“Estreias” enquanto experiência etnográfica. · filmes como pertencentes aos cults/arte por...

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O público de cinema em foco: a realização do documentário “Estreias” enquanto experiência etnográfica. Bianca Salles Pires Mestra em Sociologia PPGS/UFF Palavras-chaves: Experiência etnográfica; filme etnográfico; público de cinema; estreias. Introdução As antigas grandes salas de cinema da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro estão presentes nas lembranças de infância e adolescência recheadas pelos filmes de aventuras e animações. Ainda que a década de 80 tenha sido marcada pelo declínio das antigas salas de exibição, anteriormente com capacidade de até 2500 lugares e largamente frequentadas (GONZAGA: 1996), que foram sendo pouco a pouco substituídas pelo padrão de complexos e multiplex 1 a partir da década de 90, a percepção do cinema enquanto uma prática social está fortemente presente nos relatos dos entrevistados. Em 2006, cursando a graduação em Ciências Sociais, passei a frequentar os cinemas localizados em Botafogo, também na Zona Sul, e me deparei com a existência de 18 salas de exibição na região próxima à Praia de Botafogo (ver Anexo I, Mapa I) e com variedade de filmes que eram oferecidos. A região é apelidada por alguns como sendo a “Nova Cinelândia Carioca” fazendo referência às antigas salas de rua que compunham a região central da cidade no início do século XX 2 . No caso de Botafogo, a diversidade se dava a partir da existência de quatro complexos de cinemas administrados por três grupos de exibidores que possibilitam uma programação plural e com características diferenciadas. Neste sentido, notava que a afluência ao cinema se dava em função dos filmes que desejava assistir e estes estavam diretamente associados ao tipo de frequentação que pretendia realizar sendo sozinha ou acompanhada. Estes diferentes arranjos nas companhias possibilitavam distintas maneiras 1 Segundo R. Braga (2010, p.83) existem três categorias de salas de exibição: a composta por uma sala; complexos que tem entre duas e cinco salas; e multiplex compostos por mais de seis salas. 2 As salas da Cinelândia tinham uma programação diversificada que atraia milhares de indivíduos ávidos pela novidade trazida pelos cinemas, que ajudavam a compor o clima de modernização da cidade (idem: 1996, p.114).

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O público de cinema em foco: a realização do documentário

“Estreias” enquanto experiência etnográfica.

Bianca Salles Pires

Mestra em Sociologia – PPGS/UFF

Palavras-chaves: Experiência etnográfica; filme etnográfico; público de cinema; estreias.

Introdução

As antigas grandes salas de cinema da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro estão

presentes nas lembranças de infância e adolescência recheadas pelos filmes de aventuras

e animações. Ainda que a década de 80 tenha sido marcada pelo declínio das antigas salas

de exibição, anteriormente com capacidade de até 2500 lugares e largamente frequentadas

(GONZAGA: 1996), que foram sendo pouco a pouco substituídas pelo padrão de

complexos e multiplex1 a partir da década de 90, a percepção do cinema enquanto uma

prática social está fortemente presente nos relatos dos entrevistados. Em 2006, cursando

a graduação em Ciências Sociais, passei a frequentar os cinemas localizados em

Botafogo, também na Zona Sul, e me deparei com a existência de 18 salas de exibição na

região próxima à Praia de Botafogo (ver Anexo I, Mapa I) e com variedade de filmes que

eram oferecidos.

A região é apelidada por alguns como sendo a “Nova Cinelândia Carioca” fazendo

referência às antigas salas de rua que compunham a região central da cidade no início do

século XX2. No caso de Botafogo, a diversidade se dava a partir da existência de quatro

complexos de cinemas administrados por três grupos de exibidores que possibilitam uma

programação plural e com características diferenciadas. Neste sentido, notava que a

afluência ao cinema se dava em função dos filmes que desejava assistir e estes estavam

diretamente associados ao tipo de frequentação que pretendia realizar sendo sozinha ou

acompanhada. Estes diferentes arranjos nas companhias possibilitavam distintas maneiras

1 Segundo R. Braga (2010, p.83) existem três categorias de salas de exibição: a composta por uma sala;

complexos que tem entre duas e cinco salas; e multiplex compostos por mais de seis salas. 2 As salas da Cinelândia tinham uma programação diversificada que atraia milhares de indivíduos ávidos

pela novidade trazida pelos cinemas, que ajudavam a compor o clima de modernização da cidade (idem:

1996, p.114).

de assistir aos filmes, que em alguma medida estavam associadas também à própria sala

de exibição escolhida.

Encontrava-me então intrigada pelas diferentes formas de agir nos espaços dos

cinemas e nas maneiras como os indivíduos se referirem aos filmes assistidos, quando

comecei em 2007 uma pesquisa acerca do público de dois dos cinemas da região. As salas

de exibição escolhidas foram o Estação Rio, que no período se chamava Espaço de

Cinema, e o Cinemark Botafogo. O interesse da pesquisa era perceber diferenças e

semelhanças entre os tipos de frequentação possíveis nos espaços, apreendidos como

cinemas que atraiam públicos distintos e produziam sociabilidades específicas. Estas

diferenças estavam associadas aos “tipos de filmes exibidos”, uma vez que os cinemas se

enquadrariam como pertencentes a “circuitos de exibição”3 diferentes. O Estação Rio

pertenceria ao circuito chamado de “cult/arte” e/ou “alternativo”, enquanto que o

Cinemark passaria os filmes do denominado “circuito comercial”. Esta classificação é

compartilhada e reafirmada tanto pela mídia nacional e internacional, que separaram os

filmes como pertencentes aos cults/arte por meio de matérias e críticas, quanto pelas

propagandas que tais espaços fazem de seus serviços. Contudo tais categorizações não

foram pensadas enquanto automáticas e por isso buscou-se por meio da observação

perceber em que medida cada espaço produzia práticas sociais particulares e o quanto

estas estavam referidas à classificação das películas entre “tipos de filmes”.

A pesquisa se deu por meio de uma etnografia nos ambientes dos cinemas que foi

realizada entre os meses de janeiro a agosto de 2007, contando com aproximadamente 67

entrevistas e com o acompanhamento da exibição de 32 filmes em cerca de 80 sessões. O

material analisado compõe a monografia de Bacharelado defendida na Universidade

Federal Fluminense em 2008 intitulada “Pipoca, diversão e arte: pesquisando dois

públicos de cinema”. No entanto, o proceder da investigação para elaboração da

monografia apontou a existência de um terceiro cinema no bairro que se caracterizaria

como “híbrido” quando pensado a partir dos filmes exibidos. Era o Unibanco Arteplex,

atualmente Espaço Itaú de Cinema, e segundo os entrevistados este contemplaria

“qualidades” dos outros dois espaços estudados. Ele era quase sempre citado por

frequentadores quando questionados sobre uma segunda opção de cinema na região. Tal

3 O termo circuito foi considerado uma categoria nativa a ser analisada. Não ignoramos as caracterizações

provenientes dos livros e registros da história da distribuição de películas no Brasil (GONZAGA: 1996;

BRAGA: 2010), mas procuramos perceber em que medida estes circuitos são acionados nos diferentes

discursos e como possibilitam constituir experiências específicas dentro dos espaços dos cinemas.

associação nos levou a ampliar as discussões que vinham sendo realizadas sobre os

espaços de cinema e seus públicos, permitindo construir um novo objeto de investigação

que incluía o terceiro cinema. O foco da investigação foi apreender as sociabilidades e

usos sociais do cinema, buscando perceber de que forma as referências aos “circuitos de

exibição” eram utilizadas e o que diziam acerca das experiências dos frequentadores junto

aos filmes e aos espaços.

Contudo, o primeiro contato com o “novo objeto” de investigação se deu a partir

da realização de um curta metragem sobre as ocasiões de estreias de filmes – Estreias,

2013 - que teve como argumento acompanhar três lançamentos de películas em três salas

de cinema em outras regiões da cidade. Optamos por acompanhar os momentos que

antecedem a entrada nas salas de exibição, procurando compor em imagens e sons as

sociabilidades e diferentes formas de agir diante da aproximação temporal do início da

exibição da película. As estreias das películas foram observadas como produzindo

ocasiões sociais (GOFFMAN: 2010) que revelam nuances importantes acerca dos

engajamentos e interações face a face entre os indivíduos participantes das interações.

Os termos são empregados pelo autor para se referir a “qualquer conjunto de dois ou mais

indivíduos cujos membros incluem todos e apenas aqueles que estão na presença imediata

uns dos outros num dado momento” e “ao ambiente espacial completo em que ao adentrar

uma pessoa se torna um membro do ajuntamento que está presente” (idem, 2010: p.28).

Neste sentido os espaços dos cinemas foram analisados enquanto ambientes que

possibilitavam interações entre desconhecidos e conhecidos que ao entrarem em contato

estabeleciam trocas comunicativas verbais e não verbais nos termos descritos pelo autor.

Tal abordagem nos permite perceber as várias ocasiões sociais que ocorrem nos espaços

dos cinemas, suas regras de comportamento, interações e os significados sociais das

sessões de filmes para os atores sociais envolvidos.

As três estreias escolhidas foram selecionadas a partir de ocasiões que haviam sido

observadas em 2007 e apresentam três possibilidades de lançamentos de filmes em

diferentes contextos de cinemas.

A primeira filmagem deveria ser considerada uma superestreia4, são filmes que

normalmente se baseiam em livros ou quadrinho e preveem várias sequências que ajudam

4 É comum que as Superestreias, forma como são denominadas pelos cinemas, ocorram na noite de quinta

para sexta em uma sessão pouco depois da meia noite.

a compor a continuidade. Havia observado algumas superestreias durante a pesquisa em

2007 no Cinemark Botafogo e esses eram momentos muito esperados pelo cinema e

também pelos fãs, que desde cedo ocuparam os espaços externos às salas de exibição

aguardando pelo lançamento do filme. Esses eventos se caracterizam pela grande

afluência de jovens, que faziam das filas momentos de intensa interação e de trocas de

informações sobre a saga. Estas peculiaridades quanto ao horário de chegada e as formas

de interação do público eram os motivadores para acompanharmos uma estreia deste tipo.

A segunda filmagem se deu em um cinema de rua do mesmo grupo exibidor do

Estação Rio, Grupo Estação, e se estabelece como uma estreia no contexto do “circuito

alternativo”. O que havíamos observado na pesquisa anterior era que as motivações e

comportamentos dos participantes destes eventos diziam muito sobre o que ir ao cinema

significa para eles. Estas estreias possibilitam refletir sobre como os indivíduos se referem

aos “circuitos de exibição” da cidade e de que forma organizam suas experiências no

cinema a partir desta relação entre “tipo de filme” que assistem e sala de exibição que

frequentam.

A terceira filmagem a ser acompanhada deveria construir um contraponto com a

primeira na medida em que se caracterizasse como uma estreia também aguardada, mas

que não contasse com uma sessão de lançamento à meia noite. Acompanhamos assim, a

parte da tarde do primeiro dia de exibição de um filme em um cinema localizado em

shopping center. O que havia sido observado durante a pesquisa em 2007 é que estes eram

momentos em que existia uma grande afluência de adolescentes e crianças ao cinema,

normalmente depois da escola. Tais ocasiões nos possibilitavam refletir sobre a relação

que as crianças e adolescentes estabelecem com os cinemas, assim como as relações que

os adultos constituem com as demais faixas etárias.

Paralelamente à montagem do filme5 no ano de 2012, retomamos a pesquisa no

bairro de Botafogo incluindo o terceiro cinema. A etnografia foi desenvolvida durante o

período de abril a dezembro de 2012 tendo sido realizadas 34 entrevistas, contando ainda

com nove reentrevistas com uso de gravador e conversas com os representantes dos

cinemas.6 A observação incluiu também o acompanhamento de 26 sessões de oito filmes

5 “A definição técnica da montagem é simples: trata-se de colar uns após os outros, em uma ordem

determinada, fragmentos de filme, os planos, cujo comprimento foi igualmente determinado de antemão.”

(AUMONT, MARIE: 2003) 6 Foram entrevistados dois gerentes dos multiplex e dois sócios com diferentes funções no processo de

programação e administração.

que ajudam a compor o material analisado na dissertação. O processo de realização do

filme juntamente com a pesquisa de campo possibilitou que diálogos fossem criados entre

as duas formas de aproximação ao objeto de estudo, neste paper refletiremos acerca dos

usos do recurso audiovisual no percurso da etnografia e sua importância junto ao texto

final da dissertação.

Produzindo o filme

A experiência de realizar um filme etnográfico que abordasse questões pertinentes

à pesquisa foi proposta pelo NECTAR (Núcleo de Estudos Cidadania, Trabalho e Arte)

da Universidade Federal Fluminense como parte de um curso de qualificação intitulado

“Olhar da câmera - 2011” que prevê a formação de cientistas sociais no uso de

equipamentos audiovisuais. A sugestão inicial era de que fosse indicado um argumento

para um curta metragem que pudesse ser realizado coletivamente pela equipe, composta

por outros cinco estudantes da graduação e pós-graduação de ciências sociais e arte, além

de uma graduada em cinema que deveria nos ajudar dando o suporte técnico e artístico na

realização do filme, sempre sob a supervisão e orientação da professora coordenadora do

projeto7.

A primeira questão que surgiu logo no início de nossos encontros foi o que propor

enquanto filme dentro do tema da pesquisa. Que enfoque dar? O que filmar? Em qual(is)

sala(s) de cinema(s)? Levando em conta o fato de que a pesquisa etnográfica voltada

especificamente para a dissertação ainda não estava em curso, frequentava então o

primeiro ano do mestrado ainda atrelado às disciplinas, e não querendo que meus

primeiros contatos com o campo de pesquisa se desse a partir das situações deflagradas

pela presença da câmera, resolvemos propor um argumento que se baseasse nas hipóteses

da pesquisa. Na realidade, a opção pelos momentos das estreias dos filmes estava inscrita

no que pretendíamos observar no decorrer do trabalho de campo, mas antes de tudo,

estava diretamente atrelada ao que havia sido observado na etnografia para realização da

monografia de bacharelado.

Contudo, além da produção de um filme, o curso de formação vislumbrava

propiciar uma discussão da linguagem cinematográfica e suas possibilidades ao se atrelar

7 Coordenadora: Professora Dra Lígia Maria Dabul; Suporte técnico e artístico: Raquel Valadares; Equipe

de estudantes envolvidos: Ana Carolina Accorsi, Carolina Soares, Lucas Moratelli, Patrícia Freire, Renan

Prestes.

a uma pesquisa acadêmica. Neste sentido, a elaboração do filme foi adotada como um

recurso heurístico, na medida em que nos permitia interações com o objeto pesquisado

possibilitando apreender nuances e aspectos das situações sociais analisadas por meio dos

recursos audiovisuais. No embate entre a função do filme e seus limites como parte de

uma outra linguagem que expressa e apreende a realidade, mas que como o texto

etnográfico não é o real, Ana Ferraz aponta que:

Através das imagens, a experiência do etnógrafo em campo tangencia a experiência

dos sujeitos estudados. No texto etnográfico, tecemos aproximações. Configura-se o

projeto compreensivo de apreender o sentido da vida do outro. A imagem garante

outra forma de conhecimento, mais sensorial. As ações que filmamos em campo

trazem a densidade dos corpos em movimento em seus gestos, expressões, posturas e

das relações, das quais participamos. (FERRAZ, A.: 2009, p. 83)

Quando referimos à “densidade dos corpos em movimento”, captamos aspectos sensoriais

que quando descritos em palavras não causam necessariamente o mesmo estranhamento

e aproximação como acontecem com as imagens do filme. A ilustração audiovisual,

dependendo naturalmente de como foi obtida e confeccionada, produz no leitor/audiência

da dissertação relação diferente com o objeto estudado.

Outro ponto importante no uso do recurso audiovisual está na possibilidade dos

desdobramentos para os atores sociais filmados do que está sendo apresentado para a

câmera. Segundo P. Henley (1999) o filme concatena em imagens “os aspectos

performáticos da cultura”, por meio dos impactos emocionais e psicológicos que as

experiências têm para os filmados, ou mesmo dando a eles a oportunidade de “apresentar

suas próprias interpretações delas” (idem: 1999, p.39). O Estreias possibilita assim que o

texto etnográfico possa se utilizar de suas imagens para traçar aproximações e

diferenciações, como elucidação dos sentimentos e acontecimentos possíveis de serem

vistos nestes momentos em uma antessala de cinema.

Durante o relato de pesquisa, A. Torresan (2011) descreve a importância da

realização do filme Round Trip como um dispositivo fundamental na análise quanto à

imigração de brasileiros em Portugal, uma vez que as filmagens possibilitaram a

percepção da construção narrativa da memória da entrevistada de forma diferente da

pesquisa etnográfica sem o uso do recurso. A câmera funcionava como catalisadora de

autoapresentações, na medida em que era utilizada pela entrevistada para expressão

performática de si mesmo, ajudando a pesquisadora a compreender as autorepresentações

(selfrepresentations) e autoteorizações que a interlocutora expressava sobre suas

vivências como imigrante, sua relação com o Brasil, sua casa e com sua vida em Portugal.

Podemos supor que o Estreias também funcionou como um dispositivo de

autorepresentação na medida em que a câmera juntamente com as minhas questões

possibilitavam que os entrevistados falassem não apenas de suas experiências, mas

apontassem no ambiente a partir de gestos e olhares quais aspectos eram importantes

naqueles eventos, o que eles queriam apresentar para a câmera como autoimagem e de

que forma agiam nos espaços de acordo com essas autorepresentações. Esta relação com

a câmera ficou ainda mais evidente entre os jovens. Em alguns momentos podíamos

perceber o olhar de lado discretamente realizado com o intuito de saber se estavam sendo

filmados. Sinaliza também a dificuldade de entrevistar crianças e o quanto observá-las

em suas ações diz muito acerca de suas interações com os filmes e o ambiente.

Outra questão salientada por P. Henley (1999) na utilização dos recursos

audiovisuais na pesquisa é o fato de que “Qualquer produção de filme etnográfico exige

que o cinegrafista tome uma série de decisões sobre quando, onde e por quanto tempo

filmar, onde posicionar a(s) câmera(s), como enquadrar a cena, como determinar sua

duração.” (idem: 1999, p. 30). Neste sentido, a produção do filme exige uma percepção

espacial do ambiente observado que possibilite prever onde e quando posicionar a câmera.

Ao realizarmos o processo de identificar e informar à equipe o que deveríamos fazer com

o passar do tempo em cada um dos espaços observados, nos víamos tomando consciência

do porquê optávamos por filmar determinados espaços e situações nos cinemas, o que

nossas escolhas quanto à forma na captação poderiam representar para a montagem final

ou ainda, como compor em imagens o que se passava nos espaços dos cinemas.

O Estreias surge como um produto que constrói sua própria dimensão dos eventos

filmados, ao mesmo tempo em que suscita reflexões importantes que foram utilizadas no

decorrer do texto da dissertação. Ele é parte constitutiva desta última na medida em que

o recorte final do trabalho escrito esteve relacionado com a vivência na produção do filme

e com formulações a que cheguei por meio dele e que estão incluídas na sua forma final.

Nesta relação entre a pesquisa do passado, desenvolvida em 2007, e o novo trabalho de

campo, realizado em 2012, o filme desempenhou não só uma ponte entre os dados, mas

possibilitou uma reflexão das situações sociais que eram ou não recorrentes.

Neste sentido, ao propor compor em imagens e sons algumas hipóteses a partir do

que havíamos observado em 2007 e ao produzir um filme em um outro contexto espacial

e temporal, nos víamos tendo que captar os eventos que se desenrolavam com as

aproximações das estreias sem que com isso pudéssemos dar conta de filmar tudo o que

acontecia. Nesta relação entre escolhas e ajustes possíveis o filme me forçava a pensar

“no próximo investimento no campo”, na medida em que ao escolher estudar três espaços

diferentes me via impelida e ter que decidir onde iria acompanhar determinados filmes, a

me questionar a todo o momento quando e o porquê de minhas escolhas durante a

pesquisa. O recorte da análise que privilegiava as interações que ocorriam nos espaços de

cinema me mantinha sempre com a sensação de que algo muito interessante poderia estar

acontecendo no outro cinema, durante a minha ausência. Estes sentimentos reavivavam a

percepção de que a pesquisa é a todo o momento recortes no tempo, onde o pesquisador

só é capaz de se aproximar de uma parte do todo, uma vez que só é capaz de estar presente

e recolher informações de um número limitado de eventos.

Sendo assim, o processo de realização do curta se deu a partir da escolha prévia

de que acompanharíamos três estreias de filmes em diferentes salas de cinemas, como

descrito na introdução. A decisão quanto aos eventos que filmaríamos deveria ajudar a

produzir um contraponto entre os diferentes tipos de estreias que uma película pode ter,

sendo importante que as opções dos filmes a serem acompanhados e os cinemas onde

seriam exibidos dialogassem com as salas de Botafogo. A partir da escolha dos “tipos”

de estreias que iríamos acompanhar, passamos a observar nos sites dos cinemas o

calendário das próximas estreias de filmes. Enquanto desenvolvíamos a busca procurando

as melhores opções, uma parte da equipe procurava possíveis locações a partir das

referências que havíamos delimitado. O que caracterizou o recorte foram os filmes que

iríamos acompanhar, seguido dos lugares onde poderíamos filmar, este último devendo

propiciar tomadas adequadas ao que gostaríamos de registrar. Foi assim que, guiados

pelas hipóteses da pesquisa anterior, a equipe foi pouco a pouco compreendendo as

intenções a cada dia de filmagem, quais eram as questões diante de cada estreia, mas

acima de tudo, foi compreendendo que os eventos que iríamos acompanhar se encerrariam

naqueles breves instantes antes da entrada na sala de cinema.

Esse recorte baseado no “acompanhar os acontecimentos” poderia nos levar a uma

abordagem positivista na forma de filmar, na medida em que visasse exclusivamente a

documentação visual, com intuito de reconstrução dos dados da maneira mais objetiva

possível na montagem. Não foi esse o caminho escolhido para o Estreias. Ainda que

possamos apresentar uma abordagem que privilegiou seguir os eventos e manter na

montagem uma linha temporal no desenrolar dos acontecimentos, a escolha narrativa

deixa as imagens falarem por si. A possível linearidade se dá para compor o clima de

apreensão e ansiedade próprios dos eventos acompanhados, sem se preocupar em narrar

ou explicar o que se passava com os atores sociais por meio do uso de recursos, como por

exemplo o voice over8. Aqui a escolha foi no caminho do que P. Hanley (1999) elege

como uma abordagem interpretativista, na qual a tentativa de estruturação do sentido no

filme se dá a partir do argumento que supomos emanar da própria ação. Por meio dele o

pesquisador ou cineasta faz uso dos recursos próprios da linguagem cinematográfica para

transmitir seus entendimentos sobre as situações retratadas, sem com isso se sentir

“distorcendo o material”.

A montagem contou assim com o uso de recursos tais como a trilha sonora

instrumental (optou-se por uma música para cada cinema filmado), aceleração da

velocidade (trecho no qual a fila “anda” e as pessoas recompõem a sua organização em

outro espaço) e justaposição de trecho de imagens que apresentadas sequencialmente

ajudam a remontar as muitas ações que ocorriam nestes momentos. Destarte, a montagem

apresenta não apenas as escolhas que fizemos na captação, mas também a forma que

utilizamos para organizar em sons e imagens os eventos dos quais participamos. O

processo de montagem foi realizado por uma aluna que ficou responsável, mas reuniões

conjuntas com ela ocorreram, e me via no papel de explicar o que queria comunicar, que

imagens achava importante incluir, os ajustes quanto ao tempo e muitos outros detalhes

que deveriam sair ou entrar na montagem final.

O Estreias contou com três dias de filmagem. As captações foram realizadas em

horários bem diferenciados em função das sessões escolhidas, mas de modo geral

tínhamos uma pessoa responsável pela câmera, alguém responsável por pedir todas as

autorizações de uso das imagens e alguém responsável pelo som. O trabalho em equipe

foi fundamental nesta primeira empreitada como realizadora de um filme. A opção por

8 “A voz do comentário em voice over utilizada em alguns documentários é uma voz sem corpo, autoral,

em geral gravada em estúdio, não tendo nenhuma relação com o espaço mostrado na imagem. Ela estabelece

uma relação direta com o espectador; é para ele que essa voz se dirige e ela sabe tudo e nos revela a sensação

de ressoar dentro de nós.” (GUIMARÃES: 2008, p.13) Muitas vezes o recurso é utilizado para explicar ao

espectador o que se passava no momento retratado nas imagens do filme, ou ainda para construir sentidos

interpretativos à narrativa.

acompanhar eventos que tinham uma duração breve, em alguns casos, nos levava a ter

que trabalhar intensamente num curto período de tempo. Poder contar com uma divisão

do trabalho me permitiu conduzir as escolhas do que filmar e as entrevistas sem ter que

me preocupar tanto com a captação de áudio, com possíveis ajustes técnicos da câmera

ou mesmo com os pedido de autorização do uso de imagens. Os constantes

questionamentos da equipe quanto ao que filmar e o porquê das tomadas também foram

fundamentais neste processo.

O primeiro dia de filmagem foi o mais longo, por isso contamos com o apoio de

um motorista contratado para fazer o transporte de todo o equipamento até o cinema e o

nosso transporte para casa pós filmagem. Chegamos ao Norte Shopping por volta das 14h

para acompanharmos a sessão de meia noite e para surpresa da equipe os primeiros

espectadores já se encontravam sentados na fila. O filme estreou em quatro salas dentro

do complexo do cinema e vimos a afluência de aproximadamente 1330 pessoas para

assisti-lo. Apesar de longo esse foi o dia mais tranquilo, afinal tínhamos tempo para fazer

imagens dos frequentadores, entrevistá-los e podíamos acompanhar toda a movimentação

sem pressa.

O segundo dia de filmagem teve uma dinâmica bem diferente. O local de

filmagem escolhido foi o Odeon, que se localiza na Cinelândia, um cinema de rua.

Tratava-se de uma estreia com a presença do diretor e todo o evento, desde a chegada do

público à entrada na sala, durou pouco mais de uma hora. A equipe precisou se deslocar

bastante durante a filmagem e optamos pelo uso do monopé para agilizar a

movimentação, o que tornou a câmera um pouco mais instável. O monopé foi mantido

porque queríamos que os possíveis contrastes entre os espaços viessem das ações filmadas

nestes e não da forma que escolhemos para captá-las. Este último entendimento fez com

que toda a equipe trabalhasse de forma ágil e os reflexos desta curta duração do “antes da

estreia” pode ser percebido no ritmo dos atores sociais e nas suas interações.

O terceiro dia de filmagem foi menos corrido, e tivemos tempo para chegar à

locação e acompanhar a movimentação com mais tranquilidade. A dificuldade se deu com

relação à abordagem das crianças e dos recém-saídos desta fase. Aqui privilegiamos a

ação e o fazer nos espaços filmados, na medida em que estes formulavam pouco sobre o

significado das idas ao cinema, estabelecendo como algo rotineiro e associado ao contexto

do grupo e das famílias.

A direção deste processo me pareceu exaustiva e estimulante, na medida em que

me via impelida a tomar decisões nem sempre segura sobre quais seriam os resultados.

Acredito que a pouco ou nenhuma experiência da equipe sobre todas as fases do processo

de produção de um filme, assim como minha própria inexperiência enquanto diretora,

foram minimizadas por meio das trocas que possibilitaram reflexões sobre a pesquisa. L.

Dabul (2013), ao analisar a realização do filme Night Café, produzido em 2011 pelo

NECTAR, e sua recepção nos momentos de exibição, aborda as especificidades das

produções fílmicas relacionadas à pesquisas em ciências sociais. Segundo a autora a

realização de filmes não consiste “em etapa subsequente à da descoberta ou produção

propriamente dita do conhecimento” (idem: 2013, 5), mas sim apresentam uma outra

maneira de produzir conhecimentos sobre o objeto estudado. Paralelos foram traçados no

decorrer da dissertação com as imagens do Estreias, e algumas questões foram tratadas a

partir dos depoimentos recolhidos durante a pesquisa de campo nos cinemas de Botafogo

em analogia às imagens do filme.

Considerações finais

A elaboração da pesquisa contou com algumas abordagens que colaboram para a

composição do material analisado durante a dissertação. A aproximação com o objeto de

estudo que primeiramente se deu a partir da elaboração do filme – Estreias -, adotado

como um recurso heurístico, nos permitiu interações com o objeto pesquisado que

possibilitaram apreender nuances e aspectos das situações sociais que ocorrem pouco

antes das entradas nas salas de exibição, além de reflexões quanto ao uso do recurso

audiovisual na pesquisa sociológica. O filme apresenta sua própria dimensão dos eventos

filmados, captamos aspectos sensoriais e performáticos, ao apreender os deslocamentos

dos corpos nos ambientes e as autorepresentações dos indivíduos retratados, que quando

descritos em palavras não produzem necessariamente o mesmo impacto sobre o

leitor/espectador. Neste sentido o Estreias suscitou formulações importantes que foram

utilizadas no desenvolvimento do texto, traçando paralelos entre as imagens e

depoimentos obtidos com o uso da câmera e o trabalho de campo posterior.

A observação participante realizada nos espaços internos e externos às salas de

exibição de Botafogo, suscitou reflexões quanto aos limites na realização de pesquisas

comparadas, uma vez que nos levava a percepção de que a pesquisa é a todo o momento

recortes no tempo, onde o pesquisador só é capaz de se aproximar de uma parte do todo.

O uso de diferentes recursos – filme, panfletos, reentrevistas - durante a pesquisa

etnográfica possibilitou uma percepção dos ambientes dos cinemas como marcados por

inúmeras interações que variavam segundo o horário, filme que estrearia, faixa etária dos

frequentadores, entre outros. O recorte escolhido foi ao encontro das estreias dos filmes,

que haviam sido elencadas durante o Estreias, e as interações que ocorrem entre crianças,

entre adolescentes, entre adultos e entre membros das várias faixas etárias. Essa escolha

se deu pela opção metodológica de acompanharmos as ações dos indivíduos durante as

interações e ocasiões sociais. As formulações sugeridas por Goffman (2010; 2011) nos

levaram a observar às variações nas tolerâncias quanto as condutas nas ocasiões

observadas. Assim como, os diferentes engajamentos provenientes dos eventos estudados

e o aspecto performático dos atores sociais, o que nos possibilitou perceber as

experiências partilhadas pelos indivíduos nestes eventos.

Sendo assim, ainda que tenha sido colocado como um anexo ao final da

dissertação, o Estreias representou um papel fundamental junto ao texto escrito, não

apenas por ser um recurso audiovisual ao que é descrito por meio das palavras, mas

porque influenciou no próprio caminhar da pesquisa e da redação final.

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PIRES, Bianca Salles. Pipoca, diversão e arte: Pesquisando dois públicos de cinema.

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TORRESAN, Angela. “RoundTrip: Filming a Return Home”. In: Visual Anthropology

Review. Vol. 27, Issue 2: 119-130, 2011.

Anexo I, Mapa I

Legenda:

Vermelho: Estação Rio (Grande) e Estação Botafogo (Pequena);

Azul: Cinemark Botafogo;

Preto: Espaço Itaú Cinemas, Arteplex.