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439 Linguagem & Ensino, Pelotas, v.11, n.2, p.439-468, jul./dez. 2008 Estudo exploratório de uma comunidade no contexto de ensino-aprendizagem de inglês instrumental Silvia Matravolgyi Damião Instituto Tecnológico de Aeronáutica Resumo: Com o objetivo de melhor compreender o contexto em que um curso de inglês instrumental está inserido, este trabalho procurou analisar como os alunos de uma faculdade de engenharia, matriculados no curso de inglês instrumental oferecido no primeiro ano de graduação, descrevem e entendem o contexto institucional em que tal curso está inserido, como o comparam ao curso de línguas proposto e como entendem a proposta pedagógica desse curso. Tal análise teve por objetivo verificar se existem elementos constitutivos de uma comunidade nesse contexto. Para tanto, os alunos participaram de uma conversa semi-estruturada, que foi analisada à luz de categorias comuns a diversas conceituações de comunidade existentes na literatura e discutidas ao longo do artigo. Os resultados mostraram que o contexto institucional parece englobar elementos constitutivos de uma comunidade, ao passo que o curso de inglês instrumental não se constitui como uma comunidade, permanecendo, na percepção dos alunos, apenas um curso que tem uma proposta pedagógica diferenciada dentro de um contexto muito singular. Palavras-chave: comunidades; ensino-aprendizagem; inglês instrumental. INTRODUÇÃO Muito do que se fala sobre educação hoje em dia está fundamentado em discussões sobre mudanças na sociedade. Autores como Sampaio e Leite (1999), por exemplo, afirmam que os avanços tecnológicos estão diretamente relacionados a novas maneiras de se refletir sobre educação e que, portanto, é importante se pensar em formas diferentes de ensinar numa sociedade que vive um momento histórico marcado por rápidas transformações nos instrumentos de comunicação e trabalho, e conseqüentemente, nas relações interpessoais. Isso nos permite dizer que o contexto educacional atual permite o uso do computador de forma que ele represente muito mais do que meramente um instrumento de comunicação e de armazenamento de dados. Nesse contexto o computador “conquista status de ambiente cognitivo, tecnologia mediadora a partir da qual vemos o mundo e construímos conhecimento” (Ramal, 2002, p.15). É com base na concepção sobre educação que pensa em novas maneiras de ensinar e aprender (Sampaio; Leite, 1999) e aceita as

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Estudo exploratório de uma comunidade no contextode ensino-aprendizagem de inglês instrumental

Silvia Matravolgyi DamiãoInstituto Tecnológico de Aeronáutica

Resumo: Com o objetivo de melhor compreender o contexto em que um curso de inglêsinstrumental está inserido, este trabalho procurou analisar como os alunos de umafaculdade de engenharia, matriculados no curso de inglês instrumental oferecido noprimeiro ano de graduação, descrevem e entendem o contexto institucional em que talcurso está inserido, como o comparam ao curso de línguas proposto e como entendema proposta pedagógica desse curso. Tal análise teve por objetivo verificar se existemelementos constitutivos de uma comunidade nesse contexto. Para tanto, os alunosparticiparam de uma conversa semi-estruturada, que foi analisada à luz de categoriascomuns a diversas conceituações de comunidade existentes na literatura e discutidas aolongo do artigo. Os resultados mostraram que o contexto institucional parece englobarelementos constitutivos de uma comunidade, ao passo que o curso de inglês instrumentalnão se constitui como uma comunidade, permanecendo, na percepção dos alunos, apenasum curso que tem uma proposta pedagógica diferenciada dentro de um contexto muitosingular.Palavras-chave: comunidades; ensino-aprendizagem; inglês instrumental.

INTRODUÇÃO

Muito do que se fala sobre educação hoje em dia estáfundamentado em discussões sobre mudanças na sociedade. Autorescomo Sampaio e Leite (1999), por exemplo, afirmam que os avançostecnológicos estão diretamente relacionados a novas maneiras de serefletir sobre educação e que, portanto, é importante se pensar emformas diferentes de ensinar numa sociedade que vive um momentohistórico marcado por rápidas transformações nos instrumentos decomunicação e trabalho, e conseqüentemente, nas relaçõesinterpessoais. Isso nos permite dizer que o contexto educacionalatual permite o uso do computador de forma que ele represente muitomais do que meramente um instrumento de comunicação e dearmazenamento de dados. Nesse contexto o computador “conquistastatus de ambiente cognitivo, tecnologia mediadora a partir da qualvemos o mundo e construímos conhecimento” (Ramal, 2002, p.15).

É com base na concepção sobre educação que pensa em novasmaneiras de ensinar e aprender (Sampaio; Leite, 1999) e aceita as

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diversas possibilidades de inserção de novas tecnologias no contextoinstrucional (Ramal, 2002), que está calcado o desenho de um cursode língua inglesa para alunos do primeiro ano de graduação de umafaculdade de Engenharia. Tal curso segue a abordagem instrumentalde ensino de línguas (Hutchinson; Waters, 1987; Robinson, 1991;Dudley Evans; St John, 1998, entre outros) e, para sua elaboração,inicialmente foi feito um levantamento das necessidades dos alunos.A partir das respostas coletadas, o curso foi desenvolvido com baseem dois eixos teóricos1: o primeiro deles, o paradigma educacionalemergente (Moraes, 1997), fundamenta a possibilidade de sereconhecer, no aprendiz, “um indivíduo que aprende, representa eutiliza o conhecimento de modo diferente, que conhece o mundo deuma maneira específica dependendo do perfil de inteligências quepossui, do contexto e da cultura em que foi gerado” (Moraes, 1997,p.139). O outro aporte teórico utilizado está calcado nos pilares doconhecimento (Delors et al., 2001). São eles: aprender a conhecer;aprender a fazer; aprender a viver juntos e aprender a ser.

O contexto institucional em que tal curso é ministrado émarcado por uma tradição de mais de cinqüenta anos de existência.Observa-se, portanto, a existência de um forte descompasso entre aproposta pedagógica que fundamenta o curso de língua inglesa e acultura institucional. Assim sendo, com o objetivo de melhorcompreender o contexto em que tal curso de línguas está inserido,este trabalho procurará analisar como os alunos desse cursodescrevem e entendem o contexto institucional, como o comparam aocurso de línguas proposto e como entendem a proposta pedagógicadesse curso. Tal análise possibilitará verificar se existem elementosconstitutivos de uma comunidade no contexto institucional e nocontexto do curso e, em caso afirmativo, permitirá dizer o tipo decomunidade que se constitui, ou de comunidades que se constituem.Servirá, também, para a efetivação de uma análise do meio2 (DudleyEvans; St John, 1998), considerada um dos componentes essenciaispara o desenho de cursos de línguas calcados na abordageminstrumental.

Reflexões sobre comunidades são muito instigantes paraajudar a compreender o meio em que estamos inseridos. Por meio de

1 Esses eixos teóricos vêm acompanhando o trabalho da professora-designerdo curso nos últimos anos.

2 No original, os autores usam a expressão means analysis.

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uma análise detalhada, é possível entender os valores, convençõese histórias que fazem parte de um determinado contexto e justificamo modo de ser e de agir de seus integrantes. Passa-se a observar aexistência de uma linguagem comum; além disso, como comunidadessão elementos vivos, observa-se que os papéis se modificam com otempo dentro da estrutura organizacional existente; os processos eformas de comunicação estabelecem as ligações entre as pessoas;surgem os questionamentos e o senso de pertencimento, osmecanismos de aprendizagem, as normas rituais e comportamentosque a caracterizam.

ALGUNS TIPOS DE COMUNIDADE PRESENTES NA LITERATURA

Primeiramente será feita uma análise do conceito decomunidade de um modo mais amplo. Em seguida, serão discutidosalguns tipos de comunidade específicos, que dizem respeito aocontexto educacional e que, portanto, interessam a este estudo.

São vários os autores que discutem o termo comunidade naliteratura. Com base em estudos nos campos da antropologia, dasociologia e da educação, Barab e Duffy (2000) chegaram às seguintescaracterísticas que, segundo eles, são necessárias para a constituiçãode qualquer comunidade: existência de herança cultural e históricacomum a todos os integrantes, incluindo-se aí objetivoscompartilhados, significados negociados e práticas; um sistemainterdependente, no qual os integrantes da comunidade tornam-separte de algo maior do que eles próprios; e um ciclo de reprodução,por meio do qual novos integrantes podem, gradativamente, passarpara a posição de integrantes mais experientes (antigos) e, assim, darcontinuidade à comunidade.

Schulte-Tenckhoff (2001), por sua vez, afirma que um grupopode ser considerado como uma comunidade quando seus membrosdemonstram senso de solidariedade e de pertencimento, quando seobserva a busca de objetivos comuns e quando os integrantes mostramum certo grau de participação e de organização. Para a autora,comunidades podem passar por conflitos internos, especialmenteno que diz respeito a questões de identidade e de representação. Taisconflitos, porém, podem inclusive vir a solidificar as relações dentroda comunidade. De acordo com ela, dificilmente as fronteiras dentrode uma comunidade conseguem ser delimitadas com precisão, pois

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elas variam de acordo com a posição do participante dentro dacomunidade. Ainda para Schulte-Tenckhoff (2001), pela próprianatureza, comunidades são heterogêneas e complexas.

Conforme Jonassen, Peck e Wilson (1999), existem diversascategorizações para o termo ‘comunidade’, como, por exemplo,comunidade de prática, de aprendizes ou de aprendizagem, entreoutras, que se confundem e se sobrepõem umas às outras. Todas elas,no entanto, consideram as contribuições cognitivas e sociais de seusintegrantes, a colaboração e o apoio entre seus membros, com oobjetivo de se alcançarem objetivos compartilhados. Para melhorilustrar semelhanças e diferenças entre as diversas categorizaçõesde comunidade, será feita, a seguir, uma breve análise sobre algunstipos de comunidade presentes na literatura e que são relevantespara este estudo.

Lave e Wenger (1991), por exemplo, cunharam o termocomunidade de prática. Para esses autores, tal termo procura mostrara relevância das práticas comuns para vincular pessoas acomunidades e também a importância das comunidades paralegitimizar as práticas individuais. Assim, o indivíduo que pertencea uma comunidade de prática compromete-se a participar de umsistema de atividades em que os integrantes compartilham dosmesmos ideais e entendem o significado desse comprometimento emsuas vidas e na vida de sua comunidade. Num trabalho desenvolvidoposteriormente, Wenger (1998) definiu quatorze elementos que, emconjunto, indicam a formação de uma comunidade de prática. Sãoeles3:

a) relacionamentos mútuos sustentáveis, sejam elesharmoniosos ou conflitantes;

b) formas compartilhadas de engajamento para execução deatividades a serem feitas em conjunto;

c) fluxo rápido de informações e de propagação de inovações;d) ausência de preâmbulos introdutórios, como se conversas

e interações fossem a continuação de um processo emandamento;

e) rápido estabelecimento de problema a ser discutido;

3 A tradução dos 14 elementos indicativos de formação de comunidade deWenger (1998) foram feitos por mim, assim como as demais traduções detrechos dos autores citados neste artigo.

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f) sobreposição substancial na descrição dos participantessobre pertencimento à comunidade;

g) conhecimento sobre o que os outros membros dacomunidade sabem, sobre o que sabem fazer e sobre comopodem contribuir num empreendimento coletivo;

h) identidades mutuamente definidas;i) habilidade para avaliar a adequação de ações e de produtos;j) instrumentos específicos, representações comuns e outros

artefatos;k) histórias compartilhadas, saber local, piadas

compartilhadas pelo grupo, riso conhecido;l) jargão e atalhos na comunicação bem como facilidade para

se construir novos jargões e atalhos;m) alguns estilos reconhecidos como identificadores de

filiação;n) discurso compartilhado que reflete uma certa visão de

mundo.(Wenger, 1998, p.125-26).

Em um projeto desenvolvido em uma escola pública em SaltLake City, nos Estados Unidos, Rogoff, Matusov e White (2000)desenvolveram um modelo de instrução denominado de comunidadede aprendizes. Tal modelo encontra-se ancorado na teoria sócio-interacionista de ensino e aprendizagem (Oliveira, 1998), “poisassume que a aprendizagem envolve transformação da participaçãoem um empreendimento cooperativo” (Rogoff; Matusov; White,2000, p.322). Segundo os autores, a perspectiva teórica datransformação da participação tem como principal premissa que aaprendizagem e o desenvolvimento ocorrem enquanto as pessoasparticipam e se envolvem nas atividades em sua comunidade e queseu entendimento sobre a comunidade, seus papéis dentro dela esuas responsabilidades se transformam à medida que participam.Tal visão encontra-se respaldada no conceito, cunhado por Lave eWenger (1991), de participação periférica legítima. Segundo essesautores, dentro de uma comunidade, a participação dos aprendizesinevitavelmente se transforma à medida que o novato se envolve como funcionamento da comunidade. Assim, a participação periféricalegítima “fornece uma forma de se falar sobre as relações entrenovatos e veteranos e também sobre atividades, identidades. [...] Oconceito diz respeito ao processo pelo qual novatos se tornam

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membros de uma comunidade de prática” (Lave; Wenger, 1991,p.29).

No modelo de instrução de comunidade de aprendizes deRogoff, Matusov e White (2000), todos os participantes, sejam elespais, alunos ou professores, têm participação ativa no processo deaprendizagem. O que varia é o grau de participação de seus membros.É por isso que tal modelo considera a aprendizagem em termos “detransformação da participação das pessoas e concebe osparticipantes como tendo responsabilidade compartilhada pelaaprendizagem, com a orientação de esforços conjuntosproporcionados por alguns participantes” (p.340).

Diferentemente das comunidades de aprendizes, ascomunidades de aprendizagem têm o foco na aprendizagem, ou seja,no processo. Assim, com base em Palloff e Pratt (1999), Kenski (2003,p.108) conceitua comunidade virtual de aprendizagem como aquelaem que todos os membros têm os mesmos objetivos; existe centralizaçãodos resultados a serem alcançados; há igualdade de direito e departicipação para todos os membros; são definidos valores, normase comportamentos de comum acordo; o trabalho é feito em equipe; osprofessores assumem o papel de animadores e orientadores dacomunidade; a aprendizagem ocorre de forma colaborativa; ocorrea criação ativa de conhecimentos e significados de acordo com o temade interesse da comunidade; e finalmente, a interação entre osparticipantes é permanente. Os critérios definidos por Kenski (2003)para o estabelecimento de uma comunidade virtual de aprendizagemencontram-se fundamentados na visão de Lévy (1999) sobrecomunidades virtuais. Segundo ele, “uma comunidade virtual éconstruída sobre as afinidades de interesses, de conhecimentos,sobre projetos mútuos, em um processo de cooperação ou de troca,tudo isso independentemente das proximidades geográficas oufiliações institucionais” (p.127). A conceituação de comunidadevirtual de aprendizagem pode ser aplicada para o processo deaprendizagem em qualquer tipo de ambientação, seja ela virtual oupresencial.

Além das variações de comunidades descritas até aqui, temosainda a comunidade de questionamento4 proposta por Garrison,Anderson e Archer (2000). Para esses autores, que fundamentam sua

4 No original, os autores utilizam a expressão community of inquiry.

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proposta no construtivismo interacionista, o modelo de comunidadede questionamento, com enfoque em ambientação mediada porcomputadores, toma como pressuposto que a aprendizagem dentroda comunidade ocorre pela interação de três elementos centrais, quesão a presença cognitiva, a presença social e a presença de ensino.A primeira delas, presença cognitiva, relaciona-se à compreensãopela comunicação, ou seja, refere-se à capacidade dos participantesde uma comunidade de questionamento de construir significadospor meio de processos de comunicação sustentada. O segundoelemento do modelo desse tipo de comunidade é a presença social,definida pelos autores como a habilidade dos participantes emprojetar suas características pessoais para a comunidade, mostrando-se aos demais participantes como realmente são. Tal elemento éessencial quando se assume que, além dos fatores cognitivos, oprocesso educacional também envolve fatores afetivos. Finalmente,o terceiro elemento central para o estabelecimento de uma comunidadede questionamento é a presença de ensino, que compreende duasfunções gerais a serem desempenhadas por qualquer integrante dacomunidade. Entretanto, no meio educacional, segundo os autores,tais funções geralmente incidem na figura do professor, que seencarrega, então, do planejamento do curso e assume o papel defacilitador, podendo compartilhá-lo, ou não, com alguns ou comtodos os demais participantes da comunidade.

As comunidades de aprendizagem e de questionamentopossuem muito em comum já que ambas têm foco na aprendizagem.O que parece diferenciá-las é que a primeira parece estar mais voltadapara ambientes formais de ensino, com foco no processo de ensinoe aprendizagem, enquanto que a segunda também carrega um cunhoideológico, com foco na reflexão crítica, podendo ter conseqüênciaseducacionais, ou não.

Johns (1997), por sua vez, traz à tona o conceito de comunidadeacadêmica, baseando-se nas seis características propostas por Swales(1990) para definir uma comunidade discursiva, que são:estabelecimento de objetivos comuns compartilhados; existência demecanismos de comunicação entre os membros da comunidade(como, por exemplo, boletins informativos); utilização de mecanismosde participação, principalmente para fornecer informação e feedback;desenvolvimento de vocabulário próprio, além dos gêneros que jáestão incorporados à comunidade; existência de integrantes com

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diferentes níveis de conhecimento conteudístico e de discurso;utilização e posse de um ou mais gêneros para a continuidadecomunicativa de seus objetivos (Swales apud Johns, 1997, p.52).Além disso, Johns (1997) enfatiza que a filiação a uma comunidadeacadêmica ocorre de forma voluntária, ou seja, seus membrosescolhem vincular-se a ela e os vínculos são estabelecidos devido àexistência de interesses comuns. A autora também afirma que ocomprometimento do indivíduo com a comunidade geralmentevaria com o tempo. Um outro aspecto que vale ser destacado dizrespeito a conflitos que podem surgir, decorrentes de mudançaspelas quais alguns indivíduos passam quando se vinculam a umacomunidade acadêmica. Segundo ela, o envolvimento intenso oufiliação a comunidades acadêmicas exigem que estudantes abrammão de aspectos culturais e lingüísticos que possuíam antes de sevincular a essa comunidade. Um outro aspecto, ainda, diz respeitoàs constantes mudanças dentro de qualquer comunidade. É naturalque as comunidades evoluam constantemente, embora algunsmembros já estabelecidos possam tentar manter o poder por meio docontrole da linguagem e dos gêneros, deixando os novatos, porconveniência, numa posição mais periférica.

O quadro a seguir procura sintetizar as diferentescategorizações de comunidades revisadas nesta seção.

LAVE e WENGER, WENGER, 1998 ROGOFF, MATUSOV

1991 e WHITE, 1996/2000

Comunidade Comunidade Comunidadede prática de prática de aprendizes

PALOFF E GARRISON, JOHNS, 1997PRATT, 1999; ANDERSON

KENSKI, 2003 e ARCHER, 2000

Comunidade Comunidade Comunidadevirtual de de questionamento acadêmicaaprendizagem

Quadro 1: algumas categorizações de comunidades.

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Conforme é possível observar no Quadro 1, apesar dasdiferentes naturezas das comunidades, existem, em cada uma delas,elementos constitutivos que coincidem, alguns que se confundem eainda outros que se sobrepõem. No entanto, para que umacomunidade se constitua como tal, são necessários vários aspectos,destacados pelos diversos autores analisados neste artigo. Assim, épossível estabelecer um paralelo, por exemplo, entre a comunidadeacadêmica, descrita por Johns (1997) e os demais tipos de comunidade.De alguma forma, todos possuem aspectos comuns, como, porexemplo, a importância do estabelecimento de objetivos comunscompartilhados por seus membros e a existência de uma estruturainterna e de um senso de pertencimento que é inerente aos membrosda comunidade. Assim como Wenger (1998), Johns (1997) ressalta anecessidade de mecanismos de comunicação entre os integrantes dacomunidade e a relevância da existência de uma linguagem comume de um vocabulário próprio a seus membros. Ainda, na conceituaçãode comunidade acadêmica feita por Johns (1997), a autora destacaa relevância da existência de participantes com diferentes níveis deconhecimento conteudístico e de discurso e que o comprometimentodo indivíduo com a comunidade varia com o tempo. Essacaracterística pode ser associada ao que Lave e Wenger (1991) eWenger (1998) entendem por diferentes formas de participação e porparticipação periférica legítima.

As reflexões sobre os diferentes tipos de comunidadecontribuirão para a compreensão do contexto em que se insere ocurso de língua inglesa em foco neste estudo e para verificar seexistem elementos constitutivos de uma comunidade nesse contexto.

O CONTEXTO INSTITUCIONAL E A INSERÇÃO DO CURSO DE INGLÊS NO CURRÍCULO

O curso de graduação em Engenharia no instituto onde esteestudo se desenvolveu difere de outros cursos de Engenhariabrasileiros por diversas razões. Os alunos são provenientes dascinco diferentes regiões do Brasil e vivem no alojamento estudantilsituado no campus durante todo o ano letivo. Os estudantes podemfazer as refeições no refeitório próximo ao alojamento e têm acesso adiversas facilidades como clube, supermercado, correio, bancos eatendimento médico, que também se situam dentro do campus. Alémdisso, todos os apartamentos do alojamento têm possibilidade de

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acesso à rede de computadores. É, portanto muito comum que o alunode graduação não sinta a necessidade de sair do campus no seu dia-a-dia e que não freqüente a cidade, já que ele consegue dar conta desua rotina sem sair das imediações em que a instituição se encontra.Dessa forma, a convivência dos estudantes fica restrita e bastantecentrada em colegas de curso – todos da área de Engenharia.

Além desses fatores, é importante acrescentar que a cargacurricular ao longo de toda graduação é bastante densa (cerca de 32horas/aula semanais) e inflexível. Os cursos são semestrais, não sãobaseados em sistema de créditos e, para ser aprovado, a cadasemestre o aluno deve atingir média 6,5 (seis e meio) em todas asmatérias. No caso de média semestral inferior a 6,5, o aluno devefazer exame de segunda época no início do semestre seguinte; porém,são permitidas apenas duas segundas épocas por semestre. O controleda presença nas aulas é bastante rigoroso e deve-se observar o limitede faltas: 10% do total de aulas de um semestre, ou 15% do total deaulas de uma única matéria no semestre. O não -cumprimento desseslimites pode levar ao trancamento da matrícula e, em caso dereincidência, o aluno pode vir a ser desligado do curso. Tal rigor noregime escolar torna os alunos extremamente disciplinados e muitopreocupados com o excesso de trabalho e de avaliações: os alunossabem que qualquer deslize de sua parte pode levá-los aodesligamento do curso.

Por um lado, um contexto como esse é favorável aodesenvolvimento de projetos pedagógicos: os alunos estão próximos,têm uma convivência intensa com seus pares, todos têm facilidadede acesso aos professores, que geralmente trabalham na instituiçãoem regime de período integral, e também a computadores ligados emrede. Cumprem as atividades propostas pelos professores, se não porinteresse pela atividade em si, por receio de repreensão e de uma notabaixa. Por outro lado, a constante pressão a que os alunos sãosubmetidos devido às obrigações escolares e da pressão por um bomdesempenho acadêmico dificulta o envolvimento e a participaçãomais espontânea em atividades que não sejam “para nota”, o querepresenta um forte traço da cultura institucional.

As matérias de língua inglesa são ministradas comodisciplinas obrigatórias no primeiro ano do curso de graduação.Geralmente as turmas são divididas de acordo com o resultadoobtido na prova de inglês do exame vestibular, cujo enfoque é a

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compreensão de textos. Os alunos com desempenho acima da médiacostumam ser dispensados do curso obrigatório; aqueles comdesempenho mediano são encaminhados para um curso de inglêsinstrumental que trabalha as quatro habilidades comunicativas, e osalunos com desempenho abaixo da média são matriculados no cursode inglês instrumental cujo enfoque maior está na habilidade decompreensão escrita. O curso em foco neste trabalho é o cursoinstrumental que trabalha as quatro habilidades (compreensão orale escrita; e produção oral e escrita): ele tem duração de dois semestrese carga horária semanal de três horas/aula de cinqüenta minutoscada, com um total de 48 horas/aula previstas para cada semestreletivo.

Diferentemente do modelo de ensino-aprendizagem que marcaa tradição institucional, o curso de inglês segue uma programaçãoflexível, a que Graves (2000) denomina de abordagem de sistemas paradesenho de curso. De acordo com a autora, os componentes do desenhode um curso (como, por exemplo, definição de objetivos, organizaçãode materiais, análise de necessidades) encontram-se entrelaçados e,portanto, o planejamento de um dos componentes sempre contribuicom os demais. Além disso, conforme exposto no início deste artigo,o curso encontra-se calcado no paradigma educacional emergente(Moraes, 1997) e nos pilares do conhecimento (Delors et al., 2001).

O ESTUDO EXPLORATÓRIO

Com o objetivo de saber como os alunos descrevem e entendemo contexto institucional, o curso de inglês e a proposta pedagógicadesse curso, foi conduzida uma discussão semi-estruturada comalguns alunos matriculados no curso de inglês instrumental descritona seção anterior.

Para dar início ao estudo, que pode ser descrito como umestudo exploratório, os alunos foram convidados para participar deuma conversa com a professora-designer do curso. Esse convite foifeito de forma aberta, solicitando voluntários para participar de umaconversa sobre a instituição e sobre o curso fora do horário de aula.Três alunos de uma turma e cinco de outra dispuseram-se a participar.Essas conversas foram realizadas em duas sessões, uma com cadagrupo, gravadas em áudio e transcritas posteriormente, para fins deanálise. A leitura preliminar das transcrições das conversas mostrou

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não existir diferenças entre as falas dos alunos dos dois grupos,portanto, os dados das entrevistas foram analisados conjuntamente,sem distinção entre a conversa realizada entre uma turma e outra.

Para orientar a conversa, foi preparado um roteiro (Anexo A)contemplando os diversos elementos constitutivos de comunidadesdiscutidos neste artigo. Para a elaboração desse roteiro procurou-selistar as diversas categorias que definem uma comunidade,relacionando-as aos autores que as utilizam. Posteriormente esseselementos foram utilizados para a análise dos dados.

Objetivos Barab e Duffy, 2000; Schulte-Tenckhoff, 2001;Lave e Wenger, 1991; Wenger, 1998;Kenski, 2003; Johns, 1997

Processos e formas Wenger, 1998; Kenski, 2003;de comunicação Garrison, Anderson e Archer,(e participação) 2000; Johns, 1997; Lave e Wenger, 1991

Linguagem Wenger, 1998; Johns, 1997

Território Schulte-Tenckhoff, 2001;Garrison, Anderson e Archer, 2000

Estrutura Wenger, 1998; Johns, 1997Organizacional

Questionamento Garrison, Anderson e Archer, 2000

Senso de Schulte-Tenckhoff, 2001,pertencimento Wenger, 1998

Aprendizagem Rogoff, Matusov e White, 2000;(formas de lidar com Kenski, 2003; Garrison,o conhecimento) Anderson e Archer, 2000; Johns, 1997;

Wenger, 1998; Lave e Wenger, 1991

Normas e rituais Wenger, 1998; Kenski,e comportamentos 2003; Johns, 1997

Quadro 2: a organização do roteiro.

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Conforme ilustra o Quadro 2, o roteiro de discussão enfocoudiversas categorias constitutivas de uma comunidade. Assim,durante a conversa com os alunos foram abordadas questões quediscutem os objetivos (da instituição e do curso); questões sobre comose dá a comunicação no contexto, ou seja, os processos e as formasde comunicação; e ainda, se existe uma linguagem que diferencia osintegrantes da Instituição. Outro aspecto analisado foi a percepçãoque os alunos têm do espaço institucional e da estruturaorganizacional. Outras perguntas procuraram focar emquestionamentos que emergem do meio. Observou-se, também, seexiste senso de pertencimento ao meio; e, finalmente, como é ocomportamento na instituição, isto é, se existem normas e rituais quelhe são característicos.

Durante a conversa com os alunos, chamou atenção o fato deas questões institucionais serem tão fortes a ponto de praticamenteofuscarem questões relativas ao curso de inglês. Embora as conversasnão tenham ocorrido de forma tão linear, a análise será dividida emduas partes: primeiramente serão levantadas questões relacionadasà instituição como um todo; em seguida, serão considerados ospontos referentes ao curso de inglês propriamente dito. Com isso,pretende-se observar se há elementos constitutivos de umacomunidade, ou de comunidades, nesse contexto. A análise procuraráseguir os itens do roteiro da conversa (Anexo A), porém nãonecessariamente na mesma ordem.

ANÁLISE DA CONVERSA COM OS ALUNOS

As conversas com os alunos foram conduzidas de forma abuscar compreender sua visão da instituição como um todo e docurso de inglês inserido no contexto institucional. Serão consideradascomo instituição, a faculdade (doravante X) e a moradia (doravanteY). Isso porque, muitas vezes, dentro da cultura institucional, torna-se difícil delimitar a fronteira entre uma e outra. A fala de um dosalunos ilustra esse ponto:

[...] é meio paradoxal o X e o Y serem a mesma coisa. O anopassado teve um menino que deu muito problema no Y e elefoi trancado no X. Quer dizer, o X trancou porque o cara nãotinha moral. Se ele não morasse lá, o X não ia nem saber, entãonão sei como que se dosa isso.

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Pensando que é inerente a uma comunidade a existência deum território (Wenger, 1998; Lévy, 1999), é possível ver, na fala deoutro aluno, que os espaços se mesclam e se confundem:

Eu acho que é o Y e o X, mas quem faz do X um único espaçoé o Y. Porque o Y fortalece muito a união que tem aqui, [...] oX é hoje, eu acho que 70% do Y.

Portanto, a análise feita neste estudo assumirá essa visão deque faculdade e moradia são territórios integrados, que ora seinterseccionam, ora se mesclam e ora se diferenciam mas que, de umaforma ou de outra, representam um único espaço.

Foco na instituição

A existência de objetivos comuns compartilhados é um dosaspectos essenciais apontados na literatura para o estabelecimentode qualquer comunidade. Observa-se, na fala dos alunos queparticiparam da conversa, que para eles os objetivos da instituiçãoestão claros:

Eu acho que o grande objetivo do X é formar engenheiros, epessoas muito capazes, uma boa elite, principalmente, deengenheiros para o país...

Quanto aos objetivos dos alunos que estão na instituição,observa-se que eles estão presentes, porém, não são fixos e previamenteestabelecidos, conforme mostram os trechos a seguir:

Eu não vejo um objetivo, não. O X é que dá a chance de vocêcumprir seu objetivo. Quando você está aqui, você começa amudar tanto os seus objetivos que você vê as oportunidadesque o X te dá.

– o pessoal se decepciona muito quando entra aqui. Não sei seé porque espera muito antes de entrar. [...] Mas o pessoal vempra cá com a expectativa de que vai virar gênio. Então quandochega vem com o espírito de que vai fazer um monte dematérias extracurriculares, mas não dá porque o X não deixa...é muita matéria em pouco tempo e a cobrança é muito grande,e o pessoal fica esgotado. E acaba fazendo o mínimo [...]

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Geralmente o aluno chega à instituição cheio de sonhos eambições, orgulhoso por ter sido aprovado num exame vestibularbastante seletivo e se depara com uma estrutura organizacionalcomplexa que não lhe permite agir conforme os objetivos previamenteplanejados. O que se observa é que, gradativamente, o aluno vai seacomodando dentro da estrutura da Instituição e os objetivos quetinha antes de se juntar a ela vão mudando para que consiga semanter dentro dela. Pode-se entender isso, também, como uma formade integração e de obtenção do senso de pertencimento ao meio (Lave;Wenger, 1991), uma vez que os objetivos da comunidade vão,gradativamente, sendo adotados e incorporados pelos novosmembros.

Ao falarem sobre como se estabelecem os processos decomunicação, surgem também questões relativas a hierarquias eformas de participação dentro do contexto institucional. Napercepção dos alunos, a comunicação, dentro da instituição, com osprofessores em geral, e principalmente com professores que já foramalunos da mesma instituição, é considerada satisfatória, conformemostra trecho da entrevista:

- O cara que se formou no X, pode ter muito tempo, mas o Xse mantém estável. Então, mais ou menos ele tem uma idéiado que você está passando aqui, se você chegar na prova dele,o Prof. A5 ele sabe, porque ele já fez. Ele já tem uma idéia,mesmo...- Então a comunicação fica mais fácil ?..... se você vai conversar com ele, você já sabe o que você vaifalar para ele, e já sabe as respostas.- Sendo da matéria ou não.

Na percepção dos alunos, a comunicação entre os parestambém flui bem, principalmente quando se trata de alunos damesma turma, que ingressaram na Instituição no mesmo ano.

Comunicação aluno-aluno, é pessoal. Todo mundo morajunto.Aluno-aluno é muito próxima a relação, você dá alguns passosconversa com um, conversa com outro e tal...

5 O professor, cujo nome foi omitido propositalmente, foi aluno na Instituiçãono início dos anos 80.

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- E essa comunicação do Y se estende aqui dentro do X, já quevocê colocou essa diferença.- Principalmente com a própria turma.

O mesmo já não ocorre em alguns casos quando a comunicaçãose dá com alunos de outros anos, conforme ilustra o trecho a seguir:

- Dentro do Y também existe essa distinção. Entre ‘bixo’6 eveterano.- Tem cara que você vai conversar e ele já olha com cara debunda para você, e já fala “ah, idiotice...”.- Por que você é “bixo”?- É.

Conforme aponta Wenger (1998), a existência de hierarquias, depapéis bem definidos e de diferentes formas de participação e de práticassão inerentes às características de uma comunidade. Os trechos acima,bem como o trecho a seguir ilustram isso:

- as hierarquias são de turma mesmo. O quinto ano manda, osoutros quatro (anos) fazem. O quarto ano manda, os outros trêsfazem... [...]

- esse é um dos valores que eles passam pra gente adestrandosobre isso. Então, por exemplo, a 097 aprendeu a respeitarveterano, assim como a 05 foi ensinada a respeitar todos osveteranos (que já saíram). O que eles alegam é que quem tá aquihá mais tempo tem mais experiência de vida – que até tem –mas não sei se esse argumento é válido.- vocês que são ‘bixos’ este ano, vão mudar em relação aos‘bixos’ o ano que vem?- algumas pessoas já estão se preparando pra isso, vão fazer asmesmas coisas e vai continuar, vai manter a tradição.- O problema é que quem não mantém as tradições érecriminado.

Outro ponto que emerge a partir desses exemplos diz respeitoàs formas de participação. Lave e Wenger (1991) introduziram oconceito de participação periférica legítima para descrever como se

6 Os calouros são chamados de “bixos”, termo grafado propositalmentedesta forma.

7 Refere-se ao ano que a turma irá se formar. Portanto ‘a 09’ refere-se aosalunos que se formarão em 2009.

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dá a participação do indivíduo dentro da comunidade, participaçãoesta que se modifica de acordo com sua trajetória dentro dacomunidade. O que os autores colocam é que a participação periféricanão é contrária a uma participação mais central. O integrante vaimudando de papéis, passando, gradativamente, de uma participaçãomenos complexa na comunidade para uma participação maiscompleta e complexa. O que se observa na fala dos alunos é que aexistência de uma hierarquia muito acentuada no contexto da moradiaacaba por influenciar a forma de participação do aluno. Isso acabapor interferir, também, em sua atuação no contexto escolar, só que deoutra forma. Na moradia, o “bixo”, aluno de primeiro ano, não temmuito espaço para atuação, principalmente nos primeiros meses nainstituição. Isso se modifica com o passar do tempo e é marcado pelasdefinições para cada ano do estudante na escola: primeiramente eleé “bixo”, mas depois ele não passa simplesmente a veterano: elepassa por diversas fases até chegar a ser conhecido por “semideus”(40ano); e “deus” (50ano).8

A participação, de acordo com o relato dos alunos, pode serdescrita como uma curva de distribuição normal, conforme o gráficoa seguir.

8 Essa referência às hierarquias é uma terminologia que faz parte da linguagemnesse meio.

0

5

10

a nos

Gráfico 1: representação da participação.

Logo que o aluno é aprovado no vestibular e ingressa nainstituição, ele não atua em nada, ou atua muito pouco no meio; aospoucos, dependendo do interesse do aluno, e conforme ele se integra,ocorre uma ascensão na participação, que passa a decrescer àmedida que a formatura e a expectativa de busca de um emprego seaproximam. Isso não significa, porém, que o aluno vá se distanciardo meio pois, mesmo depois de formados, a ligação entre ex-alunos

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e entre ex-alunos e a instituição é bastante forte e marcada pelaexistência de diversos instrumentos, como listas de discussão,associação de ex-alunos, boletins informativos e eventos anuaispara promover encontros entre alunos e ex-alunos. Isso nos remetea alguns itens da lista de 14 elementos propostas por Wenger (1998)para indicar a formação de uma comunidade de prática. Observa-sea existência de instrumentos específicos que identificam os membrosde uma comunidade, como a organização de encontros, listas eassociações para compartilhar saberes e histórias; a efetivação deuma linguagem comum a todos os integrantes; e um espaço (presenciale virtual) para se compartilhar experiências. Tais mecanismos tambémsão identificados por Johns (1997) ao caracterizar uma comunidadeacadêmica.

Além disso, conforme aponta a fala de um dos alunos, existeuma “máfia” que, de certa forma, obriga os alunos a desenvolvercertos tipos de comportamento:

[...] você entra aqui aí fica muito aquela máfia; o pessoal falamuito de máfia: não criticar muito veterano, não bater defrente com veterano. É porque você pode sair daqui e precisarde um emprego e seu veterano vai poder te dar. Isso acontecemuito...

Esse tipo de preocupação retratada pelas diferenças entreveteranos e novatos reforça o pressuposto de existência demecanismos de participação e de comportamento hierarquizadosexistentes na Instituição.

No contexto acadêmico também existe uma mudança naparticipação do aluno com o passar do tempo. No início, tudo é novoe diferente. Com o passar do tempo, o aluno vai incorporando asnormas de funcionamento da faculdade tanto no que diz respeito aprocedimentos administrativos como no que se refere ao andamentoda rotina escolar. Isso certamente interfere em sua forma departicipação. Uma vez que o aluno se torna mais familiarizado como meio, sua atuação e sua participação também mudam.

você vai lá no segundo ano, o cara não é mais cobrado porveteranos, não tem ninguém enchendo a cabeça dele, e vocêacaba se acomodando mais.

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Isso significa que, passado o período de adaptação, o alunose sente mais confortável com o funcionamento da estrutura à qualestá vinculado.

Uma preocupação que também se mostra muito acentuada nafala dos alunos é a dificuldade que sentem para que se efetuequalquer modificação na estrutura que existe e que está solidificada.Parece não haver espaço para questionamentos de um modo geral epara qualquer tipo de contestação e de tentativas de mudança poishá uma estrutura de poder muito rígida. O trecho a seguir ilustra bemessa situação:

Quando você chega, a preocupação dos veteranos é adestrar opessoal. Em certo ponto isso é até bom, porque tem muita coisalá que você só aprende na marra mesmo. Mas tem outras quevocê tem que acabar aceitando sem criticar, porque se vocêcritica, é que você ainda não faz parte, você não entende isso.Pra quem a gente critica e que dá ouvidos, é aquele pessoaltotalmente decepcionado com o Y que já desistiu de fazerqualquer coisa pra mudar. E se você for conversar com opessoal que é mais ativo ali, é o pessoal mais vibrão dessahistória de sistema já imposto.

Assim, embora isoladamente os alunos até questionem,reflitam e critiquem diversos assuntos no que diz respeito à moradiae também à faculdade, está claro para todos que o sistema é muitocomplexo e estruturado de tal forma que não há espaço paraquestionamentos ou mudanças. O poder instituído é muito forte eestá enraizado de tal forma que não há como contestá-lo. O aluno sevê obrigado a aceitar ou a se calar. Apesar disso, quando emerge otema relacionado a senso de pertencimento, após algumas discussões,a fala de um dos alunos reafirma o que já havia sido dito anteriormente,reforçando, mais uma vez, alguns dos elementos listados por Wenger(1998):

no meu caso eu acho que eu to andando, caminhando (parapertencer cada vez mais) porque eu não conheço a comunidade,eu conheço algumas turmas que também estão aprendendocomo eu só que já estão aqui há um pouquinho mais de tempo...

Apesar da estrutura bastante hermética, os alunos vãomudando sua forma de participação e sentindo-se, gradativamente,

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mais integrados ao meio.9 Essa integração, no entanto, pode sercompreendida como uma forma de sobrevivência no meio. Por umlado, isso é visto como um resultado natural de estar cursando umadeterminada faculdade que tem características muito singulares.Por outro lado, isso também os assusta e os deixa, de certa forma,alertas, como mostra o trecho a seguir:

- com relação a essa coisa de comunidade do X, por exemplo,eu tenho medo, quando eu volto pra casa, por exemplo, eutenho medo de voltar completamente diferente, ou de aspessoas me estranharem. [...] Ah, foi pra lá, olha como voltou...A nossa comunidade ..., lá fora tem gente que conhece, de umaforma, tipo ‘ah, X mongolóide’...- é aquele negócio, quando é pra fazer um trabalho chamaalguém do X agora se é prá jogar bola...- Mas acaba que é um orgulho tremendo fazer parte do X, vocêfica superfalado...

Os trechos acima corroboram a posição de Johns (1997) aoafirmar que o envolvimento intenso ou a filiação em comunidadesacadêmicas levam o estudante a abrir mão de aspectos culturais elingüísticos que possuía antes de integrar aquela comunidade. Oaluno passa a se ver diante de comunidades diferentes com exigênciasdiferentes. E isso se torna muito forte na instituição que é objeto desteestudo. A partir do momento em que o aluno ingressa na faculdadee passa a morar no alojamento, ele começa a adquirir um vocabuláriomuito característico do local e também a incorporar traços e tradiçõespertencentes à cultura local. Ele percebe, portanto, que existemdiferenças entre os membros da comunidade X e outras comunidadesàs quais possivelmente ele esteja vinculado. E percebe, também, queestá diante de comunidades diferentes, com exigências diferentes.

Na análise feita até aqui, cujo foco foi a instituição, aí entendidacomo faculdade e moradia, observa-se a existência de objetivoscomuns compartilhados pelos membros da comunidade, a presençade uma estrutura interna bastante enraizada e, nesse caso, muitopouco flexível. Mesmo demonstrando algum desconforto com relaçãoa algumas peculiaridades inerentes ao meio, os participantes sentem-

9 É importante lembrar que os participantes deste estudo são todos alunosdo primeiro ano de graduação e que quando a entrevista ocorreu elesestavam na instituição há cerca de seis meses.

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se membros da comunidade, ou seja, há um senso de pertençacrescente. Além desses aspectos, existem outros que devem serdestacados: Johns (1997) e Wenger (1998) ressaltam a necessidadede mecanismos de comunicação entre os membros de umacomunidade e a relevância da existência de uma linguagem comume de um vocabulário próprio a seus membros. No contexto analisado,essas características são muito fortes. Além de instrumentos internosde comunicação, existe uma linguagem bastante própria ecaracterística na comunidade, que a torna bastante peculiar. Ainda,na conceituação de comunidade acadêmica feita por Johns (1997), aautora destaca a relevância da existência de membros com diferentesníveis de conhecimento e diz que o comprometimento do indivíduocom a comunidade varia com o tempo. Essa característica, quetambém é destacada por Lave e Wenger (1991) e Wenger (1998),relaciona-se a formas de participação dentro da comunidade e aoconceito de participação periférica legítima, o que é descrito eenfatizado claramente pelos participantes durante as entrevistas.Assim, torna-se possível constatar que o contexto em que o curso deEngenharia está inserido, constituído pela faculdade e moradia,representa uma comunidade com características muito própriascom traços de uma comunidade de prática (Lave; Wenger, 1991;Wenger, 1998) e também de uma comunidade acadêmica (Johns,1997).

Na próxima seção será discutida a percepção dos alunossobre o curso de inglês inserido dentro do currículo de graduação eministrado aos alunos no primeiro ano da faculdade.

Foco no curso de inglês

Conforme indicado no início deste estudo, durante a conversacom os dois grupos, as questões relativas ao curso de inglês foramofuscadas pelas questões institucionais. Tal encaminhamentomostra-se como um indício de que questões relativas à instituição sãocomplexas e fortemente enraizadas na cultura local, dificilmenteabrindo espaço para reflexões mais aprofundadas sobre experiênciasdiferenciadas, como a proposta pedagógica do curso de inglês. Essasquestões, entretanto, surgiram durante a conversa com os grupos eserão pontuadas a seguir.

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A primeira questão diz respeito à cultura local, que transmite,ano a ano, para os alunos ingressantes na instituição a idéia de queas matérias da área de Ciências Humanas e de Línguas (materna eestrangeira) não são tão relevantes para a sua formação como asmatérias ministradas pelos demais departamentos, todos da áreadas Ciências Exatas.

Eu sabia, quando cheguei aqui, que Humanidades seria amatéria mais tranqüila. Todo mundo passou isso pra gente;humanidades é ‘coçado’ [...].

Assim, boa parte dos alunos já ingressa no curso de inglêstendo como pressuposto que a matéria não é relevante, deixandoclaro que se encontra enraizada, na cultura local, uma tácita noçãode prestígio de algumas disciplinas em detrimento a outras, o quetraz dificuldades posteriores relativas a motivação, envolvimento eparticipação no curso de inglês, entre outros.

Embora os alunos tenham conhecimento do programa docurso de inglês desde o primeiro dia de aula, e considerem aprogramação muito bem elaborada, os objetivos do curso tal comoeste está estruturado não são claros para eles. Parece que aí entramquestões relativas a crenças sobre o que é aprender uma línguaestrangeira e como isso se insere no currículo de uma faculdade deEngenharia. O trecho a seguir ilustra bem isso:

É um erro colocar o inglês de bengala no X. Porque não pareceum curso de inglês e sim algo que está querendo se adequarao X. A gente não estuda inglês, inglês como eu gostaria deestudar. A gente estuda pra complementar o X, o curso parecemais autoconhecimento, pra aprender engenharia. Parece queeu estou aprendendo engenharia, e de quebra, eu aprendoinglês. Não parece que eu estou aprendendo inglês: é dequebra, eu ganhei inglês de bônus. Eu acho que a gente deviater um cursinho regular de inglês.

Apesar dessa insatisfação e da falta de entendimento porparte dos alunos sobre o que seja um curso fundamentado naabordagem instrumental (Hutchinson; Waters, 1987; Dudley Evans;St. John, 1998, entre outros), alguns pontos relevantes e queinteressam à proposta pedagógica do curso emergem na fala dosalunos. A primeira diz respeito à dinâmica da aula, calcada em

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tarefas colaborativas (Ellis, 2003), que é considerada diferente e maisenvolvente do que as demais matérias do currículo.

Um grande problema do X é que ele é movido a prova. Teprende, tal. A didática do curso de inglês é melhor mas chocacom o resto.

O segundo ponto relevante diz respeito à participação nasaulas propriamente ditas. Enquanto, no dizer dos alunos, as demaisaulas seguem um padrão tradicional, marcado pelo “cuspe e giz”,o que leva boa parte dos alunos a dormir em sala de aula, nas aulasde inglês há bastante envolvimento:

A participação no curso de inglês é bem maior que nos outroscursos. Porque o curso de inglês você se relaciona muito. Nosoutros cursos o pessoal dorme.

Essa participação, explicitada pelos alunos, também vai aoencontro da proposta da teoria de ensino e aprendizagem na qual ocurso está fundamentado (Moraes, 1997; Oliveira, 1998; Barros;Cavalcante, 2000, entre outros).

Finalmente, o terceiro ponto a ser destacado nas conversas dizrespeito aos mecanismos de comunicação do curso. Primeiramentea comunicação e conseqüente interação em sala de aula, tanto entreprofessora-alunos quanto alunos-alunos:

se comparada aos outros cursos, é mais próxima. Você comoprofessora, mesmo a gente como aluno, a intimidade é bemmaior. Pelo próprio modelo da aula. Eu gosto disso. Pelo jeitoda aula. A dinâmica da aula é diferente. Nas outras matériaseu só preciso perguntar o que tenho que fazer, quanto tenhoque tirar ou que prova que vai ter.

Segue-se a comunicação pelo meio eletrônico, na forma de um fórumdisponibilizado no site do curso:

no começo, quando eu soube dos fóruns eu fiquei bementusiasmado. Nossa que legal!! Achei que a gente iaconversar... a idéia eu achei bem legal. Só que o pessoal já édesinteressado aqui, então quando sai pra fora ainda é pior.

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Embora a comunicação que se estabeleça dentro da sala deaula mostre proximidade entre os alunos e entre os alunos e aprofessora, mesmo com a disponibilização de uma ferramenta decomunicação eletrônica assíncrona, não se observa a emergência demecanismos de comunicação característicos de uma comunidade,como descritos por Johns (1997) ou Wenger (1998).

Os elementos apontados acima confirmam que o curso deinglês está calcado em princípios educacionais diferentes dos demaiscursos do currículo da instituição. Confirmam, também, que existeum descompasso entre o curso de inglês e as demais disciplinascursadas pelos alunos na instituição.

Conforme explicitado no início deste artigo, o curso de inglêsfoi planejado fundamentando-se na abordagem instrumental, tendoos quatro pilares do conhecimento e o paradigma educacionalemergente como suportes teóricos. Além disso, incluiu-se no cursoum componente eletrônico, na forma construção coletiva de um site,para inserção das produções dos alunos, disponibilização de linksde interesse e também para comunicação entre os participantes pormeio de um fórum. Este site recebeu o nome de “X’s English learningcommunity” por sugestão da professora-designer, por supor que umcurso fundamentado nos alicerces acima descritos poderia conduzirà formação de uma comunidade.

Como visto nesta análise, a literatura mostra, no entanto, queuma comunidade dificilmente se constitui se não houver umacombinação entre uma série de elementos, entre eles, objetivoscompartilhados por todos os membros, senso de pertencimento aomeio e normas, rituais e comportamentos característicos. Esseselementos não foram observados na conversa com os alunos sobreo curso de inglês o que leva à conclusão de que esse curso, dentro docontexto institucional, não se constitui numa comunidade. Isso, noentanto, não representa empecilho para a continuidade do curso nocontexto no qual ele se encontra inserido. A análise mostra, isso sim,a importância do conhecimento e da análise do meio (Dudley Evans;St Johns, 1998) no contexto de ensino-aprendizagem de línguas.Consciente das limitações impostas pelo meio, o professor que seguea abordagem instrumental poderá definir melhor os parâmetros quenortearão o desenho de seu curso.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou analisar como os alunos de umafaculdade de engenharia, matriculados no curso de inglêsinstrumental oferecido no primeiro ano de graduação, descrevem eentendem o contexto institucional em que tal curso está inserido. Talanálise teve por objetivo verificar se existem elementos constitutivosde uma comunidade nesse contexto.

Conforme nos mostra a literatura, o conceito de comunidade,e suas diversas categorizações, de certa forma se misturam e sesobrepõem. De qualquer forma, observa-se que, para que umacomunidade se efetive como tal, é necessário que ela seja marcada pordiversos fatores como: objetivos comuns compartilhados por seusintegrantes; mecanismos de comunicação bem estabelecidos; formasde participação que vão de uma participação periférica legitima parauma participação mais integral, completa e complexa; papéis bemdefinidos; uma estrutura organizacional clara; normas, rituais ecomportamentos característicos; formas, processos de aprendizagemde seus integrantes; além de marcas que fazem com que seusintegrantes sintam-se pertencentes a ela.

Foi possível verificar, na análise feita, que o contextoinstitucional, que compreende moradia estudantil e faculdade, pareceenglobar elementos constitutivos de uma comunidade, o que nospermite dizer que esse meio se constitui como uma comunidade deprática, se assumirmos os pressupostos teóricos fundamentados porLave e Wenger (1991) e Wenger (1998), ou uma comunidadeacadêmica, se tomarmos como pressuposto Johns (1997). O mesmonão ocorre ao se focar o curso de inglês. Esse se encontra inseridonum contexto maior, numa comunidade, mas ele, por si só não seconstitui como uma comunidade, permanecendo, na percepção dosalunos, apenas um curso que tem uma proposta pedagógicadiferenciada dentro de um contexto muito singular.

Sendo este um estudo exploratório, além das consideraçõesfeitas até aqui, ele também contribuiu para que a professora-designerdo curso compreendesse as limitações enfrentadas durante o curso,limitações essas inerentes ao próprio contexto institucional e àcomunidade que caracteriza esse contexto.

Estudos exploratórios sobre comunidades podem ser degrande valia no contexto de ensino-aprendizagem em geral e de

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cursos dentro da abordagem instrumental em particular, uma vezque, conforme apontado no início deste artigo, esses estudos podemse relacionar diretamente à análise do meio em que o curso estáinserido.

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Recebido em fevereiro de 2007e aceito em setembro de 2007.

Title: Investigating a community in the context of an ESP courseAbstract: With the objective of understanding the environment in which an ESP courseis held, this article analyzes how undergraduate engineering students enrolled in thatcourse describe and understand the institutional context and compare it to the languagecourse context. The aim of such analysis was to verify the existence of elements thatconstitute a community. In order to reach such aim, some students participated in a semi-structured interview which was then analyzed in the light of the various categories thatconstitute different types of communities and which are discussed in this article. Theresults show that the institutional context seems to constitute a community whereasthe ESP course does not, remaining, to the students, a course that has a unique coursedesign inserted in a very particular context.Keywords: communities; foreign language teaching and learning; ESP.

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ANEXO A

Conversa sobre o “olhar” do aluno para a instituição e para o curso

Com foco na instituição Com foco no cursocomo um todo de inglês

Objetivos Como vcs entendem os E os objetivosobjetivos do X? Para vcs, do nosso curso?quais são eles? Em quemedida vcs compartilhamdesses objetivos?

Processos e Como se dá a Como se dá aformas de comunicação entre comunicaçãocomunicação vocês e a Instituição? no nosso curso:(e participação) Vcs ↔ professores; Vcs ↔ euVcs ↔ vcs

Vcs ↔ vcs; Vcs ↔ direção Que canais deQue canais de comunicação comunicação existemexistem na Instituição? no nosso curso?

Linguagem Vamos falar um pouco Como é que isso seda linguagem: existe dá no nosso curso?uma linguagemcompartilhada por todos?Ela difere (e em que) qdo acomunicação se dá entre vcse entre vcs e a Instituição?Ela difere dependendo docanal de comunicação usado?

Território Vcs percebem o X como um Como vcs percebemúnico espaço ou como vários nosso curso no espaçoespaços que convivem em X ou em relaçãoum mesmo território físico? aos vários espaços

identificados naInstituição?

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Estrutura Como vcs se vêem Como vcs se vêemOrganizacional na estrutura do X? na estrutura do curso?

Qual é a participação de Qual o papel devcs dentro dessa estrutura? vcs nesse curso?Como vcs descreveriam Isso difere do papela participação de vcs na de vcs nos demaisestrutura organizacional? cursos? Se difere,Ela se altera ou tem se como, em quê?alterado ao longo do Como é a participaçãotempo?Vcs se identificam aulas? Isso diferecom essa estrutura? Como da participação nospercebem essa identificação demais cursos?ou não-identificação? Se difere, como

percebem isso, em quesentido percebem essadiferença?

Questionamento Vcs percebem que existe Como se dá esseespaço para tipo de reflexão,questionamentos em de questionamentorelação à Instituição, no nosso curso?de forma geral? Comoseus questionamentos/críticas são recebidospela Instituição?Se existe possibilidadede expressar essesquestionamentos, comoisso é feito? Com quem ouatravés de quem/do quêé expresso?

Senso de Vcs se consideram Existe um sentimentopertença membros/integrantes semelhante se

da comunidade do X? pensarmosComo? O que isso exclusivamente nosignifica? Como vc curso de inglês?identificaria um membro Ou nos alunosda comunidade X e da turma 3 / 4?

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um não-membro?O que os distingue?

Aprendizagem Vamos falar um E dentro da(formas de pouco sobre como proposta do nossolidar com o se dá sua curso?conhecimento) aprendizagem dentro

do contexto educacionaldo X.

Normas e Vcs sentem que Vcs sentemrituais e existem normas que existemcomportamentos institucionais que normas

diferenciam o X de que diferenciam nossooutras instituições? curso dos demais?Por exemplo? Por exemplo?(se for o caso) (se for o caso)

Na opinião de vcs, Na opinião de vcs,existem rituais que existem rituais quediferenciam o X de outras diferenciam esteinstituições? Por exemplo? curso dos demais?(se for o caso) Por exemplo?

(se for o caso)