Estremecer

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QUEM É A CAÇA, QUEM É O CAÇADOR? O marido de Kate McCall´s é morto em um trágico acidente envolvendo seu filho, Luke. Enquanto Kate se vê às voltas com a culpa que atormenta o adolescente, tem de lidar com a volta de seu primeiro amor: Jack, um ex-presidiário, que reaparece em companhia de alguns antigos “companheiros”. A partir daí, uma rede de eventos aparentemente desconexos acaba envolvendo as personagens desta história em uma trama emocionante e imprevisível. Peter Leonard conduz o enredo deste livro, repleto de reviravoltas, com impressionante maturidade para um estreante, dando voz a personagens que certamente cativarão o leitor. Uma estreia explosiva e de tirar o fôlego no gênero policial!

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Estremecer

Peter Leonard

S ã o P a u l o 2012

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Kate estava parada ao lado do balcão central da cozinha, com os olhos inchados de tanto chorar e a maquiagem borrada em um lado do rosto, olhando fixamente para a comida: bandejas de frios e tige-las de salada de batatas, pratos de biscoitos, queijos variados e frutas frescas. O obituário de Owen ocupava meia página do Detroit Free Press, e jazia dobrado ao lado da pia. A frase abaixo de sua fotografia dizia: “Owen McCall, 49 anos, 11 de outubro de 2006”.

Todos já manifestaram suas condolências e haviam saído. Kate se sentia exausta, exaurida. Se serviu de uma garrafa de chardonnay e acendeu um cigarro. Ela estava entorpecida, com a mente confusa, ainda tentando entender o que havia acontecido.

Luke entrou na cozinha atordoado, ausente, inexpressivo – aquele mesmo estado de zumbi, desde o acidente. Ele abriu a gela-deira e pegou um Gatorade, um líquido violeta em uma garrafa de plástico chamado Riptide Rush.

– Venha até aqui – disse Kate. Ela deu dois passos e envolveu seus braços ao redor dele: – Eu sei que você está sofrendo. Também estou – podia sentir Luke petrificado em seu abraço.

– Desculpe... – disse Luke.Kate pôde ver as lágrimas em seus olhos antes que ele olhasse

para baixo, diretamente para o chão.

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– Você não pode se culpar. Foi um acidente.Luke se afastou. – Eu não quero falar sobre isso – disse, e passou da cozinha para

a saleta de refeições, desaparecendo. Estava escuro quando ela subiu as escadas, escorando-se no cor-

rimão, com a mão direita sobre o carvalho liso e polido, enquanto vencia os degraus da escada em caracol. A luz no hall de entrada estava acesa, mas estava muito cansada para descer e desligá-la.

No topo das escadas, virou à esquerda, para o quarto de Luke. A porta estava fechada; Kate bateu, abriu e o viu em sua cama olhando fixamente para o teto. Lhe deu boa noite.

Ele não se moveu, nem olhou para ela. Leon, o labrador choco-late da família, estava deitado ao lado de Luke. Ele levantou, abanou o rabo e soltou um pequeno ganido.

– Quieto, Leon – disse Luke.O cachorro sentou.Kate fechou a porta e foi para seu quarto. Caminhou pelo banheiro

e olhou-se fixamente no espelho pendurado sobre a pia. Aparentava cansaço. Puxou seus cabelos para trás das orelhas e abriu a tor-neira. Pegou a água com as mãos e lavou o rosto. Ela olhou ao redor e viu o roupão azul atoalhado de Owen pendurado atrás da porta. Aproximou-se, tirou o roupão do gancho e o abraçou. Sentou-se ao lado da banheira e chorou, entregando-se às lágrimas.

Kate voltou ao quarto, puxou o lençol para baixo, se estirou no lado que Owen ocupava na cama king-size e cheirou seu travesseiro, que tinha um aroma com um suave toque de Old Spice.

Havia fotografias de família na mesa de cabeceira, emolduradas em ouro e prata. Ela pegou uma fotografia em tons de sépia mos-trando Owen aos sete anos de idade, com os cabelos curtos, vestindo uma camisa branca e gravata borboleta, exibindo um sorriso em seu rosto, orgulhoso por ter acabado de fazer sua Primeira Comunhão. Kate a colocou de volta e pegou outra, uma foto do dia do seu casa-mento, pensando consigo mesma que essa era uma das poucas ima-gens em dezesseis anos que mostrava Owen com os olhos abertos. Ela

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abraçou a foto e lembrou-se do dia em que se conheceram. Naquele dia, moveu-se muito rápido e inadvertidamente ao encontro dele em uma esquina na Farmer Jack’s, a loja na Lahser e Maple. Seus carri-nhos colidiram de frente; foi inesperado, mas engraçado.

– Você está bem? – ele perguntou.– Acho que sim – respondeu Kate –, exceto por um mau jeito no

pescoço.Ele a encarou, talvez se perguntando se ela estava falando sério. – Eu sou Owen – disse ele. – E você?– Kate – disse, estendendo-lhe a mão.Ele pegou sua mão, olhou nos olhos dela e perguntou:– Kate, você vai fazer alguma coisa esta noite?– O que você quer dizer?– Posso te levar para jantar? Para compensar o prejuízo.– É assim que você consegue encontros? – perguntou Kate. –

Corre na direção de alguém com seu carrinho de compras?Ele sorriu. A lista de compras estava em suas mãos – cinco a sete

linhas em um pedaço de papel amarelo –, e o carrinho cheio de latas de sopa e atum. Obviamente não era muito de cozinhar.

– Nem ao menos sei quem você é – disse Kate.– Nós acabamos de nos conhecer, não é? – ele respondeu.– Você poderia ser um estuprador.– Poderia até ser um republicano – replicou Owen, sorrindo.– Essa seria minha próxima pergunta.Naquela noite foram a um pequeno lugar chamado Oliverio’s,

um escuro e barulhento restaurante italiano, com toalhas de mesa brancas e garçons em trajes pretos. Pediram costeletas de vitela ao molho de conhaque, beberam um Brunello e contaram um ao outro as histórias de suas vidas.

Owen era piloto de Stock Car.– Eu já sabia que queria correr desde os oito anos – ele disse.

– Eu costumava ir com meu pai para sua autorizada da Chevy em Dearborn, e ajudava os mecânicos. Tudo o que eu queria na vida era trabalhar com carros, e quando fiz dezesseis anos, tudo o que eu que-

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ria na vida era participar de corridas. Meu pai tinha outro ponto de vista, e esperava que eu ficasse na loja dele. Seu plano era me ensinar os negócios, passar a empresa para mim e se aposentar.

Owen olhou para seu prato, cortou a costeleta de vitela e deu uma mordida.

– Isso é bom, não é? Eu comecei a participar de corridas de ver-dade após o colégio. Formei uma equipe com um amigo, um cara muito legal chamado Charley Degener. Ele era alguns anos mais velho que eu, e tinha trabalhado como trocador de pneus no pit stop de uma equipe de um carro só, mas sua real especialidade era a potência dos motores.

Ele pegou sua taça de vinho e deu um gole, bebendo-o como se fosse um refresco.

– No início era apenas Charley e eu. Ele preparou os motores, eu fiz os carros. Começamos em pistas de terra, mas nosso objetivo era um dia estar na Winston Cup. Nós não nos contentaríamos com menos. Transportávamos o carro de corrida atrás do nosso caminhão de pão, usado: ao olhá-lo de perto, era possível ver na lateral um esboço fraco do logo da Wonder Bread. O veículo estava sempre carregado com as ferramentas, peças e pneus. Charley e eu até dormíamos nele nos eventos. O trato era que nós tínhamos que fazer o bastante na pista de corrida para voltarmos na semana seguinte.

– Vocês ganharam? – perguntou Kate.– Você quer saber das bandeiras quadriculadas do meu passado,

é? – disse, abrindo um largo sorriso.Ele era brega, mas interessante, e tinha um charme especial:

grandes mãos, ombros largos e um rosto agradável, atraente, de um modo rude.

– No primeiro ano nós fizemos dez corridas, incluindo uma pole position, três top-5 e cinco top-10. Mas respondendo sua pergunta, sem grandes resultados.

– E desde estão, como vão indo?– Nós estamos bem.

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Ele era o mestre das evasivas, algo que Kate acabaria descobrindo mais tarde, quando o conhecesse melhor. Owen nunca foi orgulhoso ou perdeu sua calma; conduzia todas as coisas de um modo particular.

– Quando vemos os carros na TV, parece que realmente estão muito velozes – disse Kate. – A que velocidade eles correm?

– Trezentos quilômetros por hora e mais uns quebrados, geral-mente, e pisando fundo nas retas.

– Uma vez eu cheguei a quase duzentos no Audi do meu pai, e senti que isso era como a velocidade da luz.

– Uma vez que você se acostuma, é como dirigir na estrada; se sente quase como se estivesse em câmera lenta; a questão é que existem outros vinte e cinco carros tentando ultrapassar de qualquer jeito.

Kate cortou um pedaço da carne de vitela, mergulhou no molho e deu uma mordida.

– Você olha o mais distante possível para a frente e tem de contar com a visão periférica – disse Owen. Ele tomou um grande gole de vinho, com gosto. – E é preciso sempre estar atento à posição dos outros carros. É basicamente isso. Depois de algum tempo, você faz sem pensar.

– Se é assim, é fácil – disse Kate. – Talvez eu devesse me candida-tar. Eu estou procurando uma nova carreira.

– Meu pai teve pena de nós, eu acho, e decidiu doar quinze mil dólares por ano para nos patrocinar. O problema era que em troca eu tinha de dedicar um tempo à empresa, aprendendo os negócios. Mas essa foi a troca.

– Parece perigoso – disse Kate. – Meu pai me levou a uma corrida da Nascar no Michigan International Speedway e lá aconteceram três acidentes.

– Eu me acidentei gravemente em uma das retas em Martinsville, ultrapassei um carro pela direita, bati na mureta de proteção, perdi a direção e capotei três vezes. Senti como se tudo acontecesse em câmera lenta. Eu me lembro de ser arremessado no ar, olhando o céu. Voltei para baixo, todos os vidros estouraram. Era surpreendente, o carro estava totalmente destruído – os paineis arruinados – e eu saí

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sem um arranhão. Olhei o guincho levantar o carro e colocá-lo no caminhão de reboque e decidi, em seguida, terminar com a garota com quem estava vivendo. Isso veio de repente na minha cabeça; eu não a amava e nós estávamos falando em casamento.

O garçom veio, tirou os pratos e depois retornou, e então os dois pediram café expresso e Sambuca, um licor feito de alcaçuz.

– Você gosta de tiramissu? Nós poderíamos dividir um – Kate perguntou.

– Parece bom – disse Owen. – Mas eu quero ouvir mais sobre você.Kate contou a ele como fora sua vida em Birmingham, e que

foi filha única em uma vizinhança cheia de grandes famílias irlan-desas. Os Youngs tinham sete, os Ivorys, oito, os O’Clairs, dez, e os Callaghans, dezoito.

– Dezoito! – disse Owen. – Deve ter sido alguma coisa na água.– Nada de método da tabelinha para eles – comentou Kate. – Eu

fui para o Marian, um colégio católico só para garotas, e jogava tênis: era número um nas competições. Fiquei em segundo lugar na classi-ficação estadual de juniores, e consegui uma bolsa de estudos inte-gral em Michigan.

– Você parece mesmo uma jogadora de tênis – disse Owen. – Qual a sua altura?

– Um metro e setenta e seis.– Isso, perfeito.A sobremesa foi servida. Owen pegou seu Sambuca, Kate pegou

o dela e brindaram. Ele disse: – Salut.Kate bebericou o licor, voltou com o seu copo para a mesa e

pegou um pedaço de tiramissu. – Você tem que experimentar isso.Owen alcançou sua colher, retirou um pedaço e o colocou em

sua boca. Ele acenou com a cabeça e disse: – Uma delícia, não é?– Eu joguei por dois anos – continuou Kate –, e perdi apenas

quatro jogos. Estava no All-Big Ten e tinha uma menção honrosa no All-American, até que estourei meu joelho direito: uma lesão no LCA.

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Estava no começo do meu primeiro ano, e isso foi tudo na minha car-reira de tenista universitária.

Owen abriu um saquinho de açúcar, colocou um pouco no seu expresso e mexeu com a colher. Kate continuou:

– Eu me perdi depois disso, bebendo e fumando, coisas que eu nunca havia feito antes, e no final do meu primeiro ano na faculdade decidi que já tinha ficado lá o suficiente e, faltando apenas dezesseis cré-ditos para me graduar, me tornei membro do Peace Corps.

Owen mexeu seu café, deu um gole e colocou a xícara nova-mente no pires.

– Você chegou tão perto. Por que não terminou?– Meu joelho melhorou, mas eu sabia que nunca mais poderia

jogar tênis como antes. Eu estava entediada, cansada de ir a festas e de ficar em rodinhas fumando maconha. Eu queria viajar, fazer algo inte-ressante. Conheci uma garota que tinha participado do Peace Corps e que havia morado na Índia por dois anos. Ela disse que essa foi a expe-riência mais fantástica de sua vida: caminhou pelo Nepal e foi para o acampamento na base do Monte Everest, a 8.848 metros acima do nível do mar. Eu olhei em volta e pensei: O que eu tenho a perder?

– Quando eu ouço “Peace Corps”, penso em um grupo de pessoas felizes, crianças com ótima aparência sentadas em círculo, cantando canções folclóricas. É assim mesmo? – perguntou Owen.

Kate tomou um gole do licor de alcaçuz e disse:– Imagine sair daqui e voar para Miami, de lá para a Cidade da

Guatemala, a maior cidade na América Central, com 1,5 milhão de pessoas, e depois pegar a estrada por duas horas em um ônibus com as galinhas para San Pedro.

– Onde raios fica isso? – questionou Owen.– Na Guatemala Oriental – respondeu Kate. – Qual língua eles falam?– Falam cakchiquel – ela disse –, que é um dialeto local dos maias,

e também espanhol. O que eu queria dizer é que cheguei nessa pequena cidade, não conhecia ninguém e tinha que encontrar algum lugar para morar.

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– A Peace Corps não te ajudou?– Não – respondeu Kate. – E as pessoas me encaravam em qualquer

lugar que eu fosse. Mulheres vinham até mim e passavam seus dedos pelos meus cabelos, porque nunca tinham visto uma loira antes.

– Ou olhos azuis, aposto – disse Owen. – Por que você escolheu a Guatemala Oriental?

– É onde precisavam de ajuda. Me inscrevi para ensinar Inglês, segundo ano. Tinha cinquenta garotinhas maias que me chamavam Seño Kate, abreviatura para Señorita. Eu caminhava na sala de aula e elas me cercavam, pendurando-se e grudando em meus braços e na minha cintura, dando risada. Eu tinha praticamente que arrancá-las dali.

– Apesar disso, eu vejo que você gostava.– Eu adorava – relembrou Kate. – As crianças tentavam aprender

de verdade. Eu lhes contava histórias, nós cantávamos e brincáva-mos. Era divertido.

– Gostaria de ter tido uma professora como você – disse Owen. Ele estendeu a mão em cima da mesa e tocou a dela. – Você é mais atraente que a Irmã Mary Andrews que eu tive na segunda série. Mais agradável também – Owen bebericou seu Sambuca.

– Você vai comer essas sementes de café? – Kate perguntou.– Eu não – respondeu Owen. – Pode comer.– Quando cheguei a San Pedro, fui passando pelas lojas, pergun-

tando se alguém sabia de algum lugar para alugar. Não havia muitas opções nesta cidade, que ficava no ponto final do ônibus. Não era um destino turístico. As pessoas não iam até lá para acomodações de luxo ou jantar quatro estrelas – Kate podia ver que Owen estava inte-ressado, bebericando o licor, dando toda atenção a ela. – Eu passei a primeira noite na escola onde daria aulas, dormi em um banco do escritório do diretor e, no outro dia, eu encontrei uma pequena casa com um quintal no fundo.

– Quanto era o aluguel?– Cento e oitenta quetzales por mês – respondeu Kate. – Vinte

e oito dólares por uma casa com quatro cômodos e água corrente. Nada mal, hein?

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– E quanto eles pagavam a você? – perguntou Owen.– Nada. É um serviço voluntário. Eu tinha cento e cinquenta dóla-

res por mês para gastar com despesas. Mas você recebe seis mil dóla-res quando acaba seu contrato.

– Você não teve medo de morar sozinha em um país estranho?– Minhas janelas tinham grades, as portas eram de aço e o quin-

tal estava cercado por um muro de tijolos com dois metros de altura, coberto com tela de arame.

– Parece que você era uma prisioneira.– A maioria das casas na vila era assim – disse Kate. Ela mordeu

um pedaço de tiramissu, saboreando. – Era minha primeira casa e eu adorei. Eu pintei as paredes com cores claras e comprei móveis e plan-tas no mercado. Nunca tinha vivido sozinha antes. Era estimulante, mas também estranho, porque aquela era uma cultura machista, subdesenvolvida, na qual as mulheres têm que pedir permissão para deixarem a casa. Você deve imaginar que eles me acharam um pouco bizarra, não é?

Ela contou a Owen sobre ter água por apenas duas ou três horas todos os dias e sobre levantar às 5h30 para encher baldes de plás-tico. Falou também da água durante a estação chuvosa, que vinha como lama e era necessário fervê-la e filtrá-la para qualquer coisa. Kate contou como aprendeu a matar galinhas (quebrando seus pes-coços), arrancar suas penas e cozinhar à moda maia.

Contou a ele também sobre sua vizinha, uma velhinha que ven-dia uma bebida destilada forte e ilegal em sua cozinha, e sobre os bêbados que dormiam na grama na frente de sua casa, até que final-mente teve a coragem de lhes dizer que procurassem outro lugar para dormir, e depois disso nunca mais a incomodaram.

Kate falou ainda sobre suas amigas guatemaltecas, Marina e Luzia, com as quais banhava-se na temescal, uma sauna maia feita com tijolos crus e lama, localizada atrás de sua casa, e sobre como conversavam como garotas de qualquer lugar do mundo, falando de garotos de quem elas gostavam e de seus planos para o futuro.

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– Uma vez, Luzia me perguntou se eu achava que os garotos guatemaltecos eram bonitos e se eu gostaria de ter um namorado guatemalteco. Eu disse que não, mas não tinha nada a ver com a aparência deles; havia, sim, uma grande diferença cultural. Eu disse que nunca poderia me relacionar com alguém a quem eu tivesse que pedir permissão para sair de casa. Então, Marina perguntou: “Mas e se você realmente o amasse, e ele quisesse que você pedisse per-missão, você não o faria?”. Eu disse que em nossa cultura, se meu namorado ou marido me amasse, ele confiaria em mim. Disse que não preciso de um homem para cuidar de mim. Contei para elas que eu tive um namorado em Michigan chamado Jack, e eu não poderia me imaginar pedindo permissão a ele para fazer qualquer coisa. Ele provavelmente acharia que eu estava louca. Luzia disse, então, que gostava de pedir permissão. Marina também. Ambas disseram que se sentiriam estranhas se não pedissem. Enquanto conversávamos, comíamos úberes de vaca assados.

Neste ponto, Owen interrompeu:– Espere um minuto, tetas de vaca assadas? Qual o sabor disso?– Frango.Kate gostou do jeito como ele sorriu, e gostou ainda mais de

quando ele se aproximou e tocou sua mão.Em seguida, Kate contou a ele sobre Marina, que em uma cidade

cheia de mulheres maias atarracadas e corpulentas, tinha a aparência atraente e formosa de uma mestiça.

– Ela era a garota mais bonita da cidade.– Ela teria que percorrer um longo caminho para chegar a seus

pés – ele disse, sorrindo.– Você quer ouvir a história ou não? – Kate perguntou.– Me desculpe, eu não vou parar de fazer elogios a você – disse

Owen.– Marina era casada – disse Kate. – Mas seu marido Benigno estava

em Nova Jersey, e ia ficar lá pelo período de um ano, cortando grama e removendo neve, tentando guardar algum dinheiro para construir a casa deles e começar uma família. Marina morava com a mãe, uma

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muchacha (diarista), e vivia numa pequena casa de telhado de zinco, cheio de goteiras. Um dia, Marina chegou na minha casa de madrugada, carregando uma mala surrada, dizendo que tinha que sair de San Pedro imediatamente. Estava chorando, e muito angustiada. Eu perguntei a ela o que acontecera, mas ela não queria me contar de imediato. Depois, começou a falar em cakchiquel, parecendo uma metralhadora, e então lentamente em Espanhol, dizendo que o capitão Emiliano Garza, chefe da Polícia Nacional e respeitado membro da comunidade, a tinha violen-tado. Ela estava indo para Nova Jersey para ficar com Benigno. Eu per-guntei: “Como vai chegar lá?”. Ela disse: “Mojado”.

– O que é isso? – perguntou Owen. – Significa “molhado”, em uma tradução literal, mas na verdade

quer dizer ilegalmente. De que outra forma ela chegaria sem pas-saporte e visto? Eu perguntei, então, a Marina: “Quem vai cuidar de Ysabel?”. Era mãe dela. Disse que não sabia, só sabia que tinha que partir imediatamente porque o capitão Garza voltaria aquela noite. De todas as garotas da cidade, ele tinha escolhido Marina, e ela deve-ria sentir-se honrada. Eu estava em sua casa quando o capitão a veio chamar. Ele era um homem baixo e forte, um ladino em um distinto uniforme azul e botas pretas bem lustradas, que faziam que sua altura aumentasse até os 1,70m. Era um pequeno touro, com um bigode preto bem aparado e olhos negros e sérios. Eu pude notar que ele me observava do outro lado da sala, esperando: era um homem acos-tumado a estar no comando. Eu achei que ele parecia um porteiro de um bom hotel, e o imaginei em um diferente uniforme, um com galões e botões dourados.

Kate continuou:– Ele não esperava que outra pessoa estivesse lá com Marina, e

eu via que ele não sabia o que fazer. Perguntou a Marina quem eu era e ela respondeu: “uma amiga”. Eu disse a ele: “Se você tocar nela nova-mente, entrarei em contato com o consulado americano e tomarei todas as medidas necessárias para que você seja processado. Essa é quem eu sou”. Ele sorriu para Marina de uma forma tímida e formal e perguntou: “Você concorda com isso?”. Marina olhou para baixo e

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disse: “Sim”. Capitão Garza disse que havia entendido. Foi isso. Ele caminhou para fora, pegou seu jipe e seguiu viagem. Marina chorou, e nos abraçamos.

– Você teve sangue-frio – disse Owen. – Foi firme com um policial em um país estrangeiro. E esse foi o fim disso?

– Não exatamente – respondeu Kate. – Contarei em outra opor-tunidade. Não é o tipo de história para contar a alguém em um pri-meiro encontro.

Então, Kate olhou ao redor. Eles eram as únicas pessoas no restau-rante. Ela não havia notado antes. Owen pagou a conta e dirigiu até a casa de Kate. Caminhou com ela até a porta, beijou-a no rosto e disse:

– Posso te ligar?– É bom que ligue, mesmo – respondeu Kate.

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