Eterni.me: a tele-existência após a morte

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ETERNI.ME: a tele-existência após a morte 1 ETERNI.ME: tele-existence after death Deusiney Robson 2 Cíntia Dal Bello 3 Resumo: Este artigo baseia-se em matéria publicada no caderno Link do jornal Estadão intitulada “Startup cria sistema para fazer ‘Skype com mortos’” e no ponto de vista de 23 alunos do último ano do curso de Design de uma Faculdade particular da cidade de São Paulo a respeito da matéria, após o contato com o tema “Pós- modernidade”. O Eterni.me é um sistema que cria avatares virtuais a partir de dados de redes sociais, fotos, correio eletrônico, chats etc. fornecidos pelos usuários da Internet, ativados após a morte dos usuários. O objetivo deste artigo é fazer uma análise crítica-teórica do objeto em questão (o sistema criado pela startup), embasando-se em estudos sobre pós- modernidade e também nos teóricos da cibercultura, do 1 Trabalho apresentado na Divisão Temática Ibercom (Comunicação e Cultura Digital) do XIV Congresso Internacional IBERCOM, na Universidade de São Paulo, São Paulo, de 29 de março a 02 de abril de 2015. Artigo realizado com apoio institucional do Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Comunicação e Cibercultura (CENCIB). 2 Doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Pesquisador integrante da Associação Brasileira de Pesquisadores de Cibercultura (ABCiber) e do CENCIB. E-mail: [email protected]. 3 Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com pesquisa subsidiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) . Pesquisadora integrante da Associação Brasileira de Pesquisadores de Cibercultura (ABCiber) e do CENCIB. Docente e pesquisadora do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: [email protected].

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ETERNI.ME: a tele-existência após a morte1

ETERNI.ME: tele-existence after death

Deusiney Robson2

Cíntia Dal Bello3

Resumo: Este artigo baseia-se em matéria publicada no caderno Link do jornal Estadão intitulada “Startup cria sistema para fazer ‘Skype com mortos’” e no ponto de vista de 23 alunos do último ano do curso de Design de uma Faculdade particular da cidade de São Paulo a respeito da matéria, após o contato com o tema “Pós-modernidade”. O Eterni.me é um sistema que cria avatares virtuais a partir de dados de redes sociais, fotos, correio eletrônico, chats etc. fornecidos pelos usuários da Internet, ativados após a morte dos usuários. O objetivo deste artigo é fazer uma análise crítica-teórica do objeto em questão (o sistema criado pela startup), embasando-se em estudos sobre pós-modernidade e também nos teóricos da cibercultura, do simulacro e da iconofagia, como: Eugênio Trivinho, Jean Baudrillard e Norval Baitello Junior.Palavras-Chave: Eterni.me. Tele-existência. Morte. Pós-modernidade. Cibercultura.

Abstract: This article is based on material published in the newspaper notebook Link on the Estadão entitled "Startup creates system to do 'Skype with dead'" and point of view of 23 graduating of final year Design course of a particular College of São Paulo on the matter, after contact with the theme "Post-modernity". The Eterni.me is a system that creates virtual avatars from social networking data, photos, e-mail, chats etc. provided by web users, activated after the death of users. The aim of this paper is to do a critical-theoretical analysis about the object in question (the system created by startup), basing it on studies on postmodernism and also the theoretical cyberculture, the simulacrum and iconofagia, as: Eugenio Trivinho, Jean Baudrillard and Norval Baitello Junior.Keywords: Eterni.me. Tele-existence. Death. Postmodernity. Cyberculture.

1 Trabalho apresentado na Divisão Temática Ibercom (Comunicação e Cultura Digital) do XIV Congresso Internacional IBERCOM, na Universidade de São Paulo, São Paulo, de 29 de março a 02 de abril de 2015. Artigo realizado com apoio institucional do Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Comunicação e Cibercultura (CENCIB).2 Doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Pesquisador integrante da Associação Brasileira de Pesquisadores de Cibercultura (ABCiber) e do CENCIB. E-mail: [email protected]. 3 Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com pesquisa subsidiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Pesquisadora integrante da Associação Brasileira de Pesquisadores de Cibercultura (ABCiber) e do CENCIB. Docente e pesquisadora do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) . E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

“A luta pela imortalidade desde sempre foi uma motivação da espécie humana – e

uma startup criada no MIT (Massachusetts Institute of Technology) acaba de somar um

capítulo a essa história”. Assim inicia a matéria do caderno Link, do Estadão de 09 de

fevereiro de 2014, sob os auspícios do título "Startup cria sistema para fazer 'Skype com

mortos'". A despeito do sensacionalismo que sequestra, imediatamente, a atenção do leitor

da matéria, a proposta da plataforma ciberespacial lançada pelo MIT - Eterni.me4 - toca em

questões demasiadamente humanas: como sobreviver após a morte? Como entrar em

contato com aquele que já morreu? No contexto sociotecnológico, propriamente

cibercultural e dromológico, em que se vive o frenesi da efemeridade resultante e imposta

pela velocidade do tempo real, não é de se estranhar que a tele-existência cibermediática

(DAL BELLO, 2013) compareça como solução possível, na esteira de outras técnicas que

encontram na produção de imagens uma forma de alcançar a imortalidade. A diferença,

entretanto, é que no sistema Eterni.me a imagem que resta daquele que se foi, transformada

em avatar, será capaz de interagir com os que ficaram.

A relação pressuposta entre morte e imagem pode ser inferida a partir da

apresentação de três perspectivas teóricas. Para a (1) fenomenologia existencialista

(HEIDEGGER, 2011), a morte é condição fenomênica do mundo material, àquilo a que,

com certeza, todo vivente chegará, e, sem o que, não terá concluído o seu dasein. A

consciência de que se é um ser-para-a-morte faz despontar, pari passu, a consciência de

que se é alguém, e a necessidade de preservar essa riqueza - o próprio ser - impele o

desenvolvimento sociocultural e tecnológico que marca a trajetória da humanidade no

mundo. De acordo com as teorias da (2) antropologia da imagem (DEBRAY, 1994;

MORIN, 1997), a produção de imagos pode ser entendida como uma forma de minimizar

ou, ao menos simbolicamente, escapar do terror da inexistência, fazendo perdurar, a

despeito do desaparecimento do corpo, um efeito de presença. Destarte, o desenvolvimento

tecnológico permitiu que as antigas máscaras mortuárias, moldadas diretamente sobre os

4 O sistema pode ser acessado a partir do link eterni.me, sem a utilização do www.

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rostos dos cadáveres, fossem substituídas por outras formas de produção imagética, desde

pinturas em paredes e vasos até os retratos renascentistas, as fotografias do século XIX e as

filmagens do século XX. Com a invenção e a popularização de dispositivos móveis de

conexão em tempo real, que permitem aos seus usuários a captura e publicação imediata

(em rede) da vida no seu acontecer, o acelerado ritmo de produção de imagens incorre em

acentuada "espectralização da existência" (DAL BELLO, 2009). Nesse sentido, a (3)

perspectiva filosófica de Flusser (2008) acerca da "escalada abstracional" é bastante

elucidativa: para ele, a humanidade tem se afastado cada vez mais do mundo dos volumes,

dos cheiros, do paladar - a tridimensionalidade, rumo à nulodimensionalidade, nãolugar

inabitável a não ser como espectro, imagem técnica, entidade tele-existente. Eterni.me,

conforme será apontado adiante, é um exemplo formidável desse deslocamento.

Além de apresentar a reflexão teórica suscitada pela possibilidade de fazer "Skype

com os mortos", o que arregimenta o quadro epistemológico da sociodromologia, do pós-

moderno e do pós-estruturalismo, este artigo também objetiva registrar as impressões que

tal proposta causa em jovens universitários, formandos do curso de Design de uma

faculdade particular da cidade de São Paulo. A matéria foi discutida em sala de aula,

cabendo aos estudantes embasar suas análises com as teorias do pós-moderno. Por fim, os

vinte e três participantes registraram suas impressões sobre o teor da matéria em uma

redação de até 30 linhas. Observou-se que, apesar do perfil do curso, que tende a enfatizar

a técnica e a tecnologia como aliadas fundamentais do profissional de Design, o sistema

criado pelo MIT, que simula a vida após a morte criando um simulacro de vida, é

considerado assustador.

Apresentação do Sistema Eterni.me

Eterni.me é um sistema que cria um avatar virtual a partir dos dados de redes

sociais, fotos, correio eletrônico, chats etc. fornecidos pelo usuário (ainda em vida) para

que, após a sua morte, o avatar seja ativado e possa assumir o lugar daquele que se foi,

interagindo com parentes e amigos como se o usuário ainda estivesse vivo. “Simply

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become immortal”, este é o título de apresentação da página inicial do sistema (figura 1),

convite à realização de um desejo profundo e antigo da humanidade.

Figura 1. Página inicial do site Eterni.me (4 fev. 2015).

O sistema que oferece a vida eterna recolhe uma enorme quantidade de informações

e usa complexos algoritmos computadorizados, partindo da ideia de “inteligência artificial”

para gerar um avatar que simula a personalidade do usuário. A partir da avatarização da

personalidade, o sistema oferece a parentes e amigos recursos de interação, fornecendo

informações sobre situações passadas e conselhos sobre o futuro. Quanto mais alimentado

o banco de dados, mais rica e verossímel se tornam as interações.

Os responsáveis pela plataforma em questão baseiam-se na ideia de que, em um

momento ou outro, todos seremos esquecidos, e que seu sistema será uma referência para a

imortalidade. “Mais cedo ou mais tarde, todos nós passaremos, deixando apenas algumas

memórias para trás, para a família, amigos e humanidade – e, eventualmente, todos nós

seremos esquecidos5” (Eterni.me, tradução nossa).

A substância cultural e a finalidade do saber produzido pela “Universidade”,

conforme tratado por Baudrillard (1981, p. 183-189), devem ser consideradas na discussão

5 “We all pass away sooner or later, leaving only a few memories behind for family, friends and humanity – and eventually we are all forgotten.” Texto de apresentação retirado da página inicial do sistema Eterni.me.

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sobre a relevância de um sistema de conversação com os mortos desenvolvido por

engenheiros e designers (Marius Ursache, Nicolas Lee e Rida Benjelloun), com o apoio do

Massachusetts Institute of Technology (MIT), um dos maiores institutos de pesquisa dos

Estados Unidos da América, financiado, inclusive, por fundos públicos mundiais. A

consideração crítica do propósito de tal sistema, longe de estabelecer um julgamento de

valores sobre sua legitimidade, aponta com franqueza o encantamento provocado por toda

tecnologia de espectralização da existência. Eterni.me paralisa os seres no mundo, na

fantasia ilusória de uma realidade fantasmagórica, ao "reviver" uma consciência falecida.

Isso denuncia a esquizofrenia da sociedade pós-moderna, que delega às máquinas o poder

sobre a vida e a morte, entregando-lhes, cotidianamente, sua identidade, na expectativa de

que os códigos binários concedam-lhe os feedbacks necessários para a cura de sua

depressão, seu pânico, sua solidão e sua ausência de sentido – o que, em linhas gerais, só

faz aumentar o incomensurável poder simbólico dos sistemas informacionais.

A forma icônica (avatares virtuais) com a qual os mortos ressurgem e ao mesmo tempo

são consumidos, sem sombra de dúvidas, nos mostra o quão iconofágica (BAITELLO Jr.,

2005) a sociedade pós-moderna está. Sedada pelo encanto das imagens-técnicas veiculadas por

seus computadores, permanece quedada frente às telas, alimentando seus perfis na captura

diária e instantânea da vida, de forma que, no futuro, possam auxiliar na composição

inteligente do avatar que tomará seu lugar, imortalizando-o.

Mas, como pensar o conceito de avatar?

O interesse pela tele-existência oferecida por Eterni.me revela o medo que a

sociedade tem da morte e ao mesmo tempo o empenho que a ciência tem em simular a vida

ligada ao tempo-real das máquinas. A seguir, apresentam-se duas perspectivas de

compreensão do avatar de Eterni.me.

Avatar como simulacro e imagem técnica

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Representação e simulação são dois conceitos que delimitam campos

intercambiantes – simulacrum relaciona-se tanto com um, em seu aspecto de semelhança,

analogia e comparação, quanto com outro, desde sua capacidade de representar exatamente

ou tomar a aparência de, fingir, simular ser o que não é (DAL BELLO, 2009). Na

representação, tem-se o simulacro platônico, em que não é permitido à imagem tornar-se

mais relevante que seu referente; a imagem é ontologicamente inferior e está condenada à

imitação, a ser cópia imperfeita daquilo que representa. Na simulação, entretanto, a

imagem desgarra-se da obrigação de referenciar algo ou alguém; não é mais

ontologicamente inferior porque gira em torno de si mesma, é sua própria realidade. Eis o

simulacro epicuriano (SFEZ, 1994; DEBRAY, 1994).

A imagem técnica, conforme concebida por Flusser (2008), diz respeito ao conceito

de simulação, dado que pode ser modelada por febris e “inteligentes” algoritmos

programados para gerar uma “imitação” perfeita, ou até mesmo mais que perfeita – o que

se aproxima bastante do conceito de hiper real de Baudrillard.

Esta linha de pensamento conduz à consideração da seguinte problemática: o

usuário é convidado a alimentar o sistema com informações e sua expectativa é de que

estas sejam geradas para a criação de uma representação. Entretanto, por excesso e,

também, por ausência de determinadas informações, o avatar, programado para representá-

lo, terá, no fundo, que simulá-lo – e o exercício fatalmente conduzirá, desde o primeiro

momento, para a proposição de um “outro” alguém, resultante da combinação lúdica dos

dados disponíveis. Nesse sentido, é possível assumir que o mais compenetrado usuário,

comprometido com a proposta platônica de deixar uma representação muito próxima de si,

está contribuindo para um resultado epicuriano. Destarte, a ativação do avatar após a morte

do usuário pode ser entendida como a incrível concretização do simulacro desgarrado de

um referente real. No lugar do real, o hiper real. Nessa forma de pensar a questão, o avatar

é simulacro de simulação (BAUDRILLARD, 1981, p. 151).

Baudrillard também se refere a outras categorias de simulacro que podem ser

elencadas na compreensão do fenômeno. São elas:

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[1] – simulacros naturais, naturalistas, baseados na imagem, na imitação e nos fingimentos, harmoniosos, otimistas e que visam a restituição ou a instituição ideal de uma natureza à imagem de Deus,[2] – simulacros produtivos, produtivistas, baseados na energia, na força, na sua materialização pela máquina e em todo o sistema da produção – objetivo prometiano de uma mundialização e de uma expansão contínua, de uma libertação de energia indefinida (o desejo faz parte das utopias relativas a esta categoria de simulacros),[3] – simulacros de simulação, baseados na informação, no modelo, no jogo cibernético – operacionalidade total, hiper-realidade, objetivo de controle total. (BAUDRILLARD, 1981, p.151).

Eterni.me, em sua complexidade, pode ser interpretado como um sistema de dados

que articula as três categorias de simulacro, sendo natural, produtivo e simulação de si

mesmo. Esta é uma segunda hipótese a ser considerada. Baseia-se na imagem, na energia,

na materialização e desmaterialização dos sentidos e sentimentos por meio da máquina, na

informação e no jogo cibernético. É hiper-realidade controladora da vida e da morte. É

biopoder imanente. É resíduo da morte, “e tudo o que é residual está destinado a repetir-se

indefinidamente no fantasmal” (BAUDRILLARD, 1981, p. 179). Aquele que se interessar

pelo sistema Eterni.me empregará energia vital em favor de municiá-lo com o maior

número possível de informações, as mais diversas, atendendo o protocolo necessário para

que o avatar a ser constituído seja verossímel e possa interagir, em seu lugar, como se fosse

ele, com parentes e amigos. Tal atividade – inserção de dados pessoais – já ocorre de

maneira rotineira e prazerosa em plataformas ciberculturais como o Facebook, a quem

delega-se senão controle, ao menos onisciência de vários aspectos da própria vida. A

proposta de Eterni.me vai além, pois editará e responderá por vários aspectos que

constituíram a vida do usuário ao responder por ele após sua morte. Além disso, que tipo

de controle concede-se a um sistema quando, na expectativa de um alento ou breve contato

com o ente falecido, assume-se papel no jogo comunicativo? Nesse sentido, Eterni.me é

um tipo de controle da vida e da morte, pois cabe a ele, em seu jogo de algoritmos, compor

a simulação da continuidade daquele que se foi. O controle da morte está neste avatar, o

simulacro que dribla a morte e ressuscita o morto.

Para pessoas que só se relacionam graças à tele-existência cibermediática, fazendo

uso de ferramentas como Whatsapp, Skype ou e-mail em detrimento do telefone, por

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exemplo, o que mudaria? Quase nada. Porque os entes tele-existentes são, principalmente,

entes imaginários, intangíveis e nulodimensionais. São imagens técnicas. Se o sistema

estiver devidamente “alimentado”... poderá, sim, gerar a experiência de continuidade.

Diferentemente de um álbum de fotos ou filmagens do passado, é um "sistema-robô", que

extrairá de álbuns e outras informações elementos constituintes de conversação. Hiper-real

com lastro no real. A pessoa que sentir saudades de seu parente não recorrerá mais à "vela

acessa" ou à visita ao "túmulo" no dia dos Finados, mas acessará o sistema e conversará

com o falecido. Controle total sobre a morte, ou, ao menos, sobre o imaginário da morte.

O biopoder, entendido, no sentido foucaultiano, como exercício de poder sobre

indivíduos livres de forma a tornar seus corpos dóceis, úteis, previsíveis e governáveis,

também se instaura no controle da vida e da morte. Não se trata de um sistema inocente. É

tão inocente quanto um cartório, que controla a vida e a morte. A sua imanência, ou

pertinência, ou característica, ou ligação intrínseca, ou mesmo no sentido Kantiano, esse

conceito de teor cognitivo, pode ser percebido em sua proposta.

Os avatares de parentes e amigos mortos compõem um espetáculo ligado ao capital

e à tecnologia das redes de máquinas. A força de suas vidas e a energia de seus corpos jaz

depositada em uma rede simbólica virtual que depende dos códigos binários, ou de sua

“inteligência artificial”, para a “ressurreição da consciência”. Sem eles, só existe a morte,

equivalente à invisibilidade. Os avatares conferem “vida” porque trazem ao mundo da

visibilidade mediática aquele que não mais poderia apresentar-se. Entretanto, esse tipo de

tele-existência não é a da presentação, mas da representação.

Em um rico artigo sobre a origem e formas de uso do termo “avatar”, Renata

Cristina da Silva, mestra em Comunicação pela UFRJ, revela que há mais de dois mil anos,

pelo menos, o termo é utilizado religiosamente como “encarnação” e, “nesse ponto, há

similitude, visto que nos games o interator ‘encarna’ ou vivencia um personagem”

(SILVA, 2010, p. 123). Para a autora, a diferença entre o contexto religioso e os jogos está

na apropriação da matéria e do espírito. Na religião, a divindade, em espírito, se apropria

da forma corpórea, física, para constituir o avatar. Enquanto que, nos games, a forma

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física, “de carne e osso”, transfere sua consciência para um ambiente virtual, isso o

avatariza. A autora discorre sobre a apropriação do termo pela Cibercultura, trazendo

exemplos como “Euclid”, “Aibo”, “Second Life” e vários outros6. Se considerarmos,

portanto, que o Eterni.me cria avatares, estaremos transformando ou adicionando um novo

conceito a esta análise, visto que a troca de consciência se dá em vida, mas a interação com

o mundo real se dá após a morte. O avatar, neste caso, é um “robô” com as memórias de

um humano já falecido. Muito mais que a gameficação, neste caso, temos um retorno da

utilização religiosa de “encarnação”. Teríamos um sistema encarnado pelas memórias do

indivíduo falecido, simulando a vida, a partir da “interação” do mundo real com o mundo

virtual. O avatar, neste caso, é simulacro da vida, ou de sua simulação, baseado em

informações, transformado em hiper-realidade, na sua forma mais potente de controle e

dominação das consciências dos seres viventes e das memórias daqueles que já se foram. A

vida e a morte entrelaçadas pelo jogo cibernético, realizado a partir de algoritmos

combinados no ciberespaço, em uma dimensão que está além de nossa compreensão, mas

que as consequências se realizam no corpo daqueles que vivem e que buscam no avatar

respostas. Aqui reside a imanência do biopoder.

Presença, ausência e tele-existência

A morte sempre constituiu um grave problema para a humanidade. Se, contudo, na

modernidade, as teleologias incitavam os homens a matar e a morrer em prol de um futuro

seguramente melhor, o horror anunciado pela ausência de sentido – uma vez que tudo pode

deixar de existir com o apertar de um botão – é anestesiado, de certo modo destruído, por

Eterni.me. A morte, única contingência possível na pós-modernidade, único destino do

qual se tem certeza, transforma-se em imortalidade hiperespetacular, fugidia, sem dúvida,

mas que apresenta aos sujeitos, menos sujeitos que antes, a opção de participar ou não.

Morrer para sempre ou viver virtualmente? Eis a questão.

6 Para mais informações sobre a utilização do termo na Cibercultura, pesquisar o subcapítulo “Apropriação do termo pela Cibercultura” no artigo “Apropriações do termo avatar pela Cibercultura: do contexto religioso aos jogos eletrônicos” da Revista Contemporânea ed.15, vol. 8, n. 2 de 2010.

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Viver virtualmente, entretanto, envolve tele-existir. O próprio sentido de virtus,

virtual, insere o indivíduo em um reino de potência e bem-aventurança, em que todos os

limites são, virtualmente, superados. Mas, como o conceito de tele-existência apresenta

larga aplicação, é preciso que se especifique a tele-existência possível por meio da

proposta de Eterni.me. De saída, ressalte-se a radicalidade do efeito de presença

pretendido, pois aquele que se apresenta, estando ausente, é o ausente substancial

(WOLFF, 2005), ou seja, aquele que não mais poderá retornar ao mundo tridimensional da

presença para, em termos heideggerianos, "ser-em" e "ser-com".

São diversos os artifícios de simulação da presença, quer seja remota, virtual e/ou

mediática (DAL BELLO, 2013). Nas experiências telerrobóticas, por exemplo, um avatar

maquínico, interligado de forma bilateral ao tele-operador, encaminha informações a

respeito do ambiente remoto, de forma que o usuário seja capaz de sentir-se “lá” onde está

o robô, ao passo em que interfere, por meio de braços e mãos eletromecânicas, nesse

ambiente. Há, também, as experiências com avatares virtuais, por meio dos quais o tele-

operador pode viver uma realidade simulada e interferir nos objetos do mundo sintético.

Mas, em ambos os casos, on e off, dentro e fora, conectado e desconectado, são polos cuja

oposição permanece como forma de caracterizar e entender tais experimentos, dado que o

ritual de preparação para as vivências exige, ainda, o uso de hardwares (óculos, capacetes,

consoles, luvas, manches) que retiram da prática a leveza da naturalidade. Por outro lado,

televisão, cinema e videogame, cuja ritualística de utilização já está, em comparação,

incorporada ao cotidiano, também são capazes de provocar sensações de presença,

sobretudo se houver envolvimento do usuário na narrativa. Neste caso, o telespectador ou

gamer pode se sentir transportado para o mundo onde ocorre a narrativa, onde conhece e

identifica-se com personagens e envolve-se emocionalmente com a história. Ele parte no

play, e retorna no the end ou game over – o que ainda evoca a polarização entre partida e

chegada, estar “aqui” e estar “lá”.

O universo da comunicação em tempo real, sobretudo a partir da ascensão das

plataformas ciberculturais de relacionamento e projeção subjetiva (tais como Facebook e

congêneres), rompe com tais dicotomias. Conforme apresentado em Dal Bello (2013), a

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tele-existência que possibilita é cibermediática, ou seja, relativa às redes ciberespaciais de

telecomunicação; glocal7, em função dos ambientes híbridos formados pela conjunção de

existência e projeção da existência; e, devido à alta visibilidade dos processos

comunicacionais de conversão simultânea dos referentes em signos, é também

hiperespetacular.

Mas, será este o caso de Eterni.me?

A tele-existência pretendida pelo sistema não envolve presença virtual ou tele-

presença como forma de superação de uma ausência acidental. Segundo Wolff (2005), esse

tipo de ausência diz respeito àquele que não está presente, mas poderia estar, pois ainda é

“ser-no-mundo”. Eterni.me propõe simulação de existência para lidar com a ausência

substancial – a ausência daquele que já não pode mais se apresentar. Portanto, não se trata

de um sistema de presentação, conceito que, conforme Virilio (2005), diz respeito à

capacidade de tornar literalmente presente a subjetividade que opera à distância. Nele,

representação (imagem que se põe no lugar do ausente e, de certo modo, deriva dele, uma

espécie de imago que, ao contrário das antigas máscaras mortuárias, modeladas sobre o

rosto dos cadáveres, é modelada a partir de todas as informações que o usuário deixou em

vida) e simulação (imagem que se apresenta como possuidora de realidade em si mesma)

confundem-se para iludir e afagar o imaginário dos que ficaram. Obviamente, não se trata

de um sistema de conversação com os mortos, tal como noticiado de forma sensacionalista,

mas de uma plataforma lúdica em que lembranças, fotos, vídeos, textos e outros tipos de

dados são aliciados para a invocação do próprio morto, que responderá, de forma

premonitória e, portanto, antecipada, a todas as possíveis dúvidas que seus familiares e

amigos desejem fazer a ele após a sua morte.

7 Identitário da comunicação em tempo real, o fenômeno glocal, sensível desde o advento do telégrafo e da telefonia, foi apreendido como conceito apenas recentemente, quando percebido como “produto sociocultural do desenvolvimento dos vetores de aceleração técnica e tecnológica da vida humana” (TRIVINHO, 2007, p. 324), razão pela qual participa do quadro teórico-epistemológico concernente à dromocraciacibercultural (TRIVINHO, 2007). De natureza complexa e paradoxal, este fenômeno comunicacional soberano e totalitário articula múltiplos hibridismos, a começar por seu desenho conceitual.

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CONCLUSÃO

A lógica que leva pessoas a alimentarem sistemas como Eterni.me, ou, antes disso,

a criarem plataformas como Eterni.me, parece substancialmente diferente daquelas que

moviam os sujeitos da modernidade. Por essa razão, resolveu-se apresentar o case a 23

alunos do último ano do curso de Design de uma faculdade particular da cidade de São

Paulo, com a proposta de que analisassem a proposta de Eterni.me a partir de seus recentes

estudos sobre o pós-moderno e a matéria em questão em uma redação de 10 a 30 linhas8.

De todos os 23 formandos questionados sobre o sistema, vinte demonstraram medo,

mas não em relação à possibilidade de se “ressuscitar” os mortos, mas com a

superexposição à qual a sociedade submete-se, fornecendo dados próprios, íntimos e

cotidianos, imagens e autorização para o livre uso de seus traços de identidade na

construção de um avatar que o substituirá nas interações com amigos e parentes.

Com exceção de duas pessoas, que não responderam nada a respeito (sem indicar o

motivo), e de uma pessoa que elogiou o serviço em poucas palavras, que podemos resumir

na frase: “[...] não deixar as pessoas esquecerem o lado bom da vida[...]”, todas as outras

fizeram análises críticas profundas, citando o poder da máquina sobre a sociedade, a

individualização dos sujeitos, a efemeridade das relações, a instabilidade do conhecimento,

a visibilidade do “eu”, a dependência da tecnologia, a morte de Deus, a necessidade de

criação de simulacros, a distorção dos valores tradicionais e assim por diante, o que aponta

o quanto o conhecimento do período pós-moderno ou o reconhecimento do próprio tempo

e do mundo interfere na formação de opinião a respeito da tecnologia e dos interesses

progressistas da técnica informática.

8 A redação foi requerida na disciplina Ética e Legislação Profissional, na qual o tema pode ser considerado relevante para a formação dos futuros profissionais. As cópias das redações estão em posse dos autores do artigo e podem ser consultadas, caso haja interesse.

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REFERÊNCIAS

BAITELLO JUNIOR, N. (2005). A era da iconofagia: ensaios de comunicação e cultura. São Paulo: Hackers.

BAUDRILLARD, J. (1981). Simulacros e simulação. São Paulo: Relógio D´Água, 1981.

BAUMAN, Z. (2007). Vida Líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

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