ética deAristóteles

10
A ÉTICA DE ARISTÓTELES A Vida Aristóteles nasceu em 384 a.C., em Estagiros, cidade da Calcídia, onde se falava o grego, apesar de se situar a grande distância de Atenas e de estar na dependência do rei da Macedónia. O pai de Aristóteles, Nicómaco, era médico pessoal do rei Amintas II, pai de Filipe da Macedónia e a mãe, Faístias, era natural de Cálcia, na Eubeia, onde o filósofo viria a falecer, em 322 a. C., com 62 anos de idade. Tendo perdido os pais muito cedo, o filósofo foi educado por um tutor, Próxeno d`Atarneia, cujo filho, Nicanor, adoptaria, mais tarde. O ano de 366 foi marcante para o percurso intelectual do estagirita, já que foi, nesse ano, que ele se mudou para Atenas, com a idade de 17 anos, para estudar na Academia de Platão, onde permanecerá até à morte do mestre, vinte anos depois. Durante os 20 anos em que estudou e ensinou na Academia, Aristóteles teve oportunidade de privar com os grandes nomes da intelectualidade de Atenas, como Platão, Eudóxio, Heraclites de Ponto e Xenócrates. As relações entre Aristóteles e Platão estão envoltas em algum mistério, pois as versões contemporâneas são contraditórias e pouco fidedignas. Parece não haver dúvidas que foram amigos e que Aristóteles nunca deixou de admirar e apreciar a obra de Platão, embora discordasse de alguns aspectos, nomeadamente da doutrina platónica das Ideias. Na sua obra A Política, Aristóteles terá oportunidade de se distanciar de algumas concepções políticas de Platão, desenvolvidas, por ele, na obra A República, nomeadamente a comunhão de mulheres e a propriedade comum. Numa passagem da Ética a Nicómaco, Aristóteles faz a seguinte referência a Platão: uma pesquisa deste género torna-se difícil, uma vez que a doutrina das Ideias foi introduzida por amigos. Mas será, talvez, de admitir que é preferível e para nós é também uma obrigação, se queremos ao menos salvaguardar a verdade, sacrificar até os nossos sentimentos pessoais, especialmente quando se é filósofo: apreciamos tanto a verdade como a amizade, mas para nós é um dever sagrado conceder a primazia à verdade. Seja como for, Aristóteles só abandona a Academia após a morte do mestre, ocorrida em 347, em Atenas. Provavelmente, o facto de Platão ter escolhido o sobrinho, Espeusipo, para dirigir a Academia, não terá caído bem em Aristóteles que, decepcionado com a escolha, abandona Atenas e vai para Tróada, em Assos, na Ásia Menor, onde ensina durante três anos, sob a protecção de um antigo aluno, chamado Hérmias, tornado soberano de Assos. Aristóteles passa, nesse período, por uma fase de grande criatividade, tendo escrito aí, algumas das suas obras mais importantes e feito importantes estudos de biologia. Com a morte violenta de Hérmias, em 345, Aristóteles vê-se obrigado a fugir de Assos, levando consigo a sobrinha de Hérmias, Pítia, com quem viria a casar. O amor que Aristóteles dedicou à sua primeira mulher, Pítia, levou-o a incluir no testamento, após a morte prematura de Pítia, que os restos mortais dela deveriam ser misturados com os seus. Após a morte prematura de Pítias, o filósofo viria a casar com Herpília, da 1

description

ética deAristóteles

Transcript of ética deAristóteles

  • A TICA DE ARISTTELES A Vida

    Aristteles nasceu em 384 a.C., em Estagiros, cidade da Calcdia, onde se falava o grego, apesar de se situar a grande distncia de Atenas e de estar na dependncia do rei da Macednia. O pai de Aristteles, Nicmaco, era mdico pessoal do rei Amintas II, pai de Filipe da Macednia e a me, Fastias, era natural de Clcia, na Eubeia, onde o filsofo viria a falecer, em 322 a. C., com 62 anos de idade. Tendo perdido os pais muito cedo, o filsofo foi educado por um tutor, Prxeno d`Atarneia, cujo filho, Nicanor, adoptaria, mais tarde. O ano de 366 foi marcante para o percurso intelectual do estagirita, j que foi, nesse ano, que ele se mudou para Atenas, com a idade de 17 anos, para estudar na Academia de Plato, onde permanecer at morte do mestre, vinte anos depois. Durante os 20 anos em que estudou e ensinou na Academia, Aristteles teve oportunidade de privar com os grandes nomes da intelectualidade de Atenas, como Plato, Eudxio, Heraclites de Ponto e Xencrates. As relaes entre Aristteles e Plato esto envoltas em algum mistrio, pois as verses contemporneas so contraditrias e pouco fidedignas. Parece no haver dvidas que foram amigos e que Aristteles nunca deixou de admirar e apreciar a obra de Plato, embora discordasse de alguns aspectos, nomeadamente da doutrina platnica das Ideias. Na sua obra A Poltica, Aristteles ter oportunidade de se distanciar de algumas concepes polticas de Plato, desenvolvidas, por ele, na obra A Repblica, nomeadamente a comunho de mulheres e a propriedade comum.

    Numa passagem da tica a Nicmaco, Aristteles faz a seguinte referncia a Plato: uma pesquisa deste gnero torna-se difcil, uma vez que a doutrina das Ideias foi introduzida por amigos. Mas ser, talvez, de admitir que prefervel e para ns tambm uma obrigao, se queremos ao menos salvaguardar a verdade, sacrificar at os nossos sentimentos pessoais, especialmente quando se filsofo: apreciamos tanto a verdade como a amizade, mas para ns um dever sagrado conceder a primazia verdade.

    Seja como for, Aristteles s abandona a Academia aps a morte do mestre, ocorrida em 347, em Atenas. Provavelmente, o facto de Plato ter escolhido o sobrinho, Espeusipo, para dirigir a Academia, no ter cado bem em Aristteles que, decepcionado com a escolha, abandona Atenas e vai para Trada, em Assos, na sia Menor, onde ensina durante trs anos, sob a proteco de um antigo aluno, chamado Hrmias, tornado soberano de Assos. Aristteles passa, nesse perodo, por uma fase de grande criatividade, tendo escrito a, algumas das suas obras mais importantes e feito importantes estudos de biologia. Com a morte violenta de Hrmias, em 345, Aristteles v-se obrigado a fugir de Assos, levando consigo a sobrinha de Hrmias, Ptia, com quem viria a casar. O amor que Aristteles dedicou sua primeira mulher, Ptia, levou-o a incluir no testamento, aps a morte prematura de Ptia, que os restos mortais dela deveriam ser misturados com os seus. Aps a morte prematura de Ptias, o filsofo viria a casar com Herplia, da

    1

  • qual teve um filho, a que deu o nome de Nicmaco e a quem dedicou um dos seus mais importantes livros: A tica a Nicmaco. Fugido apressadamente de Assos, Aristteles refugiou-se em Mitilene, situada nas vizinhanas de Assos e ali permaneceu dois anos. Em 343, o rei Filipe da Macednia pediu a Aristteles que fosse para Pella, junto da cidade de Tessalnica, com o objectivo de se tornar preceptor do filho, o futuro rei Alexandre da Macednia. Aps o assassinato do rei Filipe, em 336, Alexandre sobe ao trono e inicia uma vaga de conquistas sem paralelo na Histria da Humanidade. Descontente com o rumo dos acontecimentos imprimido pela poltica imperialista de Alexandre, Aristteles deixa a corte da Macednia e regressa a Atenas, para abrir uma nova escola, a que deu o nome de Liceu, por se situar prximo do templo dedicado a Apolo Lcio, entre o monte Licabeto e o rio Ilisso. A criao do Liceu levou ao arrefecimento das relaes de Aristteles com alguns dos grandes nomes que ensinavam na Academia, como o seu amigo Xencrates, entretanto nomeado director da escola platnica. Com a morte prematura de Alexandre, em 323, o partido anti-macednico ganha fora em Atenas e Aristteles sente-se ameaado e considerado suspeito. Demfilo lana contra Aristteles uma acusao de impiedade, pelo facto de ele ter sido protegido de Hrmias e de lhe ter, supostamente, dedicado um "hino virtude", como se tratasse de um deus. Uma tal acusao podia levar condenao morte, pelo que o estagirita, conhecedor do infame processo movido a Scrates, achou por bem abandonar, definitivamente, Atenas. Aristteles refugiou-se em Clcia, na Eubeia, cidade natal da me, onde possua uma propriedade, vindo a a falecer, aos 62 anos de idade, no ano de 322. A Obra

    Para Aristteles, o ensino da coragem, bem como de outras virtudes morais, exige a prtica continuada de actos de coragem, de tal forma que essa virtude seja incorporada nos nossos hbitos. Tanto na tica a Eudemo (1) como na tica a Nicmaco (2), Aristteles identifica a busca da felicidade como o fim ltimo da vida. A mesma identificao pode ser notada no "terceiro livro de tica" atribudo a Aristteles, denominado Magna Moralia (3).

    Embora continue a haver controvrsia, quer sobre a sequncia temporal destas trs grandes obras sobre tica quer sobre a atribuio a Aristteles da obra Magna Moralia, a maior parte dos especialistas contemporneos considera que a Magna Moralia e a tica a Eudemo so obras menos maduras do que a tica a Nicmaco, sendo esta o grande tratado que coroa o pensamento tico do grande filsofo de Estagira (4).

    A felicidade

    Como o fim de todos os nossos actos deve ser a procura do bem, a felicidade identifica-se com o prprio bem. A filosofia de Aristteles , por isso, eudemonista. A prpria sociedade civil tem como fim viver bem e todas as suas instituies no so seno meios para isso e a Cidade apenas uma comunidade de famlias e de aldeias em que a vida encontra todos estes meios de perfeio e de suficincia. isto a que podemos chamar uma vida feliz e honesta.

    2

  • A sociedade civil , pois, menos uma sociedade de vida comum do que uma sociedade de honra e virtude. A felicidade surge, assim, como um dever e um direito e o homem feliz quando realiza aquilo para o qual feito, e realizar aquilo para o qual feito, o dever do homem, pois isso que a razo lhe prescreve. A felicidade anda, em Aristteles, tal como em Plato, associada ao Bem e Virtude, Alma portanto e no ao corpo ou aos bens exteriores, porque todos vemos que no pelos bens exteriores que se adquirem e conservam as virtudes, mas sim que pelos talentos e virtudes que se adquirem e conservam os bens exteriores e que, quer se faa consistir a felicidade no prazer ou na virtude, ou em ambos, os que tm inteligncia e costumes excelentes a alcanam mais facilmente com uma fortuna medocre do que os que tm mais do que o necessrio e carecem dos outros bens.

    Os bens exteriores no passam de instrumentos teis que, em excesso, podem ser um estorvo ou, pelo menos, uma inutilidade para quem os usufrui. Ao invs, os bens da Alma so sempre teis e quanto mais excessivos forem maior ser a sua utilidade. Nessa medida, a felicidade de cada um proporcional virtude e prudncia que tiver, e na medida em que age em conformidade com elas.

    Na Poltica (5), Aristteles d-nos a seguinte definio de vida feliz: consiste no livre exerccio da virtude, e a virtude na mediania; segue-se necessariamente da que a melhor vida deve ser a vida mdia, encerrada nos limites de uma abastana que todos possam conseguir. No se confunda, no entanto, justo meio com mediocridade! E este princpio vlido tanto para as pessoas como para o Estado. Um Estado tanto mais feliz quanto mais justo, prudente e bom for. Da que o melhor Governo seja aquele no qual cada um encontra a melhor maneira de ser feliz. Um governo justo o que procura o justo meio e o que chama a si as virtudes da moderao e da prudncia, evitando a desigualdade extrema e a desproporo, que so causas da discrdia e da inveja entre os homens. Um governo justo o que se esfora por respeitar o equilbrio entre as classes e o que procura o interesse comum.

    A realeza preocupada apenas consigo prpria conduz tirania, a aristocracia tende a corromper-se no governo dos ricos e a repblica, quando no incorpora a regra do justo meio, tende a caminhar para a anarquia. Enfim, um governo justo um governo equitativo para o qual sempre desejvel a existncia de uma classe mdia susceptvel de encarnar o ideal do justo meio.

    O bem

    Mas o que o Bem? Tanto para Plato como para Aristteles, o Bem no um

    meio mas sim um fim. De certa forma o Bem tem a ver com a perfeio com que exercemos a nossa funo. Para o Homem, o Bem consiste na procura de perfeio no exerccio da actividade humana. Ao contrrio dos outros seres vivos, o Homem possui uma alma racional e inteligvel, sendo, portanto, dotado de razo. Deste modo, fazer o Bem agir de acordo com a razo. O homem feliz aquele que age de acordo com a razo.

    Mas ser que a felicidade acessvel a todos os homens? De acordo com Aristteles, apenas os mal formados esto impedidos de a atingir. O papel da educao vai permitir que os dons se desenvolvam e se tornem realidade. Embora a educao no seja determinante , contudo, condio necessria. Sem educao difcil despertar os dons.

    Embora a educao no seja tudo - ao contrrio de Scrates que pensava que bastava conhecer para fazer o bem - ela vai permitir a aquisio de bons hbitos e o contacto com pessoas virtuosas. Scrates e Plato nunca deram uma resposta plausvel

    3

  • grande questo: como se faz uma pessoa virtuosa? To pouco conseguiram dar resposta clara questo: possvel ensinar a virtude? Aristteles, na tica a Nicmaco, responde pela afirmativa. As virtudes morais podem ser ensinadas. Mas mais do que produto do ensino, as virtudes morais so produto do hbito. Na Poltica, afirma que trs coisas devem contribuir para isto: a natureza, o hbito e a razo. pergunta qual deve vir primeiro, o filsofo responde que devemos esforar-nos ao mximo para proporcionar criana, ao mesmo tempo, o raciocnio e o hbito, porque da mesma forma que a alma e o corpo so duas substncias distintas, assim tambm a alma tem duas faculdades no menos distintas, uma iluminada pela razo e outra que no tem esta luz; por conseguinte, h dois tipos de hbitos, uns apaixonados, ou provindos da sensibilidade, outros intelectuais. E, assim como o corpo gerado antes da alma, a parte carente de razo o , igualmente, antes da razovel. Isto pode observar-se pelos rasgos de clera, pelos desejos e pelas vontades mostradas pelas crianas pouco tempo depois de nascerem. Mas o raciocnio e a inteligncia s lhes vm naturalmente com a idade. As virtudes Aristteles distingue as virtudes morais das virtudes intelectuais, embora ambas tenham como ponto comum a razo. As segundas tm a ver com a sabedoria e o conhecimento. As primeiras com o hbito. O hbito de praticar aces rectas torna as pessoas virtuosas. A habituao virtude faz-se pelo hbito. De certa maneira, para procurar a virtude preciso, no fundo, ser-se j virtuoso. Mas o que a virtude para Aristteles? A virtude uma disposio, mas nem todas as disposies so virtudes. A disposio para a clera, o medo ou a cobardia no so virtudes, so vcios. A virtude , antes de mais, uma disposio voluntria, isto , no ditada pelas paixes.

    A pessoa virtuosa aquela que sabe o que faz, que conhecedora dos seus deveres, que escolhe deliberadamente seguir a conduta recta e capaz de repetidamente executar a rectido com esprito e vontade inabalvel. O virtuoso aquele que recto porque quer ser recto e porque gosta de ser recto. O hbito da rectido impele o virtuoso a uma disposio natural para ser recto.

    E o que uma aco boa? A aco boa quando de tal modo que no seja necessrio acrescentar-lhe ou retirar-lhe nada, quando no peca por defeito nem por excesso, quando se enquadra nos limites do justo equilbrio e ditada pela prudncia. Ao contrrio de Scrates que acreditava que ningum voluntariamente mau, Aristteles defendia que as pessoas tm o poder de escolher uma vida virtuosa ou viciosa e graas a essa liberdade de escolha que o vcio pode ser censurado e as ms aces devem ser objecto de sanes e ser seguidas de arrependimento. Aristteles acredita que qualquer homem possui naturalmente os traos caractersticos de cada uma das virtudes morais, sendo por isso naturalmente inclinado para a temperana, a coragem e a bondade. Estas virtudes naturais s se transformam em verdadeiras virtudes morais quando a educao as penetrar de razo. Educao tica

    Mas o que a educao tica para Aristteles? Dos seus textos possvel tirar a concluso que a educao tica ajudar a cultivar nas pessoas as caractersticas que as ajudam a florescer como adultos capazes de viverem bem e de realizarem vidas felizes. A educao tica ajuda o crescimento porque mais uma questo de desenvolvimento dos hbitos correctos do agir e do sentir do que do ensino de questes intelectuais, mais uma questo de prtica do que de ensino e mais um problema de sentimentos do

    4

  • que de raciocnio, embora o domnio da razo esteja sempre presente como processo de domesticao das paixes. O que distingue a educao moral de Aristteles da educao moral de Plato que o primeiro enfatiza o carcter e a conduta e o segundo o intelecto e o raciocnio. Ser Aristteles, tambm, o primeiro autor a colocar no devido lugar o papel dos sentimentos no processo de crescimento moral. O que que Aristteles entende por sentimentos? Dos seus textos possvel concluir que Aristteles se refere ao medo, fria, inveja, ao dio, ao amor, piedade, alegria e, em geral, a todos os estados de conscincia que implicam gostar ou no gostar. A questo dos sentimentos crucial para a compreenso da filosofia moral de Aristteles. O autor grego parte do pressuposto que as crianas nascem com os requisitos naturais para compreenderem e aceitarem as virtudes e, em consequncia, evitarem os vcios. Contudo, para que essas capacidades naturais se desenvolvam necessrio proporcionar s crianas ocasies para o exerccio do controle das paixes e dos desejos que conduzem aos vcios. A essas ocasies de exerccio do controle chama o filsofo hbitos. Antes de desenvolver hbitos de virtude, importa que a pessoa estabelea hbitos de sentir. Muitas vezes, a passagem do vcio virtude exige, da parte da pessoa, mudanas na maneira como sente e no apenas na maneira como actua. A finalidade deixar de desejar actuar de acordo com os velhos hbitos, de forma a poder incorporar os sentimentos que conduzam s virtudes e rectido moral. O sinal exterior de que a pessoa incorporou as qualidades morais quando sente prazer em fazer o que est certo. A pessoa virtuosa

    Embora o desenvolvimento das qualidades morais exija, ao princpio, muita auto-disciplina e algum sacrifcio pessoal, assim que essas qualidades so incorporadas e fazem parte da nossa natureza, agir no respeito por elas representa aquilo que ns queremos fazer e aquilo que ns realmente gostamos de fazer. Em ltima instncia, a pessoa virtuosa uma pessoa mais feliz porque evita o ressentimento, as recriminaes e os desequilbrios interiores que acompanham os vcios. Este processo pode ser facilitado pela educao, pelo contacto continuado com pessoas virtuosas e pelo hbito. A fruio da educao exige tempo livre e por isso que Aristteles nega aos escravos a possibilidade de acesso felicidade. S os homens livres e possuidores de alguma fortuna pessoal podem dedicar o seu tempo ao prazer, ao estudo e cidade. Mas como se pode ser virtuoso? sobretudo necessrio muita prtica e um gosto de fazer coisas contidas e um apreo pelo justo meio que Aristteles define da seguinte maneira: o justo meio fazer aquilo que devemos, quando o devemos e onde o devemos, relativamente s pessoas que devemos, pelo fim pelo qual se deve fazer e na forma pela qual deve ser feito (tica a Nicmaco).

    A doutrina do justo meio exige que se cultive as disposies para exercer o nvel certo da aco ou do sentimento. No , portanto, a mesma coisa que a defesa da mediocridade. Embora seja verdade que o nvel certo fica entre o demasiado e o muito pouco, pode, contudo, ser muito intenso. O justo meio , portanto, agir de acordo com o que diz a regra recta. Confcio, nos Analectos, dir que o justo meio o respeito pelos ritos. Confcio repete continuamente nos Analectos a mxima: se o nobre desiste da prtica dos ritos durante trs anos, certo que os ritos ficam em runas. Paralelismo idntico podemos constatar na proposio aristotlica da inteno recta e na mxima confuciana no se desviar do caminho correcto. Lendo a tica a Nicmaco fcil

    5

  • concluir que estas palavras poderiam ter sido ditas tambm por Aristteles. Dito de outra forma, a conformidade da aco regra moral.

    As virtudes tm, na concepo de Aristteles, a funo de moderarem as paixes interiores e as actividades exteriores. Todas as virtudes moderam certas paixes para moderarem as actividades. Da que a temperana surja, luz do pensamento aristotlico, como uma das principais virtudes morais. Para se ser virtuoso necessrio ganhar o hbito de praticar actos virtuosos. aquilo a que Aristteles chama o estado habitual, ou seja, um estado intermdio entre a pura indeterminao da potncia e a perfeita determinao do acto.

    Como se atinge o estado habitual? Ser que suficiente o estudo? Para Aristteles, o estado habitual atinge-se pela repetio dos actos que procedem da virtude, isto actos impregnados de razo. Assim sendo, podemos afirmar que a virtude para Aristteles um hbito: ao levar a efeito, obedecendo-lhe, um acto conforme razo, a parte que deseja torna-se mais capaz de obedecer de novo razo; a repetio de actos conformes razo acaba de certa maneira por o racionalizar. O hbito, ethos, isto a repetio de actos, permite-lhe ter esse capital de razo e isso a virtude.

    A penetrao da razo no desejo e a domesticao das paixes constituem os processos de constituio da virtude e por essa razo que a virtude rectifica a inteno. Quanto mais a pessoa actuar de forma recta, isto cumprindo a regra moral, mais facilmente realiza as coisas da virtude de uma forma estvel e continuada. A pessoa continua a ser acometida de desejos e de paixes, mas uns e outros ficam submetidos ao poder da razo.

    Uma das etapas para alcanar o estado habitual da virtude o domnio de si ou o senhor de si mesmo. Quando a pessoa senhora de si, o esprito torna-se senhor do desejo, a razo domina as paixes e, embora as paixes e os maus desejos continuem a surgir, a pessoa limita-se a fazer aquilo que deve fazer, agindo de acordo com a razo e cumprindo a regra moral. A habituao virtude liberta a pessoa do remorso e do arrependimento e leva-a a alcanar a felicidade, um estado de esprito caracterizado pela concrdia, a temperana e cumprimento do dever. A pessoa virtuosa feliz porque alcana a plena harmonia e evita as perturbaes do esprito. O virtuoso no tem nada a temer porque no subsiste nele a inclinao para o mal.

    Ao contrrio de Plato que subordina a virtude sabedoria, Aristteles considera-as duas coisas diferentes, embora com pontos em comum. A virtude moral um estado habitual que rectifica a inteno, um hbito de fazer coisas rectas. A sabedoria , para Aristteles uma virtude intelectual. Sendo tambm um estado habitual, a sabedoria um estado habitual que habilita o pensamento a encontrar a verdade. Enquanto a virtude moral um estado habitual que habilita a pessoa a alcanar o justo meio, a virtude intelectual, a sabedoria, um estado habitual que habilita o pensamento a encontrar a verdade.

    Quais so as virtudes morais acentuadas por Aristteles? So todas aquelas disposies para o Bem que pertencem alma racional. Aristteles distingue uma alma vegetativa, que inclui todas as disposies relacionadas com a reproduo e os apetites inferiores, uma alma sensitiva, que integra todas as paixes, sensaes e desejos, e uma alma racional, que inclui as disposies para o exerccio das virtudes morais.

    Entre essas virtudes morais, Aristteles coloca em lugares de destaque a coragem, que no mais do que o justo equilbrio entre o medo e a temeridade, a temperana, que um justo equilbrio entre o desregramento e a insensibilidade, a mansido, que um justo equilbrio entre a clera e a apatia, a liberalidade, como justo equilbrio entre a prodigalidade e a avareza, a magnificncia, como justo equilbrio entre a falta de gosto e a mesquinhez, a magnanimidade, como justo

    6

  • equilbrio entre a vaidade e a humildade, a afabilidade, como justo equilbrio entre a obsequiosidade e o esprito conflituoso, a reserva, como justo equilbrio entre a timidez e o descaramento.

    A justia merece um lugar parte pelo facto de ocupar todo o livro V da tica a Nicmaco, ocupando, na verdade, um lugar central na filosofia moral de Aristteles. A definio que se pode encontrar na tica a Nicmaco a seguinte: a justia esta espcie de disposio que torna os homens aptos a executar as aces justas, fazendo-os agir de modo justo e desejar as coisas justas. Ao longo do livro V da tica a Nicmaco possvel encontrar definies mais particulares de justia: observao e cumprimento das leis e aquilo que regulamenta as partilhas e as trocas de bens. Na verdade, Aristteles distingue trs espcies de justia: a justia distributiva, a justia reparatria e a justia de troca. A primeira ocupa-se da diviso dos bens entre as pessoas, proporcionalmente ao seu mrito. A segunda regulamenta as transaces de forma a suprimir os prejuzos causados e tomando em conta os prejuzos que possam ter resultado e o carcter intencional ou no, do delito. A terceira ocupa-se das relaes comerciais e assenta na instituio da moeda.

    Para alm disso, Aristteles distingue a justia natural da justia positiva. A primeira aquela que tem em todo o lugar a mesma fora e no depende desta ou daquela opinio. A segunda aquela que se pratica neste ou naquele pas. Esta distino permite a Aristteles distanciar-se do relativismo dos sofistas que consideravam que, sendo o homem a medida de todas as coisas, a justia seria tambm ela varivel e relativa. Para Aristteles, a justia natural absoluta e imutvel, permitindo traar hierarquias de conduta e valorar as aces de acordo com padres de Bem e de Mal. Enquanto que, para os sofistas a melhor justia ser aquela que permite aos mais fortes ou mais espertos retirarem o maior proveito, para Aristteles a justia est relacionada com o justo equilbrio, o justo meio e a rectido. A temperana surge, em Aristteles, como uma das principais virtudes morais. O que que Aristteles entende por temperana? o hbito de controlarmos as nossas paixes e de procurarmos o caminho da moderao e do justo meio.

    Importa referir que a literatura grega h muito que se interessava pelos heris submetidos ao imprio das paixes e da clera. Um sculo antes de Aristteles, Eurpedes, na Medeia, afirmava: sou vencido pelo mal! Compreendo bem a enormidade do mal que vou fazer, mas a clera mais forte que as minhas reflexes!. So Paulo, uns sculos mais tarde, diria: fao o mal que no quero e no fao o bem que quero! Como estamos longe da ideia socrtica de que aquele que conhece o bem far o bem ou da explicao do mal pela ignorncia do bem!

    Aristteles, no livro X da tica a Nicmaco, analisa os fundamentos da educao tica e as melhores modalidades de formar pessoas e cidados decentes e capazes de preferirem o Bem. As questes que levanta podem resumir-se no seguinte: a educao tica possvel?; caso seja possvel, ela produto do hbito ou da aprendizagem?; qual a influncia da natureza na formao do carcter da pessoa?; possvel alterar aquilo que a natureza fez?; o que mais poderoso, o hbito ou a aprendizagem? Aristteles (6) comea por dizer que "o objectivo dos estudos sobre a aco , seguramente, no estudar e conhecer cada coisa, mas agir de acordo com o conhecimento que se obteve. Por isso, o conhecimento sobre as virtudes no suficiente. Devemos, tambm, tentar possuir e exercer a virtude, ou tornarmo-nos bons de qualquer outra forma". Ou seja, a capacidade de argumentao pode ajudar, mas no suficiente. A bem dizer, os argumentos sobre a tica s so eficazes nas pessoas que nascem com um bom carcter. Para a maioria das pessoas manifestamente

    7

  • insuficiente. E Aristteles (7) justifica esta posio: "a maioria das pessoas obedecem naturalmente ao medo e no vergonha; elas evitam o que vil por causa dos castigos e no por que o que vil seja considerado, por elas, vergonhoso. Isto assim, porque as maioria das pessoas vivem dependentes dos seus sentimentos, procuram os prazeres que lhes agradam, bem como as fontes deles, e evitam os seus contrrios, no tendo a noo do que bom e verdadeiramente agradvel, visto que nunca o experimentaram".

    Nota-se aqui uma diferena de fundo entre as propostas do estagirita, que fundamentam uma axiologia material e objectiva, e as propostas dos autores filiados na tica discursiva e formalista, como o caso de Lawrence Kohlberg, John Rawls ou Jurgen Habermas. Embora a natureza tenha um papel extremamente importante no desenvolvimento do carcter da pessoa, a verdade que o hbito no pode ser negligenciado. Em primeiro lugar, preciso ter em conta que no se altera com argumentos o que o hbito adquiriu e fixou. O hbito constitui uma autntica segunda natureza que, uma vez fixada, quase impossvel de alterar. Essa a razo pela qual falham todas as metodologias argumentativas e baseadas na discusso de dilemas morais, quando no so precedidas e acompanhadas de hbitos moralmente adequados. Sendo certo que uma pessoa virtuosa produto, simultaneamente, da natureza, do hbito e do ensino, os dois primeiros so bem mais fortes do que o ltimo. Essa , tambm a razo por que, regra geral, falham todas as tentativas de educao do carcter atravs da criao de uma disciplina de tica ou de educao moral. A este respeito, Aristteles (8) peremptrio: "os argumentos e o ensino, seguramente, que no influenciam toda a gente; a alma dos estudantes precisa de ser preparada pelos hbitos para que eles sejam capazes de amar e recusar de forma apropriada". E isso assim, porque uma pessoa que se habitua a seguir os sentimentos nem sequer ouve os argumentos ou, quando os ouve, no capaz de os compreender. Aristteles parece defender que, quando a natureza deficiente, desde o nascimento, nem com bons hbitos a pessoa consegue atingir a virtude plena. Quem deve fazer a educao tica? ela um empreendimento dos pais, para com os filhos, ou do Estado para com os cidados? Aristteles responde que um empreendimento de todos, embora, nesta matria, o Estado tenha mais poder, atravs das leis que aprova, de impor o respeito pelo Bem. Importa no esquecer que o Estado detentor de mecanismos e instrumentos de dissuaso e de represso que impedem as pessoas, incuravelmente vis, de partilharem, com os outros, a vida em sociedade. Atendendo a que a natureza faz algumas pessoas pouco capazes de levarem uma vida virtuosa e que, mesmo nas restantes, dota as pessoas de algumas insuficincias, tanto as crianas como os adultos precisam de leis e mecanismos de correco. tarefa, portanto, dos legisladores a exortao decncia e a imposio de castigos e correctivos a quem se afasta da rectido com propsitos vis. Aristteles (9) justifica esta necessidade, afirmando que: " assume-se que a pessoa decente ouve a razo porque a sua vida procura aquilo que bom, mas a pessoa vil, uma vez que se orienta pelo prazer, tem de receber tratamento correctivo". Sendo assim, a melhor maneira de educar o carcter de uma pessoa habitu-la desde cedo a preferir as virtudes e a recusar tudo aquilo que vil. Por que razo o Estado tem melhores condies para levar a cabo esta tarefa? Em primeiro lugar, porque o Estado tem mais fora do que o indivduo. As instrues de um pai a um filho no possuem um carcter impositivo to grande como as leis do Estado. Alm disso, fcil um filho tornar-se hostil a um pai que se ope aos seus impulsos e paixes, mesmo quando o pai tem razo em contrariar os apetites do filho. Com o Estado, a hostilidade dilui-se, porque o indivduo est muito mais afastado do

    8

  • Estado do que o filho do pai. Embora isto seja evidente, o que acontece, com frequncia, o Estado negligenciar as suas tarefas. Quando o Estado negligente, aumenta a responsabilidade dos pais na educao do carcter dos seus filhos. Notas 1) Aristotle (1992). Eudemian Ethics. (Introduo e comentrio de Michael Woods).

    Clarendon Aristotle Series. Oxford: Clarendon Press 2) Aristotle (1984). Nichomachean Ethics. (Introduo e notas de Terence Irwin).

    Indiana: Hackett 3) Aristote (1995). Les Grands Livres D`thique. (Traduzido do grego por Catherine

    Dalimier e com introduo de Pierre Pellegrin). Paris: Arla 4) Note-se que os livros 4, 5 e 6 da tica a Eudemo so comuns aos livros 5, 6 e 7 da

    tica a Nicmaco; alm disso a obra tica a Nicmaco no apenas um tratado de maior dimenso, mas tambm revela uma maior maturidade filosfica e uma maior fineza na argumentao; apesar disso, impossvel conhecer o pensamento tico de Aristteles sem uma leitura cuidada e atenta dos "trs livros de tica", dos quais, infelizmente, no esto disponveis edies crticas em lngua portuguesa.

    5) Aristteles ( 1991). A Poltica. (Prefcio e traduo de Marcel Prlot). So Paulo: Livraria Martins Fontes

    6) Aristteles (1985). Nichomachean Ethics. (Introduo, traduo e notas de Terence

    Irwin). Indianapolis: Hackett, 1179 b 5, p. 291 7) idem, 1179 b 15, p. 292 8) idem, 1179 b 25, p. 292 9) idem, 1180 a15, p. 294

    9

  • 10