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Teatro Eu avec você Rogério Viana Curitiba – Paraná Dezembro de 2009 (todos os direitos reservados) 1

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Teatro

Eu avec você

Rogério Viana

Curitiba – ParanáDezembro de 2009

(todos os direitos reservados)

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Eu avec você

Personagens

Gabriel – autor de teatro, mora numa grande cidade ao sul do Brasil, tem cerca de 60 anos.

Susana – autora e professora de teatro, mora em Paris, tem cerca de 60 anos.

O fuso horário entre Brasil e França apresenta uma diferença de 3 horas. Quando aqui são 11h00, lá já são14h00. Quando estamos iniciando o almoço, lá eles já almoçaram. Quando vamos dormir, eles já estão em sono profundo. Quando acordamos, eles já estão em plenas atividades do seu dia a dia. Estamos sempre atrás dos franceses no que estamos fazendo. São três horas de diferença no fuso horário. Aqui é mais cedo, lá é mais tarde. Aqui tudo para fazer, lá as coisas já foram feitas. Tantas diferenças, três horas apenas. Lá em Paris, aqui, ao sul da América Latina e em outros lugares o tempo não para. Avança. O tempo se mistura, independe do fuso – uma formalidade técnica. Os personagens, dentro ou fora de seus fusos espaciais, temporais, sempre encontram caminhos para uma comunicação que não se dá, muitas vezes, apenas pela palavra. Se comunicar é se aproximar, mesmo distantes, improváveis, impossíveis e utópicos, alguns encontros acontecem mesmo sobre uma folha de papel, ou várias. Apenas lá. Desligue o ventilador e fechem as janelas. Os ventos, ah, os ventos...

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Cenário: Um pequeno apartamento é utilizado simultaneamente por personagem numa grande cidade do sul do Brasil e outra personagem em Paris. Dois relógios de parede destacam os horários diferentes entre Brasil e França (são três horas de diferença do fuso horário entre o Brasil e a França). Em comum, livros, mesa com computador, telefone, cadeiras, objetos e vidas.

1 – Longe daqui, aqui mesmo

Gabriel – Recebi um e-mail de minha filha. Sei que ela anda preocupada com minha saúde. Ela não disse, não foi isto que ela escreveu. Mas é o que sinto. Também sei que ela, a esta altura de nossas vidas, queria que eu tivesse alguns bens – que não tenho mesmo! Queria que você não morasse nem de favor, nem de aluguel. Talvez um apartamentozinho, pai. Um lugar onde o senhor pudesse acomodar seus livros, suas coisas. Já está na hora de sossegar, não é pai?

Susana – Um sinal vermelho acendeu diante dele. Antes, piscou algumas vezes aquela luz amarela. Atenção. A mudança não é sempre lenta, como o passar dos anos. Ela, quando menos esperamos, vem. Aparece. Não dá mais para esperar. Vamos. O relógio não para. São alguns segundos. Vai... Ficou vermelho, percebeu? O coração sempre fica acelerado quando sinto que uma mudança está para acontecer. Ele só acelera. Prenuncia algo. Você também sente? O que me diz? Não sei, diga você o que é isso.

Gabriel – Sei que você sonha que eu possa ganhar na Loteria. Não um premiozinho mixuruca, sei. Você queria que eu fosse o ganhador da maior bolada jamais paga a um só acertador daqueles seis números que fogem de mim a cada semana. Mas nem jogar todas as semanas ele se dá o direito. Assim, ele joga quando a bolada é grande, quando ficam acumulados os prêmios de vários sorteios seguidos. Eu sei. Eu também sonho, mas tenho

sonhos mais ambiciosos, minha filha. Sonho em vender um dos meus roteiros para uma grande companhia de teatro aqui, talvez no exterior também. Sabe, aquele roteiro de cinema que escrevi e que está há anos na gaveta... Quem sabe um desses diretores queira filmá-lo. Quanto? Eu queria 300 mil para a compra de um apartamento. Há algo que o senhor poderia fazer, mas não me parece interessado em sair do seu mundinho, não é? Não precisa responder, pai.

Susana – Agora mesmo, enquanto estou escrevendo aqui, penso em minha terra. Na minha infância. Como foi que você chegou aqui? Foi mesmo um prêmio que a trouxe para cá, Catharina? Você não sente saudade daquele vento gelado batendo forte no seu rosto? Seus cabelos loiros voavam para todas as direções que os ventos pamperos levavam... Não, hoje, vez ou outra tenho necessidade e eu me contento com o perfumado vento Mistral, lá na Provence... Mas é tão diferente! Um vento ancestral, que a liga a sua terra. Outro, um vento mítico. Tudo foi sonho. Não sei como é sentir isto tudo agora. Vou abrir a janela, posso, Catharina?

Gabriel – Tem certas horas que as palavras não chegam até mim. Fica difícil encontrá-las. Juntá-las, então, mais complicado. Você se sente perdido num redemoinho de papel picado, não é? Em plena ventania. Você junta os pequenos papéis, cada um com uma palavra, uma palavra escolhida a dedo. Fui lá no dicionário mais grosso, mais completo, mais indecifrável. Peguei pequenas palavras, enormes vocábulos. Outras jamais ouvidas. Juntou, fui escrevendo em cada pedacinho de papel. Pequenos papéis, palavras grandes, grandes papéis, palavras pequenas, mas desconhecidas. Assim fica mais fácil você identificar. E vem o vento. Forte. Ah, cuidado com a janela. Hoje disseram na TV que deve ter tempestade. Sim, sempre no final da tarde. Ou quando já chega a noite e não podemos ficar sem luz. Árvores abatidas. Ventou forte. Foram tantas árvores abatidas. Faltou energia. E eu senti vontade de ligar o ventilador. Você sabe, aqui, quando a primavera é quente, faz mais

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calor que no verão dos tempos normais. O vento esparramou tudo, pai? Deu para juntar? Estavam numeradas todas as 535 páginas? Que trabalhão, hein? Uma voou pela janela? Sei, sei... Recuperou? Que bom! Nem sempre eu consigo recuperar o verbo que fugiu pela janela. Fugiu. Deixou-me aqui em desalento.

Susana – A menina, aos olhos dos seus pais, não poderia sofrer os ventos daqueles anos que ninguém quer relembrar. Muito menos vivê-los. A mudança para o outro lado da fronteira. As ondas no grande rio. O barco que ia em direção a outro porto, outros ares. Demora a travessia? O senhor acha mesmo que lá é mais seguro? Demora um pouco, mas a certeza é que chegaremos em segurança. Ninguém vai procurá-lo, eu sei, eu sei, meu querido. Ninguém vai aparecer a noite, bater à nossa porta. A menina podia respirar um pouco mais de calma. Não que tivesse sido atingida diretamente por aqueles terríveis ventos. Talvez o vento fosse benfazejo. Numa nova terra, outros costumes. Ah, tem água quente para o mate. Sim, eu quero. Pode servir. Catharina, não esqueça de colocar seu capuz azul, aquele onde bordei nosso sol de verão e liberdade.

Gabriel – Outro e-mail. Será que não é um cavalo-de-troia? Ainda bem que meu amigo instalou um anti-vírus potente. Ainda bem! Se aparecer algo errado, ele vai disparar um sinal sonoro. Não, não será preciso fazer nada. Deixe em quarentena. Se quiser, simplesmente exclua o arquivo. As pastas estão em ordem. Agora um dos Hds foi destinado apenas para os programas. O outro, maior, foi formatado e só tem seus arquivos. Eu não sei bem lidar com essas coisas. Poxa, você é mesmo desatento nas questões de informática, não é? Tem vezes que eu penso que meu computador é uma mulher em permanente TPM. Como? O que você disse? Foi o que entendi? A gente nunca sabe qual será a reação dela. Fica teimoso. Elas ficam teimosas, sensíveis. Ela gritava sempre. Outras, não aceita palavras que começam com “C”. Karo amigo, dá para kuidar dessa koisa? Viu só, foi somente assim que ele viu que eu não estava falando besteiras sobre a TPM do meu computador! Ela ficava cega. Parecia tomada

pelo demônio. Estressada que só ela! Estressada? Vá se ferrar! Kada koisa!

Susana – Todo tempo difícil passa. Pode demorar, eu sei, eu sei... Quando a gente menos espera o sinal não fica só no vermelho, nem o amarelo fica sinalizando atenção, atenção, atenção... Vem o verde, fica intenso, ali no alto. Algumas vezes eu não gosto de lembrar de um certo tom de verde. Aquele tom de verde que tanto se manchou de vermelho. Catharina, como foi sua prova? Foi mesmo tudo escrito em francês? Que maravilha! Pai, pai... acho que posso concorrer a uma bolsa de estudos no exterior. Sim, na França? Na França? Tão longe! Catharina, estou pensando no seu tio, no seu avô. Aquele “Adiós, nonino” não me sai da cabeça! Paris, tango. Nossa! Nossa menina vai mesmo para Paris. Tenha cuidado com tango e manteiga, está bem, querida? Muito cuidado se o cara for mais velho. Nunca se sabe...

Gabriel – Recuperei algumas coisas que o tempo tratou de espalhar em diversas caixas empoeiradas como joias preciosas dentro dos meus pequenos armários. Poucas roupas, muitos papéis. Coisas inúteis cuidadas como se fossem importantes. Lembranças desbotadas. Todas. Nem todas as lembranças a gente deve desprezar. Nem jogar fora. Há muitas delas que nos fazem vivos. Não vá mudar por completo o seu jeito de ser, está me entendendo? Mude o que sente que pode sustentar. Mude aos poucos. Mas a gente, nem sempre, se dá conta de que as mudanças aconteceram mesmo. Há outras que a gente só sente quando alguém nos diz. Ou até quando olhamos mais demoradamente no espelho de cada manhã e vemos. Cara! Você está tão bem! Quanto tempo! O tempo foi camarada com você, não é? Ainda bem que você me chamou. Eu não ia reconhecê-lo com quinze quilos a mais. Quanto? Já se passaram vinte anos? Parece que foi ontem!

Susana – Quando relembro estes trinta anos aqui, me vem à memória um turbilhão de emoções. Sim, você é uma pessoa que se movimenta com muita competência no meio de tanto desatino. Você foi mesmo treinada – treino involuntário, claro – a não se deixar levar por

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coisas que o tempo aponta como pequenas, de nenhuma importância. Eu havia escrito um pequeno conto. Escrevi direto em francês. Nada complicado. Dois bons dicionários me ajudaram muito. Você sabe, Catharina! Você sabe! Eu não sou do tipo que se deixa abater por pequenas questões do dia a dia. As grandes questões, ah... eu sei... Não mexem com você? Não, você não me parece uma mulher fria. Muito pelo contrário. Eu sei que você se importa sim com sua história. Não é isso que você vive fazendo com seus escritos? Está lá. Em cada página há uma referência. Veja bem, quando a temporada de adaptação passou, eu tinha a vida real. Aqui há coisas bem diferentes do que as vividas ao norte do rio da Prata. Aqui tem o Sena. Rio manso, rio que pouco transborda. Rio de margens bem definidas. Que segue seu milenar leito. As águas do meu passado seguem sempre em direção ao Atlântico. Antes, doce, depois, misturadas com lágrimas. Um volume de água que eu nunca poderei me esquecer. Seria um pedaço de mar aquele imenso rio prateado?

Gabriel – Mas você pensa que são apenas vinte anos. São quase quarenta, caro Martin. São quase quarenta! Pensando bem, uns anos além de quarenta... É mesmo. Você tem razão. As horas passaram rápido e eu nem percebi.

Susana – As veias da América Latina, ainda bem, são irrigadas por uma água doce que vem do lado nordeste da grande cordilheira. Ainda bem que elas chegam até nós, que passam por terras e lugares tão distintos. Que dão a beber a gente tão especial e tão diversa! Ah, não sei mais cantar nada em português! Meu francês tenta apagar até meu espanhol. Ele é forte, resiste. Rire, rage et resistance. Mas o português, ainda uma língua indecifrável, veio até mim em pequenas levas. Antigas canções. Belas vozes. Tinha mais alegria que nosso dia a dia portenho. Isso tinha mesmo! Nada que me fizesse dominar centenas de palavras. Mas a música daqueles anos distantes ainda ecoam na memória do velho rádio fronteiriço entre tangos, tragédias, boleros, bossa nova e baionetas. Quanta raiva, quanta raiva! Era preciso resistir a tudo. Além do mais, além do mar, também, temos muita gente que vive de

costas para o oceano azul esverdeado e de frente para a indominável cordilheira azul e branca. Os que estão mais a leste, onde o sol nasce, também não enxergam como nós enxergávamos os platôs andinos. Os ventos calmos que sopram por lá movimentam as areias de corpos morenos, de gente mulata. Aqui, por esse lado do Sena eu posso enxergar um monumento universal. Veja só, Catharina. Aquela torre. Para o que ela aponta mesmo? Diga lá, Catharina: Você dançou mesmo sua primeira valsa com um rapaz que tinha a cara do John Lennon? É mesmo? Bem, eu não cheguei a pedir um autógrafo. Eu só o vi de longe. Também, como eu ia conseguir pagar por um lugar mais próximo do palco? Mas eu vi todos os quatros rapazes cabeludos. E era uma gritaria só. Minha voz sumiu por quase quinze dias. Muito tempo. Muito tempo...

Gabriel – Eu pensei que você, ou teria sido seu irmão Matheus, ou foi com o Mathias? Bem, eu pensei que um de vocês pudesse ter sido preso, naquela época... Não foi ele. Quem foi vou lhe contar. O que aconteceu é que eu me envolvera com um jornal, lá na faculdade de agronomia. Sabe, eu queria ser jornalista, mas minha família achava que não iria dar certo ser jornalista naquela época. Devia fazer filosofia, sei lá. Não, não tinha estômago para ser médico. Que nada, faltou-lhe foi culhão, eu sei. Eu sei! Não, cara, ela veio e pediu para ajudá-la com um texto. Ela era avançada demais para aqueles tempos. Quando percebi, depois de terminar o primeiro parágrafo, ela estava cavalgando em mim com suas palavras de ordem, com seu espírito indômito, com sua vontade e fé cegas. Já sei, você fez todo o texto, com um português correto, não foi? E ela? Ela gozou e eu também. Fiquei até assustado do jeito que foi. Então, meu caro Martin, foi você mesmo quem foi preso lá em Ibiúna? E o avião da Vasp que foi desviado para Cuba? Quem? Vai me contar... Conte. É mesmo, você conhecia o rapaz de Paranavaí que era o comissário de bordo? Sim, Ademar, se não me engano. E ela? Ela... me levou. Me cooptou para sua causa. Me cooptou, seduzindo, fazendo-me gozar e escrever e escrever enquanto gozava. Quando as coisas se misturam, você sabe. O que acontece, o que

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aconteceu não foi diferente do que você sabe... A prisão, nem cheguei a ser pego. Mas ela foi. Nunca mais a vi. Só naquelas fotos daqueles cartazes que se espalhavam por aí. Ela, lá.

Susana – Você se lembra de cada coisa, não é Catharina? Talvez a lembrança venha do seu próprio nome. Minha avó também era Catharina? A minha, do lado paterno, era Julietta. Romântica como o nome pode sugerir. A do lado da mãe, de origem judaica, se chamava Chloé. Segunda filha, depois de um irmão. Segunda menina, depois da Catharina. A tradição na minha família é que todas as primeiras mulheres deviam se chamar Catharina. Todas. Meu avô dizia que um parente dele havia sido o carpinteiro predileto da Catharina, a grande, lá na Rússia, de onde eles vieram. Como homenagem para a mulher que o tratava com tanto cuidado, pelos belos móveis que ele criava. Não era um simples carpinteiro. Era um artista, um escultor que fazia móveis como se faz obras de arte. Era mesmo um protegido da grande Catharina... tinha que agradecê-la por mantê-lo vivo e a seus filhos, mulher... Uma justa homenagem. Uma homenagem que nos trouxe para estes lados da América Latina, anos depois. Após a primeira grande guerra. É mesmo, Catharina, é mesmo... Seu povo foi salvo. O meu veio nos navios como mão de obra sem maiores qualificações. Mas o lado romântico daquela Julietta era um lado de pessoas que estudavam muito e que escreviam como ninguém... Talvez tenha sido daí... Não sei. O que você acha?

Gabriel – Martin, meu caro Martin. Ainda bem que você sobreviveu a tudo, meu caro amigo. Eu me lembro de você correndo pelo corredor da escola. Depois, indo levar papel sulfite para a sala do mimeógrafo para imprimir seu jornalzinho... “O Selenita”, não era? Estão marcadas em mim estas lembranças, meu caro. Pai, o senhor está tomando seus medicamentos certinho? Tem comprado, tem conseguido comprar? Se precisar, me avise que eu mando dinheiro para o senhor pelo banco. Sabia que agora pode sacar o dinheiro em qualquer casa lotérica? É mesmo? Ah, se eu ganhar na loteria, vou comprar um apartamento bem grande para

você, minha filha. Vou comprar até um para sua mãe, sabia? Pai, não acredito que o senhor esteja falando isso... Não acredito! Posso continuar sonhado?

Susana – Quando foi que você voltou para o Uruguai? Deu para chegar até Buenos Ayres? Como foi? Mexeu muito com você, pelo visto.

Gabriel – Você devia não ter ido direto para Cuba. Se fosse para o Chile, talvez lá as coisas fossem diferentes. Sabe... O Allende estava com a bola toda! Você voltou para cá e foi para o Chile, depois? Não me diga! É mesmo? Sim, foi esse o meu caminho. Foi pesado por lá aqueles tempos. Eles entraram chutando tudo. Com aquelas botas. Havia sangue naquelas botas. Muito sangue. Eles chegaram. Não foram direto até mim. Não era a mim que eles estavam procurando. Eles queriam o Darcy. Sim. Ele. Atiraram nele e na namorada. Não deu nem para tentar proteger o rosto com as mãos. Uns vinte tiros de metralhadora. Cortaram ele em pedaços. Ela havia falado que estava grávida. Só ouvi os tiros. Muitos ainda ecoam em minha memória. Enquanto uns atiravam os outros colocaram capuzes em nossas cabeças. Jo soy brasileño. Jo no soy terrorista! Adiantava? Você acha que ia adiantar alguma coisa, Martin? Como me fazer entender em espanhol diante de várias metralhadoras? Eu confundia tudo, as palavras não saiam. Foi um vento muito forte, esparramou todos os meus papéis. Foi difícil juntá-los. Difícil recuperar uns que eram importantes. Documentos, então... Sabe, Martin. Eu sempre me “caguei” de medo de me meter neste tipo de acontecimento. Eu, quando mais jovem, havia pintado um quadro reproduzindo o Che Guevara que saíra na capa da velha revista “Realidade”. Você se lembra, aquela foto tão conhecida. Eu me cagava todo. Meu pai tinha vários livros que eram considerados proibidos pela maldita, que tiveram coragem de chamar de redentora. Redentora é a puta que pariu! Ele não disse para a gente esconder os livros do Graciliano Ramos, por exemplo. Mas eu me “cagava” todo de medo. E escondi. Mas eu estava fascinado pelo Che Guevara. Meu vizinho, o Balestra, vivia falando das boas coisas que Fidel realizava em Cuba. Ele ouvia

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as notícias num radinho. Ficava eufórico, o Balestra naqueles distantes anos. Mas eu me... bem, o que fiz foi que fugi com a namorada. Eu, com 19 anos incompletos. Ela, com dezessete. Volver a los diecesiete!... Tempos depois... na vitrola, a canção de Mercedes Sosa me fez relembrar aqueles tempos. Quanta ingenuidade de nossa parte. Quanta. Quantos sonhos. Para transar, só casando antes. Embarquei nessa. Fui fundo, Martin. Fui fundo. Comigo foi diferente, você sabe. Eu transei foi pela necessidade, mas engravidei-me de revolução. Não dava para abortar um filho em gestação de ideais... Não dava!

Susana – Eu só voltei para Buenos Ayres 20 anos depois de estar em Paris. Fui direto. Depois é que eu passei por Montevidéu. Revi velhos camaradas. Amigas minhas, hoje, todas profissionais respeitadas lá. E você, Catharina? Como chegou até aqui? Como, em minhas lembranças você sempre tem aparecido? É isso mesmo? Mas eu não havia pensado muito em você por este lado. Eu a via como uma grande atriz. Fabulosa atriz, por sinal. Como, Catharina? Não, não tinha a pretensão de me tornar uma escritora de teatro. Nem de dirigir tantas peças. Não. Eu queria dominar o francês. E o teatro me capturou, sem que eu pudesse dar nenhuma prova de resistência contra ele. Fui levada. Sabe. Parece que foi assim comigo também. Colocaram vendas em mim. E eu estava naquele palco. Naquele louco palco. Dizendo coisas, até hoje eu as considero sem sentido. Mas eu também fui para o mesmo palco. Disse, também, as mesmas coisas sem sentido. Hoje, vejo que fora importante ter dito tudo aquilo. Mas, não sei se teria coragem de repetir a mesma dose de insensatez. Você acha que foi coragem? Pode ser... Coragem lá era sinônimo de irresponsabilidade. Pode ser, sim.

Gabriel – Nunca se sabe, nunca se sabe!

Susana -Você voltaria a repetir as mesmas experiências? Catharina... Catharina, parece que você andou se apaixonando de novo! Quem é o escolhido? Vai me dizer que ele tem sangue latino correndo pelas veias? O moreno? Você vive adivinhando meus pensamentos. Até

parece que fez de minha casa sua sala de pesquisas... Do meu coração, seu oráculo. Parece que você instalou em cada canto onde habito uma câmara que acompanha e registra tudo. Que até tem o poder de interferir com questionamentos, com indagações, com intromissões fora de hora. Saia de minha cabeça, saia! Não me leve a mal, querida. Não me leve a mal. Apenas eu a conheço o suficiente para saber quando seu coração bate mais forte, quando suas pernas ainda tremem por alguém que você quer a todo custo. E ele?

2 – Amigo de fé, meu irmão camarada

Gabriel – Se depender de mim você vai para Paris, sim. Se depender de minha vontade, você vai. Mas como eu posso levá-lo para Paris se eu mal consigo sobreviver aqui neste pequeno quarto onde a cortina é uma velha canga que alguém esqueceu lá na praia? Como? Você vai pedir para que eu me esforce mais, não vai? Acha mesmo que eu podia ganhar uma graninha fazendo textos para publicidade? Mas, cara, veja bem!!! Eu pensei que poderia arrumar um emprego como porteiro de algum edifício de luxo. Você sabe. Mas o cara olhou para mim e disse, assim, na lata: nós já dispensamos o antigo porteiro porque ele era velho. Eu tentei argumentar, dizendo: Mas ele sabia escrever cartas de amor? Quem sabe o que o cara pensou, não é mesmo? Mas eu prometo, se eu ganhar na loteria... na semana que vem o prêmio vai estar acumulado e será uma bolada... Eu prometo, se eu ganhar, eu não levo você para Paris. Eu vou junto com você. Prometo. Vamos de primeira classe. Para botar banca! Nós dois. Em Paris, cara, em Paris! Dá para parar de sonhar, pai? Que coisa! Sempre nessa!

Susana – Foi então que ela, a título de mera especulação, disse para o antigo professor de francês. O senhor acredita que eu possa ganhar a bolsa de estudo com um conto bem escrito? O professor não era daquelas pessoas que diziam as coisas apenas para agradar. Disse: sim. Você tem todas as condições de escrever um belo conto e poderá, sim, eu tenho certeza, ganhar o

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prêmio. A bolsa de estudos. Não esperei nada. Enfiei-me no quarto durante três dias. Minha mãe e meu pai, bem eles sabiam que quando eu queria uma coisa eu ia atrás. Não ficava esperando que caísse do céu. Fui na biblioteca, peguei dois dicionários de espanhol-francês. Ela sabia mesmo que o que o professor falara – o nome dele era Benjamin. Parece-me que também era judeu, assim como o outro professor, um montenegrino, me parece, que falava sete idiomas. Ele era iugoslavo, mas era da região de Montenegro. Falava quase sem sotaque quase todas as línguas. As sete. Quais? Vai querer mesmo saber?

Gabriel – Daquele dia em diante ele foi ficando cada vez mais abatido. Ficou umas duas semanas em estado de total alienação. Não fazia mais a barba, não tomou banho, pelo menos por uns três dias. Ficou caidaço. Se afundou mesmo numa depressão. O cara foi cruel ao negar a ele a única oportunidade de ganhar um salário. Tio, o senhor já tentou guardar carros lá no centro da cidade? O senhor é bom de briga? Vão querer disputar o espaço a tapa, ah... vão mesmo! Claro, ele não ia ficar mais que uma semana no emprego. Claro. Não ia aguentar, mesmo sabendo que o dinheiro serviria, pelo menos, para pagar quinze dias na pensão onde estava morando. Em péssimas condições. O que fora um grande e importante hotel, tinha virado uma pensão. Tudo lá estava corroído pelo tempo. Tudo estava mofando. Ele, inclusive. Ele tinha opção? Você acha que ele teve opção?

Susana – Foi há tanto tempo, mas tudo está vivo aqui em mim. O carteiro entregou o telegrama. Premiada com louvor. Faça contato com Mirrelle na embaixada francesa. Catharina, você se lembra quando foi que teve o primeiro orgasmo? É mesmo? Aquele momento, foi mais ou menos assim. Eu não cheguei a ficar com a calcinha molhada, isso não. Mas eu tive mesmo que tomar um banho depois da dor de barriga que me deu. Nossa! Nada romântico e bonito você comemorar uma conquista com uma disenteria, não é mesmo? Pois é. Também fiquei menstruada na hora. Tanto desejo dá nisso! Não fomos feitos para viver uma emoção tão forte assim. Bem, depois do banho deu para tentar

racionalizar algumas coisas. O Uruguai de minha adolescência estava ficando cada vez mais longe. Os velhos camaradas, também. Você se lembra, tão bem, não é Catharina? Que memória!

Gabriel – Ele disse em voz bem alta! Tio é a puta que pariu! O homem não sabia o que dizer. Todos lá na agência de empregos começaram a rir. O véio ficou puto, não é, carinha? Também, ser chamado de véio assim! Tô achando o maior barato isso de procurar emprego numa agência! E você, troxe seu currículo? Tá onde? Como, assim? Currículo? Vai precisar de currículo mermo?

Susana – Quando eu olhei para ele, assim de cara, percebi que ele só poderia me trazer dissabores. Mulher tem disso, você sabe. Mas, ao mesmo tempo, não dava para não arriscar. Um pouco, pelo menos, dava para arriscar. O que teria a perder? A gente sempre ganha experiência, mesmo quando tudo dá errado, quando tudo não vai na direção certa, quanto tudo pode conspirar contra nossos sonhos. Diga, Catharina... você viu mesmo que ele não tinha potencial? Vai me dizer que pensou tudo isso na hora? Ou somente, tempos depois, já calejada pela vida é que você revê o passado e diz: Não devia ter aceitado morar com ele. Não mesmo! Será que não dava para você ter investigado melhor a vida dele. Ele, pelo que me disseram, não tinha um currículo assim tão ruim, não é? Catharina, você sempre crédula, mas tão inteligente e articulada... Como, me diz como?

Gabriel – Martin, estou respondendo um e-mail para minha filha. Você me espera um pouco? É rapidinho, falta apenas um parágrafo. Está bem? Veja, eu já fiz alguns jogos. Nada muito especial, pensado. Sabe aquilo de pegar os números aleatórios que o vento esparrama em um monte de papel picado, os próprios números do papel onde a gente faz os jogos...? Sabe? Cortei, cuidadosamente, os números dos jogos. Juntei e liguei o ventilador. Os números que foram para o lado direito, eu descartei. Ficaram números, poucos números pelo lado esquerdo. Eu peguei, aleatoriamente, doze números e fiz dois jogos na Mega e dois jogos eu pedi para a

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moça fazer ela mesma. Joguei com a maior fé. O senhor tem mesmo fé? O quê? Não deu nada. Não? Não deu? O senhor quer repetir os jogos? Está acumulado de novo! Cada vez estou ficando mais experiente em receber a notícia de que não foi desta vez. Martin, você acredita que a gente fique muito experiente e que a experiência acumulada nos dê alguma vantagem quando sempre fomos perdedores? Uma vez, numa entrevista coletiva do grande Éder Jofre, aquele peso galo do nosso boxe que foi campeão mundial... Uma vez eu perguntei a ele se era melhor ganhar depois de ter apanhado um pouco. Não, não mesmo. Tem que bater sempre. Bater logo no começo. Não pare de bater. Aí o cara cai. Bater sempre. Sair batendo. Não parar de bater. Martin, será que o que ele me disse é o que você entendeu também? Estou todo dolorido. Acho que não aprendi a lição. Mas eu também nem lutar boxe eu sei...

Susana – Meu pai me disse que eu iria conhecer o Brasil antes da viagem para a França. Era por questão da passagem mais barata que ele comprara. A gente morava perto da fronteira com o Brasil. Mas o Brasil mesmo, eu não conhecia. Tinha muita curiosidade de conhecer o Brasil. Sabe, a música. A voz da Elis Regina. Tinha o Chico Buarque, o Toquinho. Eu me lembro dos arranjos vocais do MPB4 e do Quarteto em Cy. Cada música interessante. Lindas. Muitas eu não entendia direito, mas o ouvido a gente vai afinando. Depois, a música nos ensina tanto. Catharina, você também entende bem o português? Não sei, mas tenho um amigo que diz sempre que os uruguaios têm mais capacidade de entender o português que os argentinos. Eu sou argentina, mas passei mais parte do meu tempo dentro da língua espanhola no Uruguai. Vai ver que é por isso que eu entenda melhor o português. Não, mas não sei cantar mais nada. Não dava para aprender cantar em francês, sem ter que desaprender um pouco o português. Ainda gosto de ouvir as velhas canções da Elis Regina. Mas não me arrisco a cantar nada. Também desafino.

Gabriel – Tenho sempre batido na mesma tecla. Repetido os mesmos erros. Repetidas vezes eu me vejo repetindo as mesmas palavras. As

mesmas frases já repetidas tantas vezes antes. Você não fez sempre assim, fez, Martin? Também insistia naquilo que você tinha absoluta certeza? Insistia no que, lá no fundo, via que era a mais absoluta perda de tempo? Tinha consciência disso, Martin? Ou foi depois, muito depois que você se olhava no espelho e via refletida aquela mesma imagem de homem derrotado? Agora, quando eu digo isto para você é que eu me dou conta de como tivemos uma aventura pela vida muito parecida. Diria, quase sem nenhum erro, que somos tão parecidos que deveríamos ser irmãos. Não desses que nascem do mesmo pai filho da puta e da mesma mãe que todos acreditam que seja uma puta. Não falo desses. Falo de irmão que nasceram em épocas diferentes, de pais diferentes, mães diferentes, mas que são irmãos pelo simples fato de comungarem de ideias e ideais com a mesma intensidade e força. Sabe, irmãos de fé, sobretudo. Camaradas. Depois você me diz se estou com uma certa razão ao reclamar que tratam a mim e aos meus sonhos como sem a mínima importância. Não posso aceitar que meu sonho não tenha um valor. Eu sobrevivo dos meus sonhos, não foi isso que tenho falado? Não sobrevivemos por teimosia, nem por termos dinheiro, ou boa saúde. Ou até, por termos pessoas que nos amam. Se hoje eu sobrevivo é porque sou teimoso. Por continuar acreditando que um dia, não sei quando, mas um dia, com toda a certeza eu serei reconhecido em alguma coisa que eu venha a fazer. Ah, não sei não. Toda essa fé eu não tenho! Não dá para ser assim tão dedicado a nossos sonhos, caro amigo. Não dá. Veja bem, veja bem. Não o estou recriminando, longe de mim fazer isso. Você é meu camarada, claro que é. Mas... Só esperar que os sonhos nos tragam um tipo de iluminação é meio ir longe demais, você não acha? Se a gente fica só sonhando já indica que só dormimos. Ninguém sonha acordado. Acordado a gente cria, inventa. Sonho, sonho mesmo, só tenho quando consigo dormir. Além do mais, o médico me disse que o tal Rivotril pode me deixar dependente. É tarja preta, potente. Aos poucos eu tenho dormido melhor, mais horas. E quando durmo profundamente eu sonho. Sonhar me faz viver de um jeito diferente, melhor. Sei lá, mas nunca sonhei com

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números. Ah, só com as contas atrasadas. Muitas. Quanto? É muito, pode acreditar.

Susana – Nos últimos dias, não sei bem quando foi, eu me lembrei da ida ao Brasil. Saímos de ônibus de Montevidéu e viemos direto para Curitiba. Meu pai queria que eu conhecesse Curitiba. É uma cidade que me lembrou, um pouco, uma cidade europeia. Não tenho mais referências. Faz tanto tempo, Catharina! Tanto, tempo! Ficamos três dias e, depois, foi daqui que peguei o voo para o Rio de Janeiro. Saí bem cedo, num voo bem cedo mesmo. Fiquei o resto da tarde no aeroporto do Rio. Direto de lá para Paris. Então, eu vim e demorei a voltar. Não tem, porém, um dia, que eu não me lembre de algumas pessoas que eu vi naquele aeroporto brasileiro. Não falo do aeroporto do Rio, não. Falo do aeroporto de Curitiba. Um aeroporto muito acanhado, por sinal. Fazia frio, muito frio. Um frio que eu não esperava viver no Brasil, naquela cidade brasileira. E tinha um rapaz que parecia não se incomodar com nada. Vestia uma roupa descuidada, uma roupa simples. Uma simples malha por cima de uma camisa que mostrava uma gola amarela. Meu pai observou primeiro. Minha mãe disse: Será que ele não está sentindo frio? Sim, eles ficaram comigo em Curitiba aqueles dias e foi de lá que eles se despediram de mim. O rapaz de roupa descuidada não parecia mesmo sentir frio. Ele tinha, porém, um ar de autenticidade. Sabe, ele sim não era um simples personagem. Ele era real vestido daquele jeito. Não era um personagem que poderia mostrar ter medo, ou estar se sujeitando a enfrentar o frio apenas por alguma circunstância. Não, nada disso. Aquele rapaz, que devia ter a minha idade, estava ali e se mantinha ali com alguma força muito especial. Seu rosto, porém, estava encoberto por uma espessa barba. Não sei se ele tinha saído de algum convento de padres franciscanos, mas ele estava ali se sentindo muito livre e feliz com sua roupa pobre e sua barba desafiadora.

Gabriel – Foi naquela época que Martin perdera a namorada. Ele não contou nunca que ela morrera vítima da perseguição política. Ele não falava disso mesmo. Mas ela morrera, sim, numa emboscada com outros camaradas. Dizem

que foi numa daquelas aventuras pelos lados do Araguaia. Dizem. Não tenho certeza e não tive coragem de perguntar a ele. Só sei que fiquei sabendo que o Martin tinha perdido a namorada num acidente de carro e que ela, grávida, sofrera uma forte hemorragia. Morrera antes de chegar ao hospital. Foi por absoluta falta de recursos no socorro. Foram alguns tiros, muitos deles dados na cara e na barriga grávida de seis meses. Foram tiros na cara do bebê. Tiros na minha esperança!

Susana – O rosto daquele rapaz eu nunca vou poder esquecer. Você se esqueceria de alguém que fosse tão impactante em sua vida, Catharina? Seria? Não, o rosto dele eu não vou esquecer mesmo, nunca! Eu não esqueci, você esquece fácil? É isso? Apaga. Passou, não tem mais importância. Você sabe.

Gabriel – Mas barba era um tipo de disfarce que não enganava ninguém. Como você conseguiu sair, deixar o país, usando uma barba daquela? Sabe que eu usei a barba não como disfarce, mas como provocação. Minha barba eu deixei crescer como forma de protesto. Sempre tive o rosto lisinho, nem bigode eu gostava de usar. Eu queria, em lugares públicos, que as pessoas olhassem para mim e se sentissem, de algum modo, ameaçadas pela minha barba. Não pela minha figura. Só pela minha barba. Eu deixei a barba para provocar nas pessoas algum tipo de reação bem negativa. Queria mesmo que alguém me visse como um terrorista, como um ativista político igual aos que estavam em milhares de cartazes esparramados pelas cidades. Teria sido inconsciente essa atitude, você acha mesmo?Eles estavam colados aí naquela loja, naquele banco, na bilheteria da velha rodoviária. Como foi, então, que você, assim, ostensivamente querendo se entregar não levantou suspeita nenhuma? Como não pediram seus documentos, como? Você acha que não chegaram a pedir meus documentos? Acha mesmo que todo aquele meu jeito agressivo não iria levantar nenhuma suspeita? O guarda chegou e perguntou: vai viajar? Vou, vou sim. Vai para onde? Tem documentos? Tenho sim. O senhor quer vê-los? Um outro veio de lado. Um

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terceiro ficou só me observando com a mão numa pistola. Um quarto, eu vi de relance. Se escondia atrás de um dos pilares do prédio. Eu acabara de chegar no Rio. Foi logo no desembarque. Achei que ia dar merda, sabe como é? Achei mesmo que ia dar merda.

Susana – Qual a importância que a gente dá para pessoas que temos certeza nunca mais veremos? Conte, Catharina, conte como foi... Lá vem você de novo querendo que eu repita a velha história, não é? De novo, não dá. Não dá. Estou cansada. Diria mesmo que estou enjoada de repetir tudo de novo. O que o senhor quer mesmo saber? Como? Refaça a pergunta. Estou ouvindo sim, mas é que eu já contei tantas vezes que estou ficando com uma certa vontade de vomitar. Posso?

Gabriel – Vai viajar? Cadê seus documentos? Antes que o segundo se aproximasse eu pedi para que ele segurasse minha pasta e a abrisse. O terceiro fez sinal para o quarto e foi este quem se aproximou e abriu a pasta que o outro segurava. Toda a documentação estava ali. Eu era mesmo um engenheiro agrônomo. Estava voltando da região de Foz do Iguaçu. Tinha trabalhado no levantamento de todas as terras que seriam inundadas pelo grande lago da usina de Itaipu. Estava tudo nos meus documentos. Eu ia para a França, a trabalho. Eu ia levar os estudos geológicos da região para um especialista calcular alguns impactos sobre o meio ambiente. O senhor ainda trabalha para o governo brasileiro? Sim, sou do Ministério do Planejamento. Os documentos estão todos aí. Pode vê-los. E essa barba? Finalmente vinha a pergunta... A barba? Eu sou muçulmano, é minha religião. O senhor sabe. Tenho um compromisso com minha religião e devo usar barba como parte da religião. Espero que o senhor entenda. É por causa de minha religião muçulmana. Mas você não tem nada de árabe, nem de longe, Martin! Os documentos não diziam isso, não é? Estava tudo lá, direitinho... Badr Al Hassan. Filiação, local de nascimento. Eu nascera na Palestina. Mas vim com meus pais para a fronteira do Paraguai com o Brasil aos seis meses. Meu pai queria que eu fosse brasileiro. Então... Virei brasileiro. Sou

brasileiro. E me formei na Universidade Federal do Paraná... sou engenheiro agrônomo especializado em grandes barragens. É o meu mestrado. Falei um pouco de francês com ele. Passei segurança. Livrei a minha cara, na maior.

Susana – O que queriam saber? Você e suas aventuras por aí, não é Catharina? O que queriam? Aquele rapaz tinha um olhar que ainda, até hoje eu não me esqueço. Quem seria ele. Não vi, não vi. Deu vontade de vomitar. Vomitei mesmo. Sei lá, como posso saber. Ele sentou ao meu lado no voo para Paris. Só sei disso. Não me lembro de nada. Como eu poderia saber mais sobre alguém que por um acaso sentou-se ao meu lado no voo para cá? Como foi que você viu que os documentos dele estavam na sua bolsa? Como? Eu dormi. Ele deve ter colocado os documentos lá enquanto eu dormia. O senhor pode entender isso? O cara podia ser um terrorista? E é a mim que vocês vão cobrar isso? Eu sou uma atriz. Viajei a trabalho para o Brasil. Sim, fui participar de um filme lá no Brasil. Nem cheguei a conversar com ele, pois ele dormiu muito e eu também. Quando desembarcamos ele saiu pelo outro lado. Vocês não o viram por aí? Catharina, essa sua história sempre me encantou. Que aventura! Uma grande aventura!

Gabriel – Depois que desembarquei fui direto para uma barbearia improvisada dentro de um furgão que me esperava no Aeroporto de Orly. Martin, saber isso agora me deixa até com o coração em sobressalto. Como viveu isso tudo e conta assim com tamanha tranquilidade. Foi o que aconteceu. Fiz a barba no furgão. E já não era mais o Martin. Nem árabe eu era. O filho da dona Eunice, enfim, ganhava novo nome.

Susana – Você chegou a vê-lo no Aeroporto antes de descobrir os documentos que ele deixou na sua bolsa? Como pode deixar que isso acontecesse. Eu não sei, aconteceu. Mas passou, nem vivo me lembrando mais daquilo. Você vive me cutucando para eu contar mais, não é? Fica toda interessada quando eu conto minhas aventuras.

Gabriel – Não sei o que aconteceu com aquela

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moça. Ele foi perfeita dentro dos planos que tive que montar quando já voava para a França.

Susana – Ele disse alguma coisa?

Gabriel – Falei apenas o trivial. Acho que meu francês foi convincente. Ela nem me olhou direito. Parecia muito mais preocupada em dormir que outra coisa. Foi o que também fiz. E dormindo todo o plano veio como uma indicação divina. De quem? De Alá, Maomé, Jesus, Buda, sei lá. A solução veio e foi perfeitamente aplicada. Nos mínimos detalhes. Deu certo? Claro, olha eu aqui de volta ao Brasil. Acho que tive muita sorte. Ah, você, sim, eu... quem me dera...

Susana – Nunca mais a polícia a procurou, Catharina? Tempos depois fui chamada para um novo depoimento. Só relatei o que havia acontecido. Não precisei repetir outras vezes. Por onde será que anda aquele terrorista de olhos verdes? Por onde anda aquele rapaz que me impressionou pela barba desafiadora? Mas ele não tinha cara de muçulmano. Não tinha mesmo. Mas a barba era igualzinha a de um muçulmano, sim. Isso era! Por onde ele tem andando, o que fez da vida desde então?

Gabriel – Fui matriculado num curso de adaptação do meu currículo. Essas coisas são fáceis quando trata-se de refugiado político. Tem tratamento especial e não ficam perguntando isso ou aquilo. Eu cheguei como eu. No corpo de um novo eu. Você sabe. Eu era um outro eu lá na França. E podia recomeçar a vida sem ter que prestar contas para ninguém.

Susana – Você se arrependeu de não ter conversado com ele? Não ficou curiosa de saber mais sobre ele? Eu queria saber sim quem era o rapaz de barba e que usava uma roupa tão simples. Eu queria. Mas nunca a gente realiza todos os nossos desejos, não é, Catharina? Você se casou quanto tempo depois? Eu, ah... não resisti ao meu professor na escola de teatro. Mas já era mais experiente quando nos casamos. Já era francesa também. Já tinha 27 anos quando me casei com o Jean-Pierre.

Gabriel – Foram dez longos anos em Paris. O curso de mestrado, depois veio o doutorado. Estudei muito, viajei muito. Integrei comissões da ONU. Fui para a África. Cheguei a ir ao México. O máximo que fiz de estar próximo do Brasil. Vi jogos da Seleção na Copa de 86. Os franceses que estavam no mesmo hotel não entendiam como eu podia torcer para o Brasil, sendo francês. Tem como explicar isso? Já vem você de novo com suas histórias. Chorou muito quando o Zico e o Sócrates perderam aqueles pênaltis ridículos? Sabe, eu nunca mais me envolvi em política. Nunca mais. A experiência foi demais traumática para mim, para minha família. Recuperar minha real identidade demorou tanto tempo. Hoje, quem eu sou? Um novo nome, uma mesma história, tantos passaportes e documentos diferentes. Tantas nacionalidades assumidas. Tanta identidade que nada havia em comum comigo. Tanta, tanto... Vai ver que você é mesmo muçulmano e que veio ao Brasil para explodir alguma barragem por aí... Nunca se sabe... Você não me reconhece? Não sabe que eu sou mesmo o filho da dona Eunice. Sim, que a gente era vizinho lá na rua Pernambuco, em Paranavaí. Que fomos juntos pela primeira levar o amigo Balestra na zona? O resto é história que teve que ser inventada para permitir que eu pudesse estar hoje ao seu lado. Sim, estou e sou real, pode acreditar.

Susana – A dimensão do meu tempo, hoje, aqui onde estou também é real. Sim, estou e sou real aqui. Existo mesmo no quarto. Estou aqui, sou uma escritora e toda a história que você contar, um dia, quem sabe, eu não aproveite para colocar nas minhas peças, nos meus personagens... Cuidado... sim é com muito cuidado que eu terei que conversar com você, sabe Catharina? Muito cuidado mesmo. Mas até que gostei quando você escreveu sobre os atores que ficavam transando no quarto escuro no intervalo dos ensaios. Mas a gente transava era durante o ensaio mesmo. Se dava tempo. Não sei como não engravidei... Não sei! Mas não vieram tantos personagens, não vieram? Então, são seus filhos, são meus filhos também. Filhos do coração. Filhos que nasceram do lado de cá da Cordilheira dos Andes, que escorreram para

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o lado sul ou o lado norte do continente sul americano.

Gabriel – Minha filha de novo. Agora está no MSN. De vez em quando ela me daí um oi. Vem e me pede a sugestão para algum novo projeto dela. Felizmente ela vive também de sonhos, como eu. Felizmente. Mas felizmente, como? Como é isso de felizmente? Ela não quer que você compre um apartamento de 300 mil para ela? Se ela não tem um apartamento, nem de 100 mil, como pode ser feliz assim? Ah, tem coisas que a gente não dá valor apenas pelo que é real, palpável, que existe. Eu, ela e tantas outras pessoas espalhadas pelo mundo ainda acreditamos em sonhos. Mesmo naqueles sonhos que não existem, que são irreais e irrealizáveis. Sabe como é? Não? Pois bem, felizmente ela ainda pode sonhar em ter, quando ela sabe que ser é o que importa. O ter é sempre tão condicionado a certas circunstâncias. Você pensa assim? Sou mais pragmático. Tive que aprender a ser pragmático por força da minha passagem pela luta política. Pelas armas. Mas você, pelo que me contou nunca deu um tiro. Nunca teve que matar ninguém. Eu mato gente a torto e a direito. Basta ler meus contos e ver quanta gente eu faço morrer. Gente jovem, gente mais velha. Até gente que nem chegou a nascer eu posso matar.

Susana – Meus filhos não nasceram na França. Nem no Uruguai ou na Argentina. Meus filhos são cidadãos do mundo. Nasceram em todos os lugares possíveis e imagináveis. Vieram de países distantes do leste europeu. Vieram da África. Há muitos negros que são meus filhos. São muitos hispânicos. Alguns brasileiros, também. Há suiços, alemães, romenos. Como são engraçados os romenos. Eu sempre os imaginei parentes do Conde Drácula. Coisa da minha imaginação, lógico! Eles tem uma língua que é tão próxima do italiano e do português. Certas palavras em romeno são ditas como se diz em português, em espanhol também: carne, por exemplo. Carne é carne, em português, em espanhol e em romeno. Talvez com uma pequena diferença na entonação, mas as letras são iguais e se fala mesmo carne. Como é mesmo que você fala carne, Catharina? Carne,

sim. Carne. Caaarrrnnnneee. Credo!

Gabriel – Eu posso fazer com que meus personagens se comuniquem em qualquer língua. Não é porque eu sou um pobre brasileiro que não posso fazer com que todos me entendam. Você, meu querido Martin. Você é um exemplo poderoso de como eu pude fazê-lo se expressar com precisão em francês sem ter sido obrigado a escrever com correção uma só palavra em francês. Mas você se expressou, no momento certo, em outra língua. Está lembrado? Você se expressou com força, muita força e veemência em espanhol e se “cagava” todo de medo, não é? E se cagava todo em português, hablando su español...

Susana – Nossas línguas são parentes. O espanhol e o português são mesmo línguas irmãs. Já o francês vem de outra linha. São parentes distantes, eu diria. Então, de alguma forma, somos mesmo parentes, não é minha querida Catharina? Um parentesco um tanto conturbado, mas parente sempre é parente, não importa o grau de proximidade que tenham. Há filhos que são tão afastados dos pais quando ficam adultos que contrastam enormemente com pessoas tão próximas e que, muitas vezes, se conheceram há tão pouco tempo. Não é o tempo nem o sangue que faz alguém ser próximo, ser filho, ser mãe, pai ou irmão. O que faz as pessoas se aproximarem e se identificarem umas com as outras são as circunstâncias. As ocasiões, os episódios, as tramas, os afetos. Você me trata como se eu fosse sua filha. Eu teria mesmo idade para ser sua filha. Você, sim, você pode ser minha mãe. Mas não é? Não teria sido possível que você fosse minha mãe, embora em questão de tempo, a possibilidade fosse real. Mas você não amaria o meu pai a ponto de deixar que ele fizesse um filho em você. Assim, eu não seria mesmo sua filha. Mas eu poderia ter sido sua mãe. Se o tempo que vivemos fosse em algum modo modificado. Nossos laços de sangue talvez, lá pelos lados do leste europeu, na Ucrânia ou na Rússia, na Polônia, talvez. Talvez nossos laços de sangue estejam ligados lá. O nosso sangue judaico. Algumas mesmas crenças. Nossas certezas e a inquietude de que todos ainda nos

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perseguem, isso é muito nosso. Do nosso povo. Mas eu não sou de origem judaica. Eu tenho sangue espanhol que corre em minhas veias. Talvez tenha sangue mouro. Cigano, é bem provável. Cristão novo eu seria se as origens de minha família fosse pelo lado português que não conheço. Tudo fica como mera suposição. Mas você, Catharina, tem mesmo sangue e é na essência uma mulher com fortes características de ser judia. Até pela história que contou de seus antepassados, um protegido marceneiro na corte de Catharina, a Grande. Virá mesmo da Rússia esse sangue judeu?

3 – Dos almas

Gabriel – Talvez eu tenha sangue judeu e você seja mesmo de origem árabe. Mas é importante a gente se preocupar com questões tão agora sem importância como sermos ou não irmãos ou inimigos? O que nos separaria não seria nossas crenças, nem nossos passados. O que nos separaria poderia até ser a língua, mas é possível acreditar que quando se tem afinidades a língua é a menos importante, não é? Não tenho como comentar. Preciso pensar mais a respeito. Nunca me ocorreu isso, nem quando estive em um momento de que isso exigia minha real preocupação. Sou latino americano, tenho origens, claro, no solo europeu. Mas não é de onde vieram meus antepassados que conta aqui. O que aqui conta e isso tenho absoluta certa é que minha alma teve sempre um passado incerto. Passeou por aí, viveu outras épocas. Sentiu o que nem posso imaginar. Mas ela se apossou do meu corpo. A sua, bem, a sua também não deve ter tido um caminho em brancas e calmas nuvens. Todas as almas, aqui presentes, pagam agora o que ao longo do tempo acumularam de pecados e de contradições. Não, não sou herói. Nem me ocupo com isso. Nem sou um marginal. Tampouco me considero alguém totalmente desprezível de reais sentimentos e de uma vida que ainda está em construção. Sou um homem do meu tempo. Você, também. Somos almas em busca de paz de espírito, não é?

Susana – Em tempos tão conturbados como os agora vividos por uma série de povos, em

distintos continentes e nações, não é possível que não seja possível estabelecer a concórdia, o entendimento. Não é possível! Tem que haver uma voz que se sobressaia sobre as demais e que, sem impor posições hegemônicas, venha a nos indicar caminhos. Não venha a indicar atalhos ou saídas milagrosas, espetaculares. Caminhar por sendas seguras. Sem percalços. Sem tribulações. Sem atropelos. Não é isso o que você quer para sua vida, Catharina? Não é isso que sempre tem buscado na sua peregrinação por palcos e papeis expressivos? Vá com calma em sua análise, está bem? Mais calma. Não é por uma razão assim tão focada na questão das identidades culturais que vamos divergir. Há questões históricas, eu sei. Questões filosóficas, teosóficas. Tudo isso contempla uma discussão mais abrangente. Mas é isso mesmo o que você quer discutir aqui? Você se esqueceu que a todo custo eu quero saber que fim deu aquele rapaz de barba desafiadora lá no aeroporto brasileiro? Este, me parece, é meu atual propósito. O seu, bem... você se enamorou ultimamente de um rapaz moreno. Foi o que contou. Sempre teve uma queda por homens morenos. Escuros, também. De sangue africano, sim. Eles todos. Se são diferentes de você, se sente atraída. Se a atração é forte, você não pensa. Deixa-se levar. É de sua natureza agir assim. Pensa bem melhor quando está apaixonada. Se sou usada, se sinto-me usada de vez em quando? Ah, quem não é? Você, por exemplo, não se sentiu usada em nenhuma época de sua vida? Nunca mesmo?

Gabriel – Nem sempre tudo isso deve ser levado em consideração. Tudo, sempre, é tão pouco. Tudo é, na maioria das vezes, uma parte onde se evidencia uma discriminação latente. Que em algum momento vai aflorar nos vários discursos. Tudo é nada. Nada, no entanto, me faz acreditar que sejamos mesmos frutos de condições favoráveis. Que somos escolhidos ou que somos detentores de todas as qualidades que nos fizeram vencer a noção do tempo e do espaço e permanecermos inabaláveis aqui. Você é quem diz isso. Eu não. Eu não digo nada sobre tempo e espaço. Eu vivo, eu apareço quando me é possível, quando, alguém me faz ganhar corpo e voz. Sou um pensamento em

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construção, não é mesmo? Meu discurso, sempre é precedido por um vazio. O que vem em seguida, também é um vazio. E é sobre o vazio que devemos construir um entendimento. Completar os espaços, as lacunas devem ser observadas atentamente. Nada de se opor ao que está lá para ser completado. Pense, reaja, ofereça alternativa. Construa, saia da mesmice, meu caro Martin. As dificuldades que você pode viver, não foram de todo tão más assim. Fizeram você ganhar corpo, deram voz, deram vez. Vez ou outra, também, está claro para mim, eu me deixo levar pelas aparências. Claro, ninguém é perfeito. Mas se é na busca de entendimento a perfeição deve ser uma meta, não uma utopia. O local é aqui, então, vamos tentar nos fazer entender e deixar de transigir sobre o real, o factual, o imagético, o narrativo, o dramático, o épico, o lírico. Cada coisa ao seu tempo. Então, há tempo de imaginar. Há tempo de representar. Há tempo de opor-se ao imaginado e há tempo para não representar assim tudo tão rasteiro, tão desprovido de dor ou de sentimento. Venha, caminhe sobre o fio da navalha. É pouco o espaço a percorrer? Aumente para o fio de uma faca. Também acha pouco. Desembainhe uma espada sarracena. Ela não será mais desafiadora? Ah, meu caro Martin. Quanto eu não daria para ir com você para Paris? Mas dar como? Nada tenho, nada possuo. Nada posso tirar de onde nada existe. De onde? Você me atribui assim tanta capacidade de improvisar? Mas tenho que confessar que ando meio cheio de tanto jogo de cintura, está sabendo? Não dá, não dá mesmo para ficar assim sempre projetando coisas que nunca se transformam em pequenas coisas reais e necessárias! Tem horas que quero jogar a toalha. Dizer chega. Não suporto mais levar tanta porrada! Não aguento mais ter que me subordinar a questões tão mesquinhas. Sou um pensamento vivo. Ganho voz se você me permitir que eu use o seu corpo para me expressar. Assim é como eu vivo!

Susana – Eu olho para o que você me escreve e me vem um sentimento diferente. Eu nunca imaginei que duas almas tão distintas um dia, uma certa noite em Paris, pudessem se conectar pelo que a gente tem que concordar como

insólito episódio, não é? Mas, e sempre há um mas, um porém... Mas eu não controlo o que vem até mim com essa força que me arrebata e me põe contra a parede exigindo de mim uma força que penso não mais possuir. Estou reagindo, Catharina. Estou aprendendo a reagir e a usar dessa força em mim aparentemente morta e inexistente. Venha, ajude-me a levantar tudo isso que está escrito e que precisa, com uma urgência sem limites, de ganhar a amplidão do espaço cênico. No mundo da linguagem, qual a linguagem mais capaz? O pensamento pode não ser exato, ter tantas imperfeições, mas você há de concordar, minha cara Catharina, que a linguagem poética é imbatível. Nas pequenas construções, nas frases longas, reflexivas até. Se há poesia ela sobrevive e se sobressai sobre as demais. A poesia é expressão de vida. E se não podemos viver sem a poesia, deixamos de existir mesmo.

Gabriel – Quando eu lhe escrevi naquela tarde, aqui tão longe, tão perto eu senti você. Não você, pois não sabia nem como você era agora. Ou como fora se construindo ao longo de seus quase 60 anos. Eu me construí tão fragilmente e essa fragilidade me deu tanta força que você pode até não acreditar. Foi com uma aparência frágil, inconstante, que se fez a força em mim. Mas você, ocupada nos seus afazeres, nas suas aulas, nos seus intermináveis encontros aqui, lá, em todo o território onde eu jamais estive vivia outras dimensões do nosso sonho. Cada um no seu turno de vigília. Quando eu acordava, você ainda iniciava seu sonho. Quando eu sonhava, você estava na ativa. Descompassos temporais. Espaciais, também. Eu, aqui, você aí. Nós, onde mesmo nós, esses nós que poderiam nos ligar, nos unir, onde eles estavam? Há nós em nós? Temos que desamarrar tantos, temos que atar os indispensáveis. Como diz minha neta, de quatro anos: É suficiente vô, é suficiente. Será que eu algum dia soube mesmo o que seria suficiente em tantas coisas de minha vida? Ela, uma menininha dizia com tanta convicção: É suficiente! E para ela passou a ser mesmo. Eu aprendi uma grande lição com aquela menininha que carrega o meu sangue.

Susana – Foi surpreendente, confesso, ter

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recebido seu e-mail e com ele a tradução de minha peça. Surpreendi pois o Brasil, a língua portuguesa, não estava nos meus planos. Nem remotamente eu pensava que o que eu escrevera em francês, traduzira para o espanhol – minha língua de origem – pudesse ganhar uma voz brasileira. Não é português, como aqui na Europa costumamos ouvir de pessoas que nos servem em tantos lugares. Eu vi meus personagens falando como os brasileiros falam. Pude ouvir, nas falas deles, as palavras que tanto me encantaram quando ligava meu rádio fronteiriço. Sim, cara Catharina. Há uma fronteira que separava meu rádio da realidade e da vida que é inventada em cada palavra. Assim, como agora, há uma fronteira bem nítida que separa o que estamos vivendo e o que se vislumbra como real. O sonho, sim, o sonho. Mas ele, para mim, se apresenta apenas para o outro lado do Atlântico onde disse certo poeta que recentemente conheci. Sim, para o lado onde canta o sabiá. Não é? “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá...” Sabe, nem sei como deve ser um sabiá. Mas se é cantado pela voz do poeta, deve ser um pássaro de voz inigualável. Como? É turdus rufiventris? Um pássaro de ventre vermelho, alaranjado. Sim, o que você tem aí chama-se sabiá laranjeira? Que lindo! Um sabiá com a cor de uma fruta que adoro! Você se liga nesta coisas ligadas a canto de passarinhos? Diga, Catharina. Qual o canto do seu pássaro preferido? É o canto de uma cotovia? Ah, Shakespeare não a deixa sem outra opção? Não vou comparar a cotovia da deslumbrante Julieta com o sabiá do meu amigo brasileiro. Não há como comparar! Mas, ambos os cantos trazem uma enorme carga de poesia. De tristeza, de lembranças. Canta a cotovia, nas cercanias do bosque medieval. O sabiá, ah, o sabiá canta aqui nos pinheirais. Muitos com a mesma idade que o velho bardo inglês! Não foi o que você me disse?

Gabriel – Há tantas vozes que eu gostaria de evocar aqui para falar sobre a poesia que ainda não existe no que escrevo que peço para que você me desculpe, antecipadamente. Quero ter de você um salvo conduto, um habeas corpus para eventuais crimes contra a palavra exata que eu possa estar cometendo. Não, não será um

crime premeditado. Nem poderei ser julgado por cometer um crime por dolo ou por imperícia. Tenho me esforçado e muito para merecer o perdão das palavras mal usadas. Talvez queiram ser mais duros comigo. Vai que o crime seja considerado culposo mesmo? Que joguem sobre mim todas as culpas pelo uso indevido de certas palavras. Não, a poesia que teime agora em não me consolar não vai abandonar-me. Eu sei. Como é difícil dominar, um pouco só, o que é poético e encanta. Vai me faltar apoio, talvez. Talvez eu tenha comprometido todo um trabalho, mas, você, poesia, vem ao meu encontro. Socorra-me! Assim, desesperado ele pediu para ser ajudado. Eu não poderia ajudá-lo. Não sou alguém com um mínimo de conhecimento para ajudar alguém num momento de dor e angústia. E você, pode ajudar-me. Pode ajudá-lo. Pode ajudar-nos agora? Vem, deixe-se invadir por um sentimento de compaixão. Você, meu querido Martin, tem conhecimento do quanto é importante para mim dar a você uma voz com a poesia que os loucos e os sonhadores devem ter? A mesma voz que um apaixonado e um idealista tanto procura? Não, não tenho forças para ajudá-lo. Reconheço aqui toda a minha fraqueza e incapacidade. Mas aprendi a acreditar que sempre há esperança no coração de quem sofre. Levanta sua voz! Acredite! Viva com intensidade os momentos em que uma pequena chama de amor e paz invadiu seu coração. Deixe-se dominar por esse fogo que não se apaga. Sinta o calor novamente invadindo todo o seu ser. Seja você, apenas você.

Susana – O que pode um coração crédulo negar? Como negar o que possa ser sua última, a derradeira esperança? Levante-se. É chegada a hora de um novo caminhar. Viu, Catharina como é difícil dar voz para o amor, para a esperança e para alguém apaixonado? Assim também é difícil fazer sair dentro de quem sofre, a dor, o desalento e o desamparo. Como é difícil, eu sei. Eu sei e você, dando voz a mim, abre a possibilidade para que outras vozes nasçam e evoquem o poder de multiplicar em milhares, em milhões de outras vozes que serão ouvidas em momento de prece. Catharina, tudo

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isso por você. Você está disposta a seguir em frente e ir de encontro ao que do outro lado do Atlântico a espera?

4 – Ne me quitte pas

Gabriel – Quanto medo eu tenho de morrer sozinho. Não de estar sozinho, mas de morrer sem que alguém possa avisar alguém que eu tenha morrido. Sabe, aquela sensação de que pode morrer a qualquer instante e... ninguém dar por sua falta, ninguém reclamar de sua ausência, ninguém avisar o porteiro do seu prédio que há dias o rádio está ligado e que não ouve barulho nenhum dentro do seu pequeno mundinho... Pai, o senhor tem cada ideia! Isso não vai acontecer, não vai! Mas você não se lembra de um colega seu de trabalho cujo pai morreu sentado com a cara mergulhada num simples prato de arroz e feijão? Somente três dias depois alguém sentiu um cheiro forte... Ah, mas não é para o senhor ficar pensando besteira! Felizmente o senhor tem uma boa saúde. Felizmente, sei como é. Ela não sabe nada mesmo sobre mim. É o que eu vivo dizendo, Martin, meu caro e inestimável Martin. Não sei o que teria sido de mim se eu não o tivesse reencontrado. Eu nunca o abandonei. Você é que não notava minha presença. Eu estava sempre tão próximo. Bastaria você olhar direito. Eu sei, eu sei... mas tem horas que a gente fica tão distraído e tão apegado a coisas sem importância que esquecemos de olhar para outros lugares imprescindíveis para nós. Foi difícil você olhar para dentro de si mesmo? Foi? Como foi? Martin, não me negue esta informação, sim? Dá para contar o que eu ainda não sei se sei?

Susana – Sua voz, vez ou outra, ganha um tom nostálgico, umas notas agudas de tristeza ficam abafadas, como se houvesse necessidade de se gritar, mas algo a impede. Não, Catharina, não é isso o que você está pensando sobre mim. Não pode ser que, ainda, você não domine mais seu repertório sobre as vozes que sempre consegui representar. Não se fala em tristeza, quando se pensa em esperança. Nem pode-se afirmar, categoricamente, que isso passa ou que não é possível acontecer. Tudo passa e, se passa,

aconteceu antes. Ou não. Dá para afirmar ter tido certas experiências sem ter tido certos tipos de dor, de alegria, de medo, de dúvida ou... Ou, não venha com ou... venha com mais. Medo, dúvida... sim, mais desalento, indiferença, esquecimento. Mais nada que virá depois pode se desconectar do que veio antes. Assim, numa cadeia interminável, o que sinto agora tem mesmo uma intrincada ligação com o que estava lá, num cantinho qualquer da minha história. Ou da sua também. Da minha? Minha história ainda está em construção, Catharina. Ainda está. Você sabe. Há muitas páginas ainda para sempre completadas com datas, fatos, pessoas, sentimentos, desejos, desafios. Você teme cruzar mesmo o Atlântico? Do leste para o oeste? Fazer uma viagem de volta. Tenho pensado que sempre a gente faz viagens de volta, retornando a alguma lugar que parecia não mais existir para nós. Fisicamente não nos damos conta de que isso sempre acontece. Catharina, vou lhe contar. Um dia, não me lembro exatamente quando foi, eu passei por uma rua em La Defénse, por onde eu nunca tinha passado. Quando o carro virou na rua Carnot eu me vi transportada para um tempo muito antigo. Não tive forças para controlar aquele sentimento. Era algo que eu vivia, com tanta força, com tanta clareza que pensei estar sonhando. Foram segundos, tenho certeza, os olhos fecharam rapidamente. E todo um sentimento de amor, de alegria e de esperança, de prazer, quanto prazer, quanto prazer! Em seguida, um grito, uma dor insuportável começou a dominar-me. Depois, uma luz, uma paz. Novamente eu abri os olhos e vi um rosto sorrindo para mim. Ouvi um choro de bebê. Várias pessoas estavam ao meu lado. Alguém tossiu, outra pessoa começou a rir timidamente. Depois, uma mulher, de cabelos ruivos com uma linda toca bordada sobre a cabeça, começou a aplaudir, aplaudia... todos também deram risadas... e aplaudiram freneticamente. O choro do bebê diminuiu. Senti, mesmo fechando os olhos novamente, que um suave beijo foi me dado nos lábios. O carro fez a curva e entrou na avenida Gambetta. Acordei com uma alegria tão grande, senti uma paz tão forte. Madame, madame, desculpe-me, mas os policiais indicaram que devia retomar a

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Gambetta. Vai dar tempo, não se preocupe. Temos tempo suficiente. Olhei e vi que uma ambulância estava parada e uma mulher era retirada de um carro e colocada numa maca. Um policial segurava nos braços, um bebê. Um jovem, muito jovem, aflito, era contido por outro policial. Ele abraçou o policial e o beijou várias vezes no rosto. Foi incrível!

Gabriel – Vida e morte. Nascimento e desaparecimento. Dia e noite. De um para o outro são poucos segundos, milionésimos de segundos. Se eu estivesse, agora, em Paris, talvez não fosse assaltado por pensamentos assim. Talvez, alguém lá em Paris, se estivesse aqui, caminhando por estas nossas ruas, não se sentiria tão abandonado. Mas eu é que me sinto abandonado aqui, andando em nossas ruas e não é em Paris onde me chegam ideias e sentimentos tão desalentadores. Tem importância o lugar onde a gente está? Ou o que importa é o tempo. O espaço ou as horas? O território ou aquele instante antes do tiro ou do grito de gol? Quando falo com você, meu caro Martin, eu me vejo ainda menino mas olhando o mundo e tudo maior a minha volta, com outros olhos, vendo tudo de uma perspectiva tão mais serena e tranquila. Nada de sentir-me assustado com o que poderia vir. O que eu via grande, eu vejo com sua real dimensão. O que eu via intransponível, eu vejo como uma etapa a mais que venci. O que eu via como inalcançável, bem... cheguei até aqui, não cheguei. Se aqui estou não foi apenas por uma questão de sorte. Ou de azar, pode ser. Quando você divaga assim eu me lembro que certo dia, correndo com algumas folhas de papel sulfite nas mãos, cruzei com o professor Emílio, sim aquele nosso professor que falava tantos idiomas e era de uma doçura impar. Sim, eu passei por ele e me vendo tão ansioso, disse: Guarde umas folhas desse papel para contar a sua história. Eu olhei para ele, que sorria. E fiquei sem uma resposta. Talvez eu tenha sorrido também. Mas lembro-me muito bem que entrei na secretaria da escola e alguém me disse. Não vai precisar das suas folhas. Temos papel suficiente para nosso jornalzinho. Pode guardar o que você trouxe. O que será que isso possa ter de importância em minha vida? Meses depois eu fui estudar no

colégio novo e o professor Emílio não foi mais meu professor. Anos depois, muito depois, é que eu fui reencontrá-lo. Conversamos e tomamos uma cerveja numa festa. Eu e ele. Eu já tinha uma filha. Ele mantinha o mesmo sorriso e os mesmos olhos claros e bonitos. Eu olhava para o rosto daquele homem e me sentia igual a ele. Talvez uns 40 ou mais anos de diferença entre nós. Mas ali, na mesa daquele bar eu e ele éramos homens. Não havia na minha frente o professor, o poliglota, mas um homem que falava coisas do nosso dia a dia, da política, da situação econômica do país, daquela festa agropecuária, das escolhas. Sem lições, nem tarefas. Como pessoas normais. Até hoje eu, não sei, mas eu queria perguntar se ele tinha sido feliz como meu professor ou como o professor de todos nós. Eu pago, professor. Eu pago. Afinal, nunca tirei nota menor que 8 com o senhor. Ele deu uma gargalhada. E voltou a colocar a carteira no bolso. Não me lembro de tê-lo abraçado. Mas eu ainda sinto que alguma pergunta eu devia ter feito e que, certamente, alguma resposta ele me daria e que, também, me seria útil futuramente. O que poderia ter perguntado?

Susana – Minha curiosidade para aprender o ofício de atriz, depois como professora, diretora de algumas peças de teatro e, mais recentemente como autora, sempre me obrigou a focar em perguntas. Mas eu também não saberia o que perguntar para aquele jovem pai que estava alegre com a chegada do seu filho. Nem eu sei, nem eu sei. Tem certas coisas que a gente pergunta como que desejando ter uma simples confirmação do que ali se apresenta, não é, querida Catharina? Parece que a pergunta já foi feita e a observação do que acontece já é uma forma de termos alguma resposta bem clara. Não vinha pensando assim. Não vinha. Talvez eu tivesse fechado meus olhos para não querer enxergar ou entender o que é cristalino. Límpido. Definitivo. Você sabe, Catharina, você deve saber. Tudo a seu tempo. Quando menos nos damos conta, aconteceu. Não como a gente pode ter imaginado ou sonhado, mas aconteceu e é tão bom. Outro dia, pensando na morte de um querido amigo, eu pensei. Poxa, não estive ao lado dele nos momentos finais da sua vida,

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mas eu e ele vivemos momentos tão importantes que nenhum momento de extrema tristeza poderá apagar o que foi intensamente construído nos vários anos em que convivemos. Claro que chorei pelo desaparecimento dele, claro! Mas eu tinha que louvar pelo que de fundamental em minha hoje ele me ensinou, não como professor, mas como pessoa, como amigo, como um ser que esteve ao meu lado apenas para me mostrar certos caminhos. Vai, é por aqui. Não, não se deixe levar pela mesquinhez dos pobres de espírito. Até onde chegamos, não é Catharina? Até onde...

Gabriel – Nunca parei para somar todos os afetos que foram importantes em minha vida. Não parei. Aliás, essa coisa de somar, dividir, multiplicar... Essas coisas que envolvem quantificação, porcentagem, precisão... Bem nunca fui um homem que tivesse uma afinidade maior com os números. Com a matemática, então, nem se fala! Como era difícil tirar notas mínimas nas provas do professor Raul. Como é difícil, até hoje, eu entender o que pode ser mesmo o tal teorema de Pitágoras. Bem, dos gregos, se os números não me atraíram, deles, bem depois, já maduro, é que pude me aproximar, ainda timidamente, reconheço, da arte da dramaturgia. Mas os gregos são um referencial histórico, sendo teórico, claro! O que me tem atraído muito e nisso você pode acreditar como a mais absoluta expressão da verdade que vivo hoje, é que encontrei um caminho. O caminho sempre esteve, de variadas formas, ao meu lado. É como se eu estivesse andando em um trem e não tinha coragem de saltar numa pequena estação e seguir viagem por aquela trilha onde eu via pessoas, vacas, plantações e poeira. Eu também poderia dizer que o caminho, o que estou agora percorrendo, só ficou claro para mim quando alguém, dentro do túnel acendeu o farol do trem, apitou e indicou: Estação Pirambóia, estação Pirambóia... Ou fica dentro ou fica de fora... Estação Pirambóia, ou fica dentro ou … Resolvi saltar, antes mesmo que alguém gritasse dentro do trem que havia uma estação depois da próxima curva, atrás daquela montanha. Nem sei bem como foi que criei coragem para saltar. Sabe, quando estava ainda no ar, naqueles

segundos antes de atingir o chão, eu pensei. Agora, já foi. Não dá para voltar. É se segurar para o baque ou, seja lá o que deus quiser... Não foi tão traumático saltar daquele trem que teimava em passar sempre pelos menos lugares. Claro, não era uma viagem curta, era uma viagem longa que se repetia, que se repetia, ano após anos e eu lá, aboletado, sentado num banco desconfortável, mas só olhando a paisagem e não participando dela. Eu não queria ser algo que aparece na paisagem e desaparece, em seguida. Nem queria me fazer apenas como a moldura, da janela do trem, ou do espaço de uma das fotografias que fiz ao longo da vida. Eu não queria estar atrás daquela máquina de fotografia como o homem que dispara o obturador e registra algumas imagens interessantes. Que roubas cenas com seu olhar e seu dedo preciso. Nem queria, também, sentado diante de antigas máquinas de escrever, das Olivettis ou Remingtons – eu adorava uma Lettera verde oliva que eu tinha – ou, agora, diante deste teclado e do monitor que me deixa com os olhos cansados, ter que escrever apenas as mesmas coisas, preencher os mesmos formulários, redigir os mesmos obituários, as mesmas notícias de vitórias, de derrotas, os mesmos editoriais que ninguém nunca leu ou deu atenção. Muito menos escrever a minha história sobre a perspectiva caolha e calhorda de mim mesmo. Não. Eu não quero ser meu próprio autor, nem meu próprio biógrafo. Quero ser outros. Outros, você está me entendendo, meu caro Martin? Ou a conversa o está deixando novamente com sono? Posso continuar divagando comigo mesmo... Aliás, é minha especialidade, se é que você não sabia.

Susana – Esta noite sonhei que tinha aparecido um iceberg na minha praia. Não um pedaço de gelo de alguns metros, mas uma montanha de gelo. Azul. De sua imensa parede frontal desprendiam imensos blocos. Alguns já chegavam até a areia da praia. Dois ou três ursos polares tiveram que ser abatidos pela polícia. Quem ia conseguir segurar aqueles animais enfurecidos pelo calor e pela falta de comida? Será que saiu na televisão? Nem sempre notícias reais são mostradas pelas TVs. Talvez eles não queiram alarmar a população.

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Alguém com juízo deveria se posicionar. Falar a verdade, não é Catharina? Você sempre tem falado a verdade? Eu, como assim? Não, não me venha com este jogo. Não gosto muito desta brincadeira, não. Não mesmo. Vamos mudar de assunto? Eu falava de um sonho. Os sonhos, quase sempre, são uma projeção da verdade que vai ou está acontecendo sem que a gente perceba. Quando menos se espera. É só ler a manchete: Ursos polares abatidos em Mar Del Plata. Você sonhou mesmo ou está inventando? Você deve ter visto muito aquele filme do Al Gore, não é? Quem, o vice do Clinton? Não me meto mais com políticos. Depois da experiência com o secretário de finanças, nunca mais eu quis conhecer ninguém que esteja no poder. E seu professor do curso de teatro, como foi mesmo que vocês acabaram indo para a cama? Como? Lá vem você de novo... Sim, como aconteceu, Catharina? E você acha que eu sou dessas que vive revelando seus segredos? Não, eu sou uma mulher discretíssima. Se alguém insinuar alguma coisa eu não deixo que alimentem os tabloides sensacionalistas. Mas aqui, entre nós, nada vai sair além dessas paredes. Como? Você pensa que não. O que tem de gente atenta e maliciosa, não é minha querida? Vamos encerrar o tema. Depois que os ursos foram abatidos o governo decidiu não mais permitir que icebergs aportem em nossas praias. Baixaram uma lei e rapidinho a regulamentaram. Acho que foi mesmo uma medida sensata. O quê, você deve estar louca! Que coisa mais insensata é essa! Ninguém pode agir assim de forma tão arbitrária contra as leis da natureza. Dia mais, dia menos, os icebergs vão invadir nossas praias mesmo. Espere e verá!

Gabriel – Estive pensando nos sonhos que estão me incomodando também. Os sonhos estão se repetindo, mas, a cada noite parece que vem um novo capítulo. Está difícil dar uma sequência lógica para eles. Algumas manhãs quando eu acordo tento me lembrar, mas não me ocorre nada. Na noite seguinte, o sonho se repete e traz algo novo. Aí eu percebo que tudo foi sonhado numa noite só. Não é muito estranho isso acontecer, Martin? É mesmo possível que eu sonhe algo e alguém, não sei

onde, também tenha o mesmo sonho? Será que isso tem a ver com Freud ou com Jung? Você deve saber que os sonhos foram estudados pelo Freud, claro. Mas a questão da sincronicidade é mesmo parte da teoria junguiana. Já ocorreu a você pensar numa pessoa e, assim, como num passe de mágica ela ligar para você ou até tocar a campainha de sua casa? Nem te conto, nem te conto. Um dia, eu usava uma camiseta que eu ganhara de um amigo artista plástico. Ele morava num bairro bem afastado do meu. Fui num supermercado e, não sei porque, imaginei encontrar com esse amigo. Quando eu descia a escada rolante, dei de cara com ele. Nós levamos o maior susto. Você aqui? Sim...viu que estou usando seu presente? Vem sempre aqui? Lembrei que ia para uma festa e que não tinha comprado um presente para o aniversariante. Parei no shopping ao lado e vim até aqui para comprar cerveja... Aniversário? É mesmo? Conheço? Acho que não... vou presentear-lhe com uma camiseta muito bonita. Não sei onde, mas parece que eu já vi essa camiseta com alguém... Não é incrível? Se você não fosse meu amigo eu não ia acreditar na história. Você está com sono? Não, acabei de acordar. Eu ia mesmo responder ao seu e-mail. Antes li um pouco. Tenho um trabalho para entregar amanhã. Vou participar de uma palestra sobre dramaturgia. Ah, você vai assistir? Com quem? Não, serei eu mesmo. O quê? Eu vou dar a palestra, mas estou sem assunto. Será que você pode me ajudar, Martin? Tem alguma sugestão? Logo eu? Você sabe, deixei de ser escritor e fui ser apenas um técnico em barragens, será que você se esqueceu? Técnico em grandes barragens, tipo Itaipu assim... Ah, é mesmo? Mas como eles conseguem reter tanta água assim? Como? Não é perigoso uma barragem dessa romper e inundar e matar e destruir e acabar com tudo que existe abaixo do vertedouro? Sabe, pensando em barragem, você acabou me dando uma excelente ideia. Estou pensando em escrever um texto onde eu vou contar sobre como um autor pode se inspirar em fatos do nosso dia a dia. Se ele ler jornais, consultar os sites noticiosos ou, até, ficar atento ao que houve em bares, restaurantes, conversas esparsas que ouve enquanto anda de metrô ou de ônibus. Mas o que tem de inspirador eu citar

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uma barragem e você falar no tema de sua palestra? Ah, meu caro Martin, uma barragem é como se fosse a vida. Está tudo ali, retido, armazenado, naquele imenso e profundo espelho d´água, preste a mover turbinas, a gerar energia, a sair pelo outro lado, a irrigar outras terras, a lavar outros corpos, a saciar a sede, a levar mágoas e sujeiras. Uma barragem é sua própria vida, percebeu? Se você não usar essa imensa energia que está retida, um dia ela pode explodir. Não em ideias, mas pode explodir é mesmo sua cabeça. Acho que agora entendi. Talvez eu tenha entendido. Vai ser hoje ou amanhã?

Susana – Esperei por uma resposta sua. Devia ter esperado mais antes de escrever-lhe novamente? Sim, seus compromissos. Eu sei. Eu entendo. Também estou assoberbada com minha agenda maluca. Não tenho mais folga para nada. Mas você sabe que é muito importante para mim saber qual é sua opinião sobre o tema que lhe enviei para meu novo espetáculo. É bom a gente ter os comentários de pessoas com as quais a gente não tem contato muito próximo. Quem está de fora, muitas vezes, vê com olhos mais atentos e enxerga o que os amigos mais próximos deixam passar sem se darem conta do que é mesmo óbvio. Entendeu por que estou pedindo que me responda? Você estava me respondendo? Acha melhor que eu não o interrompa agora? Que bom. Vou esperar seus comentários, ok? Fique bem. Catharina, nem te conto o que aconteceu! Mas você de novo com essa ideia de viajar para o Brasil?

Gabriel – Eu devia ter comprado as passagens na semana passada. Não comprei. E hoje, para minha surpresa... O que você não comprou ainda? Não... Acho que... Mas, veja bem, eu devia ter comprado antes e não deu. Hoje quando autorizei a compra pela minha agência de viagens, veio a surpresa... O que? Não tinha mais lugar? O voo estava lotado? Nem hotel? Nada disso. Escute. O dólar caiu tanto, mas caiu tanto que vai dar para ir de primeira classe, pagando apenas um pouquinho mais do que eu imaginava pagar indo na classe executiva. Primeira classe. Vou direto para Paris. Sem

escala. Primeira classe, já pensou? E quando você vai? No sábado a noite. Vou sair do Rio de Janeiro. Vai me dizer que é pela mesma companhia cujo avião caiu no mar? Não... um raio nunca cai no mesmo lugar. Nem um avião, sabia? Eu já contei para você que um avião quase caiu sobre minha casa quando eu era criança? É mesmo? Você viu? Vi e ouvi. Foi como se eu estivesse dentro de um filme de guerra. E o que aconteceu? O piloto morreu queimado e quase destruiu a casa da minha vizinha. Sorte dela é que o avião caiu num terreno vazio entre as duas casas lá na esquina. Depois, eu fui brincar dentro da ferragem do pequeno avião queimado. Sentei até nas molas do banco onde o piloto estava. Tudo retorcido, preto. Tinha até um cheiro de churrasco queimado. Um cheiro muito estranho. Só sei que me fizeram sair correndo de lá. Antes que carregassem aquele monte de metal retorcido. Onde você vai ficar hospedado? Ah, eu vou ficar num hotel bem charmoso que não é muito caro, lá em Montparnasse, perto daquele prédio imenso, a Tour Maine-Montparnasse. Vou ficar na Boulevard de Vaugirard. Não fica longe do Jardim de Luxemburgo, você sabia? Eu... não sabia mesmo, aliás, pouco sei sobre Paris. Nunca fui para Paris. Não! É mesmo? Pensei... Só conheço Paris pelos filmes, livros e fotos que alguns amigos me mostraram. Tenho muita vontade de ir a Paris, mas, para falar a verdade, antes eu gostaria de conhecer Nova York. Depois eu iria a Paris. Primeiro quero ir a Nova York. Sim. Mas Paris... você não sabe o que está perdendo. Eu posso imaginar. Mas o que foi que você mais gostou na França, Martin? O filho de uma amiga minha quando eu perguntei isso me disse com todas as letras: Eu gostei da Disney. Mãe não quero ir de novo em museus, está bem? E eu perguntei para ele o que ele havia mais gostado de comer em Paris. E para minha surpresa ele não disse que era do MacDonalds de lá... Eu adorei comer pato. Pato, como? Ah, sim... Confit de canard... É uma delícia. E não custa tão caro, pois tem esse prato por toda Paris. As crianças sempre nos surpreendendo, não é? Logo eu...

Susana – Já comprou as passagens? Vai mesmo? Quando?

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Gabriel – Eu quero conhecer Paris. Quero muito. Sim, depois que for a Nova York. Acho que está claro. Quando? Está tudo anotado aí.

Susana – Viajo daqui quinze dias. Você vai para Montevidéu também? E a Buenos Ayres?

Gabriel – A previsão é de neve este ano. Não neva em Nova York há dois Natais.

Susana – Depois de tantos anos quero sentir calor, muito calor, no meu Reveillon...

Gabriel – Será que vou precisar comprar mais roupas pesadas?

Susana – Andar de vestido florido. Um sapato bem leve...

Gabriel – A mesma roupa que usar em Nova York vou poder usar em Paris?

Susana – Direto para o Rio de Janeiro. Uma semana. Depois vou para Florianópolis. Um resort maravilhoso me indicou...

Gabriel – Quantos dias lá? Dez dias e depois outros 10 na França. É suficiente? Vô, eu já disse... é suficiente, vô.

Susana – Trinta e seis graus. É a previsão. Já sentiu calor assim?

Gabriel – Uns 10 ou 12 graus negativos. Nem imagino como deve ser...

Susana – Será que meu amigo brasileiro vai acreditar quando eu chegar?

Gabriel – Ela não sabe que eu vou para lá...

Susana – Nunca fiz uma surpresa dessas...

Gabriel – Será uma imensa surpresa para ela, acredito.

Susana – Vou ligar... Estou aqui!

Gabriel – Vou tocar a campainha.

Susana – Bom dia...

Gabriel – Quem?

Susana – Catharina...

Gabriel – Catharina?

Susana – Martin?

Gabriel – Martin?

Susana – O quê?

Gabriel – O quê?

Susana – Ontem?

Gabriel – Ontem?

Susana – Como?

Gabriel – Como?

Susana – Não me diga...

Gabriel – Não me diga...

Susana – Quando?

Gabriel – Quando?

Susana – Será que vai dar tempo?

Gabriel – Ela chegou tarde demais, Martin!

FIM

Curitiba, 7 de dezembro de 2009.

Amanheceu nublado, já fez sol e voltou a nublar. Acho que vai chover e fazer frio.

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