgio. Tm a burocracia de Weber como diretriz bsica. Dividem as tarefas, mantm uma hierarquia rgida, alm de regras e regulamentos. No se adaptam bem a mudanas. Apreciam ambientes previsveis. Cultuam Henri Fayol e Frederick Taylor (administrao cientfica), medem tempos e movimentos, estabelecem metas, objetivos, alm de planejar e controlar. Preocupam-se com eficincia e produtividade. Tm muito do pioneirismo de Frederico da Prssia, que organizou os primeiros exrcitos profissionais e regulares: escales e uniformes, padronizao de regulamentos, espe-cializao de tarefas, equipamento padronizado, linguagem de comando, treinamento e exerccios de guerra, conceito de staff. obedincia e disciplina inspiradas pelo medo.

    J as organizaes vistas como organismos apresentam as carac-tersticas de adaptao, sobrevivncia e evoluo (prontido para mudan-as), como na natureza; so sistemas abertos, baseados na homeostase e na entropia, e fundados nas propriedades da ecologia (colaborao e competio). observam as necessidades humanas ditadas por Maslow os estmulos externos, utilizando recursos humanos, financeiros, materiais e de informao, so processados por um sistema administrativo, apoiado por sub-sistemas estratgico, tecnolgico, humano-cultural e estrutural, gerando respostas de produo de bens e servios.

    organizaes vistas como crebros focam na aprendizagem, na auto-organizao, na inteligncia organizacional e competitiva, na infor-mtica e suas possibilidades de descentralizao, adotam os conceitos de

    16 Morgan, Gareth. imagens da organizao: edio executiva. 2. ed. so Paulo, Atlas, 2002.

  • Estratgia, Conhecimento e CompetnciasRenato Kraide Soffner38 39

    sociedade da mente de Marvin Minsky, de inteligncia coletiva de Pierre Lvy, da ciberntica de Norbert Wiener, das cinco disciplinas de Peter senge, de aprendizagem de Argyris e schn.

    J organizaes vistas como sistemas polticos administram in-teresses, conflitos, poder, controle, monitoramento, estratgias militares e de guerra. os prs e os contras da governana corporativa, fruto de estilos pessoais e diferentes vises de mundo, demonstram que mesmo as organizaes podem ser palcos de conflitos polticos extremados, o que comprovamos no dia a dia de nossas empresas. A busca pela em-presa perfeita para se trabalhar acaba aqui, quando se percebe que esta simplesmente no pode existir, j que um sistema poltico baseado em interesses pessoais e de grupos. Aqui denominamos as organizaes de prises psquicas, fundamentadas em mindsets.

    2) TECNoLoGiA: MEios DE sUPorTE Aos FiNs

    Dar ao homem o que do homem e ao computador o que do computador. Esta seria a orientao inteligente a adotar quando homens e computadores so usados lado a lado em tarefas executadas em conjunto. uma orientao que se afasta igualmente daquela emitida pelo idlatra da engenhoca e daquela acolhida pelo homem que s v blasfmia e de-gradao da humanidade na utilizao de quaisquer ajutrios mecnicos no trabalho espiritual.

    Norbert WienerDeus, Golem & Cia

    Aqui falaremos da tecnologia como meio e suas mltiplas aplicaes em educao, negcios e estratgia. Tecnologia no um fim em si, como equivocada-mente parecem crer os tecnocratas, mas um meio para se ampliar as capacidades humanas. Wiener a chamou de ajutrio mecnico no trabalho espiritual. esta a nossa viso de tecnologia.

    Adam schaff apresentou a tese de que a nova revoluo industrial iria libertar o homem da maldio divina do Velho Testamento, pela qual ganhars o po de cada dia com o suor do teu rosto. isto, no entanto, geraria problemas sociais, especialmente classe trabalhadora. O autor acreditava que a informtica e a tecnologia desenvolveriam nas pessoas a inteligncia, aps a extino do trabalho manual, num processo de educao permanente (o homo studiosus). A posse da informao poderia ser, pela viso de schaff, uma nova diviso social.

    A sociedade informtica aquela em que todos os nveis da vida pblica esto cobertas por processos informatizados e por algum tipo de inteligncia artificial. A posse de informao pode levar ao controle, ma-nipulao e chantagem. Uma viso orwelliana adaptada, de 1984 para o sculo XXi (schaff, 1995).

    schaff previu ainda mudanas na formao cultural da sociedade. Aconteceria a materializao do velho ideal dos grandes humanistas, a saber, o do homem universal, e universal em dois sentidos: (a) de forma-o global, que lhe permitiria fugir do estreito caminho da especializao unilateral, que hoje certamente a norma; e (b) de libertao do enclausu-ramento numa cultura nacional, para converter-se em cidado do mundo (cosmopolita), no melhor sentido do termo. o homo universalis estaria munido de uma instruo completa, sempre em condies de mudar de carreira e profisso, e de posio no interior da organizao social do tra-

  • 17 Litwin, Edith (org.). Tecnologia educacional poltica, histrias e propostas. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1997. 18 sancho, Juana M. (org.). Para uma tecnologia educacional. Porto Alegre: ArtMed, 1998. 19 O mote do MIT Mens et Manus (mente e mos), numa clara aluso fuso da techn com a epistme.

    Estratgia, Conhecimento e CompetnciasRenato Kraide Soffner40 41

    balho, graas educao permanente e s tecnologias de informao e comunicao sempre mais eficientes e eficazes.

    A tecnologia produto do homem, portanto parte de sua cultura. Esta tecnologia est destinada a revolucionar o processo de formao da cultura. schaff esperava que o homem trabalhasse menos, com prazer, e no como obrigao (prpria da tica protestante, de Weber), e tivesse mais tempo para a diverso e lazer. o trabalho fatigante (fsico) ou estressante (intelectual) deveria desaparecer. seria assumido pela tecnologia. As ocupaes criativas (inclusive intelectuais, no s artsticas) seriam privilgio do ser humano.

    Definies de Tecnologia - A techn e o logos

    De acordo com Litwin 17 , tcnica e tecnologia tm etimologia idntica - do verbo grego tictein (criar, produzir, conceber, dar luz). A tcnica, para os gregos, tinha significado no apenas de meio ou ferramenta, mas inclua a idia e o sujeito que usava o instrumento. Viso certamente diferente da atual.

    sancho 18 apresenta a definio de techn grega como sendo arte ou destreza, enquanto que o logos diz respeito palavra; tecnologia , portanto, o sentido e a finalidade das artes. Para os gregos, a tcnica tinha relao direta com a arte, e um conceito bem prtico e aplicado, de saber fazer, realizao concreta.

    J a epistme tinha conotao de conhecimento terico, enquanto a techn conhecimento prtico com fins concretos. 19

    Modernamente, a tecnologia pode ser definida como sendo a cincia que cria ou transforma processos e matria.

    Em Pirsig (1981) encontramos:

    ... um entendimento real do que a tecnologia no uma explorao da natureza, mas uma fuso da natureza e o esprito humano em um novo tipo de criao que transcende ambos.

    Finalmente, uma outra definio clssica diz que a tecnologia tudo o que amplia os sentidos humanos, inclusive no seu papel dentro dos processos de aprendizagem, j que amplia nossos sentidos e nossa viso de mundo.

    Modernamente, toda tecnologia tem um ciclo de vida bem definido: inicia-se com a novidade, com o otimismo exagerado; aqui ocorrem aportes de capital e presso comercial e de mercado. Vem, ento, a fase de decai-mento brusco, como o ocorrido com as empresas de internet, recentemente; a o cenrio est pronto para a real aplicao da nova tecnologia, dentro de limites estabelecidos pelos mercados, pelas expectativas, e pelo bom senso. Vide o caso de telefones celulares, computadores, e outros gadgets.

    A chamada tecnologia de informao, conceito maior que abrange a informtica, a eletrnica e as telecomunicaes, est vivendo esta ltima fase: estamos definindo o que realmente nos interessa, e descartando todo o lixo tecnolgico que nos foi lanado nos ltimos anos. Estamos questionan-do se precisamos realmente das ltimas verses do software (que apenas acrescentam futilidades, mas no mudam paradigmas de uso idem para hardware), ou se um novo gadget realmente de valor prtico, ou apenas um modismo que acabar na gaveta em poucas semanas.

    Nicholas Carr 20 provocou reao estrondosa h pouco tempo, quando afirmou que a tecnologia de informao j pode ser considerada commodity, j que no prov mais a vantagem competitiva que costumava gerar. Difcil de aceitar por aqueles que consideravam um mero meio como fim.

    o futuro est no uso inovador da tecnologia que j existe, ou na criao paradigmtica de novas tecnologias, e no na simples melhoria do atual que o que fazem as grandes empresas de tecnologia de in-formao.

    No precisamos de mais capacidade de processamento ou mesmo de velocidade, precisamos agregar valor s pessoas e aos negcios.

    Tecnologia e Educao

    As aplicaes da tecnologia educao tem sido um campo frtil para discusses acirradas e conflitos de posicionamentos, muitos dos quais carentes de real embasamento terico.

    Defendemos a utilizao da tecnologia para o suporte ao desen-volvimento de potencial humano (vide Soffner, 2005). esta a justificativa desta seo dentro do captulo reservado para a tecnologia.

    ooo-

    20 Carr, Nicholas. iT doesnt matter. Harvard Business review, 2003.

  • Estratgia, Conhecimento e CompetnciasRenato Kraide Soffner42 43

    Existe uma nova relao entre o homem e a informao disponvel e a tecnologia tem importante papel a desempenhar neste novo relacio-namento.

    A grande quantidade de informao hoje disponvel pode vir a ser utilizada pela educao, num modelo que privilegia a sua transformao em conhecimento, atravs das chamadas tecnologias da inteligncia que so verdadeiras tecnologias da aprendizagem. Essas tecnologias foram criadas por pioneiros preocupados tanto com o emprego da tecnologia no desenvolvimento humano, vale dizer, no aumento, ampliao e expanso das capacidades do ser humano (sua inteligncia e suas competncias), como com a formao de redes globais de informao e comunicao que pudessem permitir o estabe-lecimento de comunidades de aprendizagem colaborativas.

    Uma nova proposta de educao, alavancada pela tecnologia, pode ser decisiva na promoo do desenvolvimento do ser humano, desenvolvi-mento esse que inclui a expanso de sua inteligncia tanto individual como coletiva e, assim, alicera a sua aprendizagem, entendida como processo de aquisio de competncias tanto as de carter puramente mental como aquelas que envolvem mais a ao e a prtica.

    Em primeiro lugar, se pudssemos quantificar a informao e falar em informaes per capita, seria inteiramente correto afirmar que nunca houve tanta informao disponvel na histria da humanidade. E isso se deve ao fato de que as tecnologias de informao e comunicao hoje existentes revolucionaram a forma de produzir e disponibilizar informaes. A informao necessria hoje est sempre na ponta de nossos dedos.

    Em segundo lugar, hoje temos condies de nos valer e apropriar dessas informaes com facilidade e eficincia. As tecnologias da informa-o e comunicao hoje disponveis nos permitem capturar, armazenar, organizar, pesquisar, recuperar e transmitir (disseminar, compartilhar) as informaes de nosso interesse com extrema eficincia.

    Em terceiro lugar, hoje temos ferramentas tecnolgicas que nos permitem analisar, avaliar e transformar essas informaes em conhecimen-tos, colocando-as a bom uso em nossos processos tanto de entendimento e compreenso da realidade como de tomada de deciso e ao.

    E, em quarto lugar, hoje tambm possumos ferramentas tecnol-gicas de interao e comunicao interpessoal que nos permitem estabe-lecer e manter contato com outras pessoas, de qualquer canto do mundo, de forma quase instantnea, de modo sncrono ou assncrono, formando assim redes globais de informao e comunicao e, no processo, comu-nidades virtuais de interesses afins (entre os quais a aprendizagem), que nos possibilitam discutir criticamente idias, teorias, ideologias, pontos de vista que nos so caros ou desafiam ou eventos e tendncias que afetam nossas vidas.

    A maior parte desses desenvolvimentos tecnolgicos e suas im-plicaes epistemolgicas para os nossos processos de aprendizagem j haviam sido previstos num artigo quase proftico de Vannevar Bush em 1945 ou seja, h exatos sessenta anos. Mas de l para c muita gente teve participao decisiva, atravs de idias geniais ou do desenvolvimento de ferramentas tecnolgicas, na transformao em realidade das profecias de Vannevar Bush. o foco fundamental do presente trabalho est na anli-se do impacto dessas idias e ferramentas sobre a educao entendida como o processo de desenvolvimento do ser humano que se d atravs da aprendizagem, que, por sua vez, entendida como o processo atravs do qual nos tornamos capazes de fazer (no plano mental, do entendimento e da compreenso, ou material, da tomada de deciso e da ao) aquilo que antes no conseguamos fazer.

    Aprender, no contexto desse novo relacionamento que o homem hoje tem com as informaes disponveis no mundo, relacionamento esse estruturado e mediado pela tecnologia, algo bem diferente do que era ao final da Segunda Guerra Mundial. Em 1945 a informao disponvel era escassa e o acesso a ela difcil. Em parte por causa disso, a educao formal das pessoas a educao que tinha lugar nas escolas se limitava a ser um processo linear de transmisso de informaes (organizadas em matrizes de disciplinas e sries), de professores (que possuam essas infor-maes) para alunos (que careciam delas), atravs do ensino (apresentao organizada e simplificada das informaes). Aprender era visto como algo passivo, equivalente a absorver e assimilar as informaes apresentadas em geral sem maior entendimento e compreenso e mesmo que no tivssemos a menor idia de sua utilidade e aplicao no processo de tomada de deciso e ao no mundo em que nos cabe viver.

    A evoluo no relacionamento do ser humano com a informao que teve lugar nos ltimos sessenta anos, estruturada e mediada pela revoluo que aconteceu nas tecnologias da informao e comunicao, tornou essa concepo da educao e do papel da escola na educao totalmente anacrnica e ultrapassada. Torna-se necessrio, hoje, recon-ceituar a educao e rever o papel da escola nesse processo, em especial diante das inmeras alternativas de educao no-formal que a tecnologia torna possveis. A educao que hoje se faz necessria deve ser muito mais voltada para o desenvolvimento de competncias no s as de carter puramente mental, mas tambm aquelas que, sem perder seu componente mental, possuem carter eminentemente mais prtico, sendo indispensveis para a convivncia social e para os que-fazeres produtivos e profissionais (trabalho), para o uso do tempo livre (lazer), para a aprendizagem constante e permanente (educao). inegvel que todas essas competncias tm um ncleo eminentemente cognitivo.

  • 21 David Hume afirma que h um princpio de conexo entre os diversos pensamentos ou idias da mente, e que, ao surgirem num processo de lembrana ou imaginao, ligam-se uns aos outros com certo mtodo e regularidade. E que existem trs princpios de conexo entre idias, a saber: semelhana, contigidade no tempo ou no espao, e causa ou efeito. (HUME, 1999).

    Estratgia, Conhecimento e CompetnciasRenato Kraide Soffner44 45

    segundo essa maneira de ver a educao, a escola, organizao criada para formalmente promover a educao, deve estar voltada para ajudar os seus alunos a desenvolver as competncias bsicas requeridas para viver em sociedade evidentemente, no tempo e no espao em que lhes dado viver. Esse modelo de escola deve substituir o modelo de escola voltado quase que exclusivamente para a transmisso de informaes modelo esse que as tecnologias hoje disponveis tornaram ultrapassado.

    o modelo de escola voltado para o desenvolvimento de competn-cias oferece amplas possibilidades para que o aprendente se torne auto-suficiente na transformao de dados e informaes em conhecimentos que vo ser mobilizados pelas vrias competncias que ele precisa desenvolver e exercitar no mister de viver a sua vida. Para conseguir isso ele recebe, hoje, apoio das chamadas Tecnologias da inteligncia.

    A nossa sociedade atual se caracteriza por tornar possveis e dis-ponveis enormes quantidades de informaes mas no se tornou ainda capaz de encontrar formas eficazes e eficientes de ajudar as pessoas a transformar informaes em conhecimentos e de traduzir conhecimentos em competncias que lhes permitam realizar os seus projetos de vida e, assim, se realizarem a si prprias. isso s se d atravs da educao. Mas educao, nesse contexto, certamente mais do que simples trans-misso de informaes atravs do ensino: , na verdade, um processo de real preparao para a vida, que acontece na medida em que as pessoas ativamente se envolvem no desenvolvimento das competncias requeridas para viver vidas bem sucedidas.

    o apoio proporcionado a esse processo pelas novas tecnologias de informao e comunicao pode ser decisivo, em especial no complexo desenvolvimento de inteligncias humanas versteis e flexveis, capazes de atuar eficaz e eficientemente em ambientes tecnolgicos complexos, que requerem intensa interao e cooperao, e, por conseguinte, ferramentas que facilitem a colaborao, seja na aprendizagem, seja no trabalho, seja at mesmo no lazer. os muitos obstculos ao desenvolvimento desse tipo de inteligncia podem ser reduzidos em quantidade ou diminudos em dificuldade com o auxlio da tecnologia, assim facilitando o processo de aprendizagem.

    A cultura tecnolgica em que vivemos pode fazer uma diferena positiva e atuar diretamente no desenvolvimento cognitivo do aprendente. Cabe, a nosso ver, uma crtica ao desenvolvimento tecnolgico, do passado ao presente, ao se verificar at que ponto estamos caminhando no rumo desejado, j pensando no futuro. Existe sempre o elo com a educao. A complexidade tecnolgica e sua transparncia para o ser humano so fatores que determinam bloqueios e limites cognitivos. Extenses naturais para o processo de cognio humana so esperadas. ser que um dia as

    alcanaremos e de forma generalizada? Em caso positivo, quando? E como? ser que a mente realmente opera de forma linear e lgica, como tradicionalmente se imaginava, ou ser que opera de forma mais associativa, dando saltos, em moldes mais semelhantes aos concebidos por Hume 21 ? ser que o hipertexto mais natural para a mente humana do que o texto de uma demonstrao lgico-matemtica? E o que dizer dos chamados agentes mentais, que poderiam explicar a emergncia da inteligncia, no modelo que Minsky defende em sua sociedade da mente (Minsky,1988)?

    A relao entre a velocidade da inovao tecnolgica e o desen-volvimento da cognio humana, em termos de idias, associaes, cria-tividade, insight, memria e raciocnio, deve ser revista, j que existe uma nova relao entre o homem e a soma das informaes que o rodeiam e s vezes parecem afog-lo hoje em dia. At aqui o ser humano tem se relacionado com quantidades relativamente pequenas de informaes, mas estamos no limiar do momento em que ser possvel, via redes globais de informao e comunicao, ter acesso a basicamente tudo o que se produz na rea intelectual como previu Vannevar Bush no seu famoso artigo, onde apresenta o sonho pioneiro que s virou realidade 50 anos depois com a World Wide Web (Bush, 1991).

    Como vimos alguns pargrafos atrs, j em 1945 estava o cientista americano Bush preocupado com a grande quantidade de informaes que ento se produziam. A segunda guerra estava terminando e intensa pesquisa tecnolgica estava produzindo no s a bomba atmica, que iria selar o fim da guerra, mas, tambm, o primeiro computador eletrnico, o ENIAC (Electronic Numerical integrator and Calculator), que introduziria uma nova era. Bush era o supervisor, no mais alto nvel do governo americano, de ambos os projetos. Era o incio da sociedade da informao, o momento histrico do nascimento dos computadores digitais. Bush pensou em como lidar e tratar a informao de seu tempo e do tempo que estava por vir. Para ele, como para outros autores que sero discutidos neste trabalho, a tecnologia seria empregada no pensar inteligente, que conduz ao agir inteligente, que fruto, por sua vez, da deciso inteligente.

    Em 1945 ele lana a semente de um dispositivo que concebia como extremamente importante, especialmente para a educao: atravs do seu Memex ele imaginava ser possvel registrar, acompanhar e at mesmo visu-alizar todo o processo de construo do pensamento na mente do indivduo

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    que eventualmente levar ao conhecimento. Mas h que se discutir antes o que informao e o que conhecimento, algo que ele no diferenciou em seu trabalho. E como a quantidade imensa de informaes de nossos dias deve ser tratada para se transformar em conhecimento e, oportunamente, se traduzir em competncias. Voltaremos s definies formais de conheci-mento e informao mais adiante neste texto.

    Bush via com razovel clareza que o processo de construo do conhecimento envolve no apenas palavras (texto), mas tambm imagens e sons. seu dispositivo era, de forma primitiva, multimiditico.

    o que Bush no via com tanta clareza como hoje se v que o processo de construo do conhecimento eminentemente coletivo, acon-tecendo na medida em que as pessoas produzem idias interessantes e cheias de implicaes tericas e prticas, e interagem umas com as outras, criticando e depurando as idias produzidas, assim procurando chegar mais perto da verdade. Mas essa limitao de sua viso foi prontamente corri-gida por aqueles que o sucederam, como se h de mostrar nos captulos subseqentes, em especial no quarto.

    No campo da educao, as possibilidades de emprego da tecno-logia e as conseqentes preocupaes pedaggicas e epistemolgicas associadas derivam, basicamente, dos problemas advindos de aulas que permanecem essencialmente as mesmas mesmo aps a introduo da tecnologia. Assim, computadores que deveriam ser instrumentos de mu-dana e inovao na estrutura tradicional de educao tornam-se um fim em si mesmos, gerando interesse puramente tcnico; o ensino da tecno-logia parece, em determinado momento, valer mais do que o ensino com tecnologia. 22

    No apenas questo de se levar a tecnologia at a escola para que se obtenha melhorias na qualidade da educao, como parecem pensar alguns governos. o emprego inovador de tecnologia no dia-a-dia, por alunos e professores, pode ser a grande diferena para que se mude radicalmente a centralizao do processo educativo no professor. o aluno torna-se responsvel pelo processo de seu desenvolvimento e, portanto, de sua educao. 23

    A tecnologia moderna fruto da realizao do sonho de indivduos que incluram em seu projeto de vida a tarefa de construir ferramentas que tornassem mais fcil a concretizao de atos cotidianos. so engenheiros, matemticos, cientistas e ativistas que pensaram a tecnologia como meio

    de potencializao individual e coletiva. imaginaram o benefcio social, e no o impacto comercial, visvel em nossos dias. No caso particular da tecnologia aliada educao, viam uma via importante de desenvolvimento de potenciais que poderia ajudar na transformao de crianas e jovens em pessoas autnomas, cidados responsveis, profissionais competentes e aprendentes permanentes.

    A viso de tais pioneiros foi de uma tecnologia que libertaria os ho-mens da era industrial, aquela que os transformou em ferramentas. Entende-ram que dando aos homens ferramentas para criar, comunicar e colaborar, poderiam transformar sua vida de trabalho mais prxima da sua vida pessoal: recompensadora, participativa, criativa e menos laboriosa.

    Postman (1994) j advertia para o fato de que a tecnologia edu-cacional no uma disciplina tcnica. um ramo das humanidades. o conhecimento tcnico pode ser til, mas ningum precisa conhecer a fsi-ca da TV para estudar os efeitos sociais e polticos da mesma. Postman defende uma atitude crtica em relao tecnologia. Toda tecnologia tem uma filosofia, que expressa como esta tecnologia faz com que as pessoas utilizem suas mentes, o que fazem com seus corpos, como codificam o mundo, que sentidos ela amplifica, e quais de nossas tendncias emocionais e intelectuais ela desconsidera.

    Analisando estas questes, Bunge (1980) defende que filosofia e tecnologia so dois vizinhos que se desconhecem. Assim, em que poderia interessar a filosofia aos tecnlogos? Por outro lado, em que pode inte-ressar a tecnologia aos filsofos? A filosofia da tecnologia pergunta: quais so os traos peculiares do objeto tcnico, diferentemente do natural? Em que se diferencia o conhecimento tecnolgico com relao ao cientfico? Existem problemas filosficos (ticos, estticos, polticos) interessantes na tecnologia?

    A fim de evitar confuses, Bunge caracteriza os fins e os meios da tecnologia; vamos a mais uma definio da mesma:

    Um corpo de conhecimentos uma tecnologia se, e somente se,

    1. compatvel com a cincia contempornea e controlvel pelo mtodo cientfico, e

    2. empregado para controlar, transformar ou criar coisas ou processos, naturais ou sociais.

    Dentro desta afirmao existem tecnologias que podem ter uma interseco vazia com alguma cincia. Por exemplo, a informtica, a pes-quisa operacional e tecnologia educacional apenas partilham com a cincia o seu mtodo.

    22 Esta discusso do papel da tecnologia na mudana do papel da escola a educao pode ser encontrada nas obras de seymour Papert: Mindstorms children, computers and powerful ideas (1980); The childrens machine rethinking school in the age of the computer (1993); The connected family bridging the digital generation gap (1996). 23 Apresentao do prof. Eduardo o. C. Chaves no Congresso do instituto Ayrton senna. Disponvel em http://congresso.us

  • 24 Turing, Alan M. On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem. Proceedings of the London Mathematical Society, 42: 230-265, London, 1936. Este trabalho apresenta os primeiros enunciados de uma nova cincia da mente. Seu objetivo era resolver um problema de lgica proposto por Hilbert, o da deciso (Entscheidung). O trabalho de Tu-ring complementa outro clssico, que o teorema de incompletude de Kurt Gdel (de 1931): para todo sistema formal no sentido da lgica (o que implica ser dada uma linguagem formal, frmulas dessa linguagem tidas como axiomas e regras de inferncia) suficientemente rico para conter a aritmtica, temos a seguinte propriedade: ou o sistema inconsistente (leva a teoremas contraditrios), ou existe pelo menos uma proposio verdadeira que no demonstrvel neste sistema. A sentena que lhe corresponde, portanto, no um teorema, como tampouco, evidentemente, a sua negao, qual corresponde uma proposio falsa. Isto leva a um processo recursivo, tal qual o Paradoxo do Mentiroso, provando que este sistema indecidvel, no sentido de ser impossvel se determinar o valor de verdade da sentena. 25 Post, Emil L. Finite combinatory processes formulation 1. The Journal of Symbolic Logic, 1:103-105, Association of Symbolic Logic, 1936.

    26 setzer, Valdemar Waingort. Meios eletrnicos e educao uma viso alternativa. so Paulo: Escrituras Editora, 2001. 27 Lanz, rudolf. A pedagogia Waldorf caminho para um ensino mais humano. so Paulo: Antroposfica, 1998. 28 Machado, Jos Nilson. Matemtica e educao alegorias, tecnologias e temas afins. 4. ed. so Paulo: Cortez, 2002.

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    Nem tudo puro na tecnologia e suas redondezas, adverte Bunge: existem componentes estticos, ideolgicos e filosficos, e, s vezes, traos de pseudo-cincia e pseudo-tecnologia. (astrologia, alquimia, mau uso dos computadores, entre outros).

    Devemos, diz Bunge, reforar todas as disciplinas que tratam da tecnologia, em primeirssimo lugar a filosofia da tecnologia, que no deve ser confundida com a filosofia da cincia. A histria, a sociologia e a psicologia da tecnologia nos informam muito sobre as tecnologias e os tecnlogos, mas somente a filosofia da tecnologia descreve os aspectos gnosiolgico, ontolgico e tico da mesma.

    Retornando ao tema, a tecnologia estar plenamente justificada na sua aplicao educao apenas se melhorar a forma de pensar dos aprendentes. A tecnologia, em si, nada acrescenta: possvel construir computadores de papel, utilizando os conceitos de Turing 24 e Post 25 , o que pode parecer ridculo e simplista; no o , entretanto: o que interessa educao a mudana que a tecnologia pode trazer aos modelos mentais dominantes na escola, e no a tecnocracia, que marca registrada da tec-nologia em nossos dias. Computadores de ltima gerao no fazem mais para a educao que mquinas e tecnologia inferiores em desempenho, mas bem aplicadas e utilizadas.

    Parece-nos, como a Machado (2000), que o que realmente interessa do ponto de vista educacional e pedaggico o emprego da tecnologia nos problemas que no podem ser algoritimizados. Estes sim trabalha-riam de forma marcante a cognio dos aprendentes, em seu almejado desenvolvimento, dentro das funes primordiais da escola e suas rotinas pedaggicas.

    Mas importa, tambm, a abstrao, ou transcendncia do emprico. o conceito de algoritmo tem grande importncia na cincia; deve, portanto,

    ter o mesmo valor na educao. Podemos utilizar mquinas abstratas para trabalhar a capacidade de pensar algoritmicamente. o pensamento formal pode ser limitador, mas tem seu valor. o concreto no apenas o palpvel, mas o que significante. Tudo aquilo que pode ser manipulado pelo pensa-mento, no s pelas mos, concreto, como o so as mquinas abstratas.

    setzer 26 criticar esta viso de Tenrio, e mais adiante tambm a de Papert. Para ele, tudo o que acontece nos computadores no tem relao com a realidade. ou seja, computadores so mquinas abstratas, que no podem trabalhar o concreto. sua linguagem formal e seus proce-dimentos algortmicos no permitem uma relao direta com a linguagem natural do ser humano.

    Um defensor da Pedagogia Waldorf, setzer critica duramente o trabalho de seymour Papert, do MiT, pioneiro da aplicao de computa-dores na educao. A principal criao de Papert (a metodologia Logo de ensino e aprendizagem) tem, no entanto, um ponto de concordncia no texto de rudolf Lanz 27 , divulgador maior da Pedagogia Waldorf no Brasil. Lanz nos diz que: o mesmo pode acontecer na geometria. A o professor deve partir da vivncia das formas e fazer da geometria algo dinmico. Em vez de teoremas abstratos e demonstraes, o caminho a percorrer pode ser artstico e variado.

    E segue:

    ... a geometria deveria conservar seu carter de cincia das formas, no passando logo para o mundo mais abstrato dos nmeros e frmulas. (LANZ, 1998).

    Jos Nilson Machado 28 defende o emprego de tecnologia, nas atividades educacionais, dentro da seguinte proposta:

    possvel e desejvel enfeixar noes profundamente significativas do ponto de vista da produo do conhecimento, abrangendo lgica, linguagens artificiais, algoritmos, programas, teoria da informao, fundamentos da ciberntica, e compor uma disciplina elementar com um estatuto epistemolgico to consis-tente quanto o da lngua natural ou da Matemtica.

  • 29 Excelentes textos sobre o uso de Logo no ensino de Matemtica so: Hoyles, Celia; Noss, richar