ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

66
FONTE: http://www4.uninove.br/grupec/sala.htm Ensinar a condição humana * Maria da Conceição Xavier de Almeida 1[1] “Vida é mais um imperativo do que um conceito. Definir é sempre uma forma de matar”. Dietmar Kamper Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo e não separá-lo dele”. Edgar Morin Resumo: O conjunto das reflexões atuais sobre a reforma do sistema educacional, da educação básica e a formação de professores, requer dois investimentos cognitivos que se complementam: o exercício de um diálogo capaz de articular nossas competências e a escolha de meta-temas e princípios que exponham, com clareza, o ideário da educação que queremos. Desse ponto de vista é necessário expor, problematizar e avaliar se a produção do conhecimento de que dispomos como herança histórico-cultural, responde, de maneira satisfatória, aos problemas que emergem na sociedade contemporânea marcados pela relação de complementaridade e oposição entre ciência, tecnologia e meio ambiente. Mas que isso, interessa 1[1] Antropóloga. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Membro da Association Pour la Pensée Complexe – Paris. Coordenadora do Grupo de Estudos da Complexidade – GRECOM. 1

Transcript of ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

Page 1: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

FONTE: http://www4.uninove.br/grupec/sala.htm

Ensinar a condição humana*

 Maria da Conceição Xavier de Almeida1[1]

 

“Vida é mais um imperativo do que um conceito. Definir é sempre uma forma de matar”.Dietmar Kamper

 Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo e não

separá-lo dele”.Edgar Morin

  Resumo: O conjunto das reflexões atuais sobre a reforma

do sistema educacional, da educação básica e a formação

de professores, requer dois investimentos cognitivos que se

complementam: o exercício de um diálogo capaz de

articular nossas competências e a escolha de meta-temas e

princípios que exponham, com clareza, o ideário da

educação que queremos. Desse ponto de vista é necessário

expor, problematizar e avaliar se a produção do

conhecimento de que dispomos como herança histórico-

cultural, responde, de maneira satisfatória, aos problemas

que emergem na sociedade contemporânea marcados pela

relação de complementaridade e oposição entre ciência,

tecnologia e meio ambiente. Mas que isso, interessa

perguntar se nossa prática como educador nos permite

projetar e construir as bases de uma sociedade futura. Abrir

as especialidades, prover métodos de pensar que rejunte

conhecimentos e reconstruir um sujeito capaz de

problematizar a condição humana, parece ser o protocolo

básico para repensar a educação. Uma reforma do

pensamento (E. Morin) orientada pela desconstrução e

1[1] Antropóloga. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Membro da Association Pour la Pensée Complexe – Paris. Coordenadora do Grupo de Estudos da Complexidade – GRECOM.

1

Page 2: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

reconstrução dos atuais modelos cognitivos (H. Atlan),

certamente facilitará a escolha de fatos portadores de

sentido (J. Rosnay) que possam fazer da educação o ensino

da condição humana em sintonia com os domínios do

mundo que fundam essa condição.

Palavras chaves: educação, formação de professores,

conhecimento.

 Abstract: The current set of reflections on reform of the

educational system, from basic education to teacher training

requires two cognitive investments that complement each

other: a dialogue capable of articulating our different areas

of competence, and the choice of meta-issues and principles

that clearly expose the educational ideal we want. From that

point of view, we must expound on, question and evaluate

whether the production of knowledge we have inherited

culturally and historically can satisfactorily solve the

problems that emerge in contemporary society, which are

marked by the complementary and antagonistic relationship

among science, technology and the environment.

Furthermore, we should ask if our educational practices

permit projecting and constructing the basis of a future

society. It would seem that a basic agenda for rethinking

education demands opening up specialisations, providing

methods of thought that rejoin knowledge from different

disciplines and reconstruct an individual capable of

questioning the human condition. A reform of thought (E.

Morin) oriented in deconstruction and reconstruction of

cognitive models (J. Rosnay) that can make teaching an

education of the human condition in harmony with the world

domains that are the basis of that condition.

Key words: education, teacher training, knowledge.

 

2

Page 3: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

 De onde partimos

 

Tudo que dizemos só faz sentido no âmbito de uma

compreensão de mundo partilhada coletivamente pelo

veículo da linguagem. A comunicação humana supõe

sempre um entendimento comum a partir do qual ganham

sentido as singularidades discursivas, a originalidade de

nossas formas de pensar e transmitir conhecimentos.

Sobretudo na ciência, expor nossa compreensão a respeito

do panorama que contextualiza o tema/problema do qual

tratamos, se constitui na regra básica do diálogo. Mas que

isso, possibilita a ampliação de nosso campo de referência

permitindo ultrapassar os lamentáveis monólogos coletivos

que impedem o avanço do conhecimento e a criação de

novas e criativas sínteses do pensamento diante do mundo.

Permitir o acesso a nossa visão de mundo, expor a

arquitetura argumentativa que relaciona as informações das

quais dispomos, e, por fim, procurar compreender os

pressupostos organizadores das idéias de nossos

interlocutores, se constitui nas condições necessárias

(mesmo que não suficientes), para articular e retotalizar as

micro-interpretações sobre a realidade.

Dito de outra forma, habilitar-se a entender o conteúdo das

idéias que nos são transmitidas supõe o manuseio cognitivo

das fontes que alimentam tais idéias. Fazendo uso de um

argumento instigante e provocador, diz Marcel Conche

(1998) que para compreender a filosofia grega “é preciso

tornar-se grego”, pensar como grego. E pensar como grego

é compreender as idéias de Homero, considerado por ele

como a Bíblia dos gregos, o paradigma alimentador dos

filósofos, o alimento que os tornou capazes de produzir

novas e singulares cosmologias do pensamento.

3

Page 4: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

Hoje certamente não dispomos mais de uma única fonte

fundamental, a partir da qual organizamos nossas

interpretações de mundo. A multiplicidade das “grandes

obras” e das fontes heteróclitas torna ainda mais imperativa

a necessidade de expor as macro referências que nos

servem de suporte. Nesse sentido, para falar da formação

de professores supondo as relações ciência-sociedade-

tecnologia-ambiente exponho o que, do meu ponto de vista,

se constitui no contexto capaz de oferecer sentido ao tema,

que resignifico mais sinteticamente como a formação do

professor diante da sociedade atual marcada pela incerteza.

 

Incerteza e vontade

 

Se a incerteza do futuro contamina o presente, pelo

menos, sabemos, não estamos num ponto zero qualquer,

uma vez que nosso presente é, em parte, produto do

passado. Digo em parte porque, por força de escolhas nem

sempre conscientes, nem sempre livres, nem sempre

propriamente escolhas, temos deixado de lado ou excluído,

produtos importantes desse passado. Muitas habilidades,

saberes, estilos de vida e formas de pensar foram

certamente julgadas inapropriadas, apesar de terem

constituído importantes constâncias históricas que

consolidaram o padrão da espécie humana.

Se o futuro é incerto, podemos pelo menos lançar mão de

alguns dados, processos e caminho já percorridos, para

compreender e avaliar a história do presente. Longe, porém

da causalidade linear devemos estar atentos a um fato: não

somos hoje um simples produto do passado que nos foi

transmitido, porque somos simultaneamente produto e

produtores da nossa cultura. Além disso, nossa história é

fruto de uma dinâmica complexa que qualifica a condição

4

Page 5: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

humana como sendo a permanente oscilação entre forças

de emancipação e regressão, ordem e desordem, avanço e

retrocesso, vida e morte, repetição e inovação. É a partir do

interior mesmo dessa dinâmica complexa que emerge a

condição reflexiva dos humanos. Dotada de uma certa

autonomia, a condição de refletir retroage sobre nossas

experiências, e é a partir dessa condição cognitiva que

exercitamos nossos atributos de vontade e liberdade. A

avaliação do caminho percorrido, a valoração do processo

no qual estamos imersos e a escolha de horizontes a serem

percebidos são, talvez, a trinidade antropológica que nos

caracteriza como sapiens-sapiens-demens. Uma tal condição

sapiental deve denotar menos a supremacia da espécie e

mais a sua responsabilidade diante de uma história

encenada conjuntamente com parceiros que, não só não a

escolheram, mais dela compartilham de maneira

compulsória ou pela domesticação.

Se a aventura humana na terra tem se dado graças a

complexificação crescente de nossas aptidões mentais em

intercâmbio com a natureza, e se da relação homem-meio

emergiu esse fabuloso processo cultural, talvez seja

imperativo perguntar sobre a nossa dívida para com outros

processos que foram interrompidos em favor de um projeto

civilizatório excludente porque “demasiadamente humano”.

Por fim, se a acumulação da cultura tem se dado pela

transferência, reorganização e resignificação de informações

de diversas ordens (física, biológica, psíquica, simbólica),

devemos atestar a importância do processo educativo como

mediador dessa acumulação. Cabe, entretanto perguntar

como temos praticado tal mediação, a partir de que

métodos de pensar temos intercambiado e reorganizado

informações, de que moldes mentais fazemos uso para

transmitir conhecimentos, experiências, conteúdos

5

Page 6: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

interpretativos. Para pensar a formação de educadores

capazes de problematizar e articular os conteúdos da

cultura é necessário tomar consciência das condições de

produção do conhecimento operado historicamente e

discutir a educação como via de superação da

disciplinaridade fechada, não comunicante.

 

Cultura e conhecimento

 

Comecemos por explicitar as possibilidades cognitivas do homem

diante da necessária reconstrução de um conhecimento mais universalista,

complexo e dialogal. Situemos um começo, sem a preocupação de um ponto

zero.

Sabemos que apesar de integrante do complexo sistema que constitui

o meio ambiente, o homem dele se distingue pela faculdade da produção da

cultura e da construção da história. É como leitor simultaneamente utilitário

e especulativo do ecossistema que o homem têm respondido aos problemas

que lhes são postos. Mas é também como formulador de cosmologias

imaginárias que temos dialogado, lido e reconstruindo o mundo.

É pois a partir do contato com um mundo dado e um mundo

construído – ecossistema natural, códigos culturais, representações – que a

relação cérebro-espírito tem encontrado as bases e as condições para sua

complexificação e a produção do pensamento, do conhecimento e da

cultura. Somos seres ao mesmo tempo marcados pela necessidade prática e

pela competência especulativa, seres lógicos e míticos. Conforme dirá E.

Morin em O método III, “toda renuncia ao conhecimento

empírico/técnico/racional conduziria os humanos à morte”, mas igualmente

“toda a renuncia às (nossas) crenças fundamentais, desintegraria a

sociedade2[2].”

Para Edgar Morin o processo de complexificação da

natureza, animado pela pulsão cognitiva que ultrapassa o

utilitarismo, sustenta-se numa estrutura antropológica

2[2] MORIN. Edgar. O método III. O conhecimento do conhecimento. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d. p. 144.

6

Page 7: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

pendular que comporta, simultânea e dialogicamente uma

biologia, uma animalidade e uma humanidade do

conhecimento. Essa pulsão cognitiva é certamente o que

funda a constituição das sociedades humanas, sua

historicidade, constitui a cultura, produz um ser leitor,

interpretante e impressor de sentidos, vontades, desejos,

produtor e consumidor de conhecimento. “A cultura que é a

marca da sociedade humana, é organizada/organizadora

pela via do veículo cognitivo que é a linguagem; a partir do

capital cognitivo coletivo dos conhecimentos adquiridos, dos

saberes fazeres apreendidos, das experiências vividas, da

memória histórica, das crenças míticas de uma sociedade.

Assim se manifestam representações coletivas, consciências

coletivas, imaginário coletivo... Assim a cultura não é nem

superestrutura nem infraestrutura, esses termos sendo

impróprios numa organização recursiva na qual o que é

produzido e gerado torna-se produtor e gerador daquilo que

o produz ou o gera”3[3].

Esse conceito de cultura, que para Edgar Morin

implica, metaforicamente, um mega-computador complexo,

inscreve instruções, prescreve normas e comandos em

cérebros individuais, das sociedades arcaicas às pós-

industriais, e vem sendo construído, pouco a pouco, num

itinerário intelectual múltiplo, desencadeado principalmente

a partir da publicação de “O paradigma perdido”, de 1973.

Nesse livro é enfatizado que a substituição da floresta pela

savana, a ociosidade dos adolescentes, a copulação frontal,

o fogo, a instauração da exogamia, o fim do nomadismo, a

articulação da palavra, a aferição de significados, o exercício

das trocas e do poder, a criação do mito e da ciência, são

todos sinalizações da relação natureza-cultura mediada pela

imposição de problemas novos e instigantes. “A

3[3] MORIN, E.. La méthode 4: les idées - leur habitat, leur vie, leurs moeurs, leur organizations. Paris: Editions du Seuil, 1991, p. 17.

7

Page 8: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

hominização teve como prelúdio uma desgraça ecológica,

um desvio genético e uma dissidência sociológica”4[4].

No interior desse macro processo, a complexificação

cerebral, instigada e alimentada pela relação constante

entre o homínida e o meio ambiente, desempenhou o papel

de “centro federativo-integrativo entre as diversas esferas

cujas relações mútuas constituem o universo antropológico:

a esfera ecossistêmica, a esfera genética, a esfera cultural e

social e, claro, a esfera fenotípica do organismo

individual”5[5]. Entre o cérebro humano e o meio ambiente

não há, portanto, de fato, nem integração nem adequação

imediata. Antes, uma zona de ambigüidade e incerteza. E é,

precisamente, a faculdade de indecisão, o ingrediente que,

ao mesmo tempo, limita e abre indefinidamente a

possibilidade de conhecimento6[6].

A zona de indecisão entre homem e meio define a

possibilidade do conhecimento, e este nada mais é do que a

tentativa de fechar a brecha cérebro X ecossistema-cultura-

praxis. A resolução das incertezas tem sido, historicamente,

exercitada através dos itinerários

simbólicos/mitológicos/mágico e empírico/racional/técnico

entendidos como excludentes pelo grande paradigma do

ocidente.

Com efeito, mais que atributos do pensamento, que

podem eventualmente articular-se, os itinerários míticos e

lógicos estão em constante interação como que contagiados

por uma necessidade comum. Por outro lado, a suposta

separação entre os ideários míticos, religiosos, científicos e

filosóficos só encontrará justificação nas matrizes da

racionalização da história ocidental que operam a arbitrária

disjunção entre razão e mito, como se razão e ciência não

4[4] MORIN, E.. O enigma do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 63.5[5] Id. ibid. p. 136.6[6] Id. ibid. p. 130-131.

8

Page 9: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

fossem sempre contaminados e embebidos pelos

dispositivos míticos. “Os dois modos coexistem

entreajudam-se, estão em constantes interações, como se

tivessem uma necessidade permanente um do outro; podem

por vezes confundir-se, mas sempre provisoriamente”. Essas

palavras conduziram Edgar Morin a afirmar,

categoricamente, que a relação entre os dois pensamentos

não se encontra historicamente ultrapassada, mas inscreve-

se como uma questão antropossocial inaugural em toda a

trajetória do processo civilizatório.

Fazer comunicar esses dois modos de pensar, que

pela força do paradigma da simplificação esfraqueceram

suas relações e parecem atuar separados é reabilitar a

dialógica da estrutura policêntrica e fracamente

hierarquizada do cérebro humano. Uma tal reabilitação

antropológica favorece o diálogo entre as especialidades

técnicas da produção do conhecimento. Isso “não implica

em que cada um de nós tenha que passar o tempo todo a

ler, a informar-se de todos os domínios... O problema não

está em que cada um perca a sua competência. Está em

que a desenvolva o suficiente para articular com outras

competências que, ligadas em cadeia, formariam o anel

completo e dinâmico, o anel do conhecimento do

conhecimento7[7]”.

Para que essa potencialidade seja posta em

movimento, é necessário operar uma nova articulação de

saberes e competências além de um esforço de reflexão

fundamental. Tal articulação e esforço excedem o projeto

individual dos educadores, mas supõe à partida uma

vontade individual fundamental. É uma tarefa que necessita

do encontro e da troca de experiências de todos aqueles

que trabalham em domínios diversos e que não se fecham

7[7] Id. Ibid. p. 33.

9

Page 10: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

como ostras nas conchas de suas especialidades. Además,

nenhum conhecimento tem sentido fora de seu contexto

conforme assevera Edgar Morin.

Numa problematização a respeito da atual reforma do

ensino fundamental no Brasil, Luís Carlos de Menezes

destaca que dominar uma especialidade não é suficiente

para ter habilidade, competência e qualidades humanas.

Para ele a “natureza ou a sociedade não são disciplinares,

mas quanto mais aprofundado e especifico for o

conhecimento, mais disciplinar ele se apresenta, ou seja,

mais uso faz de códigos próprios, de linguagens específicas,

de instrumentos especiais. Por isso, há um lugar

insubstituível para as disciplinas, sempre que um

conhecimento sistemático estiver sendo tratado8[8]”.

Longe de protagonizar o fim das disciplinas, uma

reforma do pensamento e da educação reconhece como

imperativo fazer dialogar as estruturas de pensar, as

competências, os saberes produzidos. É ainda Menezes que

nos alerta para o fato de que mais que a destreza no

manuseio dos conteúdos específicos, a fecundidade de

acionar as competências está no fato de permitir a

transversalização dos redutos disciplinares. Nesse sentido,

pergunta: “escrever uma carta pessoal ou informação

técnica, saber como proceder diante de uma emergência

doméstica ou profissional, localizar informação e ser capaz

de interpreta-las, elaborar estatísticas de variáveis físicas e

sociais, conhecer hipóteses sobre o surgimento da vida no

planeta, tocar um instrumento musical ou dançar ou

representar ou desenhar, apreciar literatura, saber como se

elaboram as leis e conhecer a história da organização

política de diferentes povos, são habilidades restritas a

quais disciplinas?” Numa síntese arrojada Luis Carlos de

8[8] MENEZES, L. C. Competências e conhecimento no ensino médio. In: Jornal Tribuna do Norte. Caderno Viver – Polifônicas Idéias. Natal, 5 de agosto de 2000. p. 6.

10

Page 11: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

Menezes reescreve em nossa alma de educador um

argumento fundamental que pode nos dispor a fazer

dialogar as competências de um educador ativo e inteiro

diante do mundo. “Há qualidades afetivas, sociais, práticas

e éticas, como solidariedade, curiosidade, criatividade,

iniciativa, expressividade, sociabilidade, interesse cultural,

preferência artística, responsabilidade coletiva, respeito

humano e tantas outras que não se podem restringir a

quaisquer disciplinas, ainda que possam ser promovidas

dentro de qualquer disciplina9[9]”. Essas qualidades aludidas

por Menezes podem vir a configurar estados disposicionais

do professor para uma organização mais orgânica do

conhecimento. A esse respeito faz sentido trazer de volta as

palavras de Montaigne contidas nos seus ensaios: “mais

vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça cheia”.

Para Edgard de Assis Carvalho pensar a Educação do

século XXI é reabilitar como sugere Morin as inquietações de

Marx na terceira tese sobre Feuerbach. Nas palavras de

Carvalho, “qualquer teoria da mudança das circunstâncias

sócio-históricas e da educação traz consigo a necessidade

da educação dos educadores. Como fazer isso? Fomentando

a identidade entre ciência e arte, ciência e tradição,

estimulando a religação entre razão e sensibilidade. A

educação dos educadores deverá reconhecer que a função

escolar, em qualquer dos níveis em que exerça, precisa

estabelecer uma conexão forte entre presente e passado, de

um lado, e entre sociedade e indivíduo, do outro”. Conclui

Carvalho afirmando que o objetivo crucial da educação hoje

precisa se pautar pela “sustentabilidade e pela preservação

do capital cultural da humanidade10[10]”.

Para reabilitar o diálogo “entre razão e sensibilidade” de que fala

Carvalho e reaver as qualidades “afetivas, sociais, práticas e éticas”

9[9] Id. Ibid. p. 6.10[10] CARVALHO, E. de A. Educação para o século XXI. In: Jornal Tribuna do Norte.

11

Page 12: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

sublinhadas por Menezes, o professor talvez tenha que contemplar-se no

espelho do antigo sábio, para atualizar sua imagem em sintonia com os

desafios da sociedade atual.

 

O sábio pré-iluminista e o intelectual moderno

 

Foi certamente o predomínio da rigidez sobre a razão que acabou

constituindo-se na matriz epistemológica iluminadora do pensamento

científico, notadamente na modernidade.

O Século das Luzes será o marco principal de referência da

transformação do antigo sábio no intelectual moderno. O sacerdote-mago,

guardião dos mitos e encarregado de anunciar a verdade foi substituído pelo

filósofo iluminista que passa a submeter à verdade sagrada à prova da

crítica. Produz-se um novo mito: a razão. Dessa ruptura nasce o intelectual

moderno. “O mito da razão emancipa o intelectual” afirma Morin em “Para

sair do Século XX”.

Dotado de uma simbiótica ambivalência, o sábio pré-iluminista se

constituía ao mesmo tempo como defensor de valores morais e um rigoroso

observador, sistematizador e interpretador dos fenômenos físicos e sociais

do seu tempo. O intelectual moderno emerge num interior de um matizado

processo sócio-histórico que elege a razão como o único critério definidor

da ciência. A partir daí os saberes e as experiências que não resistem ao

teste da razão e da demonstração serão classificados como míticos,

esotéricos, religiosos, transcendentais, metafísicos. Mutatis-mutanti a

transformação do educador, antes um sábio polivalente, hoje um especialista

num domínio estrito de competência, reatualiza o mesmo processo de

fratura e redução das condições ampliadas da comunicação do

conhecimento.

O que pode parecer uma contextualização histórica da sucessão de

personagens do conhecimento, representa na verdade fixações normativas

excludentes de estados de ser do pensamento humano, em sua essência,

polivalente, polifônico, múltiplo. Reprograma-se pela via das escolhas

redutoras as interfaces entre homem e meio. As questões colocadas pelas

sociedades passam a ter domínios de resolução distintos. O conhecimento

12

Page 13: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

como um recurso para fechar a brecha cérebro-meio tem agora diante de si

questões de natureza supostamente diferenciadas. Estabelecem-se divisores

entre o que é da ordem do racional e do irracional, e, mais particularmente,

opõem-se os problemas considerados ora míticos, ora metafísicos, ora

científicos. A fragmentação do pensamento torna-se visível pela produção

de especialistas não comunicantes. Emerge o descompasso na articulação

entre os itinerários míticos e lógicos. O pensamento simplificador

pulverizará a partir de então as questões a serem apreciadas pelas sociedades

humanas de forma insular e pontual.

Essa estrutura de operação do pensamento e produção do

conhecimento tem por base a emergência de uma sociedade pré-industrial

que vê multiplicados os problemas já existentes ao mesmo tempo em que se

defronta com o aparecimento de novos problemas. O aumento e

deslocamento populacionais, o redirecionamento da formação técnico-

profissional, o aparecimento de doenças provocadas pelas aglomerações

urbanas, etc. vão demandar uma nova organização na produção de saberes.

Essas contingências sócio-históricas consolidarão o perfil do intelectual e do

cientista como um especialista.

Vão sendo consagradas a partir daí as várias cadeias de separação

sucessivas entre natureza e cultura, o mundo real e o mundo imaginário,

produção material e produção do pensamento, trabalho manual e trabalho

intelectual, fazer e saber, teoria e prática, pensamento e ação. A separação

entre a arte da técnica e a estética da reflexão encontrará na sociedade

industrial nascente as condições favoráveis para expressar-se. Torna-se

então indispensável à formação de competências específicas gestadas pelos

adestramentos que confinam o indivíduo em um campo extremamente

restrito de atividades. A ciência passa a acentuar o caráter utilitário do

conhecimento, limitando o campo da reflexão a certos domínios. Entramos

assim nos “tempos modernos” de Chaplin: a repetição, a mecanização do

pensamento, a exaustão do corpo sem mente e sem desejo. Mentes treinadas

para pensar o extremamente útil, “corpos dóceis para o trabalho”, para usar

uma expressão de M. Foucault.

No cenário dessa lógica perversa, as instituições educacionais vão

aos poucos abrindo mão da reflexão e da crítica, para privilegiar a formação

13

Page 14: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

de especialistas que reproduzem maquinicamente uma sociedade

fragmentada, comprometendo assim as condições de convivialidade e

diálogo social entre os saberes milenares da tradição e a ciência moderna.

Uma assepsia cognitiva passa a controlar as qualidades psico-afetivas do

conhecimento, e uma razão patológica proverá, por todos os meios a

domesticação da “lógica do sensível” de que trata Claude Lévi-Strauss.

 

 

A domesticação da tradição

 

A história da nossa espécie, vale dizer, do passado de

cada um de nós, desenhou-se por sobre diversos caminhos

possíveis, seguiu a reta da especialização e é ao mesmo

tempo uma história de ganhos e perdas. Mas que isso, o

caminho percorrido até hoje só foi possível às custas da

redução, assimilação e negação de diversas formas de

intercâmbio do homem com o meio através do

conhecimento.

A cultura que recebemos como herança funda-se na

divisão de dois domínios de saberes: de um lado a ciência,

do outro os saberes da tradição. A hegemonia de um

domínio sobre o outro e a incomunicabilidade entre eles se

constitui um dos problemas cruciais do nosso tempo. Longe

de apregoar a unificação de estilos diferenciados de dialogar

com o mundo, temos entretanto que julgar inadmissível o

paralelismo de saberes que tem em comum o mesmo

desafio: tornar possível e prazerosa a vida humana na terra.

Além do mais, a hegemonia da ciência se acorra num

fundamento sem fundamento. Isto porque a ciência nasceu

justamente da domesticação de parte dos saberes milenares

da tradição, mesmo que deles tenha aos poucos se

distanciado.

14

Page 15: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

Do ponto de vista da função social e política do

conhecimento, cabem aqui algumas interrogações. Se “a

sociedade se põe os problemas que pode resolver”, como

afirmava Marx, como enunciar as questões centrais de

nosso tempo? Como indicar o problema chave de nossa

época? Pode-se dizer que tais questões são aquelas que a

comunidade científica anuncia? A essa convenção não se

deve contrapor a ausência da ciência frente a problemáticas

muitas vezes vitais de certas populações? A que serve o

paralelismo da produção do conhecimento na ciência e nos

saberes da tradição? Sabemos que internamente à ciência,

o paralelismo das descobertas científicas demonstra a

universalidade da sintonia cérebro-meio pela explicitação de

questões idênticas em lugares diferentes. Mas também

sabemos do desperdício, da duplicação e a

incomunicabilidade que constituem juntos a característica

da ciência moderna. Esse panorama se amplia em relação

se considerarmos o conjunto de nossos conhecimentos.

A partir desse raciocínio, algumas questões podem ser

delineadas: 1) A população que por interdição é destituída

do saber científico, estaria em atraso em relação às

questões enunciadas pela ciência num determinado

momento? 2) Seriam elas um empecilho a produção coletiva

do conhecimento? 3) Se é verdade que só a ciência sintoniza

adequadamente as questões postas e as resolve, como

entender que as populações que não dispõem daquele

conhecimento elaboram suas matrizes de referência

explicativa? 4) Os saberes não científicos teriam como

função ensaiar soluções para problemas que num segundo

momento, seriam resolvidos pela ciência?

Tais questões problematizam o processo educativo em

nossos dias, processo de dispersão que, ao invés de criador

é redutor e mutilante. De um lado, o saber científico

15

Page 16: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

fracionado, não comunicante; de outro, o saber tradicional

“popular”, selvagem, tratado como filho bastardo da

aventura do conhecimento e excluído do âmbito da

socialização da cultura científica. Tal exclusão fundará

espaços, linguagens e atitudes mentais que se excluem

mutuamente.

Na formação acadêmica do professor, os conteúdos

que são transmitidos correspondem a uma história

domesticada das descobertas do homem. Está fora dos

programas a diversidade de explicações, especulações e

métodos de olhar, classificar e hierarquizar os fenômenos do

mundo, pelos intelectuais da tradição. São os métodos

científicos de previsão climática que são comunicados, e

nunca as formas tradicionais de leitura do ecossistema pelos

peritos da tradição. Ao exercício do pensamento analógico,

ferramenta mental tão fecunda nos saberes não-científicos,

são atribuídos reservas desclassificatórias. Se, nos

conteúdos escolares, há alusão a outras interpretações do

mundo, a elas são imputadas a qualidade de um saber sem

rigor, sem método, sem função, um saber menor.

Essa forma de interdito na circulação da cultura, consolida uma

sociedade de múltiplas exclusões e condena as populações não letradas a

redutos cada vez mais fechados. Dotados, entretanto de uma criatividade

não domesticada, essas populações têm respondido a desafios que talvez a

ciência fosse incapaz de enfrentar, se fosse desprovida de tantas

ferramentas, artifícios e próteses.

 

 

 

 

 

Um novo educador

 

16

Page 17: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

A tarefa de repensar a formação de novos educadores

supõe um clima de efervescência de idéias, chamado de

calor cultural, por Morin, e implica identificar o que, na

nossa estrutura educacional favorece o “comércio” e a troca

múltipla de interações, opiniões, idéias e teorias. Não se

restringindo ao intercâmbio do que já foi dito, essa investida

apela para nossa criatividade no sentido de pensar um

educador capaz de, não se fixando apenas no compromisso

com o presente, poder lançar as bases para uma educação

do futuro.

Assim, mais que reformular as teorias e metodologias

particulares para pensar o mundo, é fundamental que nos

coloquemos o problema de recompor a estrutura de pensar.

Em segundo lugar, considerando o quadro interno do

conhecimento científico há que se propugnar pela

articulação entre ciências da vida, ciências do homem,

ciências do mundo físico. Aqui, não bastarão, certamente,

esforços de superposição de conteúdos disciplinares. Nessa

direção, a interdisciplinaridade deve ser ultrapassada pelo

horizonte da transdisciplinaridade, em busca do pensamento

complexo. Por outro lado, esse intercâmbio interno entre

disciplinas científicas não basta. É fundamental ampliá-lo

nos quadros do diálogo entre a ciência e os saberes da

tradição, conforme já assinalamos.

Esses exercícios supõem reativar ou configurar uma

estrutura cognitiva de múltiplas e complexas entradas.

Nessa nova e plurifocal rede cognitiva perde sentido,

certamente, a estrutura dual e fragmentada de pensar o

mundo e o homem. Esse é, parece, o horizonte posto hoje

ao conhecimento.

Diante deste horizonte é importante investir numa

reorganização do conhecimento capaz de prover uma

reforma na educação. Isso requer uma nova aliança entre

17

Page 18: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

cultura cientifica e cultura humanística, a reforma do

pensamento e o exercício do diálogo. Essas idéias que

alimentam a base epistemológica de pensadores como Ilya

Prigogine, David Bohm e Edgar Morin podem fomentar

práticas educacionais capazes de religar os conhecimentos e

fazer dialogar nossas competências. Rediscutir como

hipóteses postulados tidos como indiscutíveis, imprimir

importância a fatos concebidos como aleatórios pela ciência,

refutar a ortodoxia e o maniqueísmo, por à luz nossas

crenças fundamentais, exercitar a criatividade do

pensamento, são alguns dos protocolos que favorecem a

emergência de um novo espírito cientifico e de um novo

educador.

Esse protocolo de intenções, talvez mais propriamente

uma pedagogia da complexidade precisa está

comprometido com um ideário educacional mais ético

diante dos graves problemas planetários, sem abrir mão, é

claro, da nossa herança milenar que, de uma certa forma,

ainda se mantém nos redutos dos saberes da tradição.

Há que se investir na disposição para ampliar os

limites do conhecimento e fazer dialogar as competências

disciplinares. Uma reorganização mais democrática dos

saberes poderá reduzir a exclusão inadmissível de parte

considerável de nossa sociedade diante das escolhas

coletivas. Esse desafio longe de configurar uma missão

própria de um especialista, pertence igualmente aos

epistemólogos, físicos, educadores, sociólogos, antropólogos

e intelectuais da tradição.

No que se refere aos profissionais da educação que

aqui nos interessam mais de perto, é preciso sublinhar o

importante papel que esses atores desempenham enquanto

mediadores da transferência e difusão dos conteúdos da

cultura científica. Mais que um simples transmissor de

18

Page 19: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

conhecimento, o professor constitui-se numa referência

privilegiada para a construção da visão de mundo e da

estrutura de pensar do aluno, diga-se, do cidadão

planetário.

Investido da autoridade aferida pelo estoque do

conhecimento acumulado e do poder instituído pelo lugar

discursivo do qual fala, ao educador caberia hoje o exercício

de fazer emergir uma qualidade do pensamento que está

em parte adormecida: o prazer de conhecer. O incitamento

à criatividade, a atividade de interditar a ortodoxia e a

certeza, podem vir a prefigurar um novo perfil do educador,

em sintonia com as demandas culturais do próximo milênio.

Esse novo educador talvez tenha que incluir na sua agenda

duas tarefas que, mesmo distintas são complementares.

Uma diz respeito à reconstrução de seu próprio perfil

enquanto profissional da educação: a morte do sujeito

narcisicamente investido do poder é o mínimo que se espera

para reformatar-se os espaços discursivos do diálogo

professor-aluno. Essa tarefa amplia-se numa outra, sem

dúvida investida de maior envergadura e desafio. Trata-se

de exercitar uma verdadeira aeróbica dos neurônios no

sentido de desconstruir os imprintings paradigmáticos que

impedem novas e ampliadas sinapses cognitivas de alunos

cada vez mais ávidos em expor suas subjetividades, seus

mapas auto-biográficos e em compreender os conteúdos

disciplinares que se tornam significativos apenas pela

partilha e co-produção.

Certamente, a tarefa para reintroduzir o prazer na

práxis docente, supõe a reconstrução de um conhecimento

mais aberto, onde as noções de polifonia, ambivalência e

simultaneidade possam emitir novas mensagens a um

sujeito ativo que se singulariza. Para isso, ter-se-á que

exercitar um esforço fundamental para acessar o nosso

19

Page 20: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

poliprograma cerebral atualmente adormecido pela

hegemonia da ratio cartesiana. Em outras palavras, ter-se-á

que questionar as imposições radicais das mundovisões

estreitas sugeridas pelos códigos da ciência, o que subtende

rediscutir a formação de professores.

É preciso que o professor seja formado para ampliar

suas escolhas cognitivas e de seus alunos para que possam

coletivamente arquitetar e ensaiar novas escolhas sociais,

éticas, políticas. É necessário que a escola se transforme no

lugar de fecundação de novas utopias realistas. Se é

imprescindível reformar as estruturas curriculares dos

cursos de formação de professores, se é indispensável

repensar a construção do perfil do professor diante da

sociedade atual, se é inadiável ultrapassar a idéia do

professor como mero transferidor de conteúdos científicos,

não é menos importante, e urgente, se colocar a questão da

auto-formação do educador.

Assim como a critica deve ser sempre precedida da

auto-crítica e a ética social se inicia com auto-ética de cada

sujeito, também a formação do professor deve ter por

complemento importante a auto-formação. Não é de mais

lembrar que toda transformação individual ou coletiva

requer uma intenção, uma vontade, uma prática ou mesmo

um consentimento, mas começa sempre pela transformação

do sujeito. Todas as mudanças supõe uma convicção

fundamental para a transformação, e essa convicção está

situada no indivíduo.

Apostar numa refundação do perfil do educador é

talvez abrir-se à dinâmica da reconstrução de nossos

métodos de ensinar e aprender. É com esse objetivo que

tomo aqui de empréstimo a noção de auto-organização

formulada por Henri Atlan e o argumento defendido por

Pierre Lévy de que o sistema cognitivo humano tem por

20

Page 21: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

base uma diversidade de operações simultâneas. Vamos por

parte.

Henri Atlan sugere que a complexidade dos sistemas

vivos supõe a auto-organização pelo ruído. É a partir da

decodificação do ruído que se desestrutura a fixação do

padrão cognitivo e se ampliam os modelos de referência

internos ao sistema. É por isso que os processos de

aprendizagem “não dirigidos” são responsáveis, em grande

parte, pelo aparecimento de novos padrões de leitura do

mundo. O núcleo das idéias de Atlan a esse respeito

comporta duas noções/processos fundamentais: o delírio e o

transbordamento.

O delírio passa a ser entendido como uma projeção do

imaginário sobre o real e o elemento que exibe a condição

de “ambigüidade” do imaginário. Sublinha o autor, por

exemplo, que qualquer hipótese científica realmente nova é,

na sua origem, “da ordem do delírio”. O passo seguinte é,

supondo sempre a auto-eco-organização do pensamento, a

exposição dessa projeção ao real. E o feedback, ou seja, o

resultado da digestão e adequação do delírio ao mundo real,

que evitará sua potencial metamorfose patológica. A

ausência desse feedback, a partir do fechamento do sistema

cognitivo, pela via da “memorização excessiva” (fixação de

um molde inalterável) ou da “precisão demasiada” (fixação

numa projeção particular) encera o delírio no reduto de sua

negatividade. Daí porque os processos/mecanismos de

transbordamento do pensamento, pelos excessos de

imagens e leituras complexas, podem vir a se constituir num

importante antídoto de resistência frente ao que tenho

chamado de violência cognitiva, que impõe padrões

redutores e economizadores do policentrismo cerebral e da

polifonia imaginária. As noções de aceitação do ruído e de

21

Page 22: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

“delírio organizador” parecem se impor hoje como idéias

sobre as quais é preciso pensar.

Da parte de Pierre Lévy, para o qual “pensar é um

devir coletivo no qual se misturam homens e coisas”

interessa reter a simultaneidade da operação cognitiva.

Sendo a educação um dispositivo que limita pela

seletividade, a escolha de métodos de leitura do mundo, ela

comporta em si, a possibilidade de fechamento e redução do

pensamento humano. Isto é, os métodos de transmissão da

cultura reduz a polifonia do pensamento. Mas não é só.

Numa síntese arrojada, Pierre Lévy mostra como a história

do pensamento no homem se traduz pela sucessão do que

ele chamou “os três polos do espírito” – oralidade, escrita,

informática. Manter-se em sintonia com o mundo atual é,

para Pierre Lévy, por-se a tarefa inadiável de promover a

fusão e ampliação dessas distintas “tecnologias do

pensamento”. Essa parece ser uma das estratégias

fecundas na prática do ensino. Tal proposição não deverá

excluir nenhum desses três polos, mais ao contrário, bricolá-

los num grande hipertexto da cultura onde o mito e o logos,

os desejos e as interdições, as narrativas e os diagramas, as

subjetividades e as objetividades teçam, conjuntamente, os

“nós” de um homem ainda em construção. “A sucessão da

oralidade da oralidade, da escrita e da informática como

modos fundamentais da gestão social do conhecimento não

se dá por simples substituição, mas antes por

complexificação e deslocamento de centro de gravidade”

(Lévy: 1993).

Em suma, a desconstrução da educação como

adestramento e a reconstrução do perfil do educador

supõem a aceitação da morte e da metamorfose do sujeito

cindido e fechado. Nas palavras de Henri Atlan, “na verdade,

foi o homem, enquanto sistema fechado, que desapareceu;

22

Page 23: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

sistemas cibernéticos abertos, auto-organizados, são

candidatos a sua sucessão” (Atlan: 1992).

Nessa sucessão de mortes e renascimentos, valeria

também nos perguntar sobre a vitalidade de nossas

projeções de futuro quando nos detemos demasiadamente

aos fatos, processos, e diagnósticos do presente. A esse

respeito são bem vindas as reflexões de Joel de Rosnay no

livro “O homem simbiótico”. Para ele, dadas às

transformações rápidas, imprevistas e incertas das

sociedades contemporâneas, nenhuma de nossas projeções

teóricas teriam valor operativo de longo alcance. Para

Rosnay, o desafio que se impõe a todos nós é maior. Trata-

se de imaginar a sociedade que queremos e identificar, no

contexto de nossas sociedades atuais quais são os fatos

portadores de sentido, capazes de objetivar nossa

imaginação. Isso vale também para imaginar e construir a

educação que queremos.

No espaço desse artigo enuncie o que, para mim, são

alguns desses fatos portadores de sentido. Mas eles não são

suficientes, nem são os únicos, nem talvez os mais

fecundos. Somente o empenho coletivo para iluminar focos

de emergência de uma nova sociedade e de uma nova

educação, nos permitirão projetar para o futuro o que é

preciso começar agora. Os três últimos livros de Edgar Morin

sobre a reforma da educação – “A cabeça bem-feita”, “Os

sete saberes necessários à educação do futuro” e

“Complexidade e Transdisciplinaridade – a reforma da

universidade e do ensino fundamental”, podem descortinar

caminhos de por onde começar. Para Morin é fundamental

articular as disciplinas em torno dos meta-temas mundo,

terra, vida, humanidade, arte, história, culturas

adolescentes e conhecimento. Compreender que o erro é

parte integrante do processo cognitivo, que todo fenômeno

23

Page 24: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

só ganha sentido em relação ao seu contexto; ensinar a

identidade terrestre e a compreensão; discutir a ética do

gênero humano e conviver com a incerteza se constituem

em diretrizes para fazer dialogar os conteúdos disciplinares

e restituir ao educador sua missão maior de ensinar a viver

a condição humana.

 

 

Bibliografia Referida

 

ATLAN, H. Entre o cristal e a fumaça – ensaio sobre a organização do

ser vivo. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

CONCHE, M. A análise do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LÉVY, P. As tecnologias da Inteligência – o futuro do pensamento na

era da informática. Rio de Janeiro: editora 34, 1993.

MORIN, E. O método III – O conhecimento do conhecimento. Lisboa:

Publicações Europa-América, s.d.

____. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo:

Cortez; Brasília: Unesco, 2000.

____. A cabeça bem-feita – pensar a reforma, reformar o pensamento.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

____. Complexidade e Transdisciplinaridade – a reforma da

universidade e do ensino fundamental. Natal: Editora da UFRN,

1999.

ROSNAY, J. de. O homem simbiótico – perspectivas para o terceiro

milênio. Petrópolis: Vozes, 1997.

 

Ensinar a condição humana*

 Maria da Conceição Xavier de Almeida11[1]

11[1] Antropóloga. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Membro da Association Pour la Pensée Complexe – Paris. Coordenadora do Grupo de Estudos da

24

Page 25: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

 

“Vida é mais um imperativo do que um conceito. Definir é sempre uma forma de matar”.Dietmar Kamper

 Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo e não

separá-lo dele”.Edgar Morin

  Resumo: O conjunto das reflexões atuais sobre a reforma

do sistema educacional, da educação básica e a formação

de professores, requer dois investimentos cognitivos que se

complementam: o exercício de um diálogo capaz de

articular nossas competências e a escolha de meta-temas e

princípios que exponham, com clareza, o ideário da

educação que queremos. Desse ponto de vista é necessário

expor, problematizar e avaliar se a produção do

conhecimento de que dispomos como herança histórico-

cultural, responde, de maneira satisfatória, aos problemas

que emergem na sociedade contemporânea marcados pela

relação de complementaridade e oposição entre ciência,

tecnologia e meio ambiente. Mas que isso, interessa

perguntar se nossa prática como educador nos permite

projetar e construir as bases de uma sociedade futura. Abrir

as especialidades, prover métodos de pensar que rejunte

conhecimentos e reconstruir um sujeito capaz de

problematizar a condição humana, parece ser o protocolo

básico para repensar a educação. Uma reforma do

pensamento (E. Morin) orientada pela desconstrução e

reconstrução dos atuais modelos cognitivos (H. Atlan),

certamente facilitará a escolha de fatos portadores de

sentido (J. Rosnay) que possam fazer da educação o ensino

da condição humana em sintonia com os domínios do

mundo que fundam essa condição.

Complexidade – GRECOM.

25

Page 26: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

Palavras chaves: educação, formação de professores,

conhecimento.

 Abstract: The current set of reflections on reform of the

educational system, from basic education to teacher training

requires two cognitive investments that complement each

other: a dialogue capable of articulating our different areas

of competence, and the choice of meta-issues and principles

that clearly expose the educational ideal we want. From that

point of view, we must expound on, question and evaluate

whether the production of knowledge we have inherited

culturally and historically can satisfactorily solve the

problems that emerge in contemporary society, which are

marked by the complementary and antagonistic relationship

among science, technology and the environment.

Furthermore, we should ask if our educational practices

permit projecting and constructing the basis of a future

society. It would seem that a basic agenda for rethinking

education demands opening up specialisations, providing

methods of thought that rejoin knowledge from different

disciplines and reconstruct an individual capable of

questioning the human condition. A reform of thought (E.

Morin) oriented in deconstruction and reconstruction of

cognitive models (J. Rosnay) that can make teaching an

education of the human condition in harmony with the world

domains that are the basis of that condition.

Key words: education, teacher training, knowledge.

  De onde partimos

 

Tudo que dizemos só faz sentido no âmbito de uma

compreensão de mundo partilhada coletivamente pelo

26

Page 27: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

veículo da linguagem. A comunicação humana supõe

sempre um entendimento comum a partir do qual ganham

sentido as singularidades discursivas, a originalidade de

nossas formas de pensar e transmitir conhecimentos.

Sobretudo na ciência, expor nossa compreensão a respeito

do panorama que contextualiza o tema/problema do qual

tratamos, se constitui na regra básica do diálogo. Mas que

isso, possibilita a ampliação de nosso campo de referência

permitindo ultrapassar os lamentáveis monólogos coletivos

que impedem o avanço do conhecimento e a criação de

novas e criativas sínteses do pensamento diante do mundo.

Permitir o acesso a nossa visão de mundo, expor a

arquitetura argumentativa que relaciona as informações das

quais dispomos, e, por fim, procurar compreender os

pressupostos organizadores das idéias de nossos

interlocutores, se constitui nas condições necessárias

(mesmo que não suficientes), para articular e retotalizar as

micro-interpretações sobre a realidade.

Dito de outra forma, habilitar-se a entender o conteúdo das

idéias que nos são transmitidas supõe o manuseio cognitivo

das fontes que alimentam tais idéias. Fazendo uso de um

argumento instigante e provocador, diz Marcel Conche

(1998) que para compreender a filosofia grega “é preciso

tornar-se grego”, pensar como grego. E pensar como grego

é compreender as idéias de Homero, considerado por ele

como a Bíblia dos gregos, o paradigma alimentador dos

filósofos, o alimento que os tornou capazes de produzir

novas e singulares cosmologias do pensamento.

Hoje certamente não dispomos mais de uma única fonte

fundamental, a partir da qual organizamos nossas

interpretações de mundo. A multiplicidade das “grandes

obras” e das fontes heteróclitas torna ainda mais imperativa

a necessidade de expor as macro referências que nos

27

Page 28: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

servem de suporte. Nesse sentido, para falar da formação

de professores supondo as relações ciência-sociedade-

tecnologia-ambiente exponho o que, do meu ponto de vista,

se constitui no contexto capaz de oferecer sentido ao tema,

que resignifico mais sinteticamente como a formação do

professor diante da sociedade atual marcada pela incerteza.

 

Incerteza e vontade

 

Se a incerteza do futuro contamina o presente, pelo

menos, sabemos, não estamos num ponto zero qualquer,

uma vez que nosso presente é, em parte, produto do

passado. Digo em parte porque, por força de escolhas nem

sempre conscientes, nem sempre livres, nem sempre

propriamente escolhas, temos deixado de lado ou excluído,

produtos importantes desse passado. Muitas habilidades,

saberes, estilos de vida e formas de pensar foram

certamente julgadas inapropriadas, apesar de terem

constituído importantes constâncias históricas que

consolidaram o padrão da espécie humana.

Se o futuro é incerto, podemos pelo menos lançar mão de

alguns dados, processos e caminho já percorridos, para

compreender e avaliar a história do presente. Longe, porém

da causalidade linear devemos estar atentos a um fato: não

somos hoje um simples produto do passado que nos foi

transmitido, porque somos simultaneamente produto e

produtores da nossa cultura. Além disso, nossa história é

fruto de uma dinâmica complexa que qualifica a condição

humana como sendo a permanente oscilação entre forças

de emancipação e regressão, ordem e desordem, avanço e

retrocesso, vida e morte, repetição e inovação. É a partir do

interior mesmo dessa dinâmica complexa que emerge a

condição reflexiva dos humanos. Dotada de uma certa

28

Page 29: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

autonomia, a condição de refletir retroage sobre nossas

experiências, e é a partir dessa condição cognitiva que

exercitamos nossos atributos de vontade e liberdade. A

avaliação do caminho percorrido, a valoração do processo

no qual estamos imersos e a escolha de horizontes a serem

percebidos são, talvez, a trinidade antropológica que nos

caracteriza como sapiens-sapiens-demens. Uma tal condição

sapiental deve denotar menos a supremacia da espécie e

mais a sua responsabilidade diante de uma história

encenada conjuntamente com parceiros que, não só não a

escolheram, mais dela compartilham de maneira

compulsória ou pela domesticação.

Se a aventura humana na terra tem se dado graças a

complexificação crescente de nossas aptidões mentais em

intercâmbio com a natureza, e se da relação homem-meio

emergiu esse fabuloso processo cultural, talvez seja

imperativo perguntar sobre a nossa dívida para com outros

processos que foram interrompidos em favor de um projeto

civilizatório excludente porque “demasiadamente humano”.

Por fim, se a acumulação da cultura tem se dado pela

transferência, reorganização e resignificação de informações

de diversas ordens (física, biológica, psíquica, simbólica),

devemos atestar a importância do processo educativo como

mediador dessa acumulação. Cabe, entretanto perguntar

como temos praticado tal mediação, a partir de que

métodos de pensar temos intercambiado e reorganizado

informações, de que moldes mentais fazemos uso para

transmitir conhecimentos, experiências, conteúdos

interpretativos. Para pensar a formação de educadores

capazes de problematizar e articular os conteúdos da

cultura é necessário tomar consciência das condições de

produção do conhecimento operado historicamente e

discutir a educação como via de superação da

29

Page 30: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

disciplinaridade fechada, não comunicante.

 

Cultura e conhecimento

 

Comecemos por explicitar as possibilidades cognitivas do homem

diante da necessária reconstrução de um conhecimento mais universalista,

complexo e dialogal. Situemos um começo, sem a preocupação de um ponto

zero.

Sabemos que apesar de integrante do complexo sistema que constitui

o meio ambiente, o homem dele se distingue pela faculdade da produção da

cultura e da construção da história. É como leitor simultaneamente utilitário

e especulativo do ecossistema que o homem têm respondido aos problemas

que lhes são postos. Mas é também como formulador de cosmologias

imaginárias que temos dialogado, lido e reconstruindo o mundo.

É pois a partir do contato com um mundo dado e um mundo

construído – ecossistema natural, códigos culturais, representações – que a

relação cérebro-espírito tem encontrado as bases e as condições para sua

complexificação e a produção do pensamento, do conhecimento e da

cultura. Somos seres ao mesmo tempo marcados pela necessidade prática e

pela competência especulativa, seres lógicos e míticos. Conforme dirá E.

Morin em O método III, “toda renuncia ao conhecimento

empírico/técnico/racional conduziria os humanos à morte”, mas igualmente

“toda a renuncia às (nossas) crenças fundamentais, desintegraria a

sociedade12[2].”

Para Edgar Morin o processo de complexificação da

natureza, animado pela pulsão cognitiva que ultrapassa o

utilitarismo, sustenta-se numa estrutura antropológica

pendular que comporta, simultânea e dialogicamente uma

biologia, uma animalidade e uma humanidade do

conhecimento. Essa pulsão cognitiva é certamente o que

funda a constituição das sociedades humanas, sua

historicidade, constitui a cultura, produz um ser leitor,

12[2] MORIN. Edgar. O método III. O conhecimento do conhecimento. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d. p. 144.

30

Page 31: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

interpretante e impressor de sentidos, vontades, desejos,

produtor e consumidor de conhecimento. “A cultura que é a

marca da sociedade humana, é organizada/organizadora

pela via do veículo cognitivo que é a linguagem; a partir do

capital cognitivo coletivo dos conhecimentos adquiridos, dos

saberes fazeres apreendidos, das experiências vividas, da

memória histórica, das crenças míticas de uma sociedade.

Assim se manifestam representações coletivas, consciências

coletivas, imaginário coletivo... Assim a cultura não é nem

superestrutura nem infraestrutura, esses termos sendo

impróprios numa organização recursiva na qual o que é

produzido e gerado torna-se produtor e gerador daquilo que

o produz ou o gera”13[3].

Esse conceito de cultura, que para Edgar Morin

implica, metaforicamente, um mega-computador complexo,

inscreve instruções, prescreve normas e comandos em

cérebros individuais, das sociedades arcaicas às pós-

industriais, e vem sendo construído, pouco a pouco, num

itinerário intelectual múltiplo, desencadeado principalmente

a partir da publicação de “O paradigma perdido”, de 1973.

Nesse livro é enfatizado que a substituição da floresta pela

savana, a ociosidade dos adolescentes, a copulação frontal,

o fogo, a instauração da exogamia, o fim do nomadismo, a

articulação da palavra, a aferição de significados, o exercício

das trocas e do poder, a criação do mito e da ciência, são

todos sinalizações da relação natureza-cultura mediada pela

imposição de problemas novos e instigantes. “A

hominização teve como prelúdio uma desgraça ecológica,

um desvio genético e uma dissidência sociológica”14[4].

No interior desse macro processo, a complexificação

cerebral, instigada e alimentada pela relação constante

13[3] MORIN, E.. La méthode 4: les idées - leur habitat, leur vie, leurs moeurs, leur organizations. Paris: Editions du Seuil, 1991, p. 17.14[4] MORIN, E.. O enigma do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 63.

31

Page 32: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

entre o homínida e o meio ambiente, desempenhou o papel

de “centro federativo-integrativo entre as diversas esferas

cujas relações mútuas constituem o universo antropológico:

a esfera ecossistêmica, a esfera genética, a esfera cultural e

social e, claro, a esfera fenotípica do organismo

individual”15[5]. Entre o cérebro humano e o meio ambiente

não há, portanto, de fato, nem integração nem adequação

imediata. Antes, uma zona de ambigüidade e incerteza. E é,

precisamente, a faculdade de indecisão, o ingrediente que,

ao mesmo tempo, limita e abre indefinidamente a

possibilidade de conhecimento16[6].

A zona de indecisão entre homem e meio define a

possibilidade do conhecimento, e este nada mais é do que a

tentativa de fechar a brecha cérebro X ecossistema-cultura-

praxis. A resolução das incertezas tem sido, historicamente,

exercitada através dos itinerários

simbólicos/mitológicos/mágico e empírico/racional/técnico

entendidos como excludentes pelo grande paradigma do

ocidente.

Com efeito, mais que atributos do pensamento, que

podem eventualmente articular-se, os itinerários míticos e

lógicos estão em constante interação como que contagiados

por uma necessidade comum. Por outro lado, a suposta

separação entre os ideários míticos, religiosos, científicos e

filosóficos só encontrará justificação nas matrizes da

racionalização da história ocidental que operam a arbitrária

disjunção entre razão e mito, como se razão e ciência não

fossem sempre contaminados e embebidos pelos

dispositivos míticos. “Os dois modos coexistem

entreajudam-se, estão em constantes interações, como se

tivessem uma necessidade permanente um do outro; podem

por vezes confundir-se, mas sempre provisoriamente”. Essas

15[5] Id. ibid. p. 136.16[6] Id. ibid. p. 130-131.

32

Page 33: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

palavras conduziram Edgar Morin a afirmar,

categoricamente, que a relação entre os dois pensamentos

não se encontra historicamente ultrapassada, mas inscreve-

se como uma questão antropossocial inaugural em toda a

trajetória do processo civilizatório.

Fazer comunicar esses dois modos de pensar, que

pela força do paradigma da simplificação esfraqueceram

suas relações e parecem atuar separados é reabilitar a

dialógica da estrutura policêntrica e fracamente

hierarquizada do cérebro humano. Uma tal reabilitação

antropológica favorece o diálogo entre as especialidades

técnicas da produção do conhecimento. Isso “não implica

em que cada um de nós tenha que passar o tempo todo a

ler, a informar-se de todos os domínios... O problema não

está em que cada um perca a sua competência. Está em

que a desenvolva o suficiente para articular com outras

competências que, ligadas em cadeia, formariam o anel

completo e dinâmico, o anel do conhecimento do

conhecimento17[7]”.

Para que essa potencialidade seja posta em

movimento, é necessário operar uma nova articulação de

saberes e competências além de um esforço de reflexão

fundamental. Tal articulação e esforço excedem o projeto

individual dos educadores, mas supõe à partida uma

vontade individual fundamental. É uma tarefa que necessita

do encontro e da troca de experiências de todos aqueles

que trabalham em domínios diversos e que não se fecham

como ostras nas conchas de suas especialidades. Además,

nenhum conhecimento tem sentido fora de seu contexto

conforme assevera Edgar Morin.

Numa problematização a respeito da atual reforma do

ensino fundamental no Brasil, Luís Carlos de Menezes

17[7] Id. Ibid. p. 33.

33

Page 34: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

destaca que dominar uma especialidade não é suficiente

para ter habilidade, competência e qualidades humanas.

Para ele a “natureza ou a sociedade não são disciplinares,

mas quanto mais aprofundado e especifico for o

conhecimento, mais disciplinar ele se apresenta, ou seja,

mais uso faz de códigos próprios, de linguagens específicas,

de instrumentos especiais. Por isso, há um lugar

insubstituível para as disciplinas, sempre que um

conhecimento sistemático estiver sendo tratado18[8]”.

Longe de protagonizar o fim das disciplinas, uma

reforma do pensamento e da educação reconhece como

imperativo fazer dialogar as estruturas de pensar, as

competências, os saberes produzidos. É ainda Menezes que

nos alerta para o fato de que mais que a destreza no

manuseio dos conteúdos específicos, a fecundidade de

acionar as competências está no fato de permitir a

transversalização dos redutos disciplinares. Nesse sentido,

pergunta: “escrever uma carta pessoal ou informação

técnica, saber como proceder diante de uma emergência

doméstica ou profissional, localizar informação e ser capaz

de interpreta-las, elaborar estatísticas de variáveis físicas e

sociais, conhecer hipóteses sobre o surgimento da vida no

planeta, tocar um instrumento musical ou dançar ou

representar ou desenhar, apreciar literatura, saber como se

elaboram as leis e conhecer a história da organização

política de diferentes povos, são habilidades restritas a

quais disciplinas?” Numa síntese arrojada Luis Carlos de

Menezes reescreve em nossa alma de educador um

argumento fundamental que pode nos dispor a fazer

dialogar as competências de um educador ativo e inteiro

diante do mundo. “Há qualidades afetivas, sociais, práticas

e éticas, como solidariedade, curiosidade, criatividade,

18[8] MENEZES, L. C. Competências e conhecimento no ensino médio. In: Jornal Tribuna do Norte. Caderno Viver – Polifônicas Idéias. Natal, 5 de agosto de 2000. p. 6.

34

Page 35: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

iniciativa, expressividade, sociabilidade, interesse cultural,

preferência artística, responsabilidade coletiva, respeito

humano e tantas outras que não se podem restringir a

quaisquer disciplinas, ainda que possam ser promovidas

dentro de qualquer disciplina19[9]”. Essas qualidades aludidas

por Menezes podem vir a configurar estados disposicionais

do professor para uma organização mais orgânica do

conhecimento. A esse respeito faz sentido trazer de volta as

palavras de Montaigne contidas nos seus ensaios: “mais

vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça cheia”.

Para Edgard de Assis Carvalho pensar a Educação do

século XXI é reabilitar como sugere Morin as inquietações de

Marx na terceira tese sobre Feuerbach. Nas palavras de

Carvalho, “qualquer teoria da mudança das circunstâncias

sócio-históricas e da educação traz consigo a necessidade

da educação dos educadores. Como fazer isso? Fomentando

a identidade entre ciência e arte, ciência e tradição,

estimulando a religação entre razão e sensibilidade. A

educação dos educadores deverá reconhecer que a função

escolar, em qualquer dos níveis em que exerça, precisa

estabelecer uma conexão forte entre presente e passado, de

um lado, e entre sociedade e indivíduo, do outro”. Conclui

Carvalho afirmando que o objetivo crucial da educação hoje

precisa se pautar pela “sustentabilidade e pela preservação

do capital cultural da humanidade20[10]”.

Para reabilitar o diálogo “entre razão e sensibilidade” de que fala

Carvalho e reaver as qualidades “afetivas, sociais, práticas e éticas”

sublinhadas por Menezes, o professor talvez tenha que contemplar-se no

espelho do antigo sábio, para atualizar sua imagem em sintonia com os

desafios da sociedade atual.

 

19[9] Id. Ibid. p. 6.20[10] CARVALHO, E. de A. Educação para o século XXI. In: Jornal Tribuna do Norte.

35

Page 36: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

O sábio pré-iluminista e o intelectual moderno

 

Foi certamente o predomínio da rigidez sobre a razão que acabou

constituindo-se na matriz epistemológica iluminadora do pensamento

científico, notadamente na modernidade.

O Século das Luzes será o marco principal de referência da

transformação do antigo sábio no intelectual moderno. O sacerdote-mago,

guardião dos mitos e encarregado de anunciar a verdade foi substituído pelo

filósofo iluminista que passa a submeter à verdade sagrada à prova da

crítica. Produz-se um novo mito: a razão. Dessa ruptura nasce o intelectual

moderno. “O mito da razão emancipa o intelectual” afirma Morin em “Para

sair do Século XX”.

Dotado de uma simbiótica ambivalência, o sábio pré-iluminista se

constituía ao mesmo tempo como defensor de valores morais e um rigoroso

observador, sistematizador e interpretador dos fenômenos físicos e sociais

do seu tempo. O intelectual moderno emerge num interior de um matizado

processo sócio-histórico que elege a razão como o único critério definidor

da ciência. A partir daí os saberes e as experiências que não resistem ao

teste da razão e da demonstração serão classificados como míticos,

esotéricos, religiosos, transcendentais, metafísicos. Mutatis-mutanti a

transformação do educador, antes um sábio polivalente, hoje um especialista

num domínio estrito de competência, reatualiza o mesmo processo de

fratura e redução das condições ampliadas da comunicação do

conhecimento.

O que pode parecer uma contextualização histórica da sucessão de

personagens do conhecimento, representa na verdade fixações normativas

excludentes de estados de ser do pensamento humano, em sua essência,

polivalente, polifônico, múltiplo. Reprograma-se pela via das escolhas

redutoras as interfaces entre homem e meio. As questões colocadas pelas

sociedades passam a ter domínios de resolução distintos. O conhecimento

como um recurso para fechar a brecha cérebro-meio tem agora diante de si

questões de natureza supostamente diferenciadas. Estabelecem-se divisores

entre o que é da ordem do racional e do irracional, e, mais particularmente,

opõem-se os problemas considerados ora míticos, ora metafísicos, ora

36

Page 37: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

científicos. A fragmentação do pensamento torna-se visível pela produção

de especialistas não comunicantes. Emerge o descompasso na articulação

entre os itinerários míticos e lógicos. O pensamento simplificador

pulverizará a partir de então as questões a serem apreciadas pelas sociedades

humanas de forma insular e pontual.

Essa estrutura de operação do pensamento e produção do

conhecimento tem por base a emergência de uma sociedade pré-industrial

que vê multiplicados os problemas já existentes ao mesmo tempo em que se

defronta com o aparecimento de novos problemas. O aumento e

deslocamento populacionais, o redirecionamento da formação técnico-

profissional, o aparecimento de doenças provocadas pelas aglomerações

urbanas, etc. vão demandar uma nova organização na produção de saberes.

Essas contingências sócio-históricas consolidarão o perfil do intelectual e do

cientista como um especialista.

Vão sendo consagradas a partir daí as várias cadeias de separação

sucessivas entre natureza e cultura, o mundo real e o mundo imaginário,

produção material e produção do pensamento, trabalho manual e trabalho

intelectual, fazer e saber, teoria e prática, pensamento e ação. A separação

entre a arte da técnica e a estética da reflexão encontrará na sociedade

industrial nascente as condições favoráveis para expressar-se. Torna-se

então indispensável à formação de competências específicas gestadas pelos

adestramentos que confinam o indivíduo em um campo extremamente

restrito de atividades. A ciência passa a acentuar o caráter utilitário do

conhecimento, limitando o campo da reflexão a certos domínios. Entramos

assim nos “tempos modernos” de Chaplin: a repetição, a mecanização do

pensamento, a exaustão do corpo sem mente e sem desejo. Mentes treinadas

para pensar o extremamente útil, “corpos dóceis para o trabalho”, para usar

uma expressão de M. Foucault.

No cenário dessa lógica perversa, as instituições educacionais vão

aos poucos abrindo mão da reflexão e da crítica, para privilegiar a formação

de especialistas que reproduzem maquinicamente uma sociedade

fragmentada, comprometendo assim as condições de convivialidade e

diálogo social entre os saberes milenares da tradição e a ciência moderna.

Uma assepsia cognitiva passa a controlar as qualidades psico-afetivas do

37

Page 38: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

conhecimento, e uma razão patológica proverá, por todos os meios a

domesticação da “lógica do sensível” de que trata Claude Lévi-Strauss.

 

 

A domesticação da tradição

 

A história da nossa espécie, vale dizer, do passado de

cada um de nós, desenhou-se por sobre diversos caminhos

possíveis, seguiu a reta da especialização e é ao mesmo

tempo uma história de ganhos e perdas. Mas que isso, o

caminho percorrido até hoje só foi possível às custas da

redução, assimilação e negação de diversas formas de

intercâmbio do homem com o meio através do

conhecimento.

A cultura que recebemos como herança funda-se na

divisão de dois domínios de saberes: de um lado a ciência,

do outro os saberes da tradição. A hegemonia de um

domínio sobre o outro e a incomunicabilidade entre eles se

constitui um dos problemas cruciais do nosso tempo. Longe

de apregoar a unificação de estilos diferenciados de dialogar

com o mundo, temos entretanto que julgar inadmissível o

paralelismo de saberes que tem em comum o mesmo

desafio: tornar possível e prazerosa a vida humana na terra.

Além do mais, a hegemonia da ciência se acorra num

fundamento sem fundamento. Isto porque a ciência nasceu

justamente da domesticação de parte dos saberes milenares

da tradição, mesmo que deles tenha aos poucos se

distanciado.

Do ponto de vista da função social e política do

conhecimento, cabem aqui algumas interrogações. Se “a

sociedade se põe os problemas que pode resolver”, como

afirmava Marx, como enunciar as questões centrais de

nosso tempo? Como indicar o problema chave de nossa

38

Page 39: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

época? Pode-se dizer que tais questões são aquelas que a

comunidade científica anuncia? A essa convenção não se

deve contrapor a ausência da ciência frente a problemáticas

muitas vezes vitais de certas populações? A que serve o

paralelismo da produção do conhecimento na ciência e nos

saberes da tradição? Sabemos que internamente à ciência,

o paralelismo das descobertas científicas demonstra a

universalidade da sintonia cérebro-meio pela explicitação de

questões idênticas em lugares diferentes. Mas também

sabemos do desperdício, da duplicação e a

incomunicabilidade que constituem juntos a característica

da ciência moderna. Esse panorama se amplia em relação

se considerarmos o conjunto de nossos conhecimentos.

A partir desse raciocínio, algumas questões podem ser

delineadas: 1) A população que por interdição é destituída

do saber científico, estaria em atraso em relação às

questões enunciadas pela ciência num determinado

momento? 2) Seriam elas um empecilho a produção coletiva

do conhecimento? 3) Se é verdade que só a ciência sintoniza

adequadamente as questões postas e as resolve, como

entender que as populações que não dispõem daquele

conhecimento elaboram suas matrizes de referência

explicativa? 4) Os saberes não científicos teriam como

função ensaiar soluções para problemas que num segundo

momento, seriam resolvidos pela ciência?

Tais questões problematizam o processo educativo em

nossos dias, processo de dispersão que, ao invés de criador

é redutor e mutilante. De um lado, o saber científico

fracionado, não comunicante; de outro, o saber tradicional

“popular”, selvagem, tratado como filho bastardo da

aventura do conhecimento e excluído do âmbito da

socialização da cultura científica. Tal exclusão fundará

39

Page 40: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

espaços, linguagens e atitudes mentais que se excluem

mutuamente.

Na formação acadêmica do professor, os conteúdos

que são transmitidos correspondem a uma história

domesticada das descobertas do homem. Está fora dos

programas a diversidade de explicações, especulações e

métodos de olhar, classificar e hierarquizar os fenômenos do

mundo, pelos intelectuais da tradição. São os métodos

científicos de previsão climática que são comunicados, e

nunca as formas tradicionais de leitura do ecossistema pelos

peritos da tradição. Ao exercício do pensamento analógico,

ferramenta mental tão fecunda nos saberes não-científicos,

são atribuídos reservas desclassificatórias. Se, nos

conteúdos escolares, há alusão a outras interpretações do

mundo, a elas são imputadas a qualidade de um saber sem

rigor, sem método, sem função, um saber menor.

Essa forma de interdito na circulação da cultura, consolida uma

sociedade de múltiplas exclusões e condena as populações não letradas a

redutos cada vez mais fechados. Dotados, entretanto de uma criatividade

não domesticada, essas populações têm respondido a desafios que talvez a

ciência fosse incapaz de enfrentar, se fosse desprovida de tantas

ferramentas, artifícios e próteses.

 

 

 

 

 

Um novo educador

 

A tarefa de repensar a formação de novos educadores

supõe um clima de efervescência de idéias, chamado de

calor cultural, por Morin, e implica identificar o que, na

nossa estrutura educacional favorece o “comércio” e a troca

40

Page 41: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

múltipla de interações, opiniões, idéias e teorias. Não se

restringindo ao intercâmbio do que já foi dito, essa investida

apela para nossa criatividade no sentido de pensar um

educador capaz de, não se fixando apenas no compromisso

com o presente, poder lançar as bases para uma educação

do futuro.

Assim, mais que reformular as teorias e metodologias

particulares para pensar o mundo, é fundamental que nos

coloquemos o problema de recompor a estrutura de pensar.

Em segundo lugar, considerando o quadro interno do

conhecimento científico há que se propugnar pela

articulação entre ciências da vida, ciências do homem,

ciências do mundo físico. Aqui, não bastarão, certamente,

esforços de superposição de conteúdos disciplinares. Nessa

direção, a interdisciplinaridade deve ser ultrapassada pelo

horizonte da transdisciplinaridade, em busca do pensamento

complexo. Por outro lado, esse intercâmbio interno entre

disciplinas científicas não basta. É fundamental ampliá-lo

nos quadros do diálogo entre a ciência e os saberes da

tradição, conforme já assinalamos.

Esses exercícios supõem reativar ou configurar uma

estrutura cognitiva de múltiplas e complexas entradas.

Nessa nova e plurifocal rede cognitiva perde sentido,

certamente, a estrutura dual e fragmentada de pensar o

mundo e o homem. Esse é, parece, o horizonte posto hoje

ao conhecimento.

Diante deste horizonte é importante investir numa

reorganização do conhecimento capaz de prover uma

reforma na educação. Isso requer uma nova aliança entre

cultura cientifica e cultura humanística, a reforma do

pensamento e o exercício do diálogo. Essas idéias que

alimentam a base epistemológica de pensadores como Ilya

Prigogine, David Bohm e Edgar Morin podem fomentar

41

Page 42: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

práticas educacionais capazes de religar os conhecimentos e

fazer dialogar nossas competências. Rediscutir como

hipóteses postulados tidos como indiscutíveis, imprimir

importância a fatos concebidos como aleatórios pela ciência,

refutar a ortodoxia e o maniqueísmo, por à luz nossas

crenças fundamentais, exercitar a criatividade do

pensamento, são alguns dos protocolos que favorecem a

emergência de um novo espírito cientifico e de um novo

educador.

Esse protocolo de intenções, talvez mais propriamente

uma pedagogia da complexidade precisa está

comprometido com um ideário educacional mais ético

diante dos graves problemas planetários, sem abrir mão, é

claro, da nossa herança milenar que, de uma certa forma,

ainda se mantém nos redutos dos saberes da tradição.

Há que se investir na disposição para ampliar os

limites do conhecimento e fazer dialogar as competências

disciplinares. Uma reorganização mais democrática dos

saberes poderá reduzir a exclusão inadmissível de parte

considerável de nossa sociedade diante das escolhas

coletivas. Esse desafio longe de configurar uma missão

própria de um especialista, pertence igualmente aos

epistemólogos, físicos, educadores, sociólogos, antropólogos

e intelectuais da tradição.

No que se refere aos profissionais da educação que

aqui nos interessam mais de perto, é preciso sublinhar o

importante papel que esses atores desempenham enquanto

mediadores da transferência e difusão dos conteúdos da

cultura científica. Mais que um simples transmissor de

conhecimento, o professor constitui-se numa referência

privilegiada para a construção da visão de mundo e da

estrutura de pensar do aluno, diga-se, do cidadão

planetário.

42

Page 43: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

Investido da autoridade aferida pelo estoque do

conhecimento acumulado e do poder instituído pelo lugar

discursivo do qual fala, ao educador caberia hoje o exercício

de fazer emergir uma qualidade do pensamento que está

em parte adormecida: o prazer de conhecer. O incitamento

à criatividade, a atividade de interditar a ortodoxia e a

certeza, podem vir a prefigurar um novo perfil do educador,

em sintonia com as demandas culturais do próximo milênio.

Esse novo educador talvez tenha que incluir na sua agenda

duas tarefas que, mesmo distintas são complementares.

Uma diz respeito à reconstrução de seu próprio perfil

enquanto profissional da educação: a morte do sujeito

narcisicamente investido do poder é o mínimo que se espera

para reformatar-se os espaços discursivos do diálogo

professor-aluno. Essa tarefa amplia-se numa outra, sem

dúvida investida de maior envergadura e desafio. Trata-se

de exercitar uma verdadeira aeróbica dos neurônios no

sentido de desconstruir os imprintings paradigmáticos que

impedem novas e ampliadas sinapses cognitivas de alunos

cada vez mais ávidos em expor suas subjetividades, seus

mapas auto-biográficos e em compreender os conteúdos

disciplinares que se tornam significativos apenas pela

partilha e co-produção.

Certamente, a tarefa para reintroduzir o prazer na

práxis docente, supõe a reconstrução de um conhecimento

mais aberto, onde as noções de polifonia, ambivalência e

simultaneidade possam emitir novas mensagens a um

sujeito ativo que se singulariza. Para isso, ter-se-á que

exercitar um esforço fundamental para acessar o nosso

poliprograma cerebral atualmente adormecido pela

hegemonia da ratio cartesiana. Em outras palavras, ter-se-á

que questionar as imposições radicais das mundovisões

43

Page 44: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

estreitas sugeridas pelos códigos da ciência, o que subtende

rediscutir a formação de professores.

É preciso que o professor seja formado para ampliar

suas escolhas cognitivas e de seus alunos para que possam

coletivamente arquitetar e ensaiar novas escolhas sociais,

éticas, políticas. É necessário que a escola se transforme no

lugar de fecundação de novas utopias realistas. Se é

imprescindível reformar as estruturas curriculares dos

cursos de formação de professores, se é indispensável

repensar a construção do perfil do professor diante da

sociedade atual, se é inadiável ultrapassar a idéia do

professor como mero transferidor de conteúdos científicos,

não é menos importante, e urgente, se colocar a questão da

auto-formação do educador.

Assim como a critica deve ser sempre precedida da

auto-crítica e a ética social se inicia com auto-ética de cada

sujeito, também a formação do professor deve ter por

complemento importante a auto-formação. Não é de mais

lembrar que toda transformação individual ou coletiva

requer uma intenção, uma vontade, uma prática ou mesmo

um consentimento, mas começa sempre pela transformação

do sujeito. Todas as mudanças supõe uma convicção

fundamental para a transformação, e essa convicção está

situada no indivíduo.

Apostar numa refundação do perfil do educador é

talvez abrir-se à dinâmica da reconstrução de nossos

métodos de ensinar e aprender. É com esse objetivo que

tomo aqui de empréstimo a noção de auto-organização

formulada por Henri Atlan e o argumento defendido por

Pierre Lévy de que o sistema cognitivo humano tem por

base uma diversidade de operações simultâneas. Vamos por

parte.

44

Page 45: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

Henri Atlan sugere que a complexidade dos sistemas

vivos supõe a auto-organização pelo ruído. É a partir da

decodificação do ruído que se desestrutura a fixação do

padrão cognitivo e se ampliam os modelos de referência

internos ao sistema. É por isso que os processos de

aprendizagem “não dirigidos” são responsáveis, em grande

parte, pelo aparecimento de novos padrões de leitura do

mundo. O núcleo das idéias de Atlan a esse respeito

comporta duas noções/processos fundamentais: o delírio e o

transbordamento.

O delírio passa a ser entendido como uma projeção do

imaginário sobre o real e o elemento que exibe a condição

de “ambigüidade” do imaginário. Sublinha o autor, por

exemplo, que qualquer hipótese científica realmente nova é,

na sua origem, “da ordem do delírio”. O passo seguinte é,

supondo sempre a auto-eco-organização do pensamento, a

exposição dessa projeção ao real. E o feedback, ou seja, o

resultado da digestão e adequação do delírio ao mundo real,

que evitará sua potencial metamorfose patológica. A

ausência desse feedback, a partir do fechamento do sistema

cognitivo, pela via da “memorização excessiva” (fixação de

um molde inalterável) ou da “precisão demasiada” (fixação

numa projeção particular) encera o delírio no reduto de sua

negatividade. Daí porque os processos/mecanismos de

transbordamento do pensamento, pelos excessos de

imagens e leituras complexas, podem vir a se constituir num

importante antídoto de resistência frente ao que tenho

chamado de violência cognitiva, que impõe padrões

redutores e economizadores do policentrismo cerebral e da

polifonia imaginária. As noções de aceitação do ruído e de

“delírio organizador” parecem se impor hoje como idéias

sobre as quais é preciso pensar.

45

Page 46: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

Da parte de Pierre Lévy, para o qual “pensar é um

devir coletivo no qual se misturam homens e coisas”

interessa reter a simultaneidade da operação cognitiva.

Sendo a educação um dispositivo que limita pela

seletividade, a escolha de métodos de leitura do mundo, ela

comporta em si, a possibilidade de fechamento e redução do

pensamento humano. Isto é, os métodos de transmissão da

cultura reduz a polifonia do pensamento. Mas não é só.

Numa síntese arrojada, Pierre Lévy mostra como a história

do pensamento no homem se traduz pela sucessão do que

ele chamou “os três polos do espírito” – oralidade, escrita,

informática. Manter-se em sintonia com o mundo atual é,

para Pierre Lévy, por-se a tarefa inadiável de promover a

fusão e ampliação dessas distintas “tecnologias do

pensamento”. Essa parece ser uma das estratégias

fecundas na prática do ensino. Tal proposição não deverá

excluir nenhum desses três polos, mais ao contrário, bricolá-

los num grande hipertexto da cultura onde o mito e o logos,

os desejos e as interdições, as narrativas e os diagramas, as

subjetividades e as objetividades teçam, conjuntamente, os

“nós” de um homem ainda em construção. “A sucessão da

oralidade da oralidade, da escrita e da informática como

modos fundamentais da gestão social do conhecimento não

se dá por simples substituição, mas antes por

complexificação e deslocamento de centro de gravidade”

(Lévy: 1993).

Em suma, a desconstrução da educação como

adestramento e a reconstrução do perfil do educador

supõem a aceitação da morte e da metamorfose do sujeito

cindido e fechado. Nas palavras de Henri Atlan, “na verdade,

foi o homem, enquanto sistema fechado, que desapareceu;

sistemas cibernéticos abertos, auto-organizados, são

candidatos a sua sucessão” (Atlan: 1992).

46

Page 47: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

Nessa sucessão de mortes e renascimentos, valeria

também nos perguntar sobre a vitalidade de nossas

projeções de futuro quando nos detemos demasiadamente

aos fatos, processos, e diagnósticos do presente. A esse

respeito são bem vindas as reflexões de Joel de Rosnay no

livro “O homem simbiótico”. Para ele, dadas às

transformações rápidas, imprevistas e incertas das

sociedades contemporâneas, nenhuma de nossas projeções

teóricas teriam valor operativo de longo alcance. Para

Rosnay, o desafio que se impõe a todos nós é maior. Trata-

se de imaginar a sociedade que queremos e identificar, no

contexto de nossas sociedades atuais quais são os fatos

portadores de sentido, capazes de objetivar nossa

imaginação. Isso vale também para imaginar e construir a

educação que queremos.

No espaço desse artigo enuncie o que, para mim, são

alguns desses fatos portadores de sentido. Mas eles não são

suficientes, nem são os únicos, nem talvez os mais

fecundos. Somente o empenho coletivo para iluminar focos

de emergência de uma nova sociedade e de uma nova

educação, nos permitirão projetar para o futuro o que é

preciso começar agora. Os três últimos livros de Edgar Morin

sobre a reforma da educação – “A cabeça bem-feita”, “Os

sete saberes necessários à educação do futuro” e

“Complexidade e Transdisciplinaridade – a reforma da

universidade e do ensino fundamental”, podem descortinar

caminhos de por onde começar. Para Morin é fundamental

articular as disciplinas em torno dos meta-temas mundo,

terra, vida, humanidade, arte, história, culturas

adolescentes e conhecimento. Compreender que o erro é

parte integrante do processo cognitivo, que todo fenômeno

só ganha sentido em relação ao seu contexto; ensinar a

identidade terrestre e a compreensão; discutir a ética do

47

Page 48: ÉTICA - ARTIGO - Ensinar a condição humana - MARIA DA CONCEIÇAO ALMEIDA

gênero humano e conviver com a incerteza se constituem

em diretrizes para fazer dialogar os conteúdos disciplinares

e restituir ao educador sua missão maior de ensinar a viver

a condição humana.

 

 

Bibliografia Referida

 

ATLAN, H. Entre o cristal e a fumaça – ensaio sobre a organização do

ser vivo. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

CONCHE, M. A análise do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LÉVY, P. As tecnologias da Inteligência – o futuro do pensamento na

era da informática. Rio de Janeiro: editora 34, 1993.

MORIN, E. O método III – O conhecimento do conhecimento. Lisboa:

Publicações Europa-América, s.d.

____. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo:

Cortez; Brasília: Unesco, 2000.

____. A cabeça bem-feita – pensar a reforma, reformar o pensamento.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

____. Complexidade e Transdisciplinaridade – a reforma da

universidade e do ensino fundamental. Natal: Editora da UFRN,

1999.

ROSNAY, J. de. O homem simbiótico – perspectivas para o terceiro

milênio. Petrópolis: Vozes, 1997.

 

48