Eu e Tu - Martin Buber

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•• ":' tt. ~,,~ t . .. MARTIN BUBER Eu e Tu TRADUÇÃO DO ALEMÃO, INTRODUÇÃO E NOTAS POR NEWTON AQUILES VON ZUBER Professor na Faculdade de Educação da Unicamp ~ CENTAURO EDITORA

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MARTIN BUBER

Eu e TuTRADUÇÃO DO ALEMÃO,

INTRODUÇÃO E NOTAS POR

NEWTON AQUILES VON ZUBERProfessor na Faculdade de Educação da Unicamp

~CENTAUROEDITORA

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Traduzido do original alemão

Ich und Du, 8~ ed. Lambert Schneider, Heidelberg, 1974

ICONTEUDO

INTRODUÇÃO V1. Dados Biográficos XI2. Características do Pensamento XV3. Influências XXII4. EU e TU, De uma Ontologia da Relação a uma

Antropologia do Inter-humano XL"

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PRIMEIRA PARTE 1

SEGUNDA PARTE 41

TERCEIRA PARTE 85

POST-SCRIPTUM 139

NOTAS DO TRADUTOR 157

GLOSSÁRIO 169

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INTRODUÇÃO

O paradoxo é a paixão do pensamento; opensador sem paradoxo é como um amantesem paixão, um sujeito medíocre. MartinBuber, por ter assumido o paradoxo tanto emsua vida como em suas obras, se apresenta<..'tImoum .dos grandes pensadores de nossaépoca. Sua mensagem antropológica constitui,sem dúvida, um marco essencial dentro dasciências humanas e da filosofia. A dimensãohermenêutica de sua obra sobre a Bíblia e so~bre o Juda{smo faz de Buber um dos pilaresque ainda sustentam toda a evolução contem~porânea da reflexão teológica. Notável, e derelevante importância, foi o seu trabalho detradução da Bíblia para o alemão, empreendi~mento este iniciado em colaboração com seuamigo Franz Rosenzweig e finalizado após amorte deste em 1929. Mais particularmente, asua filosofia do diálogo, obra~prima de umverdadeiro profeta da relação (do encontro),situa~se como uma relevante contribuição noâmbito das ciências humanas em geral e daantropologia filosófica. Seus extensos e profun~dos estudos sobre o Hassidismo projetaram

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Buber ao mundo intelectual do Ocidente comoexímio escritor e como o revelador desta cor­rente da mística judaica.

Entretanto, devemos reconhecer que avasta produção de Buber ainda permanece des­conhecida em nosso meio. A nosso ver, a atua­lidade de Martin Buber se fundamenta numduplo aspecto: primeiramente no vigor comque suas reflexões tornam possíveis novas refle­xões. Embora pertencentes ao passado, elas"provocam" a ponto de exercer fascínio sobreaqueles que ,com elas se deparam; em' segundolugar, no comprometimento deste pensamentocom a realidade concreta, com a experiênciavivida. Pensamento e reflexão assinaram umpacto indestrutível com a praxis, com a situaçãoconcreta da existência. Martin Buber repre­senta um dos exemplos do verdadeiro vínculode responsabilidade entre reflexão e ação, entrepraxis e logos. Para ele a experiência existen­cial de presença ao mundo ilumina as reflexões.A fonte de seu pensamento é sua vida; suaexistência é a manifestação concreta de suasconvicções.

A crescente presença das idéias de MartinBuber se faz sentir de um modo bastante mar­cante nos mais diversos domínios da culturamoderna. Seus estudos sobre a Bíblia e o Ju­daísmo tiveram uma influência decisiva natéologia contemporânea, sobretudo na teologiaprotestante. Suas obras filosóficas têm influen­ciado várias das chamadas ciências humanas:

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psiquiatria, psicologia, educação, sociologia etoda uma corrente da filosofia contemporâneaque se preocupa com o sentido da existênciahumana em todas as suas manifestações. A ~mensagem buberiana evoca no pensamentocontemporâneo uma notável nostalgia do hu­mano. Sua voz ecoa exatamente numa épocaque paulatina e inexoravelmente se deixa to­mar por um esquecimento sistemático daquiloque é mais característico no homem: a sua hu­manidade. Sendo assim, a obra de Buber é fun­damental para a abordagem da questão antro­pológica.

Esta mensagem humana, forneci da aohomem contemporâneo caracteriza-se. por umaexigência de revisão de possas perspectivassobre o sentido da existência humana. A nos­talgia que envolve uma conversão propõe umprojeto de existência a ser realizado e não umasimples volta a um passado distante numa pos­tura de mero saudosismo romântico. A afirma­ção do humano não é um objeto de análisesobjetivas, exatas, infalíveis, mas sim um pro ....jeto que envolve o risco supremo da própriasituação humana da reflexão.

Não raras vezes o pensamento de Bubersofreu interpretações ambíguas, e até mesmoerrôneas, que poderiam facilmente ser evitadasse se tivesse observado uma certa postura deabordagem exigida pela profundidade da obra.Martin Buber não é um pensador qualquer, nãoé um autor no meio de outros perfazendo umsistema de pensamento filosófico ou teológico,

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Há muita verdade na auto~caracterização deBuber como "atypischer Mensch" (homem atí~pico). Como não se trata de uma construçãosistematicamente elaborada, sua obra exigeuma abordagem cuidadosa e criteriosa; osaventureiros à busca de soluções rápidas ereceitas para crises existenciais poderão decep~cionar~se logo nas primeiras páginas, desenco~rajados pelas ruelas austeras de um pensamen~to que várias vezes se manifesta por conceitos,frases e passagens obscuros.

Nossa intenção aqui é introduzir as prin~cipais idéias de Buber ao leitor que o desc~nhece ou o conhece através de breves citações.Não se trata de um trabalho exaustivo sobre opensamento de Buber ou sobre a sua filosofia.Trata~se de uma introdução à leitura de EU E .TU que ora apresentamos em tradução portu~guesa. No entanto, como a nosso ver EU E TUé a chave de todas as outras obras de Buber,acreditamos que o leitor, após o conhecimentodeste livro, poderá mais facilmente abordarqualquer estudo deste grande pensador.

A essência do pensamento buberiano re~vela~se, talvez mais do que a maioria dos ou~tros 'pensadores, estruturada como um círculo.Isto de,corre do sentido que Buber deu ao com~prometimento da reflexão com a existênciaconcreta, ao vínculo da praxis e do logos. Talcomprometimento é uma das característicasprincipais do pensamento de Buber. No pró~prio nível da reflexão, pelo fato de a filosofiaser um desveIamento progressivo, seus esfor~

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ços ontológicos aparecem necessariamente en~ITeIaçados com reflexões práticas. Este apro .•fundamento filosófico anseia sem cessar umambiente de busca de um efetivo engajamento.Sua filosofia do diálogo - da relação - pontocentral de toda a sua reflexão tanto ..•no campoda filosofia ou dos ensaios sobre religião, poIí~tica, sociologia e educação, atingiu sua expres~são madura em EU E TU graças à fonte repre~sentada pelo Hassidismo e sua mensagem. Namística hassídica Buber encontrou não só oprincípio, mas a luz e o molde para a sua refle ...xão. Podemos mesmo afirmar que a compreen~são de EU E TU será completa quando for le~vada em consideração toda a influência damística em geral (Budismo, TaoÍsmo, a místicaalemã, a mística judaica» e mais especifica~mente do Hassidismo.

No entanto, Buber não pode ser conside~rado um representante de um misticismo irra~cional. Senão, como articular tal qualificaçãocom'sua obra EU E TU que traz reflexões reli~giosas profundamente ligadas a uma ontologia?Além do mais, a dimensão ontológtca de suareflexão não nos permite afirmar que estamosdiante de um sistema filosófico "pronto" domesmo modo como podemos dizer que a filoso~fia de Hegel se apresenta como um sistema.Entretanto, podemos, em nossa preocupaçãode refletir criticamente sobre o pensamento deBuber, destacar temas ou conceitos mais impor~tantes e centrais contidos na obra e que servemde estrutura conceitual para a abordagem de

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outros pontos da doutrina ou das idéias queseriam, neste caso, consequências do temaessencial.

Esquematicamente, a obra de Buber podeapresentar~se sob três facetas: Judaimo, onto~logia e antropologia. Cada uma delas se liga àsoutras de um modo circular. A renovação, pro~jeto que Buber propõe ao Judaismo, implicauma ontologia da relação que, por sua vez, temsuas consequêndas em vários campos, taiscomo educação e política. Podemos abordaressas facetas de um modo cronológico ou lógico.Dentro desta última perspectiva, a ontologia darelação (da palavra como diálogo) está pie~sente como fundamento de todos os outros te~mas, seja de um modo retrospectivo nas suasconcepções sobre o Judaismo e na hermenêuti~ca do Hassidismo, seja de um modo prospectivona sua tradução da Bíblia, na sua antropologiafilosófica, em seus estudos sobre educação oupolítica, orientados para uma ética do interhu~n:ano. O fato primordial do pensamento deBuber é a relação, o diálogo na atitude exis~tendal do face~a~face.

Nesta introdução propomos ao leitor algu~mas '~onsiderações sobre os dados biográficosde Buber, algumas características de seu pen~samento e de sua vida, as principais idéias queo influenciaram (aqui destacaremos a místicahassídica) e finalmente fazemos algumas re~flexões sobre o sentido de EU E TU no conjun~to da obra.

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1) DADOS BIOGRÁFICOS

Martin Buber nasceu em Viena aos 8 de(\'vl'I'ciro de 1878. Após o divórcio de seus pais,plll'tiu para Lemberg, na Galícia, cidade ondeIIIOI,'avamseus avós paternos. Buber passouIIssim sua primeira infância com seu avô Salo~11IiioBuber, grande autoridade da Haskalah.IUl1todesta família o jovem Buber teve a chan~Cl: de experimentar a união harmoniosa entreri tradição judaica autêntica e o espírito liberalda Haskalah. A atmosfera era propícia paralima piedade sadia e para um profundo respeitopelo estudo. Teve aí a oportunidade de apren~der o hebreu, de ler os textos bíblicos e detomar contato com a tradição judaica. Aos 14anos voltou a morar com "o pai. Matriculou~seno ginásio polonês de Lemberg. A filosofia, soba forma de dois livros, marcou sua primeira einfluente presença na vida de Buber entre seus15 e 17 anos. Nesta época, como ele mesmonos relata, o seu espírito estava tomado poridéias de tempo e de espaço. Em sua obra U Oproblema do homem" ele faz alusão a uma ex~periência que exerceu profunda influência so~bre sua vida --- "Um constrangimento, que nãopodia expHcar, tinha se apoderado de mim: eutentava, sem cessar, imaginar os limites do es,.paço, ou senão a inexistência de um limite, umtempo que começa e que termina sem começonem fim. Um era tão impossível quanto o ou~tro; um deixava tão pouca esperança quanto ooutro; contudo,' falavam~nos que não havia

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opção senão escolhendo um ou outro de taisabsurdos. Sob forte tensão, eu vacilava entreum e outro, e acreditava que iria enlouquecer,e este perigo tanto me ameaçava que eu pensa~va seriamente em es.capar da confusão por meiodo suicídio". Foi então que lhe caiu às mãoso livro "Prolegômenos" de Kant, onde encon~trou uma resposta para sua indagação. Nesselivro ele verificou que o espaço e o tempo nãosão nada mais que formas através das quaisefetuamos a percepção das coisas e que elasem nada afetam o ser das coisas existentes.Descobriu também que tais formas entram, dealgumas maneira, na constituição de nossossentidos. É tão impossível dizer que o mundoé infinito no espaço e no tempo, quanto dizerque é finito, pois "nem um nem outro podeser contido na experiência" e nenhum pode serencontrado no mundo. "Eu podia", diz Buber,"dizer a mim mesmo que o Ser mesmo estásubtraído tanto ao infinito quanto ao finitoespacial e temporal, pois que não faz senãoaparecer no espaço e no tempo, e não se esgotaa si mesmo nesta sua aparência. Eu começavaentão a perceber que há o eterno, muito dife~rent~ do infinito, e que, não obstante, pode ha~ver uma comunicação entre eu, homem, e oeterno". (O problema do homem). Outro livrolido por Buber foi "Assim falava Zaratustra",de N ietzche~ Buber se empolgou tanto com amensagem de Zaratustra que resolveu traduzi~10 para o polonês. A visão nietzscheana dotempo como eterno retorno impediu Buber de

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It',' 11111 concepção diferente do tempo e da eter~"Idllde.

Em 1896 Buber entrou para a Universi­d:ldc de Viena, matriculando ....se no curso deFilosofia e História da Arte. Mais do que emIflllalquer lugar, encontrava~se em Viena ooemplo típico de uma cultura aberta a toda110J'tCde influências, oriundas de todos os qua~drantes do mundo intelectual. Encontravam~senÍ elementos eslavos, judeus e românicos. A'-'ccém~formada escola vienense era neo~român~tica e o lirismo ou o diálogo lírico estava aípresente em sua forma de criação e expressão.Toda a atmosfera da intensa vida social e eul....tural de Viena contribuiu para tornar Buberum devoto da literatura, da filosofia, da artee do teatro. Isso contribuiu" de algum modo paraque ele esquecesse suas raízes judai,cas. Nãofoi senão mais tarde, no final de seus cursosuniversitários, que a consciência da força eprofundidade da tradição judaica ressurgiu.Em 1901 entrou na Universidade de Berlimonde foi aluno de Dilthey e G. Simmel. EmLeipzig e Zurich dedicou~se ao estudo da psi~quatria e da sociologia. Em 1904 recebeu, emBerlim, o título de doutor em Filosofia.

Em Berlim entrou em contato com umacomunidade fundada pelos irmãos H. e J. Hart,a "Neue Gemeinschaft", que representava umoásis para a jovem geração: aí os jovens po~diam se expressar livremente. A comunidadeapresentava um desejo ardente de novos tem~pos: o lema era viver mais profundamente a

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humanidade do homem. Foi aí que Buber tra~vou amizade com Gustav Landauer, persona~gem este que o influenciou profundamente.

Buber era um membro ativo no seio da co~munida de universitária. Os jovens se reuniamamiúde, para discutir em conjunto os problemasque mais lhes interessavam. As reuniões se rea~lizavam à maneria de seminários nos quais cadaum dos participantes tinha a chance de exporum trabalho que seria. discutido por todos.Buber fez aí duas exposições: uma sobre JakobBoehme e outra intitulada "Antiga e nova co~munidade" onde afirmou "nós não queremos arevolução, nós somos a revolução".

Participante ativo dos primeiros Congres~sos do movimento sionista, Buber foi escolhido1'1 secretário. Alguns anos mais tarde chefiauma revolta de cisão no seio do movimento.por discordar da orientação do presidente efundador Theodor Herz1.

De 1916 a 1924 Buber foi editor do jornal"DER JUDE". Em 1923 foi nomeado profes~sor de História das Religiões e Ética Judaica,na Universidade de Frankfurt. A cadeira, únicana Alemanha, foi posteriormente substituidapor' História das Religiões. De 1933, quandofoi destituido do cargo pelos nazistas, até 1938Buber permaneceu em Heppenheim. Em 1938aceitou o convite da Universidade Hebraica deJerusalém, para lá ensinar Sociologia. Bubertinha então 60 anos. Esse período foi de inten~sa atividade intelectual. Suas pesquisas se apro~fundaram em diversas áreas: estudos sobre a

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1\11 "lrl, Itldaísmo e Hassidismo; estudos pOllt1~I '''I, I411dol6gicose filosóficos.

Bltlwr morreu em Jerusalém a 13 de junho.I, 11)1.'1,

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l.) CARACTERíSTICAS DO PEN •.SAMENTO.

"(~ necessário ter conhecido Martin BuberIli 'l/'Io:d!l1cntepara se compreender num instan •.I. iI Ii1osofiado encontro, esta síntese do eventoI ,111 d~rnidade". Nestas palavra de Bachelard". 1110:-1a convicção profunda de alguém quelI! rl·dita na necessidade de se encarar com se•.111(Illde tal obra e tal vida, ligadas por umvlllcldo inquebrantável. A impressão que a pre~

'., "11'11<;/1de Buber causava no seu interlocutor nosI r,·IFltada por G. MareeI: "Fiquei profunda­1111111,'impressionado, desde o início, com a\p'/lIldcza autêntica de tal homem que me pare~I 111I'l';dmente comparável aos grandes patriar~~II~Ido Antigo Testamento". Marcel emprega\I "'fino "plenitude" para caracterizar a perso •.I1l1l1daclee a existência de Buber, cuja magna~IIhllldiIClesurpreendia desde o primeiro encontro.( )111[\1'profundo que parecia tocar a intimidade.I,' SI:l1 interlocutor, e que, contudo, sabia aco~1111'1'na simplicidade e na fugaddade de umdildoÇJo.Uma presença autêntica emanava deI4WIpessoa, e a profundeza de seu semblante"":i/dia na presença a si mesmo. ExatamenteI,.Ir csta presença a si mesmo é que ele podia

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tornar~se presente aos outros, acolhendo~os in .condicionalmente em sua alteridade. A aber .tura e a disponibilidade com relação ao outroencontravam em Buber um suporte: a zona desilêncio, na qual se inscreve a confiança no'outro. O olhar encontra rapidamente o ,calor ea gratuidade da resposta. Quem ouve se não épara responder? Tal disponibilidade lhe forainspirada, desde a juventude, pela vida dascomunidades hassídicas que havia visitado du ...rante a estadia na casa' de seu avô, SalomonBuber. Nesta época a semente do Tu já haviasido lançada: o lugar dos outros é indispensá ...vel para a nossa realização existencial.

A plenitude citada por Marcel não seriaverídica se acaso não soubéssemos descobrir, aolado da amabilidade do a.colhimento e da aber ...tura aos outros, a firmeza de sua personalidade,quando se tratava de defender um ponto devista considerado como certo. Tal firmeza eralogo orientada para uma constante procura doverdadeiro, em meio às múltiplas verdades.Esta plenitude no diálogo caracterizava a pró~pria postura intelectual de Buber, pois ele nun~ca se desligava do mundo, e suas idéias nuncaeram excogitadas numa reclusão acadêmica.Ele viveu plenamente as tarefas do mundo taiscomo elas se lhe apresentavam. Desde os pri~meiros anos de sua formação intelectual vemosBuber à frente de grupos estudantis, Dentrodo movimento sionista com o qual se unira, eleentrou em conflito com os seus dirigentes poisestes só se mostravam interessados em assun-

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'"'1 pullf icos ou diplomáticos. O jovem Buber,11.\1 1'~lndoum pequeno grupo, defen.deu uma

t, 1111'('1'1,;50mais ampla do sionismo: uma con~t "1".:\0 que fosse, em sua essência, um esforçol!to Ilhertação e purificação interior e um meio.I,' ('h;var o nível social e cultural das massasjllll1ti,cas.Esta firmeza de atitude demonstrava1111111vida interior muito madura e consciente,IIIIHe"danuma compreensão bastante aguda dol4i'ntido de liberdade pessoal. Somente tal vidaInterior poderia lhe dar forças para enfrentarl1:{ dificuldades inerentes à sua própria exis~"~lIcia, dificuldades estas provindas da marcaque a circunstância histórica impingia não só ade mas a muitos outros, a ponto de torná-lospessoas diferentes, pois eram judeus. Isto, aoinvés de lhe ser desfavorável ou um motivo dedesdém, enriqueceu sua experiência ao reve~lar~lhe a verdadeira origem de seu poder cria~dor.

Outra característica mar cante desta perso~nalidade e deste espírito filosófico. foi umagrande fé no humano. Ele vivia ardentementeo "Menschensein" e pôde superar todas as suasdificuldades, buscando uma solução para oproblema existencial do homem atual. Ele haviaentendido a voz que o interpelava, e ao mesmotempo desejava que todos os homens tentassemresponder a ela. Buber nunca quis figurar comoo porta~voz de um sistema filosófico. Via suamissão como uma resposta à vocação que haviarecebido: a de levar os homens a descobrirema realidade vital de suas existências e a abri-

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rem os olhos para a situação concreta que esta~vam vivendo. Como Sócrates, ele ajudava, comsua presença, o "parto dos espíritos" nos ho~mens. Seu esforço foi sempre sustentado pelaesperança de atingir o fim, pois sem a espe~rança não se encontrará o inesperado, inaces~sível e não~encontrá'vel, como já afirmavaHeráclito.

Buber não se deixa etiquetar por qualquersistema doutrinário conhecido. Qualificaçõescomo místico, existendalista ou personalistanada mais fazem do que desvirtuar o sentidode sua vida e de sua obra. A.liás, ele mesmose qualificou Como "atypischer Mensch". Omaior compromisso de sua reflexão é com aexperiência concreta, com a vida. Ele aliou,com rara felicidade, a postura e as virtudes deum homem atual (de seu tempo, do século XX)com as raízes profundas do Judaísmo primitivo.Em realidade, ele encarnava o sábio e o pro~feta tentando simplesmente advertir os homensa respeito de sua situação. Não se tratava dereceitas tradicionalmente conhe.cidas ou impe~rativos inadiáveis, mas um apelo aos homenspara que vivessem sua humanidade mais pro~funqamente, movidos pela nostalgia do huma~no.

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"Durante a primeira guerra mundial, de­pois que meus próprios pensamentos sobre ascoisas mais elevadas haviam tomado uma ori~

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(~ntação decisiva, eu falava às vezes sobre mi~nha posição a meus amigos; ela era semelhantea uma .estreita aresta'. Desejava exprimir comisso que não me coloco numa larga e alta pla~Ilície de um sistema feito de proposições segu ...ras quanto ao Absoluto, mas sobre uma sendaestreita de um rochedo, entre dois abismos,onde não existe segurança alguma de ciênciaenunciáveI, mas onde existe a certeza do en...contro com aquilo que está encoberto". (Oproblema do homem, pág. 92 da tradução fran ...cesa). Esta afirmação revela, talvez melhorque qualquer outra, o significado e o valor davida e do pensamento de Buber. Nela podemosencontrar não somente a "santa insegurança"mencionada em sua obra ..Daniet' (1913) ,

'" mas também todo vigor e profundeza poéticae filosófica de EU E TU Esta" estreita aresta"não é uma solução de tranqüilidade que setorna um refúgio para os espíritos pusilânimes:não é, de forma alguma. uma posição de faci ...lidade que tende a transcender a existência realeivada de paradoxos e contradições, ignoran .do-os simplesmente a fim de escapar das situa .ções delicadas e embaraçosas provocadas poreles. Tal "aresta" onde Buber se coloca, é an .tes de mais nada o vislumbre da união para .doxal da plenitude, superando as soluções decompromisso daquilo que geralmente é enten .dido como dilemas ou alternativas: orientação .~atualização, Eu ...Tu Eu~Isso, dependência ...liber .dade, bem~maI, unidade~dualidade. A união dos

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contrários permanece um mistério na profundaintimidade do diálogo. Diálogo é plenitude.

De fato, "diálogo" é uma categoria quepode servir de via de acesso à compreensão daobra de Buber. "Diálogo" foi o tipo de com~promisso de relação que a vida e a obra desteautor selaram entre si.

Apesar da vida de Buber ostentar profun~das marcas de divisões, de contrastes, de opo~sições, não é sob esta categoria de ruptura quedevemos abordá~la. Pode parecer uma divisão,a distinção existente entre dois períodos de suavida, o primeiro até 1938 (período alemão) eo segundo, de 1938 até a sua morte (períodoisraelense). Eles, em verdade, estão estreita~mente unidos. Sem dúvida, Buber conheceuexperiências drásticas de profunda ruptura,mas sua vida permanece única, plenamente vol~tada para uma aspiração: o humano. Em cadaaspecto de sua vida e de sua obra, seja o as~pecto filosófico seja o aspecto religioso, o polí~tico ou o existencial. um fator único os centra~liza numa mensagem vivida: o diálogo. EU ETU, publicado em 1923, no período alemão,fundamenta suas obras posteriores, mesmo asdatadas do período israelense, e que versavamsobre educação, sociologia, política e principal~mente sua antropologia filosófica. Estas últimasnada mais são que explicitações ou manifesta~ções enriqueci das por outras experiências exis~tenciais da filosofia do diálogo de EU E TU.Por outro lado, os seus estudos sobre Judaismoe sobre o Hassidismo, no segundo período, re~

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Ih:l:cma intuição primitiva e o mesmo "elan"(11: lima renovação em profundidade do Judais~1110 apresentado primeiramente em seus "En~'1IIiossobre o Judaísmo", publicados em 1909.

Não se pode falar propriamente de condi~('jonamento de um dos temas sobre os outros.() modo pelo qual Buber os relaciona ao longo(k suas reflexões, fazendo~os como que equi~fllndamentantes, é a principal característica de:-ICu filosofar. Mesmo tratando dos mais diver .:10S temas em qualquer dos campos, separada .IIlcnte, per,cebemos neles a presença mar canteda unidade que subjaz a todos eles. Por issoHqueleque deseja ouvir o que Buber tem a dizer,não poderá nunca operar qualquer cisão entrelima obra e outra. É conveniente completar oestudo de EU E TU pelà leitura de outrosescritos tanto de cunho filosófico, ensaios quecompõem sua antropologia filosófica, ou p. ex...Caminhos de utopia" e outros escritos decunho políti,co e social. assim como os ensaiosc obras consagrados ao Judaísmo.

Ademais, é notável em Buber o sentidoprofundo de diálogo que ele estabelece entresua própria vida e a sua reflexão. Ambas fir~mam um pacto de profundo e mútuo compro ...misso. São auto~determinantes. Para Buber,porém. o conteúdo vivido da experiência huma ...na, em todas as suas manifestações, vale maisque qualquer sistematização conceitual.

Assim o "diálogo" (a relação dialógica)não é uma categoria à qual ele ,chegou por viasde raciocínio dedutivo, mas, como ele próprio

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qualificou em EU E TU, o encontro é essencial~mente um evento e como tal ele "acontece".Sem dúvida Buber foi profundamente marcadopor aquilo que, quando ainda criança em visitaa uma comunidade hassídica, acontecia entre ohassid, sequioso de palavras de conforto e ori~entação, e o tsadik, o guia da comunidade, queconfortava seus hassidim Com palavras, Domesmo modo foi singular para ele a experiênciana adolescência quando, em ,casa de seu avô,brincava com seu cavalo favorito até que emdado momento "algo aconteceu", algo "foidito" a ele e ele respondeu ao apelo; o diálogoacontecera, A fonte de onde brotou o dialógicoera pois profundamente vivencial, concreta,existencial,

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3) INFLUÊNCIAS,a) Considerações gerais

Martin Buber é mais um pensador do queum filósofo acadêmico ou um teólogo profissio~nal. A vitalidade de seu pensamento toma sua.força no sentido da concretude existencial daexperiência de presença ao mundo, A obra éinexoravelmente unida à vida. A grande dife~rença entre Buber e grande parte dos filósofosprofissionais repousa no sentido que é atribuídoà relação entre uma questão teórica e a praxis.A uma questão qualquer os filósofos respondematravés da exposição de posições teóricas, ape­lando para a experiência existencial ou, diga-

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IIIII~I.para o plano empírito, somente comoI'IllIlpll.:silustração para a retidão das teorias,I~l'If tis não mantêm para eles um vínculo pro­1111\(10 com a praxis ou, se houver tal vínculo,,+ ,"mais uma imposição de normas e orien­It'I~(ks que nunca surtem efeito, pois simples­IIlI'lIte ignoram o sentido profundo da praxis,I':",ti nada tem a dizer, Buber, ao contrário, ra­.I"' •• 3 gênese e o desenvolvimento de sua re­""xfio na riqueza e na força vital de sua expe­"/.-lIeia concreta, Em Buber reflexão e ação(I(lHOS e praxis) foram intimamente relaciona~.I,.:,.

Embora Buber não deixe daro as suasI'dl'l'ências filosóficas e históricas e não se preo­,'''pc com sua inclusão no seio de um sistema011 de um contexto histórico-filosófico, numaI,,! I'odução parece-nos interessante não omitir a'11111 situação dando uma referência ao clima'1Ilde seu pensamento se desenvolveu, as influ~i lidas que sofreu e o molde no qual seu pensa­IIl1'lItOtomou força, Devemos retificar em parte01 :Ifirmação de que Buber não deixa claro, em/tI'IISescritos, as referências às influências por1'1,' sofridas. Ele afirmou com clareza a sua dí~vida para com Feuerbach quando diz que dele,'('rebeu um impulso decisivo com relação ao:wJ1f'idodo Eu e do Tu e, de um modo geral.110 CJuediz respeito à questão antropológica,( <: f r. "0 problema do homem", pág, 46 da

1 J'ildução francesa) ,Distinguiremos dois tipos de influências e

,'xpcriências que gravitam ativamente na intui-

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ção criadora de Buber. No primeiro, de ordemfilosófica. incluiremos algumas personalidadesque estiveram presentes na reflexão de Buber eo cJima ou movimento filosófico dentro do qualse situam Buber e sua obra. No segundo, englo~baremos, de modo geral, o misticismo -- budis~ta, o taolsta e o judaico -- mais particularmentea mística hassídica.

Vários fatores provocaram em Buber anostalgia do humano. Muitas influências deforça variada serviram como provocação, outrascomo ..elan" para a reflexão, outras como su~porte ou como clima. Não nos é possível, noâmbito desta introdução, um estudo minuciosodessas influências, embora reconheçamos suaimportância. Podemos, no entanto, enumerá-Ias,e consagrar um momento para aquela que foipelo menos bastante significativa ao seu pensa~mento e que a nosso ver contribuiu decisiva~mente para a compreensão do sentido da men~sagem por ele legada -- aquela que tê~lo-iadespertado para a procura incansável do ..pa~raíso perdido": a nostalgia do humano. Talinfluência foi o Hassidismo. Um estudo mi~nudoso e profundo sobre as influências sofri~das por Buber pode ser encontrado na notávelobra de Hans Kohn: Martin Buber sein Werkund seine Zeit (Martin Buber sua obra e seutempo) .

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Talvez Peuerbach seja um dos autoresmais citados na obra de Buber. Em suas pró-

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I'I'i.l:1palavras, disse ele que recebeu. como jádll'IIHlmos.de Peuerbach um impulso decisivoP'II'I\ a construção de sua filosofia do diálogo.I'ri'llol.'dial no pensamento de Peuerbach sobreI. cOllhecimento do homem é que ele considera•.•• tI- como o objeto mais importante da filosofia.I~I,' llfio vê o homem enquanto indivíduo, mas•IIIIICIa relação entre o eu e o tu. No parágrafo'.q ,k sua obra Princípios da Filosofia do Fu~fi 11" I Feurbach afirma: "O homem, individual~1111'IIle não possui a natureza humana em si111"/'11110nem como ser moral nem como serIH'II/'I;mte.A natureia do homem não é contida'IClIII,'I1(:ena comunidade, na unidade do homem~0111o homem, mas numa unidade que repousanil Iw;ivamente sobre a realidade da diferença, 1111'('eu e tu". Peuerbach rejeita a filosofia da1,1"lIlidadeabsoluta pois esta leva a uma nega~","11 das distinções imediatas (isto está bem,1111'0no parágrafo 56 da mesma obra).J"'lIJ'hach estabelece a distinção entre eu e tuI ClIIIOuma forma de rejeição ao idealismo.Illd)('l'. retomando a intuição de Peurbach, diri~\ rlll ~H:Uinteresse para a relação entre os seres11I111I"110S.A maior crítica que Buber apresentou" 1I'~t'de Peuerbach diz respeito à substituição,I"111por Peuerbach, da relação com Deus pela,,'I.II)ío eu e tu. Buber ainda criticou o método1"),'lllIlativode Peuerbach -- segundo Buber,"'111'método impediu que Peuerbach levasse/11 111111te suas intuições e suas afirmações.

Ú patente certa afinidade entre Buber e1\ fllll. Há íntima relação entre as idéias de

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-'L, ,~~,_, -

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Buher e o princípio kantiano no plano da moral;não devemos tratar nosso semelhante simples~mente ,como meio, mas também como um fim~nos diversos tipos de relação Eu~Tu, o homemé considerado como fim e não .como meio. Hásem dúvida vários modos através dos quaistrato meu Tu como um meio (eu peço sua aju~da, eu solicito uma informação), assim como hádiversas maneiras pelas quais sou tratado comomeio. O encontro onde a totalidade do homemestá presente e onde e'xiste total reciprocidadeé um dos modos de Eu~Tu. É errado catalogartodos os outros modos de Eu~Tu. que não co­nhecem a total reciprocidade, como modos deEU~ISSO.

Tanto a obra como o estilo de Nietzschemarcaram profundamente o pensamento deBuber. Como já vimos, o próprio Buber relataa impressão causada pelo livro Assim falavaZaratustra, ainda na sua fase de adolescência.

Merecem especial destaque os seus mestresmais próximos Dilthey e Simmel. Franz Ro~senzweig, líder da Academia Judaica Livre deFrankfurt e amigo íntimo do autor esteve tam~bém presente nas reflexões de Buber, sobre­tudo através da obra UDer Stem der Erloesung"(A estrela da Redenção), publicada em 1921.

Gustav Landauer também exerceu influ­ência sobre Buber, A amizade com Landauerproporcionou significativa riqueza de idéias paraBuber. Desde o primeiro encontro em Berlinpor volta de 1900 até a morte de Landauer em1922, uma grande amizade uniu os dois pensa-

XXVI

.I'IITS, De um modo particular, foram as con~• "I H7(ICS de Landauer sobre o conceito de co~1IIIIIlidadeque chamaram a atenção de Buber.1\ 1(111 disso, ambos estavam interessados no";lllIdo da mística. Foi a primeira edição moder­1111dos escritos de Mestre Eckart, editada porI.nlldauer. que levou Buber a estudar o pensa~1111'111'0' místico alemão. O método de Buber na,'ull·l.a e na compilação dos contos hassídicoshllslimte se assemelha com o método empregado111)1' Landauer na sua edição e interpretação da«.1 H'a do Mestre Eckart.

Se quiséssemos inserir Buber dentro de'11111;1 corrente do pensamento filosófico talvezplldéssemos optar pela Filosofia da Vida ("Le­I)('n~philosophie"). Neste ppnto é marcante a

'., il1 fluência de seu mestre Dilthey. Do mesmoIllOdo, muitas das afirmações, passagens ou('onceitos utilizados por Buber permitem apro~:dmá-Io de um certo "intuicionismo". Porém,t~stas duas correntes não poderiam ser toma~tIas aqui no seu sentido técnico ou como éIIsualmente empregado na história da filosofia./\.vançamos esta afirmação com todo o cuidado,pois qualquer precipitação ao generalizar acar~rctaria em erro histórico --- Buber não se filian movimento filosófico algum, ainda que possa~1II0S, com .cuidado, aproximá~lo de uma correnteou de um método. Sem dúvida alguma, Buber(; tributário de uma época; várias vezes ele devepagar um certo preço pela própria situaçãohistórica que vivenciou.

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De modo geral, não é difícil constatar queas obras de Buber revelam um profundo com~promisso com a vida. A vida é realizada e con~firmada somente na ,concretude do "cada~dia".Segundo Buber, o projeto da filosofia é expli~citar a concretude vivida da existência humanaa partir do próprio interior da vida. Percebe~seque este pacto com a existência concreta levouBuber a uma postura um tanto cética frente aossistemas filosóficos. Tal atitude de reserva e decerto ceticismo era comum na tradição da "Le~bensphilosophie". O trecho de uma das impor~tantesobras de Buber a que aludimos há pouco,onde ele falava da "estreita aresta", denota estaatitude cética não só para com os sistemas filo~sóficos mas também para com a atitude filosó~fica de um modo geral. Para Buber, a filosofiae o filosofar são primordialmente atos de abs~tração. Esta afirmação implica uma crítica àmaneira de abordar a realidade, na medida emque estes atos de abstração nos separam daconcretude da existência vivida. Abordando osentido do estudo da existência humana (doconhecimento antropológico), Buber é sufiden~temente claro em estabelecer a distinção entrea ,abstração e o conhecimento antropológico,opondo entre si os dois modos de abordagem.Aquela nos sep27a da vida enquanto que estetenta abordar o fluxo concreto da vida partindode seu interior. A abordagem própria à antro~pologia filosófica deve ser realizada como umato vital. "Aí não se conhecerá". diz Buberreferindo~se à abordagem antropológica, '.'per~

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."

"11111 ""lido na praia contemplando as espumas.I" I '1IId:ts. Deve~se correr o risco, é necessário,lill1l"':-{(' na água e nadar". (Cfr. O problema

,/. I h, )fIICm, página 18 da tradução francesa).V(Irias afirmações de Buber permitem

'1114 IX ill\Ú~lo do intuicionismo. Este deve serI 11ft IIdido .como uma participação na concretude.1:1 vldil, em oposição ao conhecimento concei~111111 próprio de um espectador alienàdo à con~• 1,'lllde do fluxo existencial. Buber critica at ('(Iria Bergsoniana da intuição, pois vê nela um• (' r'l o perigo. Com efeito, no ato da intuição,111 H Il:~se ser subjugado pelo ato da intuiçãoIh'lIl,com isso, atingir a verdadeira realidade do"ilHo intuido que se coloca aquém do mo~1111'1110 de presença, momento este em que se1'!'"lizaa intuição. Pódemos -dizer simples e de~IIlH:radamente (o âmbito desta introdução nãoIIOS permite aprofundar tais afirmações) queBllhcr se aproxima da perspectiva intuicionista1111 medida em que distingue radicalmente duasIllitudes de situação no mundo, dando primaziafi atitude pré~cognitiva e pré~reflexiva (não~(,ollceitual) existente entre o homem e o enteque se lhe defronta no evento da relação dia~16gica.

Por fim notemos que vários conceitos uti~lizaclos por Buber e .cujo sentido se aproximadaquele dado pelo intuicionismo decorrem tam~bém da influência exerciqa por Dilthey,

*O interesse que norteou Buber para o es~

tudo das fontes da mística e dos ensinamentos

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judaicos teve sua origem num sentimento pro~fundo de carência de fundamento de sua pró~pria existência. Esta procura de raízes o con~duziu para aquilo que, sob diversas formas,podemos ,chamar de "auto~afirmação judaica".O primeiro passo foi sua participação, aindanos tempos de universidade no movimento sio~nista. Porém, logo em seguida, ele liderou omovimento de oposição contra a facção polític8comandada por Theodor Herzl, radicalizando acisão no seio da instituçião. A fundação de umestado político não deveria ser senão uma fasedo renascimento judaico.

Foi ainda o descontentamento consigomesmo que o conduziu ao estudo da místicajudaica, estudando os místicos alemães MestreEckart e Angelus Silesius. Encontrou~se assimcom a mística hassídica cuja vitalidade operouuma transformação em seu pensamento. 'Deum intelectual alemão à procura de raízes ju~daicas Buber passou a ser um pensador cujoespírito era profundamente judaico. A paixãopelo humano encontrava raízes na sua lealdadepara com o seu povo.

Exatamente nesta época, quando aprofun~dava seus contatos com o Hassidismo, lhe so~breveio um novo tipo de estímulo intelectual:as primeiras traduções das obras de Kierke~gaard. O teor da mensagem soava~lhe comouma exigência de que toda a filosofia deveriaser centrada na existência concreta do indivíduo.Embora diferentes em suas manifestações,Kierkegaard e Nietzsche rejeitavam o idealis~

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11111 filosófico. Enquanto Kierkegaard rejeitava; I I'fIdonalismo filosófico a partir da afirmaçãoti" f(: religiosa, Nietzsche o fazia a partir daI dlll ividade humana.

De uma fase mística Buber passou por1111111 fase existencial cujo principal exemplo éI )tlflid, obra publicada em 1913. A união com\I Absoluto já não era mais procurada por ser1I1I:-J{)I'ia,ela não opera a união no interior da":;Istênka individual; nela o próprio ser não éI.'vucloà sua verdadeira integração e a separa~\'~o interior permanece. O próprio conceito deIInidade será visto posteriormente como umaf :dha na sua abordagem valor ativa da existên ...('lfI humana. EU E TU contém severas críticas àproposta mística da unidade. Esta categoria:lI"rá substitu[da pela categoria da relação que,'- fundamental para a ,compreensão do sentidodn existência humana. "No princípio é a rela ...çfio". A relação, o diálogo, será o testemunhooriginário e o testemunho final da existênciahlImana.

*b) O HASSIDISMOBuber é conhecido tanto pela sua filosofia

do diálogo como pelos seus estudos sobre oHassidismo, sobretudo pela sua obra UDieErzaehlungen der Chassidim", que apareceuem tradução portuguesa sob o título "Históriasdo Rabi". (Editora Perspectiva)

Embora não encarasse sua tarefa como umempreendimento hermenêutico e histórico, Bu...

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ber legou· ao Ocidente uma das tradições reli~giosas de grande riqueza mística e espiritual.O assíduo contato e a intimidade que manteve,durante anos, Com este movimento da místicahassídica representaram para Buber mais do queuma simples influência, o clima ou o molde doseu pensamento.

Diz Buber que um dos aspectos mais vitaisdo movimento hassídico é o fato de que oshassidim contavam entre si histórias sobre seuslíderes, os tzadikim.· Grandes coisas haviampresenciado, participando delas e a eles cum~pria relatá~las, testemunhá~las. "A palavrautilizada para narrá~las é mais que mero dis~curso: transmite às gerações vindouras o quede fato ocorreu, pois a própria narrativa passaa ser acontecimento, recebendo consagração deum ato sagrado" (dr. Histórias do Rabi, pág.11) .

Não se trata de uma mera coletânea ela~borada por Buber, pois, como ele mesmo afir~ma, "o que os hassidim narravam em louvor deseus mestres não podia ser enquadrado emqualquer molde literário já formado ou em for~mação" ... "O ritmo interno dos hassidim é pordemais acelerado para a forma calma de nar~rativa popular, queriam dizer muito mais doque ela podia conter. (Idem" pág. 12). Buberentendeu sua tarefa como uma sorte de "in~formação" -- no sentido de dar formas -- des~tas lendas que os hassidim contavam sobre seustzadikim. E mais, "devido ao elemento sagradoque a enforma devido à vida dos tzadikim e à

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."

,d"llda elevada dos hassidim, essa lenda é me~1111 precioso, embora por vezes impuro, mistu~"'Hlo à escória." (Idem pág. 13).

Contrariamente a algumas críticas que lheIc )J'nmdirigidas, Buber não utiliza a massa in~I() ••me das lendas como um veículo de suasI)J'{lpriasidéias a respeito da mística hassídica.()s personagens principais -- os t~adikim -­111'10 são meros porta~vozes daquilo que Buberpr;densamente havia colocado em suas bocas,011 no entusiasmo dos que reletavam -- os has~Hldim-- para o bem de sua causa, ou de suafilosofia do diálogo, ou de suas idéias sobreI)cus, religião ou mística. Buber nos narra oque ele ouviu e não o que ele nos queria falar.a metal precioso de que fala Buber, poderia8cr melhor entendido como' pedra preciosa, umdiamante que deverá ser lapidado. O fato deque ele não acrescenta nada em seu relato des~tas histórias, não significa que Buber nô~lasdeu como encontrou, ou que nos relatou tudoo que encontrou; ele atingiu a perfeição atravésda lapidação, do esmero. Ele próprio diz que"História do Rabi" por exemplo, contém umdécimo de tudo o que foi coletado. Este livro.em bela tradução, vai nos mostrando pedraspreciosas, uma após as outras, sem haver esta~belecimento de hierarquia entre elas. Todasrevelam o sentido religioso e humano da exis~tência concreta dos tzadikim dentro de umatradição religiosa viva e cheia de piedade.

Herman Hesse, referindo~se a esta obrade Buber, afirmou em carta datada de 1950:

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..Buber, como nenhum outro autor vivo, enri­queceu a literatura universal com um genuínotesouro" .

Pode-se afirmar que Buber encontrou-seduas vezes com o Hassidismo. A primeira, emsua infância, quando acompanhou o pai duranteuma visita a uma comunidade hassídica deSadagora na GALíCIA (Polônia). Nesta oca­sião misturavam-se a espontaneidade de umacriança aberta ao mundo, que vive todas asexperiências e permanece nelas, e uma comuni­dade que ainda retratava a primitiva comuni­dade dos primeiros discípulos do Baal-Schen­-Tov. Em seu trabalho "Meu caminho para oH assidismo", Buber, relatando aquele encontro,afirmou que recebeu tudo como criança, isto é,não como pensamento mas como imagem e sen­timento.

As recordações deste encontro desvanece­ram através dos anos até que à procura de raí­zes e de sua auto-afirmação encontrou-se com omovimento sionista que representou um retornoao judaismo na vida de Buber. Foi então queum livro, Testamento de Israel BaaZ-Schen-Tov

. caiu-lhe às mãos e sua leitura fê-Io experimen­tar a alma hassídica; nessa época ele vislum­brou o significado primitivo de ser judeu ... Euvia aberto a mimtt, diz Buber, "o judaísmo comoreligiosidade, como piedade. como Hassidismo.As imagens de minha infância, a lembrança dotzadik e de sua comunidade me iluminaram eme levantaram, e reconheci a idéia do homemperfeito. Ao mesmo tempo descobri a vocação

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(11 proclamar isto ao mundo". ("Meu Caminho/'//('.'1 o Hassidismo", pág. 89 de "Hinweisett).

No judaísmo da diáspora sempre houveI (\lIllmidades cujos membros se chamavam"linssid tt ( piedoso, devoto) . O HassidismoIllIrgiu na Polonia, no século XVIII. Caracte­rlz<lva-se por um esforço de renovação da mís..(/.ca judaica. Um traço comum a todas essascomunidades hassídicas é que por· sua santi­(Inele, piedade e união com Deus, aspiravam aIIl11élvida santifieada aqui na terra. Esta novalIIanifestação do judaísmo é uma vida nova, naqual o antigo e o tradicional são aceitos e se mos..(ram transfigurados na simples e cotidiana exis­It'ncia de cada um, para lhe proporcionar umalIova luz. Com o Hassidismo aparece um novo:it:ntido de piedade. A manifestação deste es..pirito de renovação se concretizava na pessoado tzadik, o mestre, o líder da comunidade. Ofundador do movimento foi Rabi Israel benEliezer, apelidado de Baal-Shen-Tov, o pos­suidor do bom Nome (1700-1760). Ele e seusdiscípulos se dedicaram à uma vida de fervor,alegria e piedade. Representavam uma reaçãocontra o rabinismo tradicional, na sua tendênciaIcgalista e intelectual; enfatizavam a simplici­dade, a devoção de cada dia, na concretudede cada momento e na santificação de cadaação. Esta ênfase na piedade e no amor deDeus tem suas raízes nos Profetas e nos Salmos.

Se quisermos situar o Hassidismo no con­texto do Judaísmo pós-bíblico, podemos consi..derá-lo, segundo M. Friedman, como o encon-

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tro de três correntes: a lei judaica apresentadana Halakhah talmúdica; a lenda judaica ex.•pressa na Haggadah; e a tradição mística ju ..•daica ou Kabbalah. O Hassidismo não admitedivisão entre ética e religião. Não há distinçãoentre a relação direta com Deus e a relaçãocom o companheiro. Ademais, a ética não selimita a uma ação ou a uma regra determinada.No Hassidismo a Kabbalah se tornou ethos,afirma Buber; este movimento não reteve daKabbalah senão o necessário para a fundamen ..•tação teológica de uma vida inspirada na res ..•ponsabilidade de cada indivíd~o pela parte domundo que lhe foi confiada.

Buber resumiu assim o sentido da mensa ...gem hassídica: Deus pode ser contemplado em.cada coisa, e atingido em cada ação pura. "Oensinamento hassídico é essencialmente umaorientação para uma vida de fervor, em alegriaentusiástica" (Histórias do Rabi, p. 20). Esteensinamento não é uma teoria que existe inde~pendentemente de sua realização. mas é acomplementação teórica de vidas realmentevividas por tzadikim e hassidim, Vê~se umnovo tipo de relação entre o mundo e Deus,que não é simplesmente pante{sta, pois não háabsorção de um pelo outro. A imanência deDeus não implica absorção do mundo por Deus.Pelo contrário, ao afirmar esta relação, a dou~trina hassídica pode ser qualificada de panen~te{sta, isto é, longe de uma identificação entreDeus e mundo ela significa e afirma a realidadedo mundo como mundo~em~Deus, "O comércio

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1',,:11 do homem com Deus tem não só seu lugar,IIlt'~ também seu objeto no mundo. Deus se di~dlJ<' diretamente ao homem por meio destas\ 111:;nse destes seres que Ele coloca na sua vida:II homem responde pelo modo pelo qual ele se\ 1111ti tiZ em relação a estas coisas e seres en~vllldos de Deus" (Prefácio de Livros Hassí~I (I('os, dr. tradução francesa do prefácio nar,'vista Dieu vivant, 1945, p. 18).

O Hassidismo retoma o ensinamento de""'/leI e lhe dá uma expressão prática. Já queo 1111Indo é a "morada" de Deus, ele se tornaP'II' isso -- do ponto de vista religioso -- umIItICnlmento(idem). Para Buber, o Hassidismo11"lIlmcioue afastou o perigo da separação en~I,',· a "vida em Deus "e a,>"vida no mundo" .

'" I\11heI' considera, aliás, esta separação como opl'cndo original e a doença infantil de toda"I'(·ligião". Ele "eliminou efetivamente o muro'lI"; dividia o sagrado e o profano, ensinandoti "xccutar toda ação profana como santificada.() lIassidismo realiza uma união autêntica e<oll<:l'cta."Sem resvalar para o panteísmo", dizI\lIher". "que aniquila ou debilita o valor dosvnlOJ'cs-- a reciprocidade da relação entre o11I1I1I;lnOe o divino, a realidade do Eu e do Tuqll\' não cessa mesmo' à beira da eternidade -­'I hnssidismo tornou manifestas, em todos osI'h'lTS e todas as coisas, as irradiações divinas,'1'4 flJ'dentes centelhas divinas, e ensinou como"\ nproximar delas, como lidar com elas e, mais,( (11110elevá~las, redimi~las e reatá~las à sua raiz1'1'I11It;Íra"(Histórias do Rabi, pág. 21). O

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Hassidismo ensina a todos a presença do Deusno mundo.

Como será o homem responsável pela ta~refa de realizar Deus no mundo? "Se dirigesa força integral de tua paixão ao destino uni~versal de Deus, se fizeres aquilo que tens afazer, seja o que fêr, simultaneamente com todatua força e com essa intenção sagrada, aKavaná, reune Deus e a Schehiná, eternidadee tempo. Para tanto não precisas ser erudito,nem sábio: nada é necessário exceto umaalma humana, unida em si e dirigida indivisa~mente para o seu alvo divino" (Idem, p. 22).

O Hassidismo concretizou profundamente,como nos mostram as "Histórias do Rabi", trêsvirtudes que se tornaram essenciais para a rea~lização da tarefa de cada um: o amor, a alegriae a humildade. Foi pelo amor que o mundo foicriado e é através dele que será levado à per ..feição. O temor de Deus é somente uma portaque leva ao amor de Deus, que ocupa lugarcentral na relação entre Deus e o homem. Deusé amor, é a capacidade de amar, é a mais pro~funda participação do homem em Deus.

A alegria entusiástica provém do reconhe ..cimento da presença de Deus em todas as coi~sas. A humildade é a procura constante doverdadeiro si~mesmo que atinge sua perfeiçãocomo parte de um todo, de uma comunidade.Todas as virtudes atingem sua perfeição pelaoração no sentido mais lato de qualquer açãosantificada em qualquer momento do dia ou danoite.

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A verdadeira relação com o tzadik susten~tará o hassid em sua busca de realização. Otzadik é o amparador do corpo e da alma. A~Fande tarefa do tzadik é faciltiar aos seushassidim a relação imediata com Deus e nãosubstituí~la. Ele deverá orientar o hassid emsua tensão, em seu ir~em~direção~a~Deus. "Umdos princípios fundamentais do hassidismo",diz Buber, "é que o tzadik e o povo' dependemum do outro ... " Sobre sua inter~relação re ..pousa a realidade hassídica. "Aqui tocamosaquela base vital do hassidismo, da qual seesgalha a vida entre entusiasmadores e entu~siasmados. A relação entre o tzadik e seus dis~cípulos é tão somente a SU::l mais intensa con~centração. Nesta relação, a reciprocidade sedesenvolve no sentido da máxima clareza. O

'., mestre ajuda os discípulos a se encontrarem e,nas horas de depressão, os discípulos ajudamo mestre a reencontrar~se. O mestre inflama asalmas dos discípulos; e eles o rodeiam e ilumi~nam. O discípulo pergunta e, pela forma desua pergunta, evoca, sem o saber, uma respostano espírito do mestre, a qual não teria nascidosém essa pergunta". (Histórias do rabi, p. 25).

A vitalidade do fervor religioso, o ensina~mento completado pela prática cotidiana econcreta; um novo tipo de relação com Deus,de "serviço" a Deus através do mundo; umprofundo espírito de comunidade; o amor comoelemento fundamental; a inter~relação, no au~têntico inter~humano do tzadik e seus hassadimformando a comunidade; a alegria entusiástica;

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b novo sentlao ao mundo e das relações dohomem com o mundo; a transposição da divi...são entre o sagrado e o profano, tais são al~gumas das principais facetas do ensinamentohassídico que marcaram decisivamente o pen~samento e a vida de Buber.

A intimidade de Buber com o hassidismorepousa sobre uma inefável relação de simpa ...tia. Ela produziu um vínculo de autopatia, istoé, se Buber delapidou as "histórias" auxilian~do~as a se manifestarem mais claramente, domesmo modo, a mensagem do hassidismo fe...cundou e provocou o pensamento de Buber.Talvez se pudesse falar de remodelagem mú .tua. O Hassidismo foi o farol convidativo, de .cisivo e provocador de uma tomada de cons .ciência da tarefa e do sentido da existênciahumana no mundo.

*

4) EU E TU, DE UMA ONTOLOGIADA RELAÇÃO A UMA AN ...TROPOLOGIA DO INTER-HU~MANO.

, EU E TU representa, sem dúvida, o está .gio mais completo e maduro da filosofia do diá .logo de Martin Buber. Ele a considerava comosua obra mais importante: obra na qual apresen ...tou, de modo mais completo e profundo, suagrande contribuição à filosofia. EU E TU nãoé simplesmente uma descrição fenomenológicadas atitudes do homem no mundo ou simples...

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IIlI'n(c uma fenomenoIogia da palavra, mas êIIIIlIhême sobretudo uma ontologia da relação.1'( Hlcmos dizer que a principal intuição delIt1hcr foi exatamente o sentido de conceito deI('llIção para designar aquilo que, de essencial.IIcolltece entre seres humanos e entre o Ho~1111'11\ e Deus.

A reflexão inicial de EU E TU apresenta1I pé"tlavracomo sendo dialógica. A categoriaprimordial da dialogicidade da palavra é o••t' 11tre". Mais do que uma análise objetiva dat':-\f'l'uturalógica ou se!ílântica da linguagem, o11IIC faria da palavra um simples dado, BubertI('::;envolveuma verdadeira ontologia da pala ...Vf'i1 atribuindo a ela, como palavra falante, O

[1('lltido de portadora de sE;r. É através dela'" quc o homem se introduz na existência. Não é

(J homem que conduz a palavra, mas é ela queo mantém no ser. Para Buber a palavra profe ...!'ida é uma atitude efetiva, eficaz e atualizadorado ser do homem. Ela é um ato do homem atra~vês do qual ele se faz homem e se situa no mun~do com os outros. A intenção de Buber é des~vcndar o sentido existencial da palavra que,pela intencionalidade que a anima, é o princípioontológico do homem como ser dia~logal e dia ...pessoal. As palavras"'princípio (" Grundwort" )são duas intencionalidades dinâmicas que ins~tauram uma direção entre dois polos, entre duasconsciências vividas.

Na verdade EU E TU pode ser conside ...rada a obra mais importante de Buber não sópelo vigor do pensamento ou pela atualidade

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de sua mensagem, mas também pelo fato de queela se situa no centro ou no começo de toda aobra: é a chave ou a via de acesso a todos osoutros escritos pertinentes aos mais diversosdomínios onde se manifestou a atividade refle~xiva de Buber. Obra de maturidade, EU E TUteve consequências diretas nas suas obras poste~riores sobre antropologia filosófica, educação,política. sociologia, bem como nos seus estudose exegeses da Bíblia e sobre o Hassidismo ouo Judaismo. Todas as influências de filósofosou de correntes filosóficas, do pensamento mís~tico em geral, do Budismo, Taoismo, da místicajudaica e do Hassidismo se encontram nestamonumental reflexão, verdadeira obra~primada primeira metade do século. A mensagem deEU E TU, em cada um de suas três etapas.apresenta temas que ainda hoje provocam efecundam nossa reflexão.

A base de EU E TU não é constituldapor conceitos abstratos mas é a própria expe~riência existencial se revelando. Buber efetuauma verdadeira fenomenologia da relação, cujoprincípio ontológico é a manifestação do ser aohomem que o intui imediatamente pela contem~plação. A palavra, como portadora de ser, é olugar onde o ser se instaura como revelação.

A palavra é princípio, fundamento da exis~tência humana. A palavra~princípio alia~se àcategoria ontológica do "entre" ("zwischen")objetivando instaurar o evento dia~pessoal darelação. A palavra como diá~logo é o funda~mento ontológico do inter-humano.

XLII

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o fato primitivo para Buber é a relação.() escopo último é apresentar uma ontologia da,'xistência humana, explicitando a existênciadiaJógica ou a vida em diálogo. As principaiscategorias desta vida em diálogo são as seguin~Ics: palavra, relação, diálogo, reciprocidade<:ornoação totalizadora, subjetividade, pessoa,rcsponsabilidade, decisão~liberdade, inter-huma~110.

Mais do que uma meta física ou ma teolo~nia sistemática, EU E TU é uma reflexão sobrea existência humana. A questão antropológicado sentido da existência interpelou Buber.Tudo o mais está integrado a esta questão. Porcxemplo, a problemática de Deus, ponto impor~I'ante nas obras de Buber, é integrada na ques~I'ão da pessoa humana, ser' de relação. Assim,Deus será o Tu ao qual o homem pode falare nunca algo sobre o qual ele discorrerá sis~I'ernática e dogmaticamente. O Tu eterno éaquele que nunca poderá ser um ISSO. Sobre aquestão de Deus, a intuição fundamental deBuber é entender o novo tipo de relação qu~o homem pode ter com Ele, porque ppra o ho~rnem não importa talvez o que Deus é em suaessência, mas sim o que Deus é em relação aele, homem. Deus é, pois, Aquele com o qualo homem pode estabelecer uma relação inter~pessoal. Buber encaminha o problema de Deus,ultrapassando a dicotomia sagrado~profano,através da realidade da existência humana.

*XLIII

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EU E TU se apresenta em três partes. Se~gundo um antigo projeto de Buber abandonadologo no início, EU E TU representava o primeirocapítulo ou a primeira parte de uma obra emcinco partes. Esta primeira parte, EU E TU,Buber a subdividiu nos seguintes tópicos: 1.Palavra; 2. História; 3. Deus.

A ontologia da relação será o fundamentopara uma antropologia que se encaminha parauma ética do inter-humano. Diz~se então que ohomem é um ente de relação ou que a relaçãolhe é essencial ou fundamento de sua existên~cia. Com isso assistimos ao encontro do pensa~mento de Buber com a tradição fenomenoló~gica, na medida em que grande parte dos filó~sofos que a ela pertencem partem também desteprincípio do homem como ser situado no mundocom o outro. O maior mérito que cabe a MartinBuber está no fato de ter acentuado de ummodo daro, radical e definitivo as duas atitu~des distintas do homem face ao mundo oudiante do ser. As atitudes, como veremos adi~ante, se traduzem pela palavra~princípio Eu~Tue pela palavra~princípio Eu-Isso. A primeira éum ato essencial do homem, atitude de encon­tro eptre dois parceiros na reciprocidade e naconfirmação mútua. A segunda é a experiênciae a utilização, atitude objetivante. Uma é aatitude cognoscitiva e a outra atitude ontoló~gica.

O sentido que Buber atribuiu ao conceitode relação, aliado à radical distinção ontológi­co~existencial, é uma aquisição que terá pro-

XLIV

(lindas influências para a abordagem da'"xlstênria humana. Não se pode mais prescindird(~stas reflexões em qualquer perspectiva querI(" tome do humano, seja na antropologia filo~~ofica ou em ciências humanas. Se a sua afir-­11I:lçãoda existência humana como ser de rela-­(:!'ionão é original- aliás o próprio Buber re­conheceu ter recebido o impulso decisivo deJ.leuerbach, -- o mesmo não se pode dizer noque se refere à distinção que ele estabeleceuI'ntre as duas atitudes do homem e os dois tiposde mundo a elas .correspondentes. De qualquerforma, sua penetrante e vigorosa reflexão e omodo profético com que lança sua mensagemhaseada nestes dois princípios da existênciahumana -- o dialógico e o monológico -- e

'" sobretudo a coerência e intimidade entre EU ETU e o restante de sua vasta obra, colocam-noem um lugar inquestionavelmente singular naHistória da Filosofia e do pensamento contem-­porâneo. Todos aqueles que abordaram os mes-­mos temas, fundamentais em filosofia, não ofizeram com tão grande. profundidade e belezade linguagem.

*O mundo é múltiplo para o homem e as

atitudes que este pode apresentar são múlti-­pIas. A atitude é um ato essencial ou ontolÓgicoem virtude da palavra proferida. Cada atitudeé atualizada por uma das palavras-princípio,Eu--Tu ou Eu~Isso. A palavra-princípio, umavez proferida, fundamenta um modo de existir.

XLV

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Ela é uma palavra originária, fundamental,"Grundwort". O homem, como Já foi dito, é umser de relação. Podemos nos referir aqui aoconceito de intencionalidade como ele é enten~dido na fenomenologia. A relação não é umapropriedade do homem, assim como a intencio.­nalidade não significa algo que esteja na cons~ciência, mas sim algo que está entre a consci~ência e o mundo ou o objeto. Sendo assim, arelação é também um evento que acontece entreo homem e o ente que se lhe defronta. Não éo homem que é o condutor da palavra mas éesta que o conduz e o instaura no ser. Notemosaqui nítidas reminiscências judai,cas sobre osentido dado à palavra que não é logos (razão),mas dabar. A atitude de abertura do homem ea doação originária do ser formam a estruturada relação EU~SER."A essência do ser se co~munica no fenômeno", diz Buber. A contempla~ção é a atitude que instaura a presença jme~diata do homem~Eu ao mundo.

Dentre as mÚltiplas atitudes que o homempode apresentar diante do mundo, Buber des~.taca duas que são as duas possibilidades doEU revelar~se como humano. Em face da doa~çã~ do ser no fenômeno, o homem, EU, proferea palavra~princípio. Em outros termos o ho~mem pode atender ao apelo do ser. Tal decisãoé essencialmente passiva e ativa, ela é uma ati~tude de aceitação ou de recusa. Estas duasatitudes, repetimos, são atualizadas pelas pala~vras~princípio proferidas. Ser EU significa pro~ferir. uma das duas palavras. Sendo a palavra

XLVI

portadora de ser. o homem que a profere existeIIlItenticamente graças a ela. Existir como EU(IIJ proferir a palavra princípio é uma e mesmacoisa. A própria condição de existência como~er~no~mundo é a palavra como diá~logo. Hálima distinção radical entre as duas palavras~..princípio. O EU de uma palavra~princípio édiferente do EU da outra. Isso não significa quel:xistem dois "Eus" mas sim a existência delima dupla possibilidade de existir como homem.1\ estrutura toda é duaI. Há dois mundos, duasrelações. Chamamos relação para Eu~Tu e re~lacionamento para Eu~Isso. Tu e Isso são duasfontes onde a eficácia da palavra se desenvolveconstituindo a existência humana. As torrentescaudalosas que brotam do Isso, das coisas, pro~

'" vêm de um modo convergente da fonte primor~dial que é o Tu. O Tu é primor daI e conse~quentemente o Isso é posterior ao Tu. "No prin~cípio é relação". A abordagem reflexiva, cog­noscitiva de objetos, do Isso, só poderá serlevada a efeito na medida em que passa pelolugar ontológico do encontro de duas pessoas.Não constitui novidade o que muitos filósofoscontemporâneos afirmam sobre a prioridade darelação ontológica sobre a relação cognoscitivado homem com o mundo. Sem dÚvida, tantoestes filósofos como o próprio Buber souberamestar atentos e se enriquecer da mesma fonte.

O fenômeno da relação foi descrito porBuber com o emprego de vários termos: diálo~go, relação essencial, encontro. Devemos estaratentos ao sentido de cada um deles. Por exem~

XLVII

\ }

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pIo, encontro e relação não são a mesma coisa.O encontro é algo atual, um evento que acon ...tece atualmente. A relação engloba o encontro.Ela abre a possibilidade da latência; ela possi .bilita um encontro dialógico sempre novo. Mes .mo durante o relacionamento Eu~Isso o homemguardaria a possibilidade de uma nova relação."Beziehung", é uma possibilidade de atualiza~ção do encontro dialógico, "Begegnung".

O dialógico é para Buber a forma expli ...cativa do fenômeno do interhumano. Interhu~mano implica a presença ao evento de encontromútuo. Presença significa presentificar e serpresentificado. Reciprocidade é a marca defi~nitiva da atualização do fenômeno da relação.O "entre" é assim considerado como a catego~ria ontológica onde é possível a aceitação e aconfirmação ontológica dos dois polos envol~vidos no evento da relação.

As duas palavras~princípio instauram doismodos de existência: a relação ontológicaEu~Tu e a experiência objetivante Eu~Isso. Estadiferença antropológica se fundamenta no con~ceito de totalidade que determina a relaçãoontológica Eu ...Tu ... A palavra~princípio só podeser, proferida pelo ser na sua totalidade".

As duas palavras~prin,cípio ao se atualiza~rem não só estabelecem dois modos de ser"'no~~mundo, mas também imprimem uma diferençano estatuto ontológico do outro. No entanto, ofundamento cabe à palavra~princípio Eu~Tu.Segundo Buber o Tu ou a relação são originá~rios. O Tu se apresenta ao Eu como sua con~

XL VIII

111~riode existência, já que não há Eu em si.1,11 kpendente; em outros termos o si~mesmo nãoi' I'Ittbstância mas relação. O Eu se torna Eu1'111 virtude do Tu. Isto não significa que devo'1 de o meu lugar. Eu lhe devo a minha relaçãoIi de, Ele é meu Tu somente na relação, pois,11)1'(\ dela, ele não existe, assim como o Eu não" x iste a não ser na relação. "É falso dizer queI) encontro é reversível, afirma Buber. NemlIIeuTu é idêntico ao Eu do outro nem seu Tut idêntico ao meu Eu. À pessoa do outro eud(,vo o fato de que eu tenho este Tu; porém oIIICUEu -- que deve aqui ser entendido como«I Eu da relação Eu~Tu -- eu o devo ao fatode dizer Tu, não à pessoa à qual eu digo Tu".(Replies to my Critics, p. 697, em The phylo~

'.• sophy of Martin Buber. Editado por Schilpp.r), A. e Friedman, M.).

O "entre", o "inter~valo" é o lugar de re~vclação da palavra proferida pelo ser. EsteIntervalo existe entre Eu e Tu e entre Eu eIsso. Não há conhecimento de um indivíduo,mas este relacionamento Eu ...Isso funda~se emÚltima análise no inter e dia~pessoal. Há umaconivência ontológica entre o Eu e o Tu parao conhecimento do mundo. Como diz Bache~lard, coisas infinitas como o céu, a floresta ea luz, não encontram seu nome senão dentrode um coração amante. A co~participação dia~~logal é o fundamento ontológko do existir ede suas manifestações. A compreensão do seré tributária desta participação dialogal no eixo

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\:

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Eu~Tu envoltos na vibração recíproca do face~~a~face.

Buber estabelece, como vimos, uma distin~ção entre as duas palavras~princípio. Para queo evento instaurado pela palavra~princípio Eu~~Tu seja dialógico é necessário o elemento detotalidade. Totalidade não é simples soma doselementos da estrutura relaciona!. Esta totali~dade se vincula à totalidade do próprio partici~pante do evento. Esta totalidade do Eu queprofere a palavra~princípio deve ser entendidacomo um ato totalizador, uma con...centração emtodo o seu ser. O homem está apto ao encontrona medida em que ele é totalidade que age. Maisque a independência do todo, como eventoreladonaI. único, Buber entende a totalidadecomo independência da própria relação em facedos componentes desta estrutura. Porém estaindependência não é absoluta, mas relativa:cada elemento da estrutura considerado isola~damente é pura abstração. O evento" acontece"em virtude do encontro "entre" o Eu e o Tu nareciprocidade da ação totalizadora. A totalida~de presente no Eu~Tu não é simplesmente asoma das sensações internas do eu psicológico.A -totalidade precede ontologicamente a separa~ção. A palavra Eu~Tu precede a palavra Eu~~Isso. Eu~Isso é proferido pelo Eu como sujeitode experiência e utilização de alguma coisa. A"contemplação" é anterior ao conhecimento. Ainteligência, o conhecimento conceitual queanalisa um dado ou um objeto é posterior àintuição do ser. Eu~rsso é posterior ao Eu~Tu.

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."

( ) Eu de Eu~Isso usa a palavra para conhecerII mundo, para impor~se diante dele, ordená~lo,I'M/ I'uturá~lo, vencê~lo, transformá~lo. Este mun~1\') nada mais é que objeto de uso e experiên~I 111.

O problema da totalidade permane,ce no•I'ntro das preocupações de Buber em relação11 questão antropológica. Tal preocupação set'();)duna com a sua concepçâo da tarefa fi1osó~Ika, a saber, a reflexão sobre questões reais ..­IIquelas que envolvem um compromisso atualcom a totalidade da pessoa em todas as suasIlIanifestações. As categorias da totalidade e do..entre" são fundamentais na antropologia filo~Móficade Buber. Se EU E TU nos revela o diá~logo como fundamento da existência humana,Mea questão antropológica deverá ser abordadacomo um ato vital de procura do sentido daexistência humana, então trata~se de perscrutaro dialógico no ser humano. O "entre" permitirá,como chave epistemológka, abordar o homemna sua dialogicidade; e só no encontro dialógico(;que se revela a totalidade do homem. A ênfasesobre a totalidade acarreta, como corolário, arejeição da afirmação da racionalidade da ra~zão como característica distintiva do homem.

*As duas palavras~princípio fundam duas

possibilidades do homem realizar sua existên~cia. A palavra Eu~Tu é o esteio para a vidadialógica, e Eu~Isso instaura o mundo do Isso,o lugar e o suporte da experiência, do conheci~mento, da utilização.

LI

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11...1..;.

A atitude do Eu pode ser o ato essencialque revela a palavra proferida com a totalidadedo ser, ou então uma postura noética, objeti­vante. Na primeira, o Eu é uma pessoa e o outroé o Tu; na segunda, o Eu é um sujeito de expe­riência, de conhecimento e o ser que se lhe de­fronta um objeto. A este segundo tipo de Eu,Buber chama de ser egótico, isto é, aquele quese relaciona consigo mesmo ou o homem .queentra em relação com o seu si~mesmo. Eu~Tu eEu~Isso traduzem diferentes modos de apreen­são da realidade, ao mesmo tempo que instau~ram uma diferença ontológica no outro pólo darelação, seja como Tu seja como Isso. A con­templação ("Schauung") é a doação do sercomo Tu ao Eu, pessoa, que o aceita. A inteli­gência, o conhecimento, a experiência é a apre­ensão do ser como objeto. Na contemplação, aatitude não é cognoscitiva mas ontológica. Noconhecimento ou na experiência a atitude nãoé presença do ser que se revela na contempla­ção, é um tornar-se presente ao ser e com o ser.

Em suma, existem dois modos de presença.Sendo originários, a relação Eu~Tu e o conceitode presença recebem seu sentido autêntico nadoa'ção originária do Tu. No encontro dialó­gico acontece uma recíproca presentificação doEu e do Tu. No relacionamento Eu~Isso se oIsso está· presente ao Eu não podemos dizerque o Eu está na presença do Isso. A alteri­dade essencial se instaura somente na relaçãoEu~Tu; no relacionamento Eu-Isso o outro nãoé encontrado como outro em sua aIteridade. Na

LIl

1!'!fH;ÃO dialógica estão na "presença" o Eu111110 pessoa e o Tu como outro.

*

Há diversos modos de existência Eu~Isso.I\lIhcr os resume em dois ,conceitos: experiên~IIII ("Erfahrung") e a utilização ou uso ("Ge­I"'flllchen"). A experiência estabelece um con~Inrfo na estrutura do relacionamento, de certoIlIodo unidirecional entre um Eu, ser egótico," 11m objeto manipuláveI.

Este relacionamento se caracteriza porIlIlIa coerência no espaço e no tempo; ele é,'oordenável e submetido à ordem temporal.() relacionamento implica qu~ os entes, coisas

'" qll(; são objetos, se confinam com outros obje~10:;. O relacionamento define as coisas comoIIfIlasoma de partes,

O mundo do Isso, ordenado e coerente, éIlIdispensável para a existência humana; ele é11111 dos lugares onde nós podemos nos enten~der com os outros. Buber o chama de reino dosverbos transitivos. Ele é essencial na vida hu­rllana, mas não pode ser o sustentáculo onto~Itlgico do interhumano.

A afirmação da primazia do diálogo noqual o sentido mais profundo da existêncialiumana é revelado não nos deve levar à con­dusão de que a atitude Eu~Isso seja algo deIIcgativo, inferior ou um mal. Ao contrário, elat· uma das atitudes elo homem face ao mundo,waças à qual podemos compreender todas as

LIll

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aquisições da atividade científica e tecnológicada história da humanidade. Em si o Eu~Isso nãoé um mal; ele se torna fonte de mal, na medidaem que o homem deixa subjugar~se por estaatitude, absorvido em seus propósitos, movidopelo interesse de pautar todos os valores desua existência unicamente pelos valores ine~rentes a esta atitude, deixando, enfim, fenecero poder de decisão e responsabilidade, de dis~ponibilidade para o encontro com o outro, como mundo e com Deus. A diferença entre asas atitudes não é ética mas ontológica. Não sedeve distinguí~las em termos de autenticidadeou inautenticidade. Enquanto humanas, as duasatitudes são autênticas. Quando, por esta razão,a relação perde o seu sentido de construtorado engajamento responsável para com a ver~da de do inter~humano, aí então, o Eu~Isso édestruição do si~mesmo, e o homem se tornaarbitrário e submetido à fatalidade.

"Se o homem não pode viver sem o Isso,não se pode esquecer que aquele que vive sócom o Isso não é homem".

*

Quando a decisão vital do homem percebeo sopro do espírito entre ele e o parceiro darelação, acontece a conversão, advém a respos~ta, surge o Tu. Não existe nenhum meio ouconteúdo, nenhum interesse interposto nestadoação do Tu e na aceitação do Eu. À doaçãogratuita do Tu, o Eu responde pela aceitação

LIV

."

IlIlI'diata. Então, na presença, na proximidade'1111' une os semelhantes, o Eu, pessoa, encontrali ','u. Buber distingue três esferas onde acon~11'1'" a relação: a relação com os seres da natu~ti' ,~n.a esfera dos homens e a esfera das essên~I "I~ espirituais. O critério de maior valor re~pousa sobre a reciprocidade. Assim a relação.1,· maior valor existencial é o encontro dialó~111('0, a relação inter~humana onde a invocação"lIcontra sua verdadeira e plena resposta. De~V,'1II0S estar alertas ao equívoco de atribuir ao'1'11, em Buber, o signifi.cado simplista de pessoa" 110 Isso o significado de coisa, objeto. Eu~TuIlfioé exclusivamente a relação interhumana. HáIlIldtas maneiras de Eu~Tu e o Tu pode serqllalquer ser que esteja presente no face~a~face:h()luem, Deus, uma obra d~ arte, uma pedra,IIl11a flor, uma peça musical. Assim como o Issopode ser qualquer ser que é considerado umohjeto de uso, de conhecimento, de experiência(k um Eu. EU E TU não aceita a distinção fa~IlIíliar entre coisas e pessoas. Devemos estarI\lcntos também a uma outra distinção familiarque não é aceita por Buber. Trata~se da atribui~I,.:fiode certas atitudes a determinados tipos dehumanos e outras atitudes que só alguns sereshumanos podem ter. O homem pelo simples fatode ser humano pode tomar qualquer uma dasduas atitudes. Eu~Tu não é reservado às pes~Moas mais "poderosas" , de maior poder deIlcesso à cultura, .- aos sábios ou aos artistas.J~ errado também afirmar que o cientista sópoderia tomar, por exemplo, o homem como

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objeto de seu estudo e investigação, adotandouma atitude Eu-Isso, já que esta é uma exi...gência metodológica interna de sua ciência. Taldistinção entre pessoas mais aptas a tomar talatitude --- Eu ...Tu ou Eu-Isso --- que outras nãotem fundamento já que se trata de duas atitu ...des vitais que não representam dois tipos deposturas estanques que alguns homens pudes .•sem tomar e outros não. Não são, ademais, dobestados de ser, mas dois modos de ser, de exis­tência pessoal que o homem deve tomar inces­santemente, quer uma quer outra, num ritmoconstante.

As duas atitudes são reversíveis e conver .•tíveis em virtude da decisão do homem comoEu e do significado do que acontece entre oEu e o mundo. A decisão do Eu não significacriação ou constituição do outro. Buber, denun .•cia e rejeita o Eu como substância. Encontra .•remos duas décadas mais tarde a mesma de.•núncia contra o ••ego cogito" do solipsismocartesiano feita por Merleau-Ponty. Tanto naEstrutura do Comportamento como na Feno .•menologia da Percepção Merleau-Ponty rejeitaa noção de consciência como função universalda organização da experiência: ele apresenta aconsciência como uma rede de intenções signi .•ficativas ..único modo possível de unir a cons­ciência e a ação" (Estrutura do Comportamento,186..188). Para Merleau .•Ponty o sujeito não épura interioridade, mas é abertura ao outro,saída para o outro (F enomenologia da Percep ...ção, 478). O cogito não é mais constituinte mas

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1'I"!l'!'O ou perspectiva sobre o mundo. Assim1'''''11 ele o mundo se converte no campo de111"'fla experiência e deixa de ser um objeto de1H'II:mmento,(idem 178). O Eu não é, repeti ...IIllIiI.uma realidade em si, mas relaciona!. NãoI' pode falar em Eu sem mundo, sem Isso ou

th'lIl o Tu. Se o Eu decide ...se por uma ou porIltllTa atitude .•significa que é o fenômeno da!'1'IIIÇãoHomem .•Mundo como um todo que de...frllc a possibilidade do Eu decidir. Do Eu de.•p('lIde a decisão, não de tomar uma atitude masd,· tomar tal atitude, pois ele não é, senãoqllando decide tomar tal atitude diante do11\1 Indo. A iniciativa e o fundamento pertencemlu) ser como Tu. O Tu se oferece (não é pro .•(,\ll'ado) ao encontro e o Eu decide encontrá .•lo.'l'cmos~então .•o escolher e '''0 ser-escJlhido, namÚtua ação do face-a-face. Parece difícil a,.xplicação deste paradoxo de realidades inde ...pendentes e equifundamentantes. Buber afir-que o Tu é inefável. ele não pode ser objeti .vado --- abordado através de expressões ex .plicativas, esclarecedoras e por isso mesmo re­dutoras a uma realidade que ele, por natureza,não pode ser.

É de suma importância, para a filosofia dooutro de Buber, a irredutibilidade do Tu a umobjeto que minha atitude determina e experi­cncia, sobre o qual pode falar e enunciar juízospredicativos. Em hipótese alguma o outro podeser um objeto. Se isto acontecer, e aí está odestino do homem, o Tu já não é mais senãoum Isso, uma soma de qualidades, útil a um

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L ""

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propósito realizável. O Tu não pode ser repre­sentado, já que a apresentação aqui é essen­cialmente presença, instante único do diálogo;a representação sugere de algum modo a inde­pendência do sujeito com relação ao represen­tado.

A relação atual (atuante) envolve simul­taneamente passividade e espontaneidade. Aafirmação de Buber é clara: ulch werde amDu" "torno~me Eu na relação com o Tu". OTu orienta a atualização do Eu e este, pela suaaceitação, exerce sua ação na presentificaçãodo outro que, neste evento, é o seu Tu.

No Tu, finitude e ilimitação se confundem.A temporalidade é a presença da atitude trans­cendente. A presença instaura também a fini­tude. Neste evento da relação finitude e trans­cendência se relacionam dialeticamente, poisminha abertura ao outro, que é meu Tu, defineao mesmo tempo meu ser como finito, isto é,relacional. Esta finitude não é limitação nosentido de ob-jetivação (oposição própria aomundo do Isso), mas é a própria relação dia­lógica na medida em que o Eu se vincula onto-

. logicamente ao Tu, sem que ambos percam suarealidade e atualidade. Tal atualidade, dizBuber, supõe ação e paixão, ou atividade eespontaneidade, uma autêntica alteração pois oEu age sobre o Tu e o Tu, sobre o Eu.

As relações Eu-Tu, embora não apresen­tem coerência no espaço e no tempo, não estãosimplesmente no ar, desligadas. Há algo sub-

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11\l1'lIteque as une ,como que num fluxo cons­tlllll\: de latência e patência: é a nostalgia do

1'11, As duas atitudes, segundo Buber, se atua ...11' 11111 sucessivamente em um ritmo constante.N11() podem ser tomadas simultaneamente. Os1ll'11'Hntesfugazes de relação entremeiam navii\11 do homem os inúmeros e prolongados1III1IIIcntosde relacionamento Eu~Isso. A pre ...1'II'IIÇldo Tu .- subjacente no fluxo constante"" relação Eu-Tu e no relacionamento Eu-Isso,I' IIlcsmo durante o relacionamento Eu-Isso .­\'voca-nos a idéia de "campo de presença" a,!III" se refere Merleau-Ponty na Fenomenologia,I,., Percepção. A própria existência humana na'.lIfIunidade e multiplicidade de aspectos é esta,'xpcriência de "trânsito" nO ritmo constante das

'., 111 iludes. Este fato se refere à construção donl111ldodo Tu em concordância ,com o mundo,10 Isso na existência de cada indivíduo.

Buber propõe ao homem a realização davida dialógica, uma existência fundada no diá ...lono. Para esta tarefa sobressai de novo o sen­Iido profundo da categoria a que já aludimos:I) ••entre". Uma das manifestações antropolóIlicas mais concretas da existência da esfera'\:ntre" é o fenômeno da resposta. Neste nívelpalavra e praxis se confundem, isto é, no nível,10 dialógico, ou em outros termos dia-Iogos édia-praxis, já que existe uma inter~ação "entre"1~11 e Tu. Resposta pode ser amor. O amor nãot. algo possuido pelo Eu como se fosse um sen­Iimcnto. Os sentimentos, o homem os possui;porém, o amor é algo que" acontece" entre dois

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seres humanos, além do Eu e aquém do Tu naesfera "entre" os dois. Do mesmo modo "averdadeira comunidade não nasce do fato deque as pessoas têm sentimentos umas para comas outras (embora ela não possa, na verdade,nascer sem isso) ela nasce de duas coisas: deestarem todos em relação viva e mútua com umcentro vivo e de estarem unidas umas às outrasem relação viva e mútua".

O fenÔmeno da resposta é essencial àrelação. Quem ouve se não é para responder?A experiência de receber a palavra e respondê ......1a é o âmago do "entre" ou a revelação vividapela reciprocidade. Esta experiência vivida deum vínculo numa situação de apelo e respostaencerra para Buber o fenômeno da responsa ...bilidade em seus dois sentidos: primeiro, comoresposta e, segundo, como a "obrigação" deresponder. Para Buber a responsabilidade comoprojeto do homem na história de viver numnível real e essenCial da vida humana é ares .posta ao apelo do dialógico. A responsabili .dade transcendendo o nível moral, para umnível mais amplo, é o nome ético da reciproci ...dade.

. Podemos resumir as principais caracterís .ticas do mundo do Tu em: imediatez, recipro .cidade, presença, totalidade, incoerência no es .paço e no tempo, a fugacidade e a inobjetivação.A reciprocidade permanece como o parâmetrovalorativo das diversas relações Eu ...Tu nas di...ferentes esferas que Buber distinguiu.

*LX

O problema de Deus aparece mais clara .(lH:ntena terceira parte deEU E TU, cujo títu .10 título poderia ser até mesmo "O Tu eterno".Porém, só compreendemos claramente as con ...l'I'pções de Buber sobre o Tu eterno após umacorreta compreensão das duas primeiras partesI' do Post ...scriptum escrito em 1957 quandoHuber esclarece alguns pontos que haviam sus ...cll-adocontrovérsias.

Um dos pontos mais notáveis é, a nossovI;r. a extrema fidelidade desta concepção para('Offi a intuição central de seu pensamento e aI'xtrema coerência desta concepção com asconseqüências que dela resultaram. Como,IIl:ualmente,nQssa época se caracteriza mais porum eclipse de Deus, a preocupação de Bubervoltava...se principalmente para o-·esclarecimento

'" do diálogo com Deus a fim de torná ...lo de novopossível para o homem contemporâneo. Assim,11 reflexão sobre a palavra, o seu sentido naI:xistência humana, o sentido e a tarefa que aprópria história reserva a este mundo do homemdesenharam o clima no qual a relação absolutaI'ntraria em cena, ao mesmo tempo que exigiampnra a sua própria condição de possibilidade,fi relação com o Tu eterno. Trata ...se de uma"conversa com Deus". Como já dissemos, aproblemáti,ca de Deus é considerada a partirda existência humana, pois, a palavra de Deus~c faz presente na história do homem. "A pa ...Invra de Deus", diz o Post ...scriptum, "penetratodo evento da vida de cada um de IlÓS, assimcomo cada evento do mundo que nos envolve,

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tudo o que é biográfico, tudo o que é históricotransformando""o, para você e para mim, emmensagem e exigência". A princpial implicaçãoda concepção buberiana sobre o Tu eterno éque não nos interessa saber nada sobre Deus,Tu eterno, para que possamos entrar em con""tato com Ele e falar com Ele. E mais, não éDeus em si que interessa ao homem, mas é arelação entre ele e Deus que é profundamentesignificativa. Buber tenta exprimir a unidadeque ele vê entre Deus, o homem e o mundo.Não se trata de uma união mística, mas de umacomunhão. Sem dúvida, Deus é o totalmenteoutro, mas Ele é o totalmente mesmo, o total""mente presente. A revolução buberiana, se aquicouber este termo, deixa de lado a perspectivameta física que vê uma dupla ordem de seres:o imanente e o transcendente. Tais categoriasempregadas na compreensão da concepçãobuberiana são ineficazes e mesmo sem sentido.O significado desta absoluta alteridade e daabsoluta presença na esfera do encontro como Tu eterno tem seu correspondente no sentidoda independência e da relação na esfera huma""na. Há como que um paralelismo entre a esferahumana e a esfera do encontro ,com o Tu eter""no. Não podemos, porém, prolongar este para""lelismo. Os dois tipos de relação dialógicas sãodiferentes num ponto. Se o Tu pode se tornarum Isso na esfera humana, o Tu eterno, sendoa aIteridade absoluta, não pode, em termosontológicos, ser reduzido a um Isso.

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..,

Um dos pontos cruciais que suscitou maiorlOlItrovérsia foi o conceito de reciprocidadepresente na relação do homem com o Tu eterno.I-('rgunta""se se é possível compará""la com afI·çiprocidade que caracteriza a relação dialó""\fica no nível humano em qualquer uma das três(·~~feras.Buber acrescentou alguns esclareci""mcntos no Post""scriptum. Ele afirma que para.'lItendermos a diferença no tocante a esta ques""Ilio não se deve fazer apelo à distinção entreo raciocinal e o irracional mas sim compreenderIi distinção entre a razão que se desliga dasoutras forças da pessoa humana, declarando""sel1oberana, e a razão que participa da totalidadeI: da unidade da pessoa humana, trabalhando(~se exprimindo a si mesma dentro desta to""talidade. '

Sendo, para Buber, a realidade humanan via de acesso para a problemática de Deus,as suas concepções sobre o Tu eterno e o sen""tido da relação pura são, mais que uma "teo""logia" ou uma filosofia da religião, um ver da""deiro humanismo. Não teria sido esta a justifi""cativa da atribuição, em 1963, do prêmio Eras""mo pela Academia Holandesa de Amsterdã?Mais que um humanismo com aparência de umidealismo moral, o humanismo buberiano é on""tológico. Sua mensagem é a tarefa atribuidaao homem: realizar o ;'divino" no mundo,tornar possível uma teofania, ultrapassando odogmatismo e o espírito objetivante das reli""giões estabelecidas pela religiosidade da exis""

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tência concreta. Sem dúvida, há forte influênciado Hassidismo sobre Buber nesta proposta daresponsabilidade do homem em realizar e ins..•taurar o divino no mundo.

O humanismo buberiano nos permtie tam..•bém efetuar uma leitura humanista de Buber."O homem não é então". como afirma R. Mis ..•rahi, ••somente o fim étko de uma doutrinaontológica, mas o começo desta doutrina e detodo o pensamento ulterior" (Martin Buberpágina 48). A palavra, a relação, a reciproci ..•dade são atos do homem. É no humano quedevemos encontrar a raiz e o fundamento daontologia do face...a...face.

Esta ênfase dada ao humano, ao ser darelação, nos permite entender a severa críticaque Buber endereçou às místicas tradicionais,na medida em que estas levam Ç1 uma negaçãodo Eu, ou do si...mesmo que é absorvido peladivindade. "A doutrina da dependência nãodeixa ao Eu, que sustenta o arco universal darelação pura, senão uma realidade tão vã edébil. a ponto de não mais se acreditar que elaseja capaz de sustentar algo: uma destas dou..•trinas da absorção faz desaparecer este arcono momento de sua perfeição: a outra consi...dera ...o uma quimera a ser superada" (EU· ETU, pág. 98).

Para Buber, o Eu é o suporte e o funda ..•mento da relação pura e absoluta. Buber nega·as místicas do êxtase e as místicas do aniquila ...mento de si mesmo. Ambas negam este poderde suporte próprio do Eu. As primeiras mís...

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tI! ,\,\ "firmam a absorção na unidade. Buber asIrllllllcia' por negarem a própria dualidade Eu

'1'11 e por se tratar, além disso, de uma falsaIIlIldnde. Em seu êxtase, o místico não atinge

1 'I,lidade verdadeira. com o divino, mas conhece\ '11Ia própria unidade. As segundas místicas,dll aniquilamento do Eu na divindade e no1;1 IIIcsmo,são também rejeitadas pela ne.gaçãoti" verdadeira dualidade na relação Eu ...Tu

1,'1'110. O exemplo a que Buber se refere é aItH'lIIulados Upanishads.

Em suma, o misticismo tradicional é de...1IIIIIciadopor Buber por negar ao Eu a rea ..•IIdllde que lhe é essencial na relação. Não seIln(a do Eu do egótico, mas do Eu da relaçãoI~II-Tu.

'., Falar de Deus é reduzi ...lo a um objeto1"lInparável a outros objetos e que pode serlI~ndo ou exploradol seja em nome de um sis...I('ma dogmático ou de mera religião. Aliás, apropósito de religião, convém notar, de passa .\II'm, uma afirmação feita por Buber numa en .(n:vista à rádio BBC em 1961. ..Devo confessarque não gosto muito de religião e fico muito,'ontente que esta palavra não se encontra naBíblia" (transcrito por R. G. Smith em suaI)hra Martin Buber. pág. 33).

Nós podemos falar com Deus, o queIdgnifica voltar ...se para Ele. O tema da ..con...versão" é importante em EU E TU. ConversãoImplica uma mudança radical. O apelo bube ...dano extrapola o campo religioso. Buber jádiagnosticava. em 1923, uma tendência da so..•

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__ 1__ -

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ciedade contemporânea (que ele chamou de"doente") de conttibuir para uma degradaçãodo sentido do humano. A confiança na forçado diálogo, do Tu não desvirtuou este diagnós~tico orientando~o para um pessimismo. Ao con~trário, a vida do homem pode, pela conversão,orientar~se para o caminho de uma nova era,graças a um novo sentido de comunidade.

Este otimismo permitiu que EU E TU so~brevivesse, por dezenas de anos, às críticas, àscontrovérsias, às ideologias, às teologias, aosentusiasmos, movimentos e doutrinas.

*

A existência e a reflexão de Buber foramnorteadas por uma questão fundamental, cujosentido e alcance foi se ampliando. ComoKierkegaard, Buber sentiu a exigência de pro~curar uma solução ao problema no qual estavamergulhada a humanidade, uma ruptura entreo homem e Deus. A tarefa a que Buber se im­pôs, foi a de buscar um meio para recuperara relação entre homem. Deus e o mundo, tor~nando de novo possível o diálogo entre Deus~ o homem. Não vemos em Buber uma ordemsistemática e preconcebida para abordar esteproblema. Ao contrário, o esforço por ele em~preendido no sentido de elucidar esta questão,foi se desenvolvendo à medida da ocorrênciados acontecimentos, numa espécie de contínuorecomeço. Seus escritos respondiam a exigên­cias ocasionais t:: específicas; outras vezes, exi~

LXVI

I~

frildns mais amplas encontravam respostas111ft/I' amplas.

Os três elementos - homem, Deus, mun~.1" .- foram sendo paulatinamente abordados

,.1, diversos prismas. Assim o sentido do mundohlllllnno (apresentado na segunda parte de EUI'. TU) será explicitado com reflexões desen~

til vidas em: Distância originária e relação, AI/'/t'stão do indivíduo, Elementos do lnterhu~/1/0/10 e nos estudos dedicados à educação como.",',,/ire a Educação e Sobre a Formação do ca~uilt'r. Do mesmo modo o significado da verda~,1"11'(1 comunidade, da sociedade e da políticaC'UI relação à existência concreta dos indivíd\,los

f' I'f, aprofundado em Caminhos de Utopia, AIm(Jortânciae os limites do princípio político eV/Irias outros. O diálogo com o Tu Eterno(lIpresentado na terceira parte de EU E TU)I'l'ccberá explicitações em vários trabalhos entre.','1 quais podemos destacar Eclipse de Deus.I)/ante da urgência em fazer descobrir aoI,ornemcontemporâneo a verdadeira história daIlIlInanidade ou o diálogo entre a Terra e o(:éu, Buber empreendeu a tarefa de traduzir" Bíblia hebraica para o alemão; a fim de tor~IIfl~lamais compreensível aos leitores, Buberelaborou extensos trabalhos de exegese con~('I'ctizados: em: A Fé dos profetas, Dois tipos.I.: fé, Revelação e Fé e muitos outros.

A sua ontologia da relação terá conse~qiiências diretas sobre a educação e sobre aIlIltropologia filosófica. Buber continua respon~dendo ao apelo incessante que o humano lhe

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I

l

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lançava. A sua resposta era a responsabilidadehistórica que ele próprio descobriu em sua obrae manifestava na sua própria existência.

A nostalgia do humano, nele provocada porsituações de profunda crise no mundo dos ho~mens onde a controvérsia e cisões imperavam,aliava~se a uma profunda esperança no poderde relação, na força do diálogo que faria do ho~mem uma pessoa livre e responsável diante deseu destino. EU E TU provocou outros escri~tos no âmbito da antropologia filosófica: uDis~tância originária e relação", UO que é comuma todos", U A palavra que deve ser proferida",U Culpa e sentimento de culpa", U A cura atra~vés do encontro". No campo' da educação Bu~ber aplicou e explicitou a filosofia do diálogo.Podemos ler: U Sobre a Educação", USobre aformação do caráter", UDiscursos sobre a Edu~cação".

Em seu ensaio U Sobre a Educação" Buberafirma que "com a .criança o gênero humanocomeça a cada instante". Realmente está noseio do próprio ser do homem o poder de sem~pre recomeçar. Ao lado do "instinto de autor",como denomina a necessidade de sempre estar'na origem de cada coisa, Buber distingue emcada homem a necessidade de diálogo. Estadupla necessidade de relação e ,criação se' fun~damenta nas duas palavras~princípio.

No âmbito da política, o âmago da men~sagem buberiana baseava~se no desejo de co~munida de, apresentando a possibilidade para o

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."

h'lI povo de realizar topicamente a verdadeiraIItopia. O seu socialismo utópico repousavalohre uma verdadeira meta física da amizade.do encontro dialógico.

*A profunda esperança e fé no homem

pl't:sentes em sua obra e em sua vida, incentiva~.'lIm Buber a lançar, exatamente através daIlhra e da vida, um apelo que se concretizou('orno uma voz. um diálogo, um testamento le .\1I,doa todos nós que estamos realmente preo .1'lIpados com a sorte do homem.

Assim, diante da imensidão da obra e dadqueza existencial deste mestre torna ...se difí~"/I, para muitos, compreender exatamente a suaI,fil'mação: "não tenho ensinamentos a trans ...IlIltir.. , Tomo aquele que me ouve pela mãoI' o levo até a janela. Abro ...a e aponto parafora, Não tenho ensinamento algum, mas con~.IIIZO um diálogo".

Poderíamos cercear o vigor deste homem'\(' o qualificássemos de "existencialista", com~I'lII'ando~o aos grandes filósofos e pensadoresI'omo Kierkegaard, Nietzche, Heidegger, Jas~I)(,I's.Se o âmago do existencialismo ou da filo...lofia da existência se revela de um lado comoprotesto e denúncia contra sistemas, abstrações\' conceitos e de outro como a afirmação e at' xigência de .compromisso com a concretude e('Omo desafio da existência concreta de cada11111, talvez todos esses filósofos tenham falhado

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Page 36: Eu e Tu - Martin Buber

no seu intento, não dialogando com o desafioda existência - em ásperos monólogos se en...clausuraram na aridez de seus sistemas, tesese abstrações. Poderíamos concluir, ·como afirmao professor W. Kaufmann, que na realidadesó existiu um existencialista que não foi exa~tamente existencialista, e sim, Martin Buber,

*

Resta ...nos agora apresentar ao leitor aI...gumas ponderações gerais sobre a obra EU ETU como um todo, que ele eventualmente de...seja conhecer. Quais são as características deEU E TU e qual a postura que ela exige parasua compreensão?

O estilo de Buber muitas vezes se apre ...senta como obscuro. Em muitos trechos, por·motivos de prazer estético diante de expressõesbelas e ricas, o sentido chega a ser ofuscado.A construção e o ritmo são brilhantes, o queàs vezes dificulta a compreensão· de váriaspassagens se quisermos efetuar somente umaleitura. Como o mistério e a profundidade nosfascinam, a tentativa de simplesmente compre~ender o que Buber tem a nos dizer desvia onosso desejo de criticá ...lo ou mesmo em nosperguntar se o que ele afirma é verdadeiro ounão.

A a.ceifação ou a consagração não revelamnecessariamente a for~a e o poder interno deuma obra. Obras que já nascem grandes e sãoanunciadas como a última palavra, podem co-

LXX

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.. ~ ~

Idl'" ,'(' uma existência curta. Por outro lado,',!lIlIo que foi demasiadamente compreendidoIlIin Ill1scitaretiscências; o espanto ou admira ...,"11 llfio deixa mistério algum a ser desvendado.

Ilá obras que perduram alguns anos, algu~1111111Hobrevivem seu autor, outras ressuscitamIIII'I~depois, outras ainda são lançadas defini~Ilvlllllcnte na magnificência da imortalidade.

I~U E TU foi revelada em alemão. Várias1I1I11':tsrevelações se sucederam, tornando ...a1111IJllmente conhecida.

O encanto de seu mistério continua fasci ...111111110muitos leitores. Tem ...se a impressão de'111" Buber manifestou propositadamente suastd"lns através de um discurso obscuro e àsv'' ,~I~S enigmático, empregando expressões ar~t "hms e mesmo forjando neologismos que não11,10 facilmente compreendidos numa primeira11,/1lira, obrigando o leitor a ter uma posturatI,'ll'I'minada diante da obra. O livro não deve

"I' considerado como um mero meio de comu~IIkação, um objeto de prazer estético, de expe ...df'l1cia, mas um verdadeiro Tu com o qual se\"Ifabelece um diálogo genuíno. Não é um livroplll'(1ser lido mas, diríamos, para ser fi ouvido" .

O próprio Buber, segundo afirmam aque ...1,,:-\ que o conheceram pessoalmente estava maispn:ocupado, em suas palestras, conferências e"III'SOS, em estabelecer imediatamente laços ín...IllIIosde genuíno diálogo do que em transmitirIlIlIa doutrina, Ele desejava mostrar a cadaIlIlcrlocutor o caminho para sua existência. Não""minhos que levam a parte alguma mas cami...

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Page 37: Eu e Tu - Martin Buber

nhos que exigiam a destruição das distânciasatravés da encarnação do Eu~Tu. O caminhonão é traçado a partir de um mundo conceitualde abstrações, inócuo e vazio. Ele surge deexperiência vivida na concretude existencial decada ser humano. Não é um constructo teóricoforjado para o bem de uma causa, de uma dou~trina polemizante, mas é um verdadeiro "exis~tencial" .

Milhares de leitores já consagraram a obraatravés das décadas porque seu mistério nãolhes causou pessimismo ou derrota diante doincompreensível - ela velava uma riquezainsondável. É neste sentido que o estilo da obraa revela e ao mesmo tempo a oculta.

Talvez seja exagero afirmar que caminhoscomo o que nos apresentou Buber t e que EU ETU hoje nos mostra, levam a este ressurgimentode aspirações profundas provindas de recôn~ditos do humano, que se manifestam hoje atra~vés das "voltas", por exemplo, à mística orientalou ao cristianismo primitivo.

EU E TU nos revela. ,como também a tra~dução buberiana da Bíblia, uma faceta impor~tante do pensamento de Buber: a preocupaçãoem captar o sentido originário das palavras:Como tradutor, ele foi um verdadeiro intérpreteda Bíblia. Talvez a estranheza com que foirecebida sua tradução revele aquela força de"indicação" de que nos fala HerácIito em seufragmento 93. "O deus, cujo oráculo está emDeIfos, não fala nem esconde, ele indica".

LXXII

t "

Nossa maneira de compreender as pala~VI 1\11 foi como que embrutecida pelo uso, tor~11111\(lo~nosinsensíveis para o seu sentido pri~""\I·llial. Então em certo sentido elas nos cho~111111,como a verdade nos incomoda às vezes,111'10 brilho de sua luz.

Todo EU E TU fala de encontro, pretenden 11mdiálogo e por isso padece com as insu~

Ih II'ncias aparentes decorrentes de um estilo"Id\lmático; como o próprio diálogo, que nãopodc ser impessoal, mas interpessoal, acontece1111111clima de mistério.

Seria tão estranho, podemos nos pergun~111.', aproximar o caráter enigmático de certas1IIIBsagensou o estilo de Buber em EU E TUI' n observação que Heidegger fez em sua pe~IlIliar interpretação dos fràgmentos dos pré~so~\ I'fltiCOSdizendo que a associação de palavras,11JH1rentementesem articulação entre si, nãol'l'presenta um estágio primitivo e obscuro que/lInda não atingiu a perfeição atual de nossaIfngua mas denota uma densidade que já foiIH:rdidaatualmente?

Apesar do estilo, muitas vezes, parecerromântico e o jogo de palavras atingirem umIIIÍlximograu de perfeição e beleza, intraduzí~vds, a mensagem profunda é anti~romântica.SlIas expressões recusam qualquer afetação.I)or exemplo, a força extraordinária que Buberconfere ao conceito de '''presença'' é responsá~vcl pela mudança de perspectiva em tópicoscomo Deus, encontrq, liberdade, responsabili~tlade,

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I

-1

Page 38: Eu e Tu - Martin Buber

o encontro entre Deus e o homem não serealiza em lugar ou tempo determinados, masacontece aqui e agora, na presença; cada lugaré lugar, cada tempo é tempo. Os gregos enfa .tizavam e glorificavam a visão. Lemos em He .rádito, no fragmento 101a,. "Os olhos são me.•lhores testemunhas que os ouvidos". Os seusdeuses eram representados visualmente atravésde belas imagens. Os hebreus não visualizavamo seu Deus. Ele era invisível. Ele só podia serouvido. Vimos a ênfase da afirmação de Buber.Não se pode falar Dele. mas falar com Ele.Ele não é um objeto de observação ou culto;Ele só pode ser encontrado na presença que acada vez é única e insubstituível. Ele é um TuatemporaI. um Tu eterno.

O modo como Buber apresenta EU E TU,como ele nos fala, lança a nós um desafio: qualé o modo pelo qual vamos entrar em contatocom a obra? Como dissemos, o conteúdo enig .mático de certas passagens nos faz compreen .der que estamos diante de Um livro que nãopode ser lido só uma vez. É um estilo provo .•cador que exige atenção e talvez duas ou trêsleituras. Devemos ouvir o que ele tem a nosdizer em vez de procurar um conteúdo progra ...mático ou sistemático que apresenta fórmulasestereotipadas através de jargões modísticos,soluções fáceis e imeJiatas para o "mal denosso século". Se alguém considerar EU E TUcomo um ensaio filosóHco no sentido técnicodo termo, tentando rever a falsidade ou ave .rificabilidade de um argumento ou de uma afir .

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Il1rlçíio,acharia, neste livro, campo para uma,'di ica arrazadora. Se ao contrário, estivermosfllc'utos e dispostos a ouvir, dialogar, entãovl'n~mosque a questão antropológica nos con .('\luta, nos provoca, nos arrebata para o sen .lIelo do paradoxal.

Esta tarefa que empreendemos, fornecendo\1.1\ E TU em português. apresentou dificulda .,1,.:-\ para nós, pois estivemos conscientes da lite .1'1.1 impossibilidade de traduzi ...lo. Nossa preten .1'11111 em reler Buber foi tentar ouvir dele o queIIllIdaquer nos dizer. 54 anos após sua primeirap"hlicação, esta obra permanece atual e atuante.I~lIllvemosmenos preocupados com a beleza de\'''lllo ou com a exatidão dos termos no verná ...1'11\0, do qúe com a fidelidade ao pensamento e, c111\ a responsabilidade para t;:oma palavra doIIlIlor;deixamos, na medida do possível, as pró .•I,dns palavras manifestarem sua intenção.(:I'cmos não nos ter dado a ocasião de encarar•\ livro como um objeto diante do qual qualquerIIherdade é possível; não nos é lícito manipu ...If.<\o.Ele está aí, nos confronta e confronto não(. batalha onde pode haver vencedor e vencido.I~lI1boranão possa haver coincidência entre as\ Ill(\s manifestações, do original e da tradução,lu I'cditamos ter havido proximidade. Em vez de1111\ conjunto de idéias e conceitos EU E TU éIIlIIa voz que nos chama para ajudá ...la a se'Tvelar. Para além da obra escrita, a palavra é\I' rerencial na medida em que faz apelo aoh~t1tor ou escritor. Tal é o caráter de comuni ...1'lIbilidade do discurso. Ao confrontar a obra

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Page 39: Eu e Tu - Martin Buber

escrita, podemos retornar àquilo que foi su~presso, que era a experiência existencial con~creta como evento. A existência 'Concreta deveser compreendida, isto é, comunicada. Buberoperou uma redução à ordem do discurso parapoder nô~la comunicar. O diocurso apresentaum caráter diaIético, isto é, ele é um eventoque tem sentido, ou então, um evento que dealgum modo se suprime no sentido. O eventoé compreendido como sentido ..

Traduzir um texto envolve peripécias edificuldades; a tradução não deixa de ser dealgum modo uma interpretação. Todo problemada tradução é implicado na relação entre o"mesmo" sentido e o outro "idioma", ou natransposição de um mesmo sentido de um idio~ma em um outro. O mesmo paradoxo encon~tramos na experiência da leitura já que esta éuma experiência de reinvestimento ou de reins,.crição do "mesmo" texto através de um "outro"meio. Ler, portanto. é produzir um novo eventodo discurso que pretende ter o mesmo sentidoem outro idioma. Aqui o que faz o papel de

, "outro idioma" são opiniões e perspectivas doleitor ou do tradutor. Podemos, assim, aproxi~mar a tradução da interpretação. Compreenderé,·de certo modo, vencer as diferenças existentesentre dois códigos. Interpretar- é aproximar~sedas coisas que a linguagem nomeia apesar dasdiferenças das línguas. A tradução seria aexperiência inversa da fala. Quando falamos,acreditamos que a palavra exata é a da nossalíngua, sentimos que aquilo que desejamos di~

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I I IIRO pode ser dito senão do modo que esta~IIIII~;,costumados dizer. Ou, retomando as pa,.I'VI'HSde Benveniste, o "intentado" do discurso1111'1'(; ao significado de nossa língua. Na tra,.Ih tt;!ío, aparentemente, acontece o mesmo. Será'1'11'aqui o que realmente o autor quis dizer1111texto não é inseparável das palavras origi~lI,d~ e, por isso mesmo, intraduzíve1? NossaI l'l\sciência histórica, porém, afirma o contrário'11 postular a possibilidade de tradução de,!1I:tlquertexto. O pensamento enquanto "que~tl'I',dizer", mesmo investido na linguagem, deveIIlIlscrvar certa distância que lhe possibilita111~~.investir~separa se re~investir de um modoti Ir l'rcnte. Cremos poder retomar a aproximação'1111' opera Gadamer da interpretação e da exe~

'.• 'Itçflo de uma peça musi,cal. A interpretação é,I'lIl'a ele, quando executada, ao mesmo tempoIIlIica e diferente. E, no entanto, é sempre olIH'smotexto ao qual é possível voltar como o"lIIcsmo" de todas as interpretações que são"outras". Do mesmo modo, é sempre a "mesma"Ih'ça musical que se manifesta através de diver~

11:1 execuções que são sempre "outras". Daí,I('corre a dificuldade de se tentar eliminar aIlIlcrpretação subjetiva; tal eliminação acarre~l/Iria a possibilidade de uma execução perfeita,I verdadeiramente única.

Diante de tal problema, confessamos adificuldade de traduzir a riqueza de sentido deItll"meros conceitos, de muitas palavras forja~,IIIS,neologismos pouco usados e sobretudo de

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Page 40: Eu e Tu - Martin Buber

jogos de palavras muito frequentes em EU ETU. Então como traduzir o intraduzível? Con..,tornamos em parte a dificuldade com algumasnotas. Mesmo que para o leitor seja mais con­fortável a leitura das notas ao pé da página.preferimos .colocá~las no fim. sacrificando oconforto em benefício da leitura e estudo dotexto sem interrupções.

*A nossa tradução foi elaborada a partir

da 8~edição de 1974, apresentada pela EditoraLambert Schneider. Os números à margem re~ferem~se às páginas do original desta edição.

Nosso mais profundo agradecimento diri~gimos ao senhor Rafael Buber, filho de MartinBuber que, através de uma carta a nós endere~çada, amavelmente permitiu que EU E TU fos~se mais divulgado em nosso meio. A ele nossaespecial homenagem e cordial respeito. A Edi~tora Cortez e Moraes acatou com otimismo nos~sa iniciativa em empreender tal tarefa; a elatambém agradecemos.

Nossos agradecimentos ao colega prof.Pernando José de Almeida da PUCSP peloseu trabalho de revisão gramatical; ao colegae amigo prof. Dr. Pedro Goergen da Faculdadede Educação da· Unicamp pelas suas observa~ções criteriosas sobre inúmeras passagens econceitos. A Célia, companheira dedicada. queesteve sempre "presente." em nosso diálogocom Buber e que colaborou na reVIsão geral.nosso carinho.

Unicamp, fevereiro de 1977.LXXVIII

...

•••

.,

PRIMEIRA PARTE

.

Page 41: Eu e Tu - Martin Buber

o mundo é duplo para o homem, segundo 9II dualidade de sua atitude.

A atitude do homem é dupla de acordo com11 dualidade das palavras~princípio que ele podeproferir.

As palavras~princípio não são vocábulosholados mas pares de vocábulos.

Uma palavra~princípio é o par EU~TU. Anlltra é o par EU~ISSO no qual, sem que seja,tlterada a palavra~princípio, pode~se substituirISSO por ELE ou ELA.

Deste modo, o EU do homem é também'" dllplo. '

Pois, o EU da palavra~princípio EU~TU édiferente daquele da palavra~princípio EU~ISSO.

*

As palavras~princípio não exprimem algoque pudesse existir fora delas, mas uma vezproferidas elas fundamentam uma existência.

As palavras~princípio são proferidas peloser. 1

Se se diz TU profere~se também o EU dapalavra~princípio EU~TU •.

Se se diz ISSO profere~se também o EU dapalavra~princípio EU~ISSO.

A palavra~princípio EU~TU só pode ser pro~ferida pelo ser na sua totalidade.

3

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10A palavra--princípio EU--ISSO não pode

jamais ser proferida pelo ser em sua totalidade.

*

Não há EU em si, mas apenas o EU dapalavra-princípio EU-TU e o EU da palavra--prin __cípio EU--ISSO.

Quando o homem diz EU, ele quer dizer umdos dois. O EU ao qual ele se refere está pre­sente quando ele diz EU. Do mesmo modo quan­do ele profere TU ou ISSO, o EU de uma ou outrapalavra-princípio está presente.

Ser EU, ou proferir a palavra EU são umasó e mesma coisa. Proferir EU ou proferir umadas palavras-princípio são uma só ou a mesmacoisa.

Aquele que profere uma palavra-princípiopenetra nela e aí permanece.

*

A vida do ser humano não se restringeapenas ao âmbito dos verbos transitivos. Elanão se limita somente às atividades que têmalg~ por objeto. Eu percebo alguma coisa. Euexperimento alguma coisa, ou represento algumacoisa, eu quero alguma coisa, ou sinto algumacoisa, eu penso em alguma coisa. A vida do serhumano não consiste unicamente nisto ou emalgo semelhante.

Tudo isso e o que se assemelha a issofundam o domínio do ISSO.

1:

I~

() reino do TU tem, porém, outro funda--11H'lIlq. *

Aquele que diz TU não tem coisa algumaIUII qbjcto. Pois, onde há uma coisa há também111111'11 coisa; cada ISSO é limitado por outro ISSO;

li I'\I;() só existe na medida em que é limitadop\ll olltro ISSO. Na medida em que se profere oi 11, \:oisa alguma existe. O TU não se confinaI 1lllda. •

Quem diz TU nâo possui coisa alguma, não 111'''''1111 i nada. Ele permanece em relação.

*"

Afirma-se que o homem experiencia o seu1Illlndo.2 O que isso significa? O homemI' ,\piora a superfície das coisas e as experiencia.I~I,'adquire delas um saber sobre a sua na-­1111'1:zae sua constituição, isto é, uma experi-­1'lIeia. Ele experiencia o que é próprio às coisas.

Porém, o homem não se aproxima doIItllndo somente através de experiências.

Estas lhe apresentam apenas um mundo,lInstitu{do por ISSO, ISSO e ISSO, de Ele, Ele eI~11t. de Ela e ISSO.

Eu experiencio alguma coisa.Se aCFescentarmos experiencias internas às

I' xlcmas, nada será alterado, de acordo comIIllIa fugaz distinção que provém do anseio doII"ncro humano em tornar menos agudo o mis--

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Page 43: Eu e Tu - Martin Buber

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Jr!

12

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\tério da morte. COisalJnte~nas, coisas externas,coisas entre coisas! .. "

Eu experiencio uma coisa.E, por outro lado, se acrescentarmos ex~

periências "secretas" às experiências ..manifes~tas", nada será alterado de acordo com aquelasabedoria autoconfiante que apreende nas coi~sas um compartimento fechado, reservado aosiniciados cuja ,chave ela possui. Oh! Mistériosem segredo. Oh! Amontoado de informações!Isso, Isso, Isso!

*

o experimentador não participa do mun~do: a experiência se realiza "nele" e não entreele e o mundo.

O mundo não toma parte da experiência.Ele se deixa experienciar, mas ele nada

tem a ver com isso, pois, ele nada faz com issoe nada disso o atinge.

*

O mundo como experiência diz respeito àpalavra~princípio EU~ISSO. A palavra~priricípioEU~TU fundamenta o mundo da relação.

*

O mundo da relação se realiza em trêsesferas. A primeira é a vida com a natureza.Nesta esfera a relação realiza~se numa penum~

6

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I If I

111'1\ como que aquém~,daJinguagem. As cria~I IIl'ílSmovem~se diante 'ele nós sem possibilidade,I, vir até nós e o TU que lhes endereçamos de~p;lra~se com o limiar da palavra.

A segunda é a vida com os homens. Nesta."Ifera a relação é manifesta e explícita: pode~IIIOS endereçar e receber o TU.

A terceira é a vida com os seres espirituais.1\ r a relação, ainda que envolta em nuvens, seII'vda, silenciosa mas gerando a 'linguagem.N,~s proferimos, de todo nosso ser, a palavra~I"il\cípio sem que nossos lábios possam pro~II t IlIciá~la.

Mas Como podemos incluir o inefável no1I'lrtOdas palavras~princípio?

Em cada uma das esferas, graças a tudo'quilo que se nos torna pr~sente, nós vislum~1II'IImosa orla do TU eterno, nós sentimos em,,,da TU um sopro provindo dele, nós o invo~\ .111\0S à maneira própria de cada esfera.

*Eu considero uma árvore.Posso apreendê~la como uma imagem.

4 ;olllna rígida sob o impacto da luz, ou o ver~olor resplandecente repleto de suavidade pelo

1 .ul prateado que lhe serve de fundo.Posso senti~la como movimento: filamento

Iluent-e de vasos unidos a um núc1?o palpi­j,lIlte, sucção de raízes, respiração das folhas,111 rllluta incessante de terra e ar, e mesmo oI"'(')priodesenvolvimento obscuro.

7

13

Page 44: Eu e Tu - Martin Buber

Eu posso classificá~la numa espécie eobservá~la como exemplar de um tipo de es~trutura e de vida.

Eu posso dominar tão radicalmente suapresença e sua forma que não reconheço maisnela senão a expressão de uma lei -- de leis se~gundo as quais um contínuo conflito de forçasé sempre solucionado ou de leis que regem acomposição e a decomposição das substâncias.

Eu posso volatilizá~la e eternizá~la, tor~nando~a um número,· uma mera relação numé~rica.

14 A árvore permanece, em todas estas pers~pe\:tivas, o meu objeto tem seu espaço e seutempo, mantém sua natureza e sua composição.

Entretanto pode acontecer que simultanea~mente, por vontade própria e por uma graça,ao observar a árvore, eu seja levado a entrarem relação com ela: ela já não é mais um ISSO.

A força de sua exclusividade apoderou~se demim.

Não devo renunciar a nenhum dos modosde minha consideração. De nada devo abs~trair~me para vê~la, não há nenhum conheci~mento do qual devo me esquecer. Ao contrário.itp.agem e movimento, espécie e exemplar, lei enúmero estão indissoluvelmente unidos nessarelação.

Tudo o que pertence à árvore, sua forma,seu mecanismo, SUacor e suas substâncias quí~micas, sua "conversação" com os elementos domundo e com "as estrelas, tudo está inclufdonuma totalidade.

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I\. árvore não é uma impressão, um jogoIr IlIinha representação ou um valor emotivo.

!flll I1C apresenta "em pessoa" 3 diante de1111111 I: tem a!go a ver comigo e, eu, se bem que

t •• 'lIodo diferente, tenho algo a ver com ela.Que ninguém tente debilitar o sentido da

1Ih:1'\ o : relação é reciprocidade.Teria então a árvore uma consciência se~

11i.,lIl1ll1teà nossa? Não posso experienciar isso.M11'4 quereis novamente decompor o indecom~1!1'IIIVd só porque a experiência parece ter sido111'111 :.Illcedida convosco? Não é a alma da ár~i 11'" ou sua dríade que se apresenta a mim, éI" IIH:sma.

*.,

o homem não é uma coisa entre coisas ou 15

1111 "meiopor coisas quando, estando eu presenteIlfll1ll: dele, que já é meu TU, endereço~lhe a

!till/\ V J' a~princípio.Ele não é um simples ELE ou ELA limitado

11111 outros ELES ou ELAS, um ponto inscrito naIri "" do universo de espaço e tempo.

Ele não é uma qualidade, um modo de"I', I:xperienciável, descritível, um feixe flácido

tlr qualidades definidas. Ele é TU, sem limites,111 costuras, preenchendo todo o horizonte.

1.'0 lIão significa que nada mais existe a nãoI' I·I\.:, mas que tudo o mais vive em sua luz.

I\.ssim como a melodia não se compõe de11IlII , nem os versos de vocáculos ou a estátuaI" linhas -- a sua unidade só poderia ser re-

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\, .

\ ) 1'. ,duzida a uma multiplicidade por um retalha~mento ou um dilaceramento - assim tambémo homem a quem eu digo TU. Posso extrair acor de seus cabelos, o matiz de suas palavrasou de sua bondade; devo fazer isso sem cessar,porém ele já não é mais meu TU.

Assim como a prece não se situa no tempomas o tempo na prece, e assim como a ofertanão se localiza no espaço mas o espaço naoferta - e quem alterar essa relação suprimiráa atualidade 4, do mesmo modo o homem aquem digo .TU não encontro em algum tempoou lugar. Eu posso situá~lo, sou, aliás, obrigadoa fazê~lo constantemente, mas então, ele não émais um TU e sim um ELE ou ELA, um ISSO.

Enquanto o universo do TU se desdobrasobre minha cabeça, os ventos da causalidadeprostram~se a meus calcanhares e o turbilhão dafatalidade se coagula.

Eu não experiencio o homem a quem digoTU. Eu entro em relação com ele no santuárioda palavra~princípio. Somente quando saio daíposso experienciá~lo novamente. A experiênciaé distanciamento do TU.

A relação pode perdurar mesmo quando ohomem a quem digo TU não o percebe em suaexperiência, pois o TU é mais do que aquilo deque o ISSO possa estar ciente. O TU é mais ope~rante e acontece~lhe mais do que aquilo que oISSO possa saber. Aí não há lugar para fraudes:aqui se encontra o berço da verdadeira vida.

*10

! I

G/Eis a eterna origem da art.e: uma forma

(Iefronta~se com o homem e anseia tornar~selima obra por meio dele. Ela não é um produtode seu espírito, mas uma aparição que se lheflpresenta exigindo dele um poder eficaz. Tra~IH~sede um ato essencial do homem: se ele af'('aliza, proferindo de todo o seu ser a palavra~princípio EU~TU à forma que lhe aparece, aí(~Jltãobrota a força eficaz e a obra surge.

Esta ação engloba uma oferta e um risco.I (ma oferta: a infinita possibilidade que seráimolada no altar da forma. Tudo aquilo quelIinda há pouco se mantinha em perspectivadeverá ser eliminado, pois, nada disso poderápenetrar na obra; assim exige a exclusividadeprópria do ..face~a~face". Um risco: a palavra~princípio não pode ser proferida senão pelo ser('m sua totalidade, isto é, aquele que a isso seentrega não deve ocultar nada de si, pois a obranão tolera como a árvore ou o homem, que eudescanse entrando no mundo do ISSO. É ela quedomina; se eu não a servir corretamente ela S~

(Iesestrutura ou ela me desestrutura.

Eu não posso experienciar ou descrever aforma que vem ao meu encontro; só posso atua~lizá~la. E, no entanto, eu a contemplo no brilhofulgurante do face~a~face, mais resplandecente(rUetoda clareza do mundo empírico, não como11ma coisa no meio de coisas inferiores ou ,como11m produto de minha imaginação mas como opresente. 5 Se for submetida ao critério daobjetividade, a forma não está realmente "aí";entretanto, o que é mais presente do que ela?

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•....•. -~

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Eu estou numa autêntica relação com ela: poisela atua sobre mim assim como eu atuo sobreela.

Fazer é criar, inventar é encontrar. Darforma é descobrir. Ao realizar eu descubro.Eu conduzo a forma para o mundo do ISSO. Aobra criada é uma coisa entre coisas, experi­enciável e descritível como uma soma de qua­lidades. Porém àquele que contempla com recep­tividade ela pode amiúde tornar-se presente empessoa.

todas as ações parciais, bem como dos senti­mentos de ação, baseados em sua limitação ­deve assemelhar-se a uma passividade.

A palavra-princípio EU-TU só pode serproferida pelo ser na sua totalidade. A uniãoe a fusão em um ser total não pode ser reali­zada por mim e nem pode ser efetivada semmim. O EU se realiza na relação com o TU; étornando EU que digo TU.

Toda vida atual é encontro.

*

*

o que se sabe então a respeito do TU?Somente tudo, pois, não se sabe, a seu

respeito, nada de parcial.

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TU?

ciá-Io.

*

Que experiência pode-se então ter do

Nenhuma, pois não se pode experien-

A relação com o TU é imediata. Entre oEU e o TU não se interpõe nenhum jogo de con­ceitos, nenhum esquema, nenhuma fantasia; ea própria memória se transforma no momentoem que passa dos detalhes à totalidade. EntreEU e o TU não há fim algum,· nenhuma avidezou antecipação; e a própria aspiração se trans­forma no momento em que passa do sonho àrealidade. Todo meio é obstáculo. Somente namedida em que todos os meios são abolidos,acontece o encontro .

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.O TU ~ncontra-se comigo por graça: nãoé através de uma procura que é encontrado.Mas endereçar-lhe a palavra-princípio é umato de meu ser, meu ato essencial.

O TU encontra-se comigo. Mas sou euquem entra em relação imediata como ele. Talé a relação, o ser escolhido e o escolher, aomesmo tempo ação e paixão. Com efeito, a açãodo ser em sua totalidade como suspensão de

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..•.

*

Diante da imediatez da relação, todos osmeios tornam-se sem significado. Não importatambém que meu TU seja ou possa se tornar,justamente em virtude de meu ato essencial, oISSO de outros EUS ("um objeto de experiên­cia geral"). Com efeito, a verdadeira demar""

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cação, sem dúvida flutuante e vibrante, não sesitua entre a experiência e a não~experiência,nem entre o dado e o não~déido, nem outro omundo do ser e o mundo,do valor, mas em todosos domínios entre o TU e o ISSO; entre a pre~sença e o objeto.

*

o presente, não no sentido de instantepontual que não designa senão o término, cons~tituído em pensamento, no tempo "expirado"ou a aparência de uma parada nesta evolução,mas o instante atual e plenamente presente, dá~~se somente quando existe presença, encontro,relação. Somente na medida em que o TU setorna presente a presença se instaura.

20 O EU da palavra~princípio EU ISSO, ° EU,

portanto, com o qual nenhum TU está face~a~face presente em pessoa, mas que é cercado poruma multiplicidade de "conteúdos" tem só pas~sado, e de forma alguma presente. Em outraspalavras, na medida em que o homem se satis~faz com as coisas que experiencia e utiliza, elevive no passado e seu instante é privado depresença. Ele só tem diante de si objetos, eestes são fatos do passado.

Presença não é algo fugaz e passageiro,mas o que aguarda e permanece diante de nósObjeto não é duração, mas estagnação, paradainterrupção, enrigecimento. desvinculação, au­sência de relação, ausência de presença.

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-'- .

o essencial é vivido na presença, as obje~tividades no passado.

*

Não se supera esta dualidade fundamentalpela invocação de um ..mundo de idéias", comoum terceiro elemento acima de quaisquer con~tradições. Pois, eu estou falando. na verdade,do homem atual, de ti e de mim, de nossa vidae de nosso mundo e não de um EU em si ou deum ser em si. Para este homem atual o limiteatravessa também o mundo das idéias.

Sem dúvida, alguém que se contenta, nomundo das coisas, em experienciá~las e utili~zá~las erigiu um anexo e uma super~estruturade idéias, nos quais encontra um refúgio e umatranqüilidade diante da tentação do nada. De~posita na soleira a vestimenta da quotidianei~dade medíocre, envolve~se em linho puro ereconforta~se na contemplação do ente originá~rio ou do dever~ser, no qual sua vida não teráparte alguma. Poderá, mesmo, sentir~se bemem proclamá~lo.

Mas a humanidade reduzida a um ISSO,

tal como se pode imaginar, postular ou proda~mar, nada tem em comum com uma humani~dade verdadeiramente encarnada à qual umhomem diz verdadeiramente TU. A ficção pormais nobre que seja, não passa de um fetiche;o mais sublime modo de pensar, se for fictício,é um vício. As idéias tão pouco reinam acimade nossas cabeças como habitam em nossas

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I

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cabeças; elas ,caminham entre nós e se dirigempara nós. -Infeliz aquele que deixa de proferir apalavra~princípio, miserável, porém, aquele queem vez de fazê~lo diretamente utiliza um con~ceito ou um palavreado como se fosse o seunome.

*

A relação imediata implica numa açãosobre o que se está face~a~face; isto está mani~festo por um dos três exemplos citados ante~riormente: o ato essencial da arte determina oprocesso pelo qual a forma se tornará obra. Oface~a~face se tealiza através do encontro; elepenetra no mundo das coisas para continuaratuando indefinidamente, para tornar~se inces~santemente um ISSO, mas também para tornar~senovamente um TU irradiando felicidade e calor.A arte li se encarna": seu corpo emerge da tor~rente da presença, fora do tempo e do espaço,para a margem da existência.

O sentido da ação não é tão evidentequando se trata da relação com o TU humano.O ato essencial que instaura aqui a imediatez,é comumente interpretado em termos de senti~mentos 'e, por isso mesmo, desconhecido. Ossentimentos acompanham o fato metafísico emetapsíquico do amor, mas não o constituem:aliás estes sentimentos que o acompanham po~dem ser de várias qualidades. O sentimento deJesus para COmo possesso é diferente do senti~mento para com o díscípulo~amado; mas o amor

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é um. Os sentimentos, nós os possuímos, o amoracontece. Os sentimentos residem no homemmas o homem habita em seu amor. Isto não ésimples metáfora mas a realidade. O amor nãoestá ligado ao EU de tal modo que o TU fosseconsiderado um conteúdo, um objeto: ele· serealiza, entre o EU e o TU. Aquele que desco~nhece isso, e o desconhece na totalidade de seuser, não conhece o amor, mesmo que atribuaao amor os sentimentos que vivencia, experi~menta, percebe, exprime. O amor é uma forçacósmica. 6 Àquele que habita e contempla noamor, os homens se desligam do seu emaranha~do confuso próprio das coisas; bons e maus,sábios e tolos, belos e feios, uns após outros,tornam~se para ele atuais, tornam~se TU, istoé, seres desprendidos; livres, únicos, ele os en~contra cada um face~a~face. A exclusividaderessurge sempre de um modo maravilhoso; eentão ele pode agir, ajudar, curar, educar, ele~var, salvar. Amor é responsabilidade de um EU

para com um TU: nisto consiste a igualdadedaqueles que amam, igualdade que não podeconsistir em um sentimento qualquer, igualdadeque vai do menor, ao maior do mais feliz e se~guro, daquele cuja vida está encerrada na vidade um ser amado, até aquele crucificado duran~te sua vida na cruz do mundo por ter podido eousado algo inacreditável: amar os homens.

O sentido da ação no terceiro exemplo,aquele da criatura e sua visão, permanece nomistério. Acredite na simples magia da vida,no serviço no universo e lhe será esclarecido o

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que significa ,cada espera, cada olhar da cria~tura.

Qualquer palavra seria falsa; mas veja: osentes vivem em torno de você, mas ao se apro~ximar de qualquer um deles você atinge sem~pre o Ser .

*

Relação é reciprocidade. Meu TU atuasobre mim assim ,como eu atuo sobre ele. Nos~sos alunos nos formam, nossas obras nos edifi~cam. O "mau" se torna revelador no momentoem que a palavra~princípio sagrada o atinge.Quanto aprendemos com as crianças e com osanimais! Nós vivemos no fluxo torrencial dareciprocidade universal, irremediavelmente en~cerrados nela.

*

- Falas do amor Como se fosse a úni,carelação entre humanos; entretanto podes fazera escolha de um único exemplo, visto queexiste também o ódio?

-. Enquanto o amor for cego, isto é,­enquanto ele não vir a totalidade do ser, elenão será incIu{do verdadeiramente no reino dapalavra~princípio da relação. O ódio por Suaprópria essência permanece cego; não se podeodiar senão uma parte de um ser. Aquele que,vendo um ser na sua totalidade, deve recusá~lo,não está mais no reino do ódio, mas no limite

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humano da possibilidade em dizer ...Tu. Se acon .•tece ao homem não poder proferir ao seu par _ceiro a palavra ...princípio que encerra uma acei .tüção do ser ao qual ele se dirige, ou, então,se ele deve renunciar a si ou ao outro, istosignifica que ele atinge o limite no qual o..entrar~em~relação" reconhece sua própria re .latividade, limite esse que só poderá ser aboli .do por esta mesma relatividade.

Porém aquele que experimenta imediata"mente o ódio está mais próximo da relação doque aquele que não sente nem amor e nem ódio.

*Todavia, a grande melancolia de nosso

destino é que cada TU em nosso mundo devetornar~se irremediavelmente um ISSO. Por maisexclusiva que tenha sido a sua presença narelação imediata,. tão logo esta tenha deixado deatuar ou tenha sido impregnada por meios, oTU se torna um objeto entre objetos, talvez omais nobre, mas ainda um deles, submisso àmedida e à limitação. A atualização da obraem certo sentido envolve uma desatualizaçãoem outro sentido. A contemplação autêntica ébreve; o ser natural que acaba de se revelar a,mim no segredo da ação mútua, se torna denovo descritível, decomponível, classificável,um simples ponto de interseção de vários d-clos de leis. E o p~óprio amor não pode perma ... 25necer na relação imediata; ele dura mas numaalternância de atualidade e de latênda. O ho­mem que, agora mesmo era único e incondido ...

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~~

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nad.o, não somente à mão, mas somente pre~sente, que não podia ser experiendado mas so~mente tocado, torna~se de novo um ELE ou ELA,

uma soma de qualidades, uma quantidade comforma. Agora eu posso, de novo, extrair deleo cdorido de seus cabelos, de sua voz ou desua bondade; porém enquanto eu fizer isso, elenão é mais meu TU ou não se transformouainda novamente em meu TU.

Cada TU, neste mundo é condenado, pelasua própria essência, a tornar~se uma coisa, ouentão, a sempre retornar à coisidade. Em ter~mos objetivos poder~se~ia afirmar que cadacoisa no mundo pode ou antes ou depois de suaobjetivação aparecer a um EU como seu TU.Porém esta linguagem objetivamente não captasenão uma ínfima parte da verdadeira vida.

O ISSO é a crisálida, o TU a borboleta. Po~rém, não como se fossem sempre estados quese alternam nitidamente, mas, amiúde, são pro~cessos que se entrelaçam confusamente numaprofunda dualidade.

*No começo é a relação.Consideremos a linguagem dos ..primiti~

vos". isto é, daqueles povos que permanece~ram carentes de objetos e cuja vida foi cons~truída num âmbito restrito de atos fortementericos de presença. O núcleo dessas linguagens,as palavras~frase, as formas primitivas pre~-gramaticais de cujo desabrochamento surgi-

26 ram as múltiplas categorias verbais, exprimemem geral a totalidade de uma relação. Para

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--

nossa expressão: "bem longe" o Zulu empregauma palavra~frase que significa "lá onde alguémgrita: Oh! mãe estou perdido!". E o habitanteda Terra do Fogo sobrepuja nossa sabedoriaanalítica com uma palavra~frase de sete síla­bas, sujo sentido exato é o seguinte: "Obser~va~se um ao outro, cada um aguardando que ooutro se ofereça a realizar aquilo que ambosdesejam mas não querem fazer". As pessoastanto substantivas quanto pronominais, estãoainda encerradas como em um baixo relevo,sem independência completa. Não importa es~tes produtos da decomposição e da reflexão,mas, sim, a verdadeira unidade originária, arelação de vida.

Ao encontrarmos alguém, nós o saudamos,desejando~lhe o bem ou assegurando~lhe anossa dedicação ou rE~comendando~o a Deus.Porém, quãõ media tas e desgastadas são estasformas (o que se sente ainda no "Heil" (Olá)daquela força originária radiante?) se compa~radas àquela saudação relacional sempre joveme autêntica dos Cafres: "Eu o vejo". ,......,ou àsua variante americana, a expressão, emboraridícula, sublime: "cheire~me".

Pode~se supor, que as relações e os con~ceitos, e também a representação de pessoas ecoisas se desligaram dos eventos de relação ede estados de relação. As impressões e as emo-ções elementares, que despertaram o espírito 27do "homem natural", são derivadas de fenô~menos de relação, pela vivência de um face~a~~face, por estados de relação, pela vida na reci~

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II

procidade. Ele não pensa na lua que ele vê to­das as noites, até o dia em que, no sono ou navigília, ela se dirige para ele em pessoa e seaproxima dele, enfeitiça-o com gestos ou lheproporciona algo, ao tocá-lo, agradável ou de­sagradável. O que ele conserva desse fato nãoé a imagem ótica de um disco ambulante e nema imagem de um ser demoníaco que, de algummodo, lhe pertencesse, mas primeiramente aimagem dinâmica, a imagem excitante daquelaforça lunar irra diante que perpassa o corpo. Aimagem pessoal da lua e de sua força atuantese definirá somente aos poucos. Somente entãoa lembrança daquilo que ele recebeu de ummodo inconsciente, noite após noites, começa areavivar, permitindo-lhe apresentar e obJetivaro autor e o portador daquela ação. Somenteagora o TU, originalmente inexperienciável, sóagora recebido, torna-se um ELE ou ELA.

Este caráter original de relação do apare­cimento de tOQos os seres cuja ação perd'lrapor muito tempo, faz com que seja melhor com­preendido um elemento da vida primitiva. quea ciência moderna estudou muito e sobre o qualela discorreu largamente ,embora ele ainda nãoseja muito bem entendido. Trata-se deste podercheià de mistério, cuja idéia se encontra, sob di­versos aspectos, na crença ou na ciência. (estasduas, aliás, são aqui uma só) de muitos povos

28 primitivos. É o Mana, o Orenda, de onde par­te um caminho até o sentido originário doBrahman ou ainda a Dynamis, a uCharis" dosPapiros mágicos ou das Cartas ApostóHcas .

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...

Ela foi definida como um poder supra-sensíve1e sobre-natural, categorias modernas que nãotraduzem autenticamente o pensamento primi-tivo. Os limites de seu mundo são traçados pelasua vivência corporal, à qual pertence "natu­ralmente" a visita aos mortos, visto que admitiro supra-sensível como dado real, lhe pareceabsurdo. Os fenômenos, aos quais ele atribui"poder místico", são todos fenômenos elemen­tares de relação, sobretudo aqueles sobre osquais ele medita, porque comovem seu corpo edeixam nele uma impressão de emoção. Não sóa lua e o morto que o visitam durante a noite,trazendo-lhe dor ou prazer, possuem aquelepoder, mas também o sol que o queima, o ani-mal selvagem que urra, uiva diante dele, o che-fe cujo olhar o domina e o c'hamane, cujo cantoo impele Com força à caça. O Mana é este po'"':der atuante, que transformou a pessoa lunar, láno espaço celeste, em um TU que agita o san-gue. O Mana é o poder que permanece namemória como traço da pessoa lunar, uma vezque a imagem objetiva se separou da imagememotiva, embora ele mesmo nunca apareça se-não no autor e portador de um poder. O Manaé aquilo em virtude do que, uma vez possuído,por exemplo, em uma pedra mágica, se podeagir. A "idéia de mundo" dos primitivos é má­gica, não pelo fato de ter como centro o podermágico do homem, mas porque este poder é uni- 29camente uma variedade particular do poder má-gico universal da qual provém toda ação essen-.ciaI. A causalidade dI" sua idéia de mundo não

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é um contínuo, mas é um cintilar sempre reno­vado, uma emanação e uma ação do poder, éum movimento vulcânico sem continuidade. aMana é uma abstração primitiva, talvez até maisprimitiva do que o número, porém não mais so­brenatural. A lembrança capaz de aprendiza­gem classifica os grandes eventos de relação,as comoções fundamentais. De um lado, aquiloque é mais importante para o instinto de con­servação e o que é mais notável para instintode conhecimento, precisamente tudo que li atua" ,se evidencia mais claramente sobressai-se, tor­na-se autônomo. De outro lado, o que é menosimportante, o incomum, o TU mutável das vi­vências recuam, permanecem isolados na me­mória, se objetivam paulatinamente, encerran­do-se, aos poucos, em grupos e gêneros. Final­mente. em terceiro lugar, lúgubre em sua sepa­ração, às vezes mais fantasmagórico que o mortoe a luta, mas sempre nitidamente incontestável.irrompe o outro, o parceiro li sempre o mesmo" ~o EU.

A consciência do EU está tão pouco ape­gada ao domínio primitivo do instinto de auto­-conservação, como aquele dos outros instintos;isso não significa que o EU tenta perpetuar-se,mas é o corpo que nada sabe ainda de um EU.Não é o EU mas sim o corpo que deseja fazercoisas, utensílios, jogos, ser o inventor. Não sereconhece um COGNOSCO ERGO SUM,8 mesmo

30 numa forma mais ingênua, no conhecimentoprimitivo, nem a concepção, por mais infantil

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que seja, de um sujeito de experiência. a EU

surge da decomposição das vivências primor­diais, provém das palavras originais vitais, oEu-atuando-Tu e Tu-atuando-EU, 9 após a subs­tantivação e a hipóstase do particípio.

*Assim se manifesta, na história intelectual

do primitivo, a diferença fundamental, entreas duas palavras-princípio. Já no evento pri-'mordial de relação, ele profere a palavra-prin­cípio EU-TU de um modo natural, anterior aqualquer forma, sem ter-se conhecido como EU,enquanto que a palavra-princípio EU-ISSO tor­na-se possível, através desse conhecimento,através da separação do EU.

A primeira palavra-princípio EU-TU de­compõe-se de fato~ em um EU e um TU, masnão proveiQ de sua justaposição, é anterior aoEU. A segunda, o EU-ISSO, surgiu da justapo­sição -do EU e ISSO, é posterior ao EU.

a EU está inclu{do no evento primordialda relação, através da exclusividade desseevento. Neste evento, por sua própria natureza,tomam parte somente dois parceiros na sua to­tal atualidade, o homem e aquilo que o con­fronta. Assim o mundo se torna um sistemadual, e o homem já sente aí aquela emoção cós.•mica do EU, mesmo sem ter ainda dele conhe­cimento.

Por outro lado, o EU não está ainda inse- 31

rido no fato natural que traduz a palavra-prin ..cípio EU-ISSO. onde o experienciar é centrado noEU egocêntrico. Este fato é um modo pelo qual

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o corpo do homem, como portador de suas sen~sações se distingue de seu meio ambiente. Ocorpo, nesta sua particularidade, aprende a seconhecer e a se distinguir, porém, esta distinçãopermanece ao nível de simples contigüidade nãopodendo assim, perceber o caráter. mesmo imrpIícito, da egoidade.10

Entretanto, no momento em que o EU darelação se pôs em evidência e se tornou exis~tente na sua separação, ele se dilui e se fun~cionaliza de um modo estranho, no fato naturaldo corpo que se distingue do seu meio ambientee deste modo descobre a e,goidade. Somenteentão pode surgir o ato consciente do EU, aprimeira forma da palavra~princípio EU~ISSO,aprimeira experiência egocêntrica: o EU que sedistanciou, aparece então como o portador desuas sensações das quais ° meio ambiente é oobjeto. Sem dúvida, isto acontece sob forma pri~mitiva e não sob forma teorético~cognitiva, po~rém, a proposição: "eu vejo a árvore" é profe~rida de tal modo que ela não exprime mais umarelação entre o homem~Eu e a árvore~TU, masestabelece a percepção da árvore~objeto pelohomem~consciência. A frase erigiu a barreiraentre sujeito e objeto; a palavra~princípio EU~~ISSO,a palavra da separação, foi pronunciada.

*:32 - Então esta melancolia de nosso destino

teria sido um processo surgido numa épocapré~histórica ?

- Sem dúvida um processo, mas na me~dida em que a vida consciente do homem é

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I

l

também um processo. Mas na vida consciente,o que ressurge é uma evolução humana comoser cósmico. O espírito se manifesta no tempocomo um produto ou um sub~produto da na~tureza e. no entanto, é ele que a envolve demaneira a~temporal.

A oposição das duas palavras~princí~pio recebeu inúmeros nomes nas diversas épo~cas e mundos; mas ela é na sua verdade anô~nima, inerente à Criação.

*Então acreditas em um paraíso na eraprimitiva da humanidade?Ela poderá ter sido um inferno e sem dú~

vida, aquela à qual eu posso remontar no cursoda história, é cheia de furor, de medo, de an~gústia, de dor. crueldade, mas irreal não foi.

As vivências de relação do homem primi ..tivo não eram certamente doces complacências;mas é melhor a viólência sobre um ente real~mente vivenciado, do que a solicitude fantásticapara com números sem face. Da primeira, parteum caminho para Deus, da segunda, somente ocaminho que leva ao nada.

*A vida do primitivo, mesmo se a pudés~ 33

semos desvendar inteiramente, só pode nos re ..presentar a vida do homem primordial de ummodo simbólico; ela nos apresenta exclusiva~mente breves esboços sobre a relação temporaldas duas palavras~ princípio. A criança nospresta informações mais completas.

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Aquilo de que "nós, de um modo inequivo~camente claro. nos apercebemos, é que a reali~da de espiritual das palavras~princípio provémde uma realidade natural: a da pal~vra~princí~poi EU~TU, de um vínculo natural; 11 a palavra~~princípio EU~ISSO. do fato natural de distin ...guir~se de seu meio. -

A vida pré~natal das crianças é um purovínculo natural, um afluxo de um para outro,uma inter-ação corporal" na qual o horizontevital do ente em devir parece estar inscrito deum modo singular no horizonte do ente que ocarrega, e entretanto, parece também não estaraí inscrito, pois não é somente no seio de suamãe humana que ele repousa. Este vínculo é tãocósmico que se tem a impressão de estar diantede uma interpretação imperfeita de uma ins~crição primitiva; quando se lê numa lin~guagem mítica judaica que o homem conheceuo universo no seio materno, mas que ao nascertudo caiu no esquecimento. E este vínculo per­manece nele como uma imagem secreta de seudesejo. Não como se sua nostalgia significasseum anseio de volta, como prescrevem aquelesque vêem no espírito, por el~s confudido com ointelecto, um simplt:S parasita da natureza. Aocontl"ário, é a nostalgia da procura do vínculocósmico do ser que se desabrocha ao espíritocom seu TU verdadeiro.

31 Cada criança em desenvolvimento, comotodo ente em formação, repousa no seio dagrande mãe, isto é, do mundo primordial indi~ferenciado e que precede toda forma. Ela se

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desliga deste mundo para a vida pessoal, e so~mente, nas horas obs.curas, em que nós fugimosdela (o mesmo acontece, sem dúvida, todas asnoites ao homem são), é que nós nos reaproxi~mamos novamente. Esta separação não acontece,entretanto" de um modo brusco e catastrófico,análogo àquele que nos separou de nossa mãecorporal. A criança tem um prazo para substituira ligação natural, que a unia ao universo, poruma ligação espiritual, isto é, a relação. Ela saidas trevas candentes e do caos e se dirige paraa criação dara e fria. Mas ela não a possui ain~da; ela deve antes de tudo esclarecê~la, fazen~do~a para si mesma uma realidade; ela deve con~templar o seu mundo, escutá~lo, senti ...lo, mani ...pulá ...lo. A criação revela a sua essência comoforma no encontro. Ela não se derrama aossentidos que a aguardam, mas ela se eleva aoencontro daqueles que a sabem buscar. TudoQ que será representado diante do homem adt1l~to, como objetos habituais, deve ser ,conquís...tado, solicitado pelo homem em formação numinesgotável esforço, pois coisa alguma é partede uma experiência, nada se revela senão pelaforça atuante na reciprocidade do face~a~face.Como o primitivo, a criança vive de um sonhoa outro (para ela grande parte da vigília éainda um sono) no clarão e no contra~clarão doencontro.

A originalidade da aspiração de relação 35já aparece claramente desde o estado mais pre ...coce e obscuro. Antes de poder perceber algumacoisa isolada, os tímidos olhares procuram no

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]

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espaço obscuro algo de indefinido; e em mo­mentos em que, aparentemente não 'há necessi­dade de alimento, é sem finalidade, ao que pa­rece, que as suaves e pequeninas mãos gesti­culam, procuram algo de indefinido no vazio.Afirmar que se trata de um gesto animal, énada exprimir. Pois estes olhares, na verdade,depois de minucioRas tentativas, se fixarão emum arabesco vermelho de um tapete e dele nãose desprenderão até que a essência do verme­lho se lhes tenha revelado. Estes movimentosem contato com um ursinho de pelúcia, toma­rão uma força sensível e precisa e tomarão co­nhecimento carinhoso e inesquecível de umcorpo completo. Nestes dois fatos, não setrata de uma experiência de um objeto mas deum confronto, que sem dúvida, se passa na•.fantasia", com um parceiro vivo e atuante.(Esta ..fantasia" não é de modo algum, uma•.animação"; ela é o instinto de tudo transformarem TU, o instinto de relação que, quando oparceiro se apresentar em imagem e simboli­

camente e não no face-a-face, vivo e atuanteele lhe empresta vida e ação tirando de suaprópria plenitude). Suaves e inarticulados gri­tos ressoam, ainda, sem sentido no vazio; mas,um belo dia, ,de repente, eles se transformarãoem diálogo. Com quê? Talvez com a chaleira queestá fervendo, mas é um diálogo. Muitos movi­mentos, chamados reflexos, são um instrumen ...to indispensável à pessoa na construção de seumundo. Não é verdade que a criança percebe

36 primeiramente um objeto, e, só então entra em

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relação com ele. Ao contrário, o instinto de re ...lação é primordial, como a mão côncava na qualo seu oponente, possa se adaptar. Em seguidaacontece a relação, ainda uma forma primitivae não-verbal do dizer-TU. A transformação emcoisa é, entretanto, um produto posterior,provindo da dissociação das experiências pri ...mordiais, da separação dos parceiros vinculados_ fenômeno semelhante ao surgimento do EU.No princípio é a relação, como categoria doente, como disposição, como forma a ser rea­lizada, modelo da alma; o a priori da relação;o TU inato.

Quando se vive numa relação realiza-se,neste TU encontrado, a presença do TU inato.Fundamentando-s~ no a priori da relação, po­de-se acolher na exclusividade este TU, con­siderado COmoum parceiro; em suma, pode-seendereçar-lhe a palavra-princípio .

O TU inato atua bem cedo, na necessida-de de contato (necessidade de início, tátiL eem seguida, um contato visual ,com outro ente),de tal modo que ele expressa cada vez maisclaramente, a reciprocidade e "a ternura". Po-rém, desta mesma necessidade provém o instin-to de autor' e aparece posteriormente (instintode produzir coisas por síntese, ou, quando issonão é possível, por análise, decompondo, sepa­rando) de tal maneira que se produz uma ..per­sonificação" das coisas feitas, um diálogo. Odesenvolvimento da alma na criança é indisolu­velmente ligado ao desenvolvimento da nos tal- 37gia do TU, às realizações e de.cepções deste

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anseio, ao jogo de suas experiências e à serie~dade trágica de sua perplexidade. A verda~deira compreensão destes fenômenos, prejudi~cada por cada tentativa de restringi~la a umâmbito mais estrito, só pode ser atingida, na me­dida em que, quando observados e examinados,for levada em consideração sua origem cósmicae meta~cósmica, a saber, a saída do mundo pri~mordial indiviso, não formado ainda, de onde oindivíduo físico já se desligou pelo nascimento,mas não ainda o indivíduo corporal, integral,atualizado que só pode realizar esta passagemgradualmente, à medida que entra nas relações.

*O homem se torna EU na relação com o TU.

O face~a~face aparece e se desvanece, os even~tos de relação se condensam e se dissimulam eé nesta alternância que a consciência do par~ceiro, que permanece o mesmo, que a consciênciado EU se esclarece e aumenta cada vez mais. Defato, ainda ela aparece somente envolta na tra~ma das relações, na relação com o TU, comoconsciência gradativa daquilo que tende para oTU sem ser ainda o TU. Mas, essa consciên.ciado EU emerge com força cresçente, até que, umdado momento, a ligação se desfaz e o próprioEU se encontra, por um instante diante de si,separado, como se fosse um TU, para tão logoretomar a posse de si e daí em diante, no seuestado de ser consciente entrar em relações.

38 Somente, então, pode a outra palavra~prin~cípio constituir~se. Sem dúvida, o TU da relaçãodesvaneceu~se muitas vezes sem, com isso, ter~se

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\~ornado o Isso de um EU, um objeto de umapercepção ou experiência sem ligação como serádoravante, mas ele se tornou, de algum modo,um ISSO em si, por hora inobservável aguardan~do o ressurgimento de um evento de relação.Sem dúvida, o corpo que se transforma emcorpo human012 se distingue em seu ambientena medida que se sente portador de suas im~pressões e como executor de seus impulsos, massomente ao nível de uma radical separação entreo EU e o objeto. Então, o EU desligado se en~contra transformado. Reduzido da plenitudesubstancial à realidade funcional e unidimen~sional de um sujeito de experiência e utilização,aborda todo "Isso em si", apodera~se dele e seassocia a ele para "formar outra palavra~princí~pio. O homem transformado em EU que pro~nuncia o "EU~ISSO" coloca~se diante das coisasem vez de confrontar~se com elas no fluxo daação recíproca. Curvado sobre cada uma de~Ias, com uma lupa objetivante que olha de per~to, ou ordenando~as num panorama através deum telescópio objetivante de um olhar distante,ele as isola ao considerá~las, sem sentimentoalgum de exclusividade, ou ele as agrupa semsentimento algum de universalidade. No pri~meiro caso, ele só poderia encontrá~lo narelação, no segundo, só a partir dela. So~mente agora, ele experiencia as coisas como so~ 39ma de qualidades. Sem dúvida, qualidades re~ferentes ao TU de cada evento de relação foramacumuladas em sua memória mas, somenteagora, as coisas se compõem de suas qualidades:

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ele só pode atingir o núcleo poderoso, revelado,.a ele no TU, englobando todas as qualidades,isto é, a substância, na medida em que procurana lembrança da relação conservada em estadode sonho, de imagem ou de pensamento segun ...,do a característica própria deste homem. Defato, somente agora ele ordena as coisas emuma conexão espacio ...temporal ...causal: somenteagora, ele determina a cada uma o seu lugar, asua evolução, a sua mensurablidade, a suacon .dição. O TU se revela. no espaço, mas, precisa .

.mente, no face...a...face exclusivo no qual tudo omais aparece como cenário, a partir do qualele emerge mas que não pode ser nemseu limite nem sua medida. Ele se revela, no,tempo, mas no sentido de um evento plenamen ...te realizado, que não é uma simples parte deuma série fixa e bem organizada, mas sim otempo que se vive em um "instante", cujadimensão puramente intensiva não se definesenão por ele mesmo. O TU se manifesta comoaquele que simultaneamente exerce e recebe aação, sem estar no entanto, inserido numa ca .deia de causalidades, pois, na sua ação reci .proca com o EU, ele é o princípio e o fim doevento da relação. Eis uma verdade funda ...men'tal do mundo humano: somente o ISSO podeser ordenado. As coisas não são classificáveissenão na medida em que, deixando de ser nos...so TU, se transformam em nosso ISSO. O TU nãoconhece nenhum sistema de coordenadas.

Porém, tendo chegado até aqui, se faz ne­cessário afirmar também outro aspecto sem o

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qual, a primeira parte da verdade - funda­mental, não seria senão um fragmento inútil: omundo ordenado não significa a ordem domundo. Há momentos em que, sem motivo apa ...rente, a ordem do mundo se apresenta comopresente. Percebe-se, então, o tom do qual omundo ordenado é nota indecifrável. Tais mo­mentos são imortais, mas são também os maisfugazes. Deles não se pode conservar nenhumconteúdo, mas, em contrapartida a sua forçaintegra a criação e o conhecimento do homem,as irradiações de sua força penetram no mundoordenado, fundindo ...o incessantemente. Tal é ahistória do individuo, tal a história da espécie.

O mundo é duplo para o homem pois suaatitude é dupla.,

Ele percebe o ser em torno de si, as coisassimplesmente e os entes ,como coisas; ele per ...cebe o acontecimento em seu redor, os fatossimplesmente e as ações enquanto fatos, coisascompostas de qualidades, fatos compostosde momentos, coisas inseridas numa rede espa­cial, e fatos numa rede temporal, coisas e fatoslimitados por outras coisas e fatos, mensurá ...veis e ,comparáveis entre si, um mundo bemordenado e um mundo separado. Este mundoinspira confiança. até certo ponto: ele apresen ...ta densidade e duração, numa estrutura quepode ser abrangida pela vista, ele pode ser sem...pre retomado, repetido com olhos fechados e 41experienciado com olhos abertos; ele está aí,junto à tua pele, se tu o consentes, encolhido emtua alma, se tu assim o preferes. Ele é teu obje ...

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to, permanecendo assim segundo tua vontade,e no entanto, ele permanece totalmente alheioseja fora de ti ou dentro de ti. Tu o percebes,fazes dele tua "verdade", ele se deixa tomarmas não se entrega a ti. Ele é o único objetoa respeito do qual tu te podes "entender" como outro. Mesmo que ele se apresente de ummodo diferente a cada um, ele esta pronto aser para ambos um objeto comum, mas neletu não podes te encontrar com o outro. Sem eletu não podes subsistir, tu te conservas graçasà sua segurança mas se te reaborveres nele,serás sepultado no nada.

Por outro lado. o homem encontra o Sere o devir como aquilo que o confronta mas sem~pre como uma presença e cada coisa ele a en~·contra somente enquanto presença; aquilo queestá presente se descobre a ele no aconteci~mento e o que acontece, se apresenta a ele co~mo Ser. Nada mais lhe está presente a nãoser isso, mas isso enquanto mundano. Medidae comparação desaparecem. Depende de ti queparte do incomensurável se tornará atualidadepara ti. Os encontros não se ordenam de modoa formar um mundo, mas cada um dos encon~tros é para ti um símbolo indicador da ordemdo mundo. Os encontros não são inter~relacio~nados entre si, mas cada um te garante o vín~,culo com o mundo. O mundo que assim te apa~rece não inspira confiança, pois ele se revelacada vez de um modo e, por isso, não podeslembrar~te dele. Ele não é denso, pois nele,tudo penetra tudo; ele não tem duração, pois,

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vem sem ser chamado e desaparece quando setenta retê~lo. Ele é confuso, se tu quiseres es~clarecê~lo/ele escapa. Ele vem a ti para buscar~te; porém se ele não te alcança, se ele não teencontra, se dissipa; ele virá novamente, semdúvida, mas transformado. Ele não está forade ti. Ele repousa no âmago de teu ser, de talmodo que, se te referes a ele ,como "alma deminha alma", não dizes nada de excessivo.Guarda~te, no entanto, da t'entativa de trans~feri~lo para a tua alma, TU o aniquilarias. Eleé teu presente, e somente na medida em quetiveres como tal é que terás a presença; podesfazer dele teu objeto, experienciá~lo e utilizá~lo,aliás, deves proceder assim continuamente, mas,então, não terás. mais presença alguma. Entreele e ti existe a' reciprocidade da doação; tulhe dizes .Tu, e te entregas a ele; ele te diz TUe se entrega a ti. Não podes entender~te comninguém a respeito dele, és solitário no face~a~~face com ele, mas ele te ensina a encontrar ooutro e a manter o seu encontro. E. através dabenevolência de sua chegada e da melancoliade sua partida, ele te conduz até o TU no qualse encontram as linhas, apesar de paralelas,de todas as relações. Ele não te ajuda a conser~var~te em vida ele dá, porém, o pressentimentoda eternidade.

*

O mundo do ISSO é coerente no espaço eno tempo.

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o mundo do TU não tem coerência nem noespaço nem no tempo.

43 Cada TU, após o término do evento da re~lação deue necessariamente se transformar emISSO.

Cada ISSOpode, se entrar no evento da re~lação, tornar~se um TU.

Estes são os dois priviléqios fundamen­tais do mundo do ISSO.Eles imp~rem o homem aconsiderar o mundo do ISSOcomo o mundo noqual se deve viver, no qual se pode viver, omundo que oferece toda espécie de atrações eestímulos de atividades e conhecimentos.

No interior desta crônica forte e salutar, osmomentos de encontro com o TU se manifes~tam como episódios singulares, Iírico~dramáti~cos, sem dúvida, de um encanto sedutor, masque, no entanto, nos induzem perigosamente aextremos que debilitam a solidez já provada, edeixam atrás deles mais questões que satisfa~ções. abalando nossa segurança. Eles são nãosó inquietantes, mas indispensáveis. Já que de~vemos, após estes momentos, voltar ao "mun~do", por que não permanecer nele? Por que nãochamar à ordem o que está diante de nós, noface-a.:.face, e não remetê~lo ao mundo dos ob~jetos? Já que não se pode deixar de dizer TU,alguma vez, ao pai, à esposa, ou ao compa~nheiro por que não dizer TU pensando ISSO?pro~duzir o som TU através dos órgãos vocais, nãosignifica de modo algum proferir a palavra~~princípio tão pouco tranqüilizadora; sussurrardo fundo da alma um TU amoroso é inofensivo

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oenquanto não se tem em mente outra coisa se~não experienciar e utilizar.

Não se pode viver unicamente no presen~te; ele poderia consumir alguém se não esti~vesse previsto que ele seria rápida e radical~mente superado. Pode~se, no entanto, viver uni~camente no pasado, é somente nele que umaexistência pode ser realizada. Basta consagrarcada instante à experiência e à utilização quede não se consumirá mais.

E Com toda a seriedade da verdade, ouça:o homem não pode viver sem o ISSO,mas aqueleque vive somente com o ISSOnão é homem.

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A história do indivíduo e a história do gê~ 47

nero humano, embora possam separar~se umada outra, estão de acordo em todo o caso emum ponto: ambas manifestam um crescimentoprogressivo do mundo do Isso.

Coloca~se em dÚvida este fato no caso dahistória da espécie; acentua~se que, na gênesedas civilizações sucessivas encontra~se um es­tado de primitividade que, embora com colo­ridos diversos, é, no entanto, estrutura da demodo idêntico. E segundo este estado primitivotais civilizações iniciam com um pequeno mundode objetos. Com isso não seria a vida da espéciemas a de cada civilização em particular quecorresponderia à vida do indivíduo. Porém, sese observar aquelas civilizações que aparecemisoladas, nota~se que aquelas que receberamhistoricamente a influência de outras civiliza­ções adotaram o seu mundo do Isso em um es~tado bem determinado, intermediário entre seuestado primitivo e seu estado de pleno desen~volvimento. Isto acontece seja através da assimi~lação direta de civilizações contemporâneas,como no caso da Grécia e Egito, seja atravésda assimilação indireta de civilizações passa~das, como no caso da cristandade medieval,herdeira da civilização grega. Elas ampliam oseu mundo do Isso não unicamente através desua própria experiência, mas também graças à

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afluência de experiências de outrem; somenteentão, com este crescimento, realiza~se o desa~brochamento decisivo e seu poder de descober~ta. Por enquanto faz~se abstração da contribui~ção importante para isso, da contemplação e dosatos que são atribuídos ao mundo do Tu.

Pode~se dizer com isso que, em geral, omundo do Isso de uma determinada civilização,é mais extenso do que o da precedente, e, ape~sar de algumas paradas e retrocessos aparen~tes, pode~se perceber claramente na históriaum aumento progressivo do mudo do Isso. Fun~damenalmente não importa aqui, se a "imagemdo mundo" de uma determinada civilização res~salte mais um caráter de finitude ou de infini~tude ou melhor de não~finitude; na realidade.um mundo "finito" pode muito bem incluirmaior número de partes, de coisas, de fenôme~nos do que um mundo "infinito". É necessáriotambém observar que se trata de comparar nãosomente a extensão dos conhecimentos da na~tureza mas também a proporção tanto das dife~renças sociais como das realizações técnicas; es~tes dois últimos aspectos tendem a ampliar omundo dos objetos.

,O contato originário do homem com omundo do Isso implica a experiência que, semcessar! constituia este mundo e a utilização que oconduz a seus múltiplos fins, visando a conser ...var, a facilitar, a equipar a vida humana. Amedida em que se amplia o mundo do Isso.deve progredir também a capacidade de expe~rimentar e utilizar. O indivíduo pode, sem dú....

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vida, substituir cada vez mais a experiência di...reta pela experiência indireta ou pela "agui~sição de conhecimentos"; ele pode reduzir cadavez mais a utilização, transformando~a em"aplicação" especializada; não obstante seja in~dispensável que essa capacidade se desenvolvade geração em geração. É nisto que se pensaquando se fala de um desenvolvimento pro~gressivo da "vida espiritual". Com isto, comefeito, a gente se torna culpado do verdadeiropecado verbal contra o Espírito; pois esta "vi~da espiritual" representa geralmente um obs~táculo Rara uma vida do homem no Espírito;ela é, quanto muito, a matéria que, depois devencida e modelada, a vida do Espírito deveconsumir. É um obstáculo, pois a capacidadede experimentação e de utilização se desen ...volve no homem freqüentemente, em detrimen~to de sua [orça~de...relação, único poder, aliás,que lhe permite viver no Espírito.

*

O espírito 1 em sua manifestação humanaé a resposta do homem a seu Tu. O homemfala diversas línguas -- lingua verbal, lin...gua da arte. da ação -- mas o espírito éum, e este espírito é a resposta ao Tu que serevela dos mistérios, e que do seio deste mis~tério o chama. O espírito é palavra. Assim co...mo a fala se torna palavra primeiramente nocérebro do homem e em seguida som em sualaringe -- ambos não são, aliás, senão reflexos

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do verdadeiro fenômeno, já que, na verdadenão é a linguagem que se encontra no homem,mas o homem se encontra na linguagem e falado seio da linguagem - assim também a-:on~tece com toda palavra e com todo espírito. Oespírito não está no Eu, mas entre o Eu e oTu. Ele não é comparável ao sangue que cir­cula em ti mas ao ar que respiras. O homem viveno Espírito na medida em que pode respondera seu Tu. Ele é capaz disso quando entra narelação com todo o seu ser. Somente em vir~tude de seu poder de relação que o homempode viver no espírito.

50 Mas é aqui que se levanta, com toda asua força, a fatalidade do fenômeno da rela~ção. Quanto mais poderosa é a resposta, maisela enlaça o Tu, tanto mais o reduz a um ob~ieto. Somente o silêncio diante do Tu, o si~lêncio de todas as línguas, a espera silenciosada palavra não formulada, indiferenciada, pré~verbal. deixa ao Tu sua liberdade, estabelece­-se com ele na retensão onde o espírito não semanifesta mas está presente. Toda respostaamarra o Tu ao mundo do Isso. Tal é a me­lancolia do homem, tal é também sua grande~za. Pois, assim, surgem no seio dos seres vivoso conhecimento, a obra, a imagem e o modelo.

Tudo, porém, que deste modo se trans­formou em Isso, tudo o que se consolidou emcoisa entre coisas, recebeu por sentido o des­tino de se transformar continuamente. Semprede novo - tal foi o sentido da hora em queo espírito se apoderou do homem e lhe mos-

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trou a resposta - o objeto deve consumir~separa se tornar presença, retornar ao elementode onde veio para ser visto e vivido pelo ho~mem como presente.

O homem que se ,conformou com o mundodo Isso, como algo a ser experimentado e aser utilizado, faz malograr a realização destedestino: em lugar de liberar o que está ligadoa este mundo ele o reprime; em lugar de con~templá~lo ele o observa,2 em lugar de acolhê-loserve~se dele.

Primeiramente o conhecimento: é na con- 51

templação de um face~a~face, que o ser se re~vela a quem o quer conhecer. O que o homemviu pode considerá~lo como um objeto, com­pará~lo com outros objetos, ordenar em classesde objetos, descrever e decompor objetivamen~te, porque nada pode ser integrado na somade conhecimento, senão na qualidade de umIsso. Na contemplação, porém, não se tratavade coisa entre coisas, de um processo entre pro~cessos, era exclusivamente a presença. O sernão se comunica na lei deduzi da depois de apa~recer o fenômeno mas sim no fenômeno mesmo.Pensar o -geral significa somente desenrolar onovelo do fenômeno que foi contemplado noparticular, isto é, na reciprocidade do face-a­~face. E agora isso foi inclu{do na forma deIsso do conhecimento conceitual. Quem o ex­trair daí e o contemplar de novo na presença,realiza no sentido daquele ato de conhecimen-to como algo que é atual e operante entre oshomens. Há outro modo de conhecer quando

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se constata: "eis como aconte,ce, eis como issose chama, como a coisa é construída, eis seulugar"; nesse caso se toma como Isso aquiloque se tornou Isso, experimenta-se e utiliza-secomo Isso, serve-se dele entre outros meios paraa tarefa de se "orientar" no mundo e em se­guida para conquistá-lo.

Acontece o mesmo com a arte: é na con­templação de um face-a-face que a forma serevela ao artista. Ele a fixa numa imagem. Aimagem não habita em um mundo de deusesmas neste vasto mundo dos homens. Sem dú­vida ela está "aí" e, ainda que nenhum olharhumano a procure; mas ela dorme. O poetachinês conta que os homens não apreciavamouvir a canção que ele tocava em sua flautade jade. Tocou-a, então, aos deuses e estes aescutaram; desde então também os homensescutaram a canção; ele desceu pois dos deusesaté os homens até aqueles cuja imagem nãopoderia se prescindir. Como em um sonho,ele procura o encontro ,com o homem a fim dequebrar o encanto e abraçar a forma por uminstante atemporal. Em seguida ele veio e ex­perienciou aquilo que deveria ser experiencia­do: assim isso é feito, assim é expresso, taissão às qualidades da imagem e, em suma, qualo lugar que lhe cabe.

Não que a inteligência científica e estéticanão tenham papel algum a desempenhar: masela deve realizar fielmente sua obra e mergu­lhar na verdade superinteligível da relação queenvolve todo inteligível.

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Em terceiro lugar, existe o ato puro, a açãosem arbitrariedade. É um domínio acima do es­pírito do conhecimento e do espírito da arte,porque aí o homem corporal e efêmero não éobrigado a gravar sua marca em uma matériamais durável que ele, mas ele mesmo sobrevivea ela enquanto imagem, e eleva-se ao céu es­trelado do espírito cercado pela música de suapalavra viva. É aí que o Tu provindo de umpmfundo mistério apare,ce ao homem, lhe falado seio das trevas e é aí que o homem lhe res­pondeu com sua vida. Aqui, muitas vezes, apalavra tornou-se vida e esta vida é ensina­mento, quer ela tenha cumprido a lei quer atenha transgredido ----estas duas circunstâncias 53são, na verdade, necessárias para que o espíritonão morra sobre a' terra. Assim, ela permanecepara a posteridade, para instruí-Ia, não a res­peito do que é ou deve ser, mas sobre a ma­neira de como se vive no espírito, na face doTu. E isso significa que ela mesma está pronta,a qualquer momento, .fi tornar-se para a poste­ridade um Tu e lhe abrir o mundo do Tu. Ouantes, não, ela não está pronta, mas ela se di-rige para sempre aos homens e os interpela.Estes, porém, indiferentes e incapazes para talcontato vivo que lhe abriria o mundo, estão beminformados. Eles aprisionaram a pessoa na his­tória, e seus ensinamentos nas bibliote,c:as; elescodificaram indiferentemente o cumprimento oua violação das leis, e são pródigos na auto-ve­neração ou mesmo na auto-adoração semprebem camuflada com psicologia, como é próprio

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do homem moderno. Oh! semblante solitáriocomo um astro na escuridão. Oh! dedo vivocolocado sobre uma fronte insensível.

Oh! ruídos de passos cambaleantes.

*

o aperfeiçoamento da função de experi~mentação e de utilização realiza~se, geralmen~te, no homem em detrimento de seu poder derelação.

Mas como procede com os seres vivos queo rodeiam, esse mesmo homem que transfor~mou o espírito para torná~lo instrumento deprazer?

Submisso à palavra~princípio da separa~ção, afastando o EU do ISSO, dividiu sua vidacom homens em duas "zonas" .claramente de~limitadas: as instituições e os sentimentos. Do~mínio do ISSO e domínio do EU.

As instituições são o "fora", onde se estápara toda sorte de finalidades, onde se traba~lha, se faz negócios, se exer,ce influência, sefaz emprendimentos, concorrências, onde seorganiza, administra, exerce uma função, seprega; é a estrutura mais ou menos ordenada e .aproximadamente correta na qual se desenvól~ve, com o concurso múltiplo de cabeças huma­nas e membros humanos, o curso dos aconteci­mentos.

Os sentimentos são o "dentro". onde sevive e se descansa das instituições. Aí o espec~

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tro das emoções vibra diante do olhar interes~sado; aí o homem usufrui sua ternura, seu ódio,seu prazer e sua dor, quari'do esta não é muitoviolenta. Aí a gente se sente em casa, se estirana cadeira de balanço.

As instituições são um fórum complexo, ossentimentos são um recinto fechado mas ricoem variações.

Na verdade, a delimitação, entre ambos,está sempre ameaçada, pois os sentimentos ca~prichosos, penetram, às vezes, nas mais sólidasinstituições; todavia, com um pouco de boavontade, chega~se sempre a restabelecê~la.

É nas regiões da vida, assim chamadaspessoais, que a delimitação segura é mais di~Hcil. No matrimônio, por exemplo, é, às vezes,difícil de se realizar ainda que afinal se con~siga. Esta ~demarcação se realiza perfeitamentenos âmbitos da, assim chamada, vida pública.Considere~se, p. ex.: com que segurança navida dos partidos bem como nos grupos quese julgam acima dos partidos, e nos seus ..mo~vimentos", se alternam as assembléias revolu~cionárias com a pequena rotina dos negócios- regular como um mecanismo ou desenvoltocomo um organismo.

Mas o ISSO desvinculado das instituiçõesé um Golem 3 e o EU separado dos sentimentos éum alma-pássaro 4 que volita. Ambos desco­nhecem o homem: aquelas. somente umexemplar: estes, somente um objeto; nenhumaconhece a pessoa. a comunidade. Ambos desco­nhecem a presença; aquelas. as instituições,

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mesmo as mais modernas, conhecem somente opassado estagnado, o ser acabado; os sentimen­tos, mesmo os mais duradouros, não .conhecemsenão o instante fugaz, aquilo que ainda nãoexiste. Ambos não têm acesso à vida atual. Asinstituições não geram a vida pública, os senti­mentos não criam a vida pessoal.

Com dor crescente, e em número cada vezmaior, sentem os homens que as instituições nãogeram a vida pública. É daí que provém a an­gústia sequiosa deste sé.culo. Que os sentimentosnão geram a vida pessoal, poucas pessoas ocompreendem ainda, pois, parece que é nelesque reside o que se tem de mais pessoal. Quan­do se aprende, como o homem moderno, a darmuita importância aos seus próprios sentimen­tos. o desespero em comprovar sua irrealidade,não será melhor esclarecimento, pois este de­sespero é também um sentimento e como talnos interessa.

56 Os homens que sofrem com o fato de asinstituições não produzirem vida pública algu­ma lembram-se de um meio: dever-se-ia torná­-Ia mais flexíveis graças aos sentimentos, dis­solvê-Ias ou fragmentá-Ias; dever-se-ia mesmor.enová-las pelos sentimentos inoculando-lhes a"liberdade de sentimento". Se, por exemplo.o Estado automatizado agrupa cidadãos total­mente estranhos uns aos outros, sem fundar oufavorecer uma vivência com-o-outro, deve-sesubstituir isto por uma comunidade de amor.Esta comunidade de amor deve florescer quan­do pessoas se agrupam pela manifestação de um

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livre sentimento e resolvem viver juntas. Masisso não é assim; a verdadeira comunidade nãonasce do fato de que as pessoas têm sentimen­tos umas para com as outras (embora ela nãopossa, na verdade, nascer sem isso), ela nascede duas coisas: de estarem todos em relaçãoviva e mútua com um centro vivo e de estaremunidos uns aos outros em uma relação viva erecíproca. A segunda resulta da primeira; po­rém não é dada imediatamente com a primeira ..A relação viva e recíproca implica sentimentos.mas não provém deles. A comunidade edifica-sesobre a relação viva e recíproca, todavia o ver­dadeiro construtor é o centro ativo e vivo.

Mesmo as instituições da chamada vidapessoal não podem ser renovadas por um livresentimento (aindà que não possam ser reno­vadas sem ele). O matrimônio por exemplo,nunca se regenerará senão através daquilo quesempre fundamentou o verdadeiro matrimônio:o fato de que dois seres humanos se revelam o 57TU um ao outro. É sobre esse fundamento queo TU, que não é o EU para nenhum dos dois,edifica o matrimônio. Este é o fato meta físicoe metapsíquico do amor, do qual os sentimen-tos são apenas acessório. Aquele que desejarenovar o matrimônio por outro meio não éessencialmente diferente daquele que quer abo­li-lo, ambos declaram que não conhecem maiso fato. Na verdade, se se desejar despojar doerotismo tão falado em nossa época, tudo oque se refere ao EU, portanto. todo contato noqual um não está presente ao outro, e nem se

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presentifica a ele, mas onde cada um se limitaa fruir a si mesmo através do outro, o que res­taria?

A verdadeira vida pública e a verdadeiravida pessoal são duas formas de ligação. Paraque possam nascer e perdurar são necessáriossentimentos como conteúdo mutável; por outrolado são necessárias instituições como formadurável; porÉ'm estes dois fatores reunidos nãogeram ainda a vida humana, é necessário umterceiro que é a presença central do TU, ouainda, para dizê~lo com toda a verdade, o TUcentral acolhido no presente.

*

A palavra~princípio EU~ISSOnão tem nadamal em si porque a matéria não tem nada demal em si mesma. O que existe de mal é ofato de a matéria ptetender ser aquilo queexiste. Se o homem permitir, o mundo do ISSO,no seu contínuo crescimento, o invade e seupróprio EU perde a sua atualidade, até que opesadelo sobre ele e' o fantasma no seu inte~rior sussurram um ao outro !confessando sua

58 perdição.

*

Mas. a vida coletiva do homem modernoestá engolfada necessariamente no mundo doISSO?É possível imaginar que as duas partes,a economia e o Estado, na sua extensão atual

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e em seu desenvolvimento presente, possam sebasear a não ser na renúncia altiva a toda"imediatez" ou até mesmo em uma recusa ca...tegórica e resoluta de toda instância" estranha"não provinda da mesma região? E se for o EUda experiência e da utilização que domina aqui,o EU que utiliza os bens e serviços na econo ...mia, as opiniões e tendências na política, não é,de fato, a esta soberania ilimitada que se devea ampla e sólida estrutura das grandes cria ...ções "objetivas" nestes dois domínios? E mais,a grandeza produtiva do estadista e do econo...mista dirigentes não consiste no fato de queeles encaram os homens com os quais devemtratar, não como portadores do TU inacessívelà experiência, mas como núcleos de realiza ...ções e tendência~ a serem avaliadas e utiliza~das conforme as suas capacidades específicas?Seu mundo não se desabaria sobre eles, se emvez de somar Ele + Ele + Ele a fim de cons ...tituir um ISSO,tentassem adicionar TU e TU e TUque não daria jamais senão TU? Isso não sig...nifica trocar o domínio formador por um dile~tantismo de procedimento sumários, e a razão,,com seu poder de clareza, por uma exaltaçãoobnubilada? E se nós voltarmos o olhar dosdirigentes aos dirigidos, o próprio desenvolvi ...mento das formas modernas de trabalho e depropriedade não destruiria quase todo vestígiode vida no face':'a...face da relação plena de sen .tido? Seria absurdo querer inverter éste desen .volvimento - mas admitindo a possibilidadedeste absurdo - destruir ...se...ia o extraordiná ...

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rio instrumento de precisão dessa civilização, oúnico que torna possível a vida da humanidademultiplicada ao infinito.

,.......-Orador, discursas muito tarde! Aindahá pouco. terias podido crer em teu discurso,agora já não podes mais. Pois, há um instante,vistes, como eu, que o Estado não é mais con~duzido; os responsáveis pelo aque.cimentoamontoam ainda o carvão, os chefes, entretan~to, apenas simulam conduzir máquinas desen~freadas. E neste instante, enquanto falas, po­des, como eu, ouvir que o mecanismo da eco~nomia começa a vibrar, zumbir, de maneira in­sólita. Os contra~mestres te sorriem com ar desuperioridade, mas têm a morte no coração.Eles te dizem que adaptam a maquinária àscircunstâncias; sabes, porém, que nada mais po­dem fazer do que adaptar~se ao aparelho en~quanto ainda é possível. Seus porta-vozes teinformam que a economia re.colhe a herança doEstado, sabes, porém, que nada mais há paraherdar a não ser a tirania do ISSO crescente sob

60 a qual o EU, cada vez mais incapaz de domina~ção, sonha ainda que é seu mestre.

A vida coletiva do homem não pode, comoele mesmo, prescindir do mundo do ISSO, sobre oqual paira a presença do TU, como o espíritopairava sobre as águas. A vontade de utiliza~ção e a vontade de dominação do homem agemnatural e legitimamente enquanto permanecemligadas à vontade humana de relação e susten­tadas por ela. Não há má inclinação até o

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momento em que ela se desliga do ser presente;a inclinação que está ligada ao ser presente edeterminada por ele é o plasma da vida emcomum, e a inclinação separada é sua destrui­ção. A economia, habitáculo da vontade deutilizar e o Estado, habitáculo da vontade dedominar, participam da vida enquanto partici~pam do espírito. Se renegam o espírito, é a pró~pria vida que renegam. A vida, na verdade,não se apressa em levar a cabo sua tarefa, eem um bom momento.•se crê estar vendo umorganismo mover~se quando já há muito tem~po é um mecanismo que se agita. De nada adi­antará introduzir no processo uma dose de es~pontaneidade. A flexibilidade da economia diri~gida ou do Estado organizado não compensao fato de estarem sob a dependência do espí~rito que p.ronuncia o Tu e nenhuma excitaçãoperiférica poderia substituir a relação viva como núcleo centraL As estruturas da vida humanaem comum extraem a própria vida da plenitudeda força de relação que lhes penetra por todasas suas partes e sua forma encarnada eles a 61devem à ligação desta força ao espírito. O es~tadista ou o economista, tributário do espírito,não age como diletante. Ele sabe muito bemque não pode tratar os homens com os quaistem algo a ver, simplesmente como portadoresdo Tu, sem prejudicar a sua obra. Ele ousafazê~lo mas não às cegas; ele ousa até o pontoem que o espírito o inspira; e o espírito, defato, lhe inspira o limite. O risco que faria ma~lograr uma obra isolada, obtém êxito naquela

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sobre a qual paira a presença do Tu. Ele nãose exalta mas serve à verdade que, sendo su~pra~racional, não repudia a razão mas a encerraem seu seio. Ele realiza na vida em comum exa~tamente aquilo que, na vida pessoal, faz ohomem que, sentindo~se incapaz de atualizar oTu em sua pureza, tenta, no entanto, cada dia,colocá~lo à prova do Isso (conforme a normae a medida de cada dia, traçando quotidiana~mente o limite e sempre o descobrindo). Domesmo modo, o trabalho e a propriedade nãopodem ser resgatados por si mesmos mas peloespírito. Somente a presença do espírito podeinfundir em todo trabalho, sentido e alegria,e, em toda propriedade, respeito e dedicação,não de um modo pleno" mas satisfatoriamente.Todo produto do trabalho, todo conteúdo dapropriedade, embora permaneçam no mundo doIsso ao qual pertencem, somente o espírito podetransfigurá~los em confrontadores e numa re~presentação do Tu. Não há retrocesso, mesmono momento de maior necessidade, neste mo~mento precisamente, há um "mais~além" insus~peito.

62 Pouco importa que o E~tado regulamentea, economia ou a economia comande o Estado,enquanto um e outro não são transformados.Importa, sem dúvida, que as instituições doEstado se tornem mais livres e as da economiamais justas, não porém para a questão da vidaatual que é colocada aqui. Por si mesmas" taisinst,ituições não podem tornar~se nem livresnem justas. Que o espírito que pronuncia o

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Tu, o espírito que responde, permaneça vivo eatual e que os seus vestígios presentes na vidacoletiva do homem, sejam subordinados ao Es~tado e à economia ou operem livremente; queaquilo que ainda permanece na vida pessoaldo homem se reincorpore novamente à vida co~mum, eis o que é decisivo. Dividir a vida co~letiva em regiões independentes, às quais per~tenceria também a "vida espiritual", isso nãodeveria ser feito. Isso significaria abandonar de~finitivamente à tirania as regiões submergidasno mundo do Isso e despojar o espírito de todarealidade. Com efeito, quando o espírito agelivremente na vida, ele não é mais espírito "emsi" mas espírito no mundo, graças a seu poderde penetrar no mundo e transformá~lo. O es~pírito não está ..c~nsigo" a não ser no face~a~~face com.o mundo que se lhe abre, mundo aoqual ele se doa, que ele liberta e pelo qual élibertado. A' espiritualidade esparsa, debilita~da, degenerada, impregnada de contradições,que hoje representa o espírito, poderá realizaresta libertação somente na medida em que atin~gir novamente a essência do espírito, a facul~dade de dizer Tu.

*o mundo do Isso é o reino absoluto da 63

causalidade. Cada fenômeno ..físico" percep~tível pelos sentidos e cada fenômeno psíquicopré~existente ou que se encontra na experiên~cia própria, passa necessariamente por causadoe causador. Não se excetuam daí os fenôme~

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nos aos quais se pode atribuir um caráter definalidade, como parte integrante do conjuntodo mundo do Isso: tal conjunto tolE'ra umateleologia somente se esta foi inserida comocontra~partida pardal da causalidade e se nãolhe prejudicar a completa continuidade.

O reino absoluto da causalidade no mun~do do Isso, embora seja de importância funda~mental para a ordenação científica da naturezanão aflige o homem. que não está limit2.do aomundo do Isso e que pode sempre evadir~separa o mundo da relação. Aí o Eu e o Tu sedefrontam um ,com o outro livremente, numaação recíproca que não está ligada a nenhumacausalidade e não possui dela o menor matiz;aqui o homem encontra a garantia da liberdadede seu ser e do Ser. Somente aquele que co~nhece a relação e a presença do Tu, está aptoa tomar uma decisão. Aquele que toma umadecisão é livre pois se apresenta diante da Fa~ce.

Eis aqui toda a substância ígnea de minhacapacidade de vontade em um formidável tur~bilhão, todo o meu possível girando como ummundo em formação, como uma massa confusae indissolúvel, eis os olhares sedutores das ,po~tencialidades flamejando de todas as partes; ouniverso como tentação, e eu, nascido em um

64 instante, as duas mãos imersas numa fornalhapara apanhar o que aí se esconde e me procura:meu ato. Pronto! eu o tenho. E logo a ameaçado abismo é proscrita, a multiplicidade difusadeixa de fazer valer a igualdade cintilante de

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sua exigência; não existem mais que dois nasimultaneidade, o outro e o um, a ilusão e amissão. Só então. porém, começa a minha atua~lização. Pois a decisão não consiste em atuali~zar o um e deixar o outro estendido comb mas~sa extinta que, camada por camada, aviltaria aminha alma. Entretanto, somente aquele queorienta, no fazer do Um, a força do Outro,aquele que deixa entrar na atualização do es~colhido a paixão intacta do que foi repudiado,somente aquele que "serve a Deus com o mauinstinto" se decide e decide o acontecimento.Se alguém compreendeu isso, sabe também que,de fato, isso é chamado justo, a direção justapara a qual alguém se dirige e se decide; sehouvesse um demônio não seria aquele que sedecidiu contra Deus, mas o que, desde toda aeternidade jamais tomou uma decisão.

A cãusalidade não oprime o homem aoqual é garantida a liberdade. Ele sabe que suavida mortal é, por sua própria essência, umaoscilação entre o Tu e o Isso, e ele percebe osentido desta oscilação. Basta~]he saber quepode, a todo momento. ultrapasar o umbral dosantuário, onde ele não poderia permanecer.E mais ainda: a obrigação de deixá~lo logo de~pois incessantemente, lhe está intimamente li~gada ao sentido e ao destino desta vida. É ali,no umbral que se acende nele a resposta sem~pre nova, o Espírito; é aqui, nas regiões pro~fanas e indigentes, que a centelha deve se con~firmar. O que aqui se ,chama necessidade não oapavora, pois, lá no santuário ele conheceu averdadeira, isto é, o destino.

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Destino e liberdade juraram fidelidademútua. "Somente o homem que atualiza a liber­dade encontra o destino. Quando eu descubroa ação que me requer, é aí, nesse movimentode minha liberdade que se me revela o mis­tério. Mas o mistério se revela a mim não sóquando não posso realizar esta ação como eupretend!a. mas também até na própria resis­tência. Aquele que se esquece de toda causali­dade e toma uma decisão do fundo de seu ser,àquele que se despoja dos bens e da vestimen­ta para se apresentar despido diante da Face, aeste homem livre, o destino aparece como ré­plica de sua liberdade. Ele não é o seu limitemas o complemento; liberdade e destino unem­-se mutuamente para dar sentido; e neste sen­tido o destino, até há pouco olhar severo sua­viza-se como se fosse a própria graça.

Não. o homem portador de centelha queretoma ao mundo do Isso não é oprimido pelanecessidade causal. E, em épocas em que avida é sã, a confiança se propaga a todo povoatravés de homens do espírito; todos, mesmoos mais tolos, conheceram de alguma maneiraseja por natureza, ou um modo intuitivo ouobscuro, o encontro, a presença; todos de al­gum modo pressentiram o Tu; agora o espíritoé para eles a garantia.

66 Entretanto, em épocas mórbidas, aconteceque o mundo do Isso, não sendo mais penetra­do e fe.cundado pelos e-flúvios vivificantes domundo do Tu, não passando de algo isolado e

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rígido, fantasma surgido do pântano, oprime ohomem. Nele o homem, contentando-se com ummundo de objetos.1que não lhe podem mais tor­nar-se presença, sucumbe. Então, a causalida­de fugaz, intensifica-se até tornar-se uma fata­lidade opressora e esmagadora.

Toda grande civilização comum a váriospovos repotisa sobre um evento originário de en­contro, sobre uma resposta ao Tu como acon­teceu nas origens; ela se fundamenta sobre umato essencial do Espírito. Este ato, reforçadopela energia numa mesma direção das gera-ções posteriores instaura no espírito uma con­cepção particular do cosmos: somente atravésdeste ato é que o cosmos do homem se tornade novo possível. Somente assim pode o homem,de uma alma confiante, reconstruir sempre denovo nUlI!a concepção particular do espaço,casas de Deus e casas do homem, preencher otempo agitado com novos hinos e cantos e daruma forma a comunidade dos homens. Porém,somente na medida em que ele possui este atoessencial, realizando, suportando-o em sua pró-pria vida, somente quando ele mesmo entra narelação, então torna-se livre, e, portanto, cria-dor. No momento em que uma civilização nãotem mais como ponto central um fenômeno derelação, incessantemente renovado, ela se en­rijece, tornando-se um mundo de Isso que étrespassado somente de quando em quando por 67ações eruptivas e fulgurantes de espíritos so­litários. A partir de então, a ,causalidade fu-gaz se intentifica não podendo jamais pertur-

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bar a compreensão do universo, tornando-se fa­talidade opressora e esmagadora. O destino sá­bio e soberano que, harmonizado com a ple­nitude de sentido do universo, reinava sobretoda causalidade primitiva, transmudado agoranum absurdo demonismo, caiu nesta ,causalida­de O próprio Kharma que os ancestrais conce­biam como uma disposição benéfica -- uma vezque tudo o que nos acontece nesta vida nos ele­va para esferas superiores em uma existência ul­terior -- se revela agora como uma tirania, pois,as ações de uma vida anterior que permaneceminconscientes, nos encerram numa prisão daqual, na vida presente" não podemos escapar.Lá, onde se curvava a lei plena de sentido deum céu, de cujo arco luminoso pendia o fusoda necessidade, reina agora o poder absurdoe opressor dos planetas. Então bastava iden­tificar-me a "Dike", à "senda" celestial que étambém a imagem da nossa, para habitar naplenitude do destino; -- agora não importa oque façamos, o Heimarmene,5 estranho aoespírito, nos oprime, colocando sobre nossasnucas todo o peso da massa inerte do universo.O desejo, elan impetuoso de redenção permane-

.ce, em última análise. a despeito de numerosastentativas, insatisfeito, até que o acalme aqueleque ensina a escapar do ciclo dos renascimentosou alguém que salve as almas, subjugadas porpoderes terrenos, levando-as para a liberdade

68 dos filhos de Deus. Tal obra se realiza quandoum novo fenômeno de relação se torna subs­tância, quando uma nova resposta é dada pelo

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IInl1lem a seu Tu, acontecimento que determi­11.\ o destino. Por força deste ato essencial e1II1II'a1,uma civilização entregue a sua irradia­1,.11)pode ser substitu{da por uma outra a menos11111' ela mesma se regenere.

O mal de que sofre nosso século não seoIsscmelha a nenhum outro. Mas pertence àIIwsma espécie daqueles males de todos os sé­1'1dos. A história das civilizações não é um('stádio constante no qual os corredores, umdpÓSo outro tenham que percorrer com coragemI' inconscientemente, o mesmo ciclo mortal. UmI'mninho inominado conduz através de suas:Iscensões e declínios. Não um caminho de pro­IJI'csso e de evolução; mas uma descida em es­piral através do mundo subterrâneo do espí­rito e, também, uma ascensão para, por assimdizer, à região tão íntima, tão sutil, tão com­plicada que não se pode mais avançar, nem so­bretudo reCUqr;onde há apenas a inaudita con­versão: a ruptura. Será necessário ir até o fimdeste caminho? Até a prova das últimas tre­vas? Porém, onde está o perigo, ali cresce tam­bém a força salvadora.

O pensamento biologista e o pensamentohistoricista de nosso tempo, por mais diferentesque possam pare,cer um ao outro, colaborampara formar uma fé na fatalidade mais tenaze angustiante do que todas as anteriores. Nãoé mais o poder Kharma6 nem o poder dos as­tros que rege inexoravelmente a sorte dos ho­mens. Inúmeros poderes reinvidicam este do­mínio, porém, se se examina mais detidamente,a maior parte dos contemporâneos acredita

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num amálgama destas forças do mesmo modoque os romanos de época posterior acreditavamnum amálgama de deuses. A própria naturezada pretensão facilita este amálgama. Quer setrate da "lei vital" de uma luta universal, naqual cada um deve combater ou renunciar àvida; quer se trate da "lei psíquica" de umaconcepção da pessoa psíquka unicamente ba~seada em instintos utilitários, inatos; quer setrate de "lei social", de um processo social ine~vitável onde vontade e consciência são merosepifenômenos; ou da "lei cultural" de um deverinalterável e constante de uma gênese e de umocaso dos quadros históricos; sob todas estasformas e outras mais o que significa é que ohomem está ligado a um dever inevitável con~tra o qual ele não lutaria senão no seu delírio.A ,consagração dos mistérios libertava da coa~ção dos astros; o sacrifício bramânico, acompa~nhado do conhecimento, libertava do poder doKharma; em ambos prefigurava~se a redenção.O ídolo não tolera a fé na libertação. É umaloucura imaginar a liberdade; não se tem senãoa escolha entre uma escravidão voluntária ouuma escravidão desesperada e rebelde. Embora,essas leis invoquem a evolução teleológica e odever orgânico, o fundamento que, efetivamen~te, todas elas têm, é a obsessão pelo de,cursodas coisas, isto é, a causalidade ilimitada. Odogma do decurso progressivo' é a abdicaçãodo homem face ao crescimento do mundo doIsso. Assim, o nome do destino será mal em~

70 pregado; assim atribuir~se a ele o nome de des~

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tino será um erro, pois, o destino não é umacampânula voltada sobre o mundo dos homens;ninguém o encontra, senão aquele que parte daliberdade. O dogma do curso inelutável dascoisas não deixa, porém, lugar à liberdade, nempara a sua revelação mais concreta, aquelacuja força serena modifica a face da terra: aconversão.8 Este dogma desconhece o homemque pode vencer a luta universal pela conver~são; aquele que rompe, pela conversão, as amar~ras dos impulsos de utilização; aquele que seliberta pela conversão do fascínio da sua clas~se; aquele que, mediante a conversão, pode re~volver, rejuvenescer, transformar quadros his~tóricos os mais seguros. O dogma do decursonão te deixa no tabuleiro senão uma opção:observares as regras ou te retirares; aquele, po~rém, que realiza a conversão derruba todas aspeças. Este dogma te permite, em todo caso,submeteres tua vida ao determinismo e, "perma~neceres livre" na alma. Aquele, porém, que rea~liza a conversão considera esta liberdade comoa mais vergonhosa servidão.

A única coisa que pode vir a ser fatalao homem, é crer na fatalidade, pois esta cren~ça impede o movimento da conversão.

A crença na fatalidade é falsa desde oprincípio. Todo esquema do decurso consistesomente em ordenar como história o nada~mais~~senão~passado, os acontecimentos isolados domundo, a objetividade. A presença do Tu, oque nasce do vínculo são inacessíveis a estaconcepção, que ignora a realidade do Espírito;

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este esquema não apresenta valor algum parao espírito. A profecia baseada na objetividadetem valor apenas para quem ignora a presença.Aquele que é subjugado pelo mundo do Issoé obrigado a ver no decurso inalterável umaverdade que esclarece a confusão. Na verdadetal dogma deixa subjugar~se mais profunda ....mente ainda ao mundo do Isso. Porém, o mundodo Tu não é fechado. Aquele que na unidadede seu ser se dirige a ele, conhecerá profun .damente a liberdade. E tornar~se livre signi .fi.ca libertar ....se da crença na servidão.

*Assim como é possível dominar um íncubo

chamando~o pelo seu verdadeiro nome, assimtambém o mundo do Isso, que, ainda há pouco,esmagava com sua força espantosa a fracaforça do homem, é constrangido a submeter ....seàquele que o conhe.ce em seu ser, isto é, a par~ticularização e alienação daquilo a partir de,cuja plenitude próxima e irradiante cada Tuterreno se oferece ao encontro, aquilo que pa....receu às vezes grande e assustador como adeusa~mãe, mas sempre maternal.

Mas como poderia ser capaz de interpe~,lar o íncubo pelo seu nome, aquele que, noseu íntimo leva um fantasma, isto é, o Eu ca­rente de atualidade? Como a força de relaçãosepultada pode ressurgir em um ente cujosescombros são permanentemente pisoteados porum fantasma vigoroso?

Como poderia recolher~se um ser que estáconstantemente perseguido em um ,campo va~

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zio pela procna da subjetividade perdida? Co~mo conl--.eceria profundamente a liberdadeaquele que vive no arbitrário?

Assim como liberdade e destino estão in~terligados, assim também o estão, o arbitrárioe a fatalidade. Porém liberdade e destino sãocomprometidos mutuamente para instauraremjuntos o sentido; o arbitrário e a fatalidade,fantasma da alma e pesadelo do mundo, tole~ram-se vivendo um ao lado do outro, mas es~quivando~se, sem ligação e sem atrito, noabsurdo, até que, em determinado momento, osolhares distanciados se reencontram e irrompedeles a confissão de mútua perdição. Quantaespiritualidade eloqüente e engenhosa é dis­pensada, hoje, senão para impedir ao menospara dissimular e'ste fato!

O hemem livre é aquele cujo querer éisento de arbitrário. Ele .crê na atualidade, ist(\)é, ele acredita no vínculo real que une a duali~dade real do Eu e do Tu crê no destino e tam~bém que ela tem necessidade dele; ela não oconduz em inteiras, mas o espera; o homem de~ve ir ao seu encontro mas não sabe ainda ondeela está. O homem livre deve ir a ela com todoo seu ser, disso ele sabe. Não acontecerá aquiloque a sua resolução imagina, mas o que acon­teceu, não aconte.cerá senão na medida em queele resolver querer aquilo que ele pode querer.Ser-lhe~á necessário sacrificar aquele pequenoquerer, escravo, regido pelas coisas e pelos ins­tintos, em favor do grande querer que se afastado "sf>r~determinado" para ir ao destino. Ele

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73 não intervém mais, mas nem por isso permiteque aconteça pura e simplesmente. Ele espreitaaquilo que por si mesmo se desenvolve, o ca~minho do ser no mundo; não para se deixar le~var por ele, mas para atualizá~lo como ele de~seja ser atualizado pelo homem de quem elene'cessita, por meio do espírito humano e doato humano, com a vida do homem e ,com amorte do homem. Ele crê. disse eu, o que equi~vale dizer: ele se oferece ao encontro.

O homem que víve no arbitrário não crê enão se oferece ao encontro. Ele desconhece ovinculo; ele só conhece o mundo febril do "láfora" e seu prazer febril do qual ele sabe seservir. Basta dar ao poder de utilização um no~me antigo para ele tomar lugar entre os deuses.Quando este homem diz Tu, ele pensa "Tu.meu poder de utilização" e o que ele chamacomo seu destino. nada mais é do que equi~parar e sancionar o seu poder de utilização.Na verdade, ele não tem destino mas somenteUm ser~determinado pelas coisas e pelos ins~tintos. e isto é realizado com um sentimentode independência que é justamente o arbitrá~rio. Ele não tem o grande querer, este é subs~t,ituído pelo arbitrário. Ele é totalmente inaptoà oferta 10 ainda que possa vir a falar dela; tu oreconheces pelo fato de ele nunca se tornar con~ereto. Ele intervém, ,constantemente e sempre.COma finalidade de "deixar que as coisas acon~teçam". Como se poderia, te diz ele, deixar deauxiliar o destino, deixar de empregar os meiosacessíveis exigidos para esse fim? É assim que

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ele vê também o homem livre, aliás, ele não podevê~lo de modo diferente. Porém, o homem livrenão tem, aqui, uma finaldade e, lá, os meiospara obtê~lo; ele possui somente um objetivo esempre um: a resolução de ir de encontro aseu destino. Tomada essa resolução pode lheacontecer de, às vezes, renová~la a cada etapadecisiva do caminho; mas deixará de acreditarna sua própria vida antes de crer que a reso~Iução de seu grande querer é insuficiente e quedeve mantê~la por todos os meios. Ele .crê; elese oferece ao encontro. Mas o homem arbitrá~rio, incrédulo até a medula, não pode percebersenão incredibilidade e arbitrário, escolha defins e invenção de meios. O seu mundo é pri~vado de oferta e graça, de encontro e de pre~sença, entravado ~os fins e nos meios. Estemundo não pode ser diferente, o seu nome éfatalidade. -Assim, em sua auto~suficiência eleé engolfado simples e inextrincavelmente peloirreal e ele sabe disso sempre que sobre si seconcentra e é por isso mesmo que ele empenhao melhor de sua espiritualidade para impedir,ou, ao menos, ocultar esta lembrança.

Mas se a lembrança de sua decadência,de seu Eu inatural e de seu Eu atmol, permitiralcançar a raiz profunda que o homem chamadesespero e de onde brotam a auto destruição ea regeneração, isto já seria o início da con~versão.

*Segundo relata o Brahmana dos cem ca~

minhos, um dia deuses e demônios disputavam

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entre si. Então os demônios disseram: ..a quempoderíamos apresentar nossa oferta"? E depu~seram todas as oferendas nas próprias bocas.Os deuses. porém, depuseram as oferendas ca~da um na boca do outro. E então Pradshapati.o Espírito primordial. entregou~se aos deuses.

*Compreende~se que o mundo do Isso aban~

donado a si mesmo - isto é. privado do con~tato do tornar~se Tu. aliena~se tornando~se umíncubo; como é possível. no entanto. que. comodizes. o Eu do homem perca a sua atualidade'!Quer ele viva na relação ou fora del~ o Eu ga~rante~se a si mesmo na sua consciência de si; éo fio de ouro ao qual vêm se ordenar os esta~dos intermitentes. Que eu diga: "eu te vejo"ou "eu vejo a árvore" este meu ver pode nãoser igualmente atual em ambos os casos. maso que é igualmente atual nos dois casos, é o Eu.

-Senão vejamos. verifiquemos se é as~sim. A forma lingüística não prova nada; muitosTu proferidos são, fundamentalmente. Isso, aoqual se diz Tu. somente por hábito ou sem pen~saro E muitos Isso expressos significam, nofundo. um Tu decuja presença se ,guarda.mesmo estando distante, no fundo de seu ser,uma lembrança; assim em inúmeros casos o Eué apenas um pronome indispensável, apenasuma abreviação necessária de "este aqui quefala". Mas e a consciência de si? Quando, nu~ma frase se emprega o verdadeiro Tu da re~lação e, em outra, o Isso de uma experiência,

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e quando em ambos os casos é o Eu que ver~dadeiramente se tem em mente, é do mesmoEu de cuja auto~consciência se fala em ambosos casos?

O Eu da palavra~princípio EU~TU é dife~ 76rente do Eu do palavra~princípio Eu~Isso.

O Eu da palavra~princípio Eu~Isso apa~rece como egótic010 e toma consciência de sicomo sujeito (de experiência e de utilização)

O Eu da palavra~prindpio Eu~Tu aparececomo pessoa e se conscientiza como subjetivi~dade. (sem genitivo dela dependente).

O egótico aparece na medida em que sedistingue de outros egóticos.

A pessoa aparece no momento em que en~tra em relação com outras pessoas.

O primeiro ê a forma espiritual da dife~renciação natural. a segunda é a forma espiri~tual do vínculo natural.

A finalidade da separação é o experien~dar e o utilizar. cuja finaldade é. por sua vez."a vida". isto é. o contínuo morrer no decursoda vida humana.

A finalidade da relação é o seu próprioser. ou seja. o contato com o Tu. Pois. no con~tato com cada Tu. toca~nos um sopro da vidaeterna.

Quem está na relação participa de umaatualidade. quer dizer. de um ser que não estáunicamente nele nem unicamente fora dele. To~da atualidade é um agir do qual eu participosem poder dele me apropriar. Onde não há par~ticipação não há atualidade. Onde há apropria~

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ção de si não há atualidade. A participação étanto mais perfeita, quanto o contato do Tu émais imediato.

O Eu é atual através de sua participaçãona atualidade. Ele se torna mais atual quantomais completa é a participação.

Mas o Eu que se separa do evento de re~lação em direção da separação, consciente des~ta separação, não perde sua atualidade. A parti~cipação permanece nele, conservada como po~tencialidade viva; ou então, em outro termousado quando se trata da mais elevada rela~ção e que pode ser apHcado a todas as rela~ções, "a semente permanece nele". É este odomínio da subjetividade, onde o Eu tomaconsciência simultaneamente tanto de seu vín~culo quanto de sua separação. A autênticasubjetividade só pode ser comprendida de ummodo dinâmico, como a vibração de um Eu noseio de sua verdade solitária. É aqui, também,o lugar onde irrompe e cresce o desejo de umarelação cada vez mais elevada e absoluta, odesejo de uma participação total com o Ser.Na subjetividade amadurece a substância espi~ritual da pessoa.

A pessoa toma consciência de si como par~ticipante do ser, como um ser~com, como umente. O egótico toma consciência de si comoum ente~que~é~assim e não~de~outro~modo. Apessoa diz: "Eu sou", o egótico diz: "eu sou as~sim". "Conhece~te a ti mesmo" para a pessoasignifica: conhece~te como ser; para o egótico:conhece o teu modo de ser. Na medida em que

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o egótico se afasta dos outros, ele se distanciado Ser.

Com isso não se quer dizer que a pessoa"renuncie" ao seu modo de ser específi,co, massomente isso: este não é somente o seu pontode vista, mas a forma necessária e significa~tiva de ser. Ao contrário, o egótico se deliciacom seu modo~de~ser específico que ele ima~ginou ser o seu. Pois, para ele, conhecer~sesignifica fundamentalmente sobretudo estabe~lecer uma manifestação efetiva de si e que sejacapaz de iludí~lo cada vez mais profundamente;e pela contemplação e veneração desta mani~festação procura uma aparência de conhecimen~to de seu próprio modo~de~ser, enquanto 'queo seu verdadeiro conhecimento poderia levarao suicídio ou à regeneração.

A pessoa ,contempla~se o seu si~mesmo, en~\ •. '. " tt

quanto que o egobco ocupa~se com o seu meu :minha espécie, minha raça, meu agir, meu gê~nio.

O egótico não só não participa como tam~bém não ,conquista atualidade alguma. Ele secontrapõe ao outro e procura, pela experiênciae pela utilização, apoderar~se do máximo quelhe é possível. Tal é a sua dinâmica: o pôr~seà parte e a tomada de posse; ambas operaçõesse passam no Isso, no que não é atual. O su~jeito, tal como ele se reconhece. pode apode~rar~se de tudo quanto queira, que daí ele nãoobterá substância alguma, ele permanece comoum ponto, funcional, o experimentador, o uti~lizador. e nada mais. Todo o seu modo de ser

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múltiplo ou sua ambiciosa "individualidade"não podem lhe propordonar substância alguma.

Não há duas espécies de homem; há, to~davia, dois pólos do humano.

Homem algum é puramente pessoa, e ne~nhum é puramente egótico; nenhum é inteira~mente atual e nenhum totalmente carente deatualidade. Cada um vive no seio de um du­plo Eu. Há homens entretanto, cuja dimensãode pessoa é tão determinante que se podemchamar de pessoas,' e outros cuja dimensão deegotismo é tão preponderante que se pode atri~buir~lhes o nome de egótico. Entre aqueles eestes se desenrola a verdadeira história.

Quanto mais o homem e a humanidade sãodominados pelo egótico, mais profundamente oEu é atirado na inatualidade. Nestas épocasa pessoa leva, no homem, na humanidade, uméexistência subterrânea e velada e, de algurrmodo, ilegítima -- até o momento em que elaserá chamada.

*

a homem é tanto mais uma pessoa quanto'mais intenso é o Eu da palavra~princípio Eu~~Tu, na dualidade humana de seu Eu.

a seu dizer~Eu -- portanto, o que ele querdizer ao pronunciar Eu -- decide seu lugare para onde leva seu caminho. A palavra "Eu"é o verdadeiro "shibbolet" 12 da humanidade.

Então escute!

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Que distante é o Eu do egotista! Ele podeinspirar profunda compaixãq. quando sai de umaboca trágica impelida a calar a sua auto~con~tradição. Ele pode induzir ao medo, quandoprovém de uma boca caótica que representa a,contradição de um modo selvagem despreo'"'cupado e sem suspeita. Quando ele provém deuma boca fútil e hipócrita é penoso e repug~nante.

Aquele que profere o Eu separado, cominicial maiúscula, desvela a desonra do espí~rito universal,· que foi rebaixado até não sermais que uma espiritualidade.

Porém, como soa de um modo autênticoe belo, o Eu tão vivo e enérgico de Sócrates! Êo Eu do diálogo infinito e o ar de diálogo queo envolve em tod6's os caminhos até diante deseus juízes. e nos últimos instantes da ,prisão.Este Eu vivia na relação ,com os homens, re~lação que se encontrava no diálogo. Ele acre~ditava na atualidade dos homens e ia em suadireção. Assim, ele permaneceu com eles naverdadeira atualidade e esta não o deixa mais.A sua solidão não pode ser considerada aban~dono e quando o mundo humano permanecesilencioso ele ouve o Demônio dizer Tu.

Que som belo e autêntico tem o Eu deGoethe! Ê o Eu de uma intimidade pura coma Natureza; ela se ofere a ele e lhe fala cons~tantemente, ela' lhe revela seus segredos sem,entretanto, trair os seus mistérios. Este Eu crêna natureza e fala à rosa "Então és Tu?" ese une a ela numa mesma atualidade. Quando

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o Eu se volta sohre si mesmo, o espírito doatual permane.ce com ele, a visão do Sol per~manece no olhar feliz que se recorda de suanatureza' solar e a amizade dos elementosacompanha o homem até o silêncio da morte edo devir.

Assim, ressoa através dos tempos o di~zer~Eu "adequado, verdadeiro, puro" das pes~soas que estão vinculados, das pessoas socráti~cas e goetheanas.

E. para apresentar, antecipadamente umaimagem do reino da relação absoluta, quão po­deroso é o dizer-Eu de Jesus, como um ver~dadeiro poder de dominação, e quão legítimo,como uma evidência! Afinal, ele é o Eu da re~lação absoluta, na qual o homem atribui a seuTu o nome de Pai, de tal modo que, ele mes~mo, não é senão o Filho, nada mais que filho.Quando ele profere Eu, ele só pode ter emmente o Eu da palavra~princípio sagrada quese tornou absoluta para ele. Se. por acaso, oisolamento o toca, a ligação é mais forte, e ésomente do seio desta ligação, que ela fala aosoutros. Em vão, procurais reduzir este Eu aum mero poder em si ou este Tu a algo quehabita em nós e uma vez mais procurar desa~tualizar o atual, a relação presente. ambos, Eue Tu, subsistem. Cada um pode dizer Tu,sendo assim um Eu, cada um pode dizer Pai,sendo assim Filho: a atualidade permanece.

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Mas o que acontecerá, se a missão de umhomem exige que ele só conheça o vínculo comsua -causa, e então desconheça qualquer rela­ção atual com um Tu e a presentificação doTu, de modo que tudo aquilo que o envolve setorne um Isso, um Isso útil à sua causa? Quetalo dizer-Eu de Napoleão? Não é ele legí~timo? Este fenômeno do experienciar e do uti­lizar não é uma pessoa?

Na realidade, o mestre do século, ignoroua dimensão do Tu. Isso ficou bem caracteri­zado quando se afirmou que todos os sereseram para ele valore.12 Ele que, em um sen­tido benévolo, comparou com Pedro aquelesseus seguidores que o renegaram após sua que­da, a ninguém poderia renegar, pois, não haviapessoa alguma a 'quem reconhecesse como serpresente. Para multidões, ele era o Tu demo­níaco, aquele que não responde, aquele queresponde ao Tu com um Isso, aquele que, nadimensão pessoal responde ficticiamente; aqueleque somente responde na sua esfera, no âmbitode sua causa e somente por seus atos. Tal é olimite histórico e elementar onde a palavra­~princípio da ligação perde sua realidade, seucaráter de reciprocidade: é o Tu demoníaco,para o qual nenhum ente pode tornar~se umTu.

Este terceiro tipo de Eu, ao lado da pessoae do egótico, que não é nem o homem livre nemo homem do arbitrário, nem se situa entre eles,existe, postado de uma maneira fatal, nas gran~des épocas do destino; todos se entusiasmam

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ardentemente por ele, enquanto que ele própriopermanece em um fogo gélido; aquele ao qualmilhares de relações se dirigem, mas da qualnenhuma provém; ele não participa de nenhumaatualidade, mas ele é como uma atualidade daqual todas participam intensamente.

N a verdade, ele não vê os entes que es~tão em sua volta, senão como máquinas capazesde diversas realizações, que devem ser avalia~das e utilizadas para o bem de sua causa. As~sim, também ele se vê a si mesmo, (ele deveapenas por à prova seu próprio poder de rea~

83 lização, através de experiências renovadas in~cessantemente, sem no entanto experimentar opróprio limite). Ele próprio usa a si mesmo co~mo um Isso.

E mais, seu dizer~Eu carece de vivacida~de, de energia e plenitude; e com mais razãoele não procura, (como o egotista moderno),passar por tal. Ele não fala de si mas " a partirde si". Falado ou escrito, o seu Eu é, nadamais nada menos, que o indispensável sujeitogramatical de uma frase de suas constatações ede suas ordens; ele não possui subjetividade,mas ele nada tem a ver com a cons.ciência que

, se ocupa de seu modo de ser e, com maior ra~zão, ele não se ilude com sua auto~manifesta~ção. "Eu sou o relógio que existe sem se co~nhecer". Assim, ele próprio manifestou a suafatalidade, a atualidade deste fenômeno e ainatualidade de seu Eu, na época em que ele,expulso de sua causa, podia e devia, afinal,pensar sobre si e falar de si, e somente agora

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podia considerar o seu Eu, que só a.gora serevelava. Este Eu, que ora emerge, não ésimplesmente sujeito, mas também não atingea subjetividade; livre do encanto que o envol~via, mas não redimido, ele se expressa nestestermos terríveis, ao mesmo tempo legítimos eilegítimos: "O Universo nos contempla!" efinalmente mergulha novamente no mistério.

Quem ousaria afirmar que esse homem,depois de tal carreira e de tal queda, tenhacompreendido sua missão terrível e monstruosa,ou então que ele a tenha entendido mal? O queé certo é que a época, cujo senhor e modelo 84foi o homem demoníaco e carente de presença,não o compreendeu. Ela desconhece que nestehomem reinava não o ardor e o prazer de po~der, mas a missão fatal e o dever a cumprir.A época se entusiasma com a altivez soberanadesta fronte, mas não suspeita que sinais estãoaí inscritos,' como as cifras no mostrador deum relógio. Ela se aplica a imitar este olhardirigido para os seres, sem notar o que, nele,é necessidade ou coação e confunde o rigorobjetivo deste Eu com a agitação da consciên~cia de si. A palavra Eu permanece o "Shibbo~leth" da humanidade. Napoleão o proferiusem o poder de relação, mas ele o pronuncioucomo o Eu do ato da execução. Quem se es~força em repeti~lo, denuncia a impossibilidadede salvação de sua própria autocontradição.

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o que é autocontradição?

Quando o homem não põe à prova, nomundo, o a priori da rplação, efetivando e atua~lizando o Tu inato no Tu que ele encontra,então ele se introverte. Ele se manifesta ao con~tato com o Eu não natural, impossível objeto,isto é, ele se desvela ali onde não há lugar pa~ra a revelação. Assim instaura~se um con~fronto consigo mesmo que não pode ser relação,presença, reciprocidade fecunda mas somenteautocontradição. O homem pode tentar inter~pretá~la como uma relação, por exemplo, umarelação religiosa para escapar do horror de ser

85 seu espectro; ele deverá sem cessar descobrira falsidade desta interpretação. Aqui se situa olimite da vida. Aqui, algo irrealizado refugia~senuma aparência demente de realização; por oraele tateia, de um lado para o outro, nos labi~rintos, onde se perde cada vez mais.

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Às vezes, quando o homem estremece naalienação entre o Eu e o mundo, ocorre~lhe opensamento de que al,go deva ser feito. Comoquando repousas, na pior hora no meio da noite,'atormentado por um pesadelo" estando acorda~do, quando os baluartes desmoronam~se e osabismos vociferam e percebes no fundo do teuser, que a vida subsiste e que deves voltar aoseu encalço; mas como? Assim é o homem nosinstantes de recordação, horrorizado, pensa~tivo, desorientado. E, talvez, conheça ainda, no82

seu âmago profundo, a direção com o conheci~mento não amado da profundeza, a autênticadireção que pela oferta, leva até a conversão.Mas ele repudia este conhecimento; o sol arti~fidal da noite 13 não pode suportar o que é"místico'. Ele chama para si o pensamento noqual ele, com razão, confiou profundamente:tal pensamento deve remediar tudo. Não é agrande arte do pensamento o fato de pintaruma imagem do mundo cheia de confiança edigna de fé? Assim fala o homem aos seus pen­samentos: "veja este monstro terrível estiradoaí com seus olhos cruéis, não é, por acaso, omesmo com o qual eu brinquei outrora? Lem~bras como eles me sorriam ,com estes mesmosolhos, que eram tão bons?" E vê, meu Eu mise~ráveI. quero confessar~te francamente: ele évazio, e tudo o que sempre faço por experiên~da e utiliiação não penetra no fundo de SUq

caverna. Não queres reconciliar~nos novamen~te, ele e eu, de tal maneira que ele se libere eeu me restabeleça?"

E o pensamento dócil e habilidoso pinta,com sua rapidez bem conhecida, uma, ou antes,duas séries de imagens sobre as paredes dadireita e da esquerda. De um lado está o uni~verso, (ou antes acontece o universo, visto queas imagens do mundo do pensamento são au~tênticas cinematografias). A minúscula Terraemerge do turbilhão dos astros, e, do fervilha~mento sobre a terra. emerge o pequeno homem.e assim a história o transporta através dós tem~pos, para que ele reconstrua com persistência

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os formigueiros das civilizações, que ela ani~quila. Abaixo desta série de imagens está es~crito: •.Um e Todo". Do outro lado surge aalma. Uma fiandeira tece a órbita de todos osastros, a vida de todas as criaturas e toda ahistória universal; tudo isso é um fio da mes~ma tessitura e não se chama mais, doravante,astros, criaturas e mundo mas sensações, repre~sentações ou até vivências e estados da alma.E logo abaixo desta série de imagens lê~se:"Um e Todo".

Doravante, quando o homem estremecena alienação e o mundo o angustia, ele levantao olhar (para a direita ou para a esquerda, pou~co importa) e avista uma imagem. Então, elevê que o Eu esta contido no mundo e que, naverdade não há Eu, e, por isso, o mundo nãopode prejudicá~lo, e, então ele se tranqüiliza;ou, então, ele vê que o mundo está contido no

87 Eu, e que, afinal, não há mundo, e, por isso,ele também não pode prejudicar o Eu, o quetranqüiliza também. E uma outra vez, quandoo homem se estremece na alienação e o seu Euo aterroriza, ele levanta os olhos e vê uma ima~gem, pouco importa qual: ou o Eu vazio está

'totalmente repleto de mundo ou submerso natorrente do mundo, e ele se tranqüiliza.

Porém, chega um momento, que, aliás,está próximo, em que o homem que estremecelevanta os olhos e vê, num só relance, as duasimagens de uma vez. E então um tremor maisprofundo se apodera dele.

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TERCEIRA PARTE

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As linhas de todas as relações, se prolon~ 91gadas, entrecruzam~se no Tu eterno.

Cada Tu individualizado é uma perspectivapara ele. Através de cada Tu individualizadoa palavra~princípio invoca o Tu eterno. Da me~diação do Tu de todos os seres, surge não sóa realização das relações para com eles mas tam~bém a não realização. O Tu inato realiza~se emcada uma delas, sem, no entanto, consumaJ;'~seem nenhuma. Ele só se consuma plenamente narelação imediata para com o Tu que, pela suaprópria essencia, não pode tornar~se Isso.

Os homens têm invocado o seu Tu eternosob vários nomes. Quando qmtavam aquele queera assim ,chamado, pensavam sempre no Tu;os primeiros mitos foram cantos de louvor. Osnomes entraram, éntão, na linguagem do Isso;um impulso cada vez mais poderoso levou oshomens a pensarem no seu Tu Eterno e falardele como de um Isso. Todos os nomes de Deuspermanecem, no entanto, santificados, pois, nãose fala somente sobre Deus, mas também se falacom Ele.

Muitos quiseram admoestar que o nome deDeus fosse usado corretamente, pois ele estavademasiadamente mal empregado. E, certamen~te, é o nome mais densamente pesado de todosos nomes humanos. E por esta razão, é o maisimperecível e indispensável. E que importam as

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divagações errôneas a respeito da essência deDeus e das obras de Deus (aliás, só houve ehaverá afirmações erradas sobre isso) em vistada Verdade Una de que todos os homens queinvocaram a Deus, tinham em mente Ele mes­mo? Pois. aquele que, proferindo a palavraDeus, quer significar realmente Tu, não impor­ta de que ilusão esteja tomado, invoca o verda­deiro Tu de sua vida, o qual não pode ser limi­tado por nenhum outro e com o qual ele estáem uma relação que engloba todas as outras.

Mas também invoca Deus, aquele que abo­mina este nome e crê estar sem Deus quandoinvoca, com o impulso de todo o ser, o Tu desua vida, como aquele que não pode ser limi­tado por nenhum outro.

*Quando, seguindo nosso caminho, encon­

tramos um homem que, seguindo o seu cami­nho, vem ao nosso encontro, temos conhecimen­to somente de nossa parte do caminho, e não dasua, pois esta nós vivenciamos somente no en­contro.

Do evento perfeito da relação conhecemos,por tê-Ia vivido, a nossa saída, a nossa parte docaminho. A outra nos acontece, nós não a co­nhecemos. Ela acontece para nós no encontro.Ê, na verdade, uma presunção de nossa parte,falar sobre ela como se fosse de algo além doencontro.

O que deve nos ocupar, aquilo pelo quenós devemos nos interessar, não é a outra parte,88

mas a nossa; não é a graça mas a vontade. Agraça nos diz respeito, na medida em que nósavançamos para ela e aguardamos a sua pre­sença; ela não é nosso objeto.

O Tu se apresenta a mim. Eu, porém, entroem uma relação imediata com ele. Assim, a re­lação é, ao mesmo tempo, escolher e ser esco­lhido, passividade e atividade. Do mesmo modo,uma ação do ser em sua totalidade como su­pressão de todàs as ações parciais, e, por con­seguinte, de todas as sensações de ação (as quenão são fundamentadas senão em sua limitaçãorecíproca), deve tornar-se necessariamente se­melhante a uma passividade.

Esta é a atividade do homem que atingiua totalidade, a atividade que se chamou o fa­zer-nada, onde nada mais isolado, nada parcialse move no- homem e, também nada dele inter­vém no mundo; onde é o homem total, encerradoe repousado em sua totalidade que atua; onde ohomem tornou-se uma totalidade atuante. Terconquistado a firmeza nesta disposição, significaestar preparado para o encontro supremo.

Para tanto não é necessário o despojar-sedo mundo sensível como um mundo de apa­rência. Não há mundo aparente, só existe omundo que, sem dúvida, se nos revela duplo,visto que nossa atitude é dupla. Só deve serquebrado o encanto da separação. Não é ne­cessária, também, a "superação da experiênciasensível" ; cada experiência, mesmo a maisespiritual, não poderia nos fornecer senão um

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Isso. Não é preciso, também dirigir~se a ummundo de idéias e valores que não nos podetornar~se presente. Nada disso é necessário.Pode~se dizer o que é preciso? Porém não nosentido de uma prescrição. Nada do que algumdia foi inventado e imaginado nas épocas doespírito humano em matéria de prescrições, depreparação, de prática ou meditação, tem algoa ver com o fato originariamente simples doencontro. Qualquer que seja o proveito noconhecimento ou a eficácia de tal ou tal ativi~dade, nada disso interfere naquilo de que éaqui tratado. Esta realidade diz respeito acmundo do Isso e não impele a dar nenhumpasso, o passo que nos faria sair dele. Nãosão prescrições que nos ensinam a saída. Issosó se pode demonstrar, na medida em que seestabelece um círculo que exclui tudo o quenão é esta saída do mundo do Isso. Então tor~na~se patente, a única coisa que importa: aperfeita aceitação da presença.

Naturalmente, quanto mais longe o ho~mem adentrou~se no isolamento, tanto mais aaceitação implica um risco mais pesado, umaconversão mais fundamental; não se trata de

,algo como a renúncia do Eu, como o misticismosupõe geralmente; o Eu sendo indispensávela cada relação o é também para a relação maiselevada, a qual só pode acontecer entre Eu e Tu;não se trata da renúncia do Eu mas do falsoinstinto da auto~afirmação que impele o homema fugir do mundo incerto, inconsistente, passa~

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geiro, confuso e perigoso da relação, em dire~ção ao ter das coisas.

*

Toda relação atual com um ser presenteno mundo é exclusiva. O seu Tu é destacado,posto à parte, o único existente diante de nós.Ele enche o horizonte, não como se nada maisexistisse, mas tudo o mais vive na sua luz.Enquanto dura a presença da relação sua am~plidão universal é incontestável. Porém, desdeque um Tu se torna um Isso a amplidão uni~versal da relação parece uma injustiça para como mundo e sua exclusividade como uma exclu~são do universo.

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Na relação com Deus, a exclusividadeabsoluta e"a inclusividade absoluta se identifi~cam. Aquele que entra na relação absoluta nãose preocupa com nada mais isolado, nem comcoisas ou entes~nem com a terra ou com o céu,pois tudo está incluído na relação. Entrar narelação pura não significa prescindir de tudo,mas sim ver tudo no Tu; não é renunciar aomundo mas sim proporcionar~lhe fundamenta~ção. Afastar o olhar do mundo não auxilia aida para Deus; olhar fixamente nele também nãofaz aproximar de Deus, porém, aquele quecontempla o mup.do em Deus, está na presenç~d'Ele. "Aqui o mundo, lá Deus" tal é umalinguagem do Isso; assim como "Deus no mun~do" é outra linguagem do Isso. Porém, nadaabandonar, ao contrário, incluir tudo, o mundo

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na sua totalidade, no Tu, atribuir ao mundo oseu direito e sua verdade, não compreendernada fora de Deus mas apreender tudo nele, issoé a relação perfeita.

Não se encontra Deus permanecendo nomundo, e tão pouco encontra~se Deus ausen~tando~se dele: Aquele que, com todo o seu ser,vai de encontro ao seu Tu e lhe oferece todoser do mundo encontra~o, Ele que não se podeprocurar.

96 Sem dúvida Deus é o "totalmente Outro",Ele é porém o totalmente mesmo, o totalmentepresente. Sem dúvida, ele é o U mysterium tre~mendum" cuja aparição nos subjuga, mas Eleé também o mistério da evidência que me émais próximo do que o meu próprio Eu.

N a medida em que tu sondas a vida dascoisas e a natureza da relatividade, chegas atéo insolúvel; se negas a vida das coisas e darelatividade, deparas com o nada; se santificasa vida, encontras o Deus vivo.

*

O sentido~de~Tu do homem que experi~menta, através das relações com o Tu indivi~dual, a decepção do tornar~se Isso, este sen~tido aspira atingir o seu Tu Eterno, além detodas aquelas relações sem, contudo, negá~las.Não como se se procurasse uma .coisa; na ver~dade, não há uma procura de Deus, pois, nãohá nada onde não se possa encontrá~lo. Quaoinsensato e sem esperança seria aquele que se

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afastasse de seu próprio caminho a fim de pro~curar Deus; mesmo que houvesse conquistadotoda sabedoria da solidão e todo o poder deconcentração, não o encontraria. Ao contrário,é antes como alguém que anda pelo seu cami~nho e deseja que este seja o caminho certo;no poder de seu desejo se manifesta a suaaspiração. Cada evento de relação é uma etapaque lhe possibilita um olhar sobre a relaçã9completa; assim, em todas as relações, ele nãotoma parte da relação completa, mas tambémtoma parte, por estar pronto. Ele vai pelo seucaminho estando pronto e não procurando; porisso ele possui a serenidade para com as coisase o modo de tocá~las que é para elas uma ajuda.Porém, quando ele encontra a relação com~pleta, o seu coração não se afasta das coisas,mesmo que tudo agora venha ao seu encontro 97de uma só vez. Ele abençoa todas as celas queo abrigaram e todas nas quais ele se hospedará.Pois este achado não é o fim do caminho maso seu eterno centro.

É um achado sem que se tivesse procura~do; uma descoberta daquilo que é primordial,originário. O sentido do Tu que não pode sersaciado, até que ele tenha encontrado o Tuinfinito, que lhe estava presente desde o co~meço; bastou somente que esta presença se lhetornasse totalmente atual, de uma atualidadeda vida santificada do mundo.

Não significa que Deus possa ser dedu~zido de alguma coisa, por exemplo, da natu~reza como o seu autor ou da história, como

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seu guia ou então do sujeito, como o si-mesmoque nele se reflete. Não que exista um "dado"qualquer que fosse dele deduzido, mas signi­fica o existente diante de nós, na sua imediatez,sua proximidade e duração, que só pode serlegitimamente invocado, mas não evocado.

*

Pretende-se ver, Como elemento essencialna relação com Deus, um sentimento chamado"sentimento de dependência" ou mais dara­mente, em termos mais recentes, o sentimentode criatura. Por mais correto que seja fazerrealçar e definir este elemento, acentuando-ode um modo exclusivo, se desconhece o caráterda relação perfeita.

O que já foi dito a respeito do amor, valeaqui com maior razão: os sentimentos simples­mente acompanham o fato da relação, que nãose realiza na alma, mas entre o Eu e o Tu.Por mais que se queira conceber o sentimentocomo essencial, ele permanece submisso aodinamismo da alma, onde um é ultrapassado.superado, abolido pelo outro; diferenciando-seda relação, o sentimento baseia-se nunca es­càla. Mas, antes de tudo, cada sentimento temseu lugar no seio de uma tensão de polaridade;ele toma sua Cor e seu sentido não somente emsi próprio, mas também em seu paIo oposto;cada sentimento é condicionado pelo seu con­trário. A relação absoluta que, na realidade.engloba todas as relativas e não é parcial como91

estas, mas total com realização e unificaçãodelas, é relativizada do ponto de vista psico­lógico, na medida em que é reduzida a umsentimento delimitado que é realçado.

Do ponto de vista da alma, a relaçã'i per ..feita· só pode ser concebida ,como bipolar, co­mo uma ••coincidentia oppositorum" , comounião dos sentimentos contrários. Sem dúvida,um dos pólos - reprimido pela atitude fun­damentalmente religiosa da pe:ssoa - de,sa­parece: à consciência re:trospectiva e: só poderáser lembrada na profundeza mais pura e: im­parcial da introspecção.

Sim, sem dúvida, na relação pura, tu tesentiste: inteiramente: dependente: como nuncaem alguma outra fpste capaz de te sentir ­e também inte:iramente livre como nunca e emnenhum lugar: criatura e criador. O que pos­suias, então, não era mais um destes sentimen­tos limitado pelo outro. mas ambos sem reservae juntos.

Que necessitas de Deus, mais do quetudo, sempre o sabes em teu coração: porém,não sabes também que Deus necessita de ti,de ti na plenitude de sua eternidade? Comoexistiria o homem se Deus não tivesse neces­sidade Dele, como tu existirias? Necessitas deDeus para existir e Deus tem necessidade de tipara aquilo que, justamente, é o sentido de tuavida. Os ensinamentos e poemas tentam dizermais e o fazem demasiadamente; que triste epedante verborréia que fala do "Deus em de­vir"; que, de fato haja um devir de Deus vivo,

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sabemos, certamente em nosso coração. Omundo não é um jogo divino; ele é um destinodivino. O fato de que exista o mundo, que ohomem, a pessoa humana exista. que eu e tuexistamos tem um sentido divino.

A criação - ela se realiza em nós, elapenetra em nós pelo ardor, nos transformapelo seu brilho, nós estremecemos, desvanece~mos, submetemo~nos. Nós nos associamos aela, encontramos nela o criador, nós nos ofe~recemos a ela como· auxiliares e companheiros.

Dois grandes servidores percorrem ostempos: a pre.ce e a oferta. Aquele que ora ar~repende~se em um sentimento de dependênciasem reserva e sabe ,.......,de um modo incompreen­sível ,.......,que atua sobre Deus, mesmo sabendoque nada exige de Deus; pois, quando não as~pira a nada para si, ele vê a sua ação brilhar nachama suprema. E aquele que apresenta aoferta? Não posso menosprezá~lo este corretoservidor do passado que julgava que Deus dese~java o perfume de seu holocausto; ele sabia deum modo insano, porém forte, que se podia eque se devia oferecer a Deus; isso também sabeaquele que oferece a Deus sua vontade humildea fim de encontrá~lo em sua grande vontade."Tua vontade seja feita" é tudo o que ele diz,mas a verdade completa para ele: "através demim, de quem necessitas". Em que a prece e aoferta diferem de toda magia? Esta pretendeagir. sem entrar na relação, e pratica seus arti~fícios no vazio; a prece e a oferta, porém, co~locam~se "diante da Face", na realização da

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palavra~princípio sagrada que significa açãomútua. Eles proferem Tu e o ouvem.

Querer ver a relação pura como uma de~pendência é querer desatualizar um dos susten~táculos da relação e por isso mesmo, ela pró~pria. *

O mesmo ocorre, do outro lado. quandose vê, como elemento essencial no ato religioso,a absorção e a descida no si mesmo, seja li~vrando o si mesmo de todo condidonamentoda egoidade, seja concebendo~o como o Únicoque pensa e que é. O primeiro destes tidos deconsideração supõe que Deus venha integrar~seno ser livre do eu ou que este venha a reali~zar~se em Deus;, o segundo tipo julga que oser livre do eu se coloque imediatamente emsi mesmo-como se fora na Unidade divina. Oprimeiro tipo implica, portanto que, em um mo~mento supremo, o dizer~Tu deixa de existir jáque a dualidade é aholida; o segundo que nãohá verdade no dizer~Tu, pois já não há mais,na realidade, dualidade. Se o primeiro tipo deconsideração crê na unificação do divino e dohumano. o segundo acredita na identidade dodivino e do humano. Ambos afirmam um alémdo Eu e do Tu. que no primeiro caso é umalém em devir ,.......,por exemplo no êxtase ,.......,eo outro. um além que existe e que se revela ,.......,por exemplo, na contemplação de si do sujeitopensante. Ambos suprimem a relação; de ummodo dinâmico no primeiro. onde o Eu é abo~lido pelo Tu. que agora não é mais Tu mas o

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ser Único; de um modo estático, por assim di~zer, no segundo tip.o, onde o Eu absorvido noSi~mesmo. conhece~se como o único existente.A doutrina da dependência não deixa ao Eu,que sustenta o arco universal da relação pura,senão uma realidade, tão vã e débil a pontode não acreditar mais que ela seja capaz desustentar algo; enquanto que uma doutrina daabsorção deixa desaparecer este arco no mo~mento de sua perfeição, a outra considera~ouma quimera a ser superada.

As doutrinas da absorção redamam parasi as grandes fórmulas da identificação --- umadelas sobretudo invoca a palavra de São João:"Eu e o Pai somos um",1 a outra invoca a dou~trina de Sandilya "O que envolve tudo é omeu si mesmo no fundo do coração".2

Os caminhos destas sentenças se opõemfrontalmente. A primeira, (após uma emana~ção subterrânea), jorra da vida miticamentegrande de uma pessoa e se realiza em doutrina.A outra emerge no interior de uma doutrina e-culmina (provisoriamente) na vida miticamen~te grande de uma pessoa. Por este caminho,transforma~se o caráter da sentença. O Cristod~ tradição joanina, o Verbo que uma vez seencarnou, conGuz ao Cristo de Mestre Eckart.que Deus engendra eternamente na almahumana. A fórmula da coroação de si mesmonos Upanishads: "Eis aqui o atual, o Si~mes~mo, tu o és", conduz mais rapidamente à fór~mula budista da deposição: "Um Si~mesmo e

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aquilo que pertence ao si não é para ser com...preendido nem na verdade nem na atualidade".

O começo e o fim deste dois caminhos de~vem ser considerados separadamente.

Que a invocação do "somos um' é infun .dada, torna~se claro para quem ler imparcial .mente, parágrafo por parágrafo, o Evangelhosegundo João. É, sem dúvida, o Evangelho darelação pura, Há mais verdade aqui do que nafórmula familiar dos versos místicos: "Eu soutu e tu és eu". O Pai e o Filho consubstanciais___podemos afirmar: Deus e o Homem con~substanciais, constituem o par indestrutivel.mente atual, os dois suportes da relação pri~mordial, que vinda de Deus ao homem se chamamissão e mandamento, indo do homem a Deusse chama contemplação e escuta e entre os doisse chama conhecimento e amor. É nesta rela~ção que o filho, embora o Pai habite e operenele, se inclina diante daquele que é "maior"que ele e ora. São, vãs todas as tentativas mo...dernas em interpretar esta realidade origináriado diálogo como um relacionamento do Eu aoSi~mesmo ou algo semelhante, um fenômenofechado no qual a interioridade do homem, se~fia auto~suficiente; tais tentativas pertencem àhistória insondável da desatualização.

--- E a mística? Ela relata como se podevivenciar a unidade sem dualidade. Pode~seduvidar da exatidão de seu relato?

--- Conheço não somente um, mas doiseventos onde se perde a consciência da dua~lida de. A mística os confunde, às vezes, em

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sua linguagem, como também eu os confundioutrora.

Um destes eventos é o da alma que al~cança a unidade. Não se trata de algo que sepassa entre Deus e o homem, mas algo queocorre no homem. As forças se concentram emum núcleo, tudo o que tenta desviá~las é do~minado, o ser permanece em si mesmo e re~jubila, .como diz Paracelso, em sua exaltação.Para o homem este é o instante decisivo. Semeste, o homem não é apto para a obra do espí~rito. Com ele, decide no seu íntimo, se isso sig~nifica preparação ou satisfação. O homem con~centrado na unidade pode entrar em relação --­somente agora plenamente possível --- com omistério e a salvação. Mas, ele pode tambémsaborear a felicidade da concentração e voltarà dispersão, sem acatar a tarefa suprema. Emnosso caminho tudo é decisão: voluntária, pres­sentida, secreta; esta decisão, no âmago denosso ser, é a mais originariamente secreta e aque nos determina mais poderosamente.

O outro evento é aquele insondável tipodo ato de relação pelo qual se percebe que adualidade se torna unidade: (o um e o um

.unidos, aí a nudez brilha na nudez) 3 O Eu eTu desaparecem, a humanidade que, há poucoestava na presença da divindade, se submergenela; aparecem a glorificação, a divinização e aunidade. Porém, quando alguém iluminado eesgotado, voltar à miséria das coisas terres~tres e refletir com coração advertido sobre osdois eventos, o se.r não lhe apareceria dividido

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e, em uma das partes, abandonado à perdição?De que serve à minha alma poder ser de novoafastada deste mundo, se esse mundo perma~nece necessária e totalmente apartado da uni~dade? Para que este "prazer de Deus" em umavida dividida em dois? Se este momento ce~lestial de abundante riqueza nada tem em co~mum com o meu pobre momento terrestre, oque me importa, pois devo continuar vivendosobre a terra, devo ainda viver com toda a se~riedade? Eis como se deve compreender osmestres que renunciaram às delícias do êxtaseda "unificação" Tal unificação não era umaunificação. Eu os compraria com os homens que,na paixão do Eros realizado, são de tal modotransportados pelo milagre do abraço que aconsciência do Eu e do Tu cede lugar, neles, aosentimento de uma unidade que não dura e nãopode durar. O que o vidente extasiado chamaunificação, é a dinâmica extasiada da relação;não é uma unidade surgida no instante do tem~po universal na qual viriam fundir~se o Eu e oTu, mas é o dinamismo da própria relação que,colocando~se diante dos sustentadores destarelação, firmemente postos um diante do outro.pode confundí~la com o sentimento do videnteextasiado. Aqui existe, então, um transborda~mento marginal do ato de relação. A própriarelação, sua unidade vital é sentida com talveemência que os seus componentes parecemempalidecer diante dela, e que pela sua exis~tênda, oEu e o Tu, entre os quais ela se ins­titui, serão esquecidos. Trata~se, aqui, de um

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destes fenômenos que encontramos nas mar­gens, onde a atualidade se amplia e se dilui.Porém, maior que estas oscilações enigmáticasda margem do ser é a realidade central dahora quotidiana e terrena onde um raio lumi­noso, sobre um galho, te faz pressentir o Tueterno.

Aqui, se coloca a exigência de outra dou~trina da absorção, segundo a qual o universoe o si~mesmo são idênticos de tal modo quenenhum dizer~Tu pode garantir uma últimaatualidade.

A própria doutrina contém a resposta aesta exigência. Um Upanishad conta como opríncipe dos deuses, Indra, foi ao encontro dePradshapati, o espírito críador, para aprendercom ele a encontrar e conhecer o si~mesmo.Ele permanece um século na escola; despedidoduas vezes com informações insuficientes atéque, finalmente, o justo lhe foi revelado:"Quando se dorme em sono profundo e semsonhos, tal é o si~mesmo, tal é o imortal, ocerto, o universal". Indra se retira, mas, logoum escrúpulo se apodera dele; ele se volta epergunta: "Em tal estado, ó Sublime, ninguémsa1?e algo sobre o si~mesmo: "Isso sou eu" enão: "isso são os entes". Ele ,caiu no aniquila~mento. Não vejo aí nenhum proveito. É, defato, assim, Senhor, responde Pradshapati.

Na medida em que esta doutrina contémuma afirmação sobre o verdadeiro ser, nãoimporta qual seja o seu conteúdo de verdade~ que não podemos descobrir nesta vida ,...-

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com uma coisa, ele nada tem em comum: aatualidade; ela é obrigada, então, a rebaixá~laa um mundo de aparência. E na medida em queesta dourtina contém uma indicação para seaprofundar no verdadeiro ser, ela não conduzà atualidade vivida, mas para o aniquilamento,onde não reina consciência alguma, de ondenão surge lembrança alguma. O homem queemerge deste aniquilamento, pode reconhecer aexperiência através da expressão~limite danão~dualidade, sem, no entanto, poder chamá~~la unidade.

Queremos, todavia, tomar um cuidado sa~grado do bem sagrado de nossa atualidadeque nos é para esta vida e, talvez para nenhu~ma outra vida mais próxima da verdade.

N a atualidade '>vivida não há unidade doser. A atualidade é somente ação; sua força eprofundidade são as desta ação. E mais, sóhá atualidade "interior" na medida em quehouver ação mútua. A atualidade mais fortee profunda ê aquela onde tudo se dirige àação, o homem na sua totalidade, sem reserva,e o Deus que tudo envolve, o Eu unificado e oTu ilimitado.

O Eu unificado, pois. já falei sobre issoa atualidade vivida implica a unificação daalma, a concentração de forças em um núcleo,o instante decisivo para o homem. Mas, issonão é, como aquela absorção, uma abstraçãoda pessoa atual. A absorção não quer conser~var senão o que é puro, autêntico, durável e sedesfazer de tudo o mais; a concentração não

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considera o instintivo como impuro, assim comonão considera o sensível como superfidal e oemotivo como fugaz; tudo deve ser incluído,integrado. Ela não deseja o si mesmo abstrato,mas o homem inteiro, integral. Ela quer a atua~lidade, ela é a atualidade.

A doutrina da absorção exige e promete aentrada no uno pensante, "naquele que pensao mundo", no sujeito puro. Porém, na realidadevivida, não há pensante sem pensado, e mais,aqui o pensante depende tanto do pensado co~mo este daquele. Um sujeito que dispensa umobjeto anula a sua própria atualidade. Não hápensante em si senão no pensamento do qualele é o produto e o objeto, como um conceito~~limite isento de qualquer representação. As~sim, ele existe, na determinação antecipadorada morte, à qual se pode comparar um sonoprofundo quase tão impenetrável quanto ela.Finalmente, existe na mensagem da doutrinasobre um estado de ahsorção que se assemelhaa um estado de sono profundo, por natureza.sem consciência e sem memória. São estes oscincos mais altos do mundo do Isso. Deve~serespeitar o sublime poder de ignorar e reconhe~cê~lo respeitosamente como aquilo que, no má~

, ximo, se pode vivenciar mas que não se podeviver.

Buda, o "perfeito", e o que aperfeiçoa nãofala. Ele se recusa a opinar sobre se a unida~de existe ou se não existe; ele não diz se aqueleque passou por todas as provações da absorçãosubsiste, depois da morte, na unidade, ou se ele

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não subsiste. Esta recusa, este "nobre silêncio"pode ser interpretado de dois modos: um teó...rico, porque a perfeição es'capa às categoriasdo pensamento e do discurso; o outro prático,porque a revelação de sua essência não bastapara fundamentar uma verdadeira vida de sal~vação. As duas interpretações se completamcomo verdade:. aquele que faz do ente um ob~jeto de uma proposição, leva~o para o mundoda divisão' para a antítese do mundo do Isso__ no qual não existe vida de salvação. "Oh!monge, quando a opinião de que a alma e ocorpo são essencialmente idênticos prevalece,não pode haver vida de salvação; oh! monge,quando a opinião de que a alma é uma coisae o corpo outra prevalece, não pode, também,haver vida de salvação. "No mistério contem­plado, como na realidade vivida o que reina nãoé o "é assim" nem o "não é assim' não é nem oser nem o não~ser, mas o assim~e~de~outro mo~do, o ser~e~o~não~ser, o indissolúvel. Apresen~tar~se indiviso em face do mistério indiviso écondição originária de salvação. É evidenteque Buda foi um daqueles que reconheceu isso.Como todos os verdadeiros mestres, ele querensinar não uma doutrina mas o ,caminho. Elenão contesta senão uma única afirmação, ados "insensatos", para os quais não há ação,nem ato, nem força; pode~se seguir o .caminho.Ele arrisca uma só afirmação, porém, decisiva:"Há, ó monges, um ser que não nasceu, quenão se transformou, que não foi criado ou for~mado". Se este ser não existisse, não existiriafim algum. Ele existe, e o caminho tem umafinaldade.

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É até aqui que podemos, permanecendofieis à verdade de nosso encontro, seguir Bu~da; um passo mais, seríamos infiéis à a~uali­dade de nossa vida. Pois, a verdade e a atuali­dade, que nós não tiramos de nós mesmos masque nos são dadas e repartidas, nos ensinamque, se este fim é somente um entre outros,não pode ser o nosso; se for o fim ele é falsa­mente fixado. E mais: se for um fim entre ou~tros, o caminho pode conduzir até ele; se for ofim, o caminho somente conduz mais perto dele.

Buda designa como o fim a "abolição dador", isto é, do devir, da morte: a redenção docírculo dos nascimentos. "Não há volta à vida"tal é a fórmula daquele que se libertou do de~sejo de existência e, com iso, do dever~tornar~~se~continuamente.5 Ignoramos se há regresso;nós não prologamos, para além desta vda, aslinhas da dimensão de tempo na qual vivemose não tentamos descobrir o que deseja revelar­~se a nós em seu tempo e segundo sua lei. Sesoubéssemos que há um regresso, nós não pro~curaríamos de modo algum, escapar dele, po~rém em vez de aspirar à existência bruta, dese~jaríamos poder proferir, em cada existência, se­gundo seu modo e sua língua, o Eu eterno doefêniero e o Tu eterno do imortal.

Não sabemos se Buda leva a bom termo alihertação da necessidade~de~renascimento. Cer­tamente conduz a um fim intermediário que nosinteressa também: à unificação da alma. Po~rêm, para nos conduzir a ele, não só ele nosconserva afastados da "floresta de opiniões', oque é necessário, mas também da "ilusão das

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formas" que longe de ser uma ilusão, é o mundoautêntico (apesar dos paradoxos subjetivistasda intuição que para nós fazem parte dele). Seucaminho é também uma abstração e quando elE':fala por exemplo, de tomar consciência dos pro~cessos de nosso corpo, ele quer dizer com issoquase o contrário do conhecimento certo de nos~so corpo. E ele não conduz o ser unificado maisadiante até o supremo dizer~Tu que lhe é ofe ...recido. Sua decisão, no âmago do ser, parecelevar à supressão da possibilidade de dizer~Tu.

Buda conhece o dizer~Tu ao homem -- is...to patenteia~se pelo trato com os discípulos,trato esse que, embora fortemente superior, éimediato -- porém ele não o ensina; pois o sim~pIes confronto face~a~face de um ser com ou~tro é estranho a este amor que se chama "en ...cerrar indistintamente em seu seio tudo o quese tornou". Sem dúvida, ele conhece também, noâmago de seu silêncio o dizer~Tu para o prin~dpio primeiro, para além de todos os "deuses"que ele trata como discípulos; o seu ato proveiode um fenômeno de relação que se tornou subs~tancial, ato este que é também uma resposta aoTu; mas ele não diz nada.

Os seus seguidores em todas as nações, o"Grande Veículo"6 o renegaram majestosamen~te. Eles invocaram sob o nome de Buda, o Tueterno dos homens. Eles o aguardam como aoBuda futuro, o úhimo desta época, aquele quedeve realizar o amor.

Toda doutrina da absorção repousa sob ailusão gigantesca do espírito humano, voltado

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para si mesmo, de que ele existe no interior dohomem. Na verdade ele existe a partir do ho­mem, entre o homem e o que não é o homem.N a medida em que o espírito voltado sobre sirenuncia a este seu sentido, ao sentido da re­lação, ele é obrigado a colocar no homemaquilo que não é o homem, ele é obrigado areduzir o mundo e Deus a um estado de alma.Esta é a ilusão psíquica do espírito.

"Eu anuncio,ó amigo, diz Buda, que estealto corpo de asceta,. dotado de sensibilidade,habita não só o mundo, o nascimento, a aboliçãodo mundo mas também o caminho que leva aessa abolição do mundo".

112 Isso é verdadeiro, porém, em última aná-lise não é mais verdadeiro.

Sem dúvida o mundo "habita" em mim en­quanto representação, do mesmo modo quehabito nele enquanto coisa. Mas isso não im­plica que ele esteja em mim, assim como nãoestou realmente nele. Ele e eu nos incluímosmutuamente. A contradição mental inerenteao vínculo com o Isso é abolida pelo vínculocom o Tu que não me separa do mundo senãopara ligar-me a ele., Trago em mim O sentido do si-mesmo que

não integra com o mundo. O sentido do ser,que não pode ser integrado na representação,o mundo o leva em si. O sentido do ser nãoé, porém, um "querer" pensável, mas é a pró­pria mundanidade do mundo, assim como o sen­tido do si-mesmo não é um sujeito cognoscente,mas a total egoidade do Eu. Não cabe aqui

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uma "redução" a uma realidade anterior:aquele que não respeita as últimas unidades,anula o sentido que é apreensível mas não com~preensível.

O nascimento e a abolição do mundo nãoestão em mim; mas não estão também fora demim; eles simplesmente não são mas aconte .cem sempre e seu acontecimento não só se so .lidariza com minha vida, com minha decisão,com minha obra, com meu serviço, mas tam­bém dependem de mim, de minha vida, de mi...nha decisão, de minha obra e de meu serviço.Não depende~ porém, do fato de eu "afirmar·"ou "negar" o mundo em minha alma, mas dofato de eu transformar em vida minha atitudede alma diante do. mundo, uma vida que atuano mundo, uma vida atual; e numa vida atualpodem ,cruzar-se caminhos que provêm de ati...tudes de alma bem diferentes. Porém, aqueleque se contenta em vivenciar sua atitude, e so- 113mente realizá-Ia em sua alma, pode ser bem ricoem pensamentos, mas é sem mundo, e todos osjogos, as artes, a embriaguês, os entusiasmose mistérios que nele se passam não atingem nemmesmo a pele do mundo. Enquanto alguém seliberta somente em seu si-mesmo, não pode fa...zer nem bem nem mal ao mundo, não importaao mundo. Somente aquele que crê no mundopode ter algo a ver com o mundo. Se ele se arris ...ca nele, não permanece privado de Deus. Seamamos o mundo atu.al, que não quer deixar-seabolir, realmente, em todos os seus horrores,se ousarmos enlaçá-lo com os braços de nosso

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espírito, então nossas mãos encontrarão asmãos que suportam o mundo.

Nada sei sobre um "mundo" e sobre uma"vida no mundo" que separe alguém de Deus;o que assim se denomina é a vida com o mundodo Isso, que se tornou estranho, que é experi~enciado e utilizado. Aquele que verdadeira~mente vai ao encontro do mundo vai ao en~contro de Deus. É necessário se recolher esair de si, realmente os dois, o "um~e~outro'que é a unidade.

Deus envolve o universo mas não é o Uni~verso; do mesmo modo Deus abarca o meu si~~mesmo e não o é. Por causa deste querer ine~fável, posso dizer Tu em minha língua, comocada um pode proferi~lo na sua; em virtudedeste querer, existe o Eu e o Tu, o diálogo, alíngua, o espírito cujo ato originário é a lin~guagem. enfim, desde toda a eternidade, a Pa~lavra.

*

114 A situação "religiosa" do homem, suaexistência na presença é caracterizada por an~tinomias essenciais e insolúveis. O fato de se~rem insolúveis constitui a essência destas an~tinomias. Quem admite a tese e rejeita a antí~tese, altera o sentido da situação. Tentarpensar uma síntese é destruir o sentido da si~tuação. Esforçar~se em relativizar estas anti~nomias é abolir o sentido da situação. Quererresolver os conflitos destas antinomias comoutra coisa a não ser a vida, é pecar contra o

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sentido da situação. O sentido da situação é,de um lado, que ela deve ser vivida com todasas suas antinomias, e, de outro, que ela só podeser vivida sem cessar, sempre nova, imprevi~sível, inimaginável, impossível de ser prescrita.

Uma comparação entre as antinomias re~ligiosas e as antinomias filosóficas poderá es~clarecer isso. Kant pode relativizar a antinomiafilosófica entre a necessidade e a liberdadeatribuindo aquela ao mundo fenomenal e estaao mundo do ser, de tal modo que os dois pos~tulados cessem de se opor frontalmente, emais, perfaçam um compromisso, assim como osmundos, nos quais eles são válidos. Porém seeu penso a necessidade e a liberdade, não em umuniverso de pensamento, mas na atualidade deminha presença~diante~de~Deus; se eu sei que"estou entregue em suas mãos" e que aos mes~mo tempo'''tudo depende de mim", então nãoposso tentar escapar ao paradoxo que tenhopara viver, consignando aos dois princípios in~conciliáveis dois domínios separados. Não devoentão recorrer a nenhum artifício teológico a 115fim de facilitar uma reconciliação conceitual;devo obrigar~me a vivê~los simultaneamente ese são vividos, eles são um.

*Os olhos do animal têm o poder de uma

grande linguagem. Por si próprios, sem o au~xílio de sons e gestos, mais eloqüentes quandoestão absortos inteiramente em seu olhar, elesdesvendam o mistério no seu encobrimento na~

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turaI. ISto 1::",!ld êÜi61~udul::" cio devir. Somente oanimal conhece este estado do mistério, somen ..te ele pode revelá ..lo para nós .- mistério esteque somente deixa abrir ..se e não revelar ..se. Alinguagem na qual isso acontece é o que elaexprime: a ansiedade, a emoção da criaturacolocada entre o reino da segurança vegetal eo reino da aventura espiritual. Esta linguagemé o balbucio da natureza, sob o primeiro en.•volvimento do espírito, antes que ela se aban ..done a ele para sua aventura cósmica que cha ..mamos homem. Todavia, discurso nenhum re­petirá o que este balbucio pode comunicar.

Olho às vezes nos olhos dum gato do­méstico. O animal doméstico não recebeu algode nós, como às vezes imaginamos, o dom doolhar verdadeiramente •.eloqüente", mas so­mente .- ao preço da ingenuidade elementar.- a faculdade de nô..lo endereçar, a nós quenão somos animais. Mas, por isso, ele tomou em

116 si, em sua aurora e ainda em seu alvorecer, nãosei que ar de espanto e interrogação que, sãototalmente ausentes no primitivo, apesar de suaansiedade. É incontestável que o olhar destegato, iluminado pelo bafejo de meu olhar deinício me pergunta: "É possível que tu teocupes de mim? O que desejas realmente demim é outra coisa do que simples passa ..tempo?Interessas ..te por mim? Existo para você, existo?O que vem de ti para mim? O que há em tornode mim? o que me acontece? O que é isto? (Euaqui é uma perífrase para uma palavra que nãotemos, pela qual se designaria a si mesmo sem

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o Eu; por "Isto" deve ..se representar o fluxodo olhar humano em toda atualidade de suaforça de relação). O olhar do animal, esta ex..pressão de ansiedade apenas abriu ..se enorme ..mente e já se apagava. Meu olhar era perse'"verante mas não era mais o fluxo do olhar hu­mano.

A rotação do eixo universal que inaugurao evento da relação havia sucedido quase ime..diatamente outra, que coloca um fim nela.Há pouco, o mundo do Isso nos envolvia, omundo do Tu havia emanado das profundezasno instante de um olhar e agora já caiu de novono mundo do Isso.

Relato este pequeno acontecimento queme aconteceu algumas vezes por causa da lin­guagem desta aurora e ocaso, quase impercep­tíveis do s01 espiritual Em nenhum outro, sentitão profundamente a efemeridade da atuali ..dade de todas as relações com os seres, a me­lancolia sublime de nosso destino, a volta fatal 117

do Tu individualizado ao Isso. Pois, caso con­trário entre a manhã e a noite deste aconteci ..mento, havia um dia, por mais breve que fosse;mas, aí, a manhã e o anoitecer se fundiam umno outro, a luz do Tu apenas aparecia e já sedesvanecia. O peso do mundo do Isso haviasido realmente tirado de mim e do animal, noespaço de um olhar? Eu podia, em todo caso,lembrar ..me ainda, mas o animal havia recaídodo balbucio de seu olhar à ansiedade muda equase sem lembranças.

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Como é poderosa a continuidade do mUn~do do Isso! e como são frágeis as aparições' doTu!

Tantas coisas nunca chegam a romper acrosta da realidade material. Oh! débil pedaçode mica cuja visão me deu certa vez, por pri~meiro, a entender que o Eu não é algo queexiste ..em mim' -- e todavia, é somente emmim que me uni a ti; foi somente em mim enão entre ti e mim que o evento se sucedeuoutrora. Porém, quando um ente vivo surgedentre as coisas e se torna um ser para mime se volta para mim na proximidade e na pala~vra, quão inevitavelmente breve o instante noqual este ser nada mais é do que um Tu! Nãoé a relação que necessariamente se debilita,mas a atualidade de sua imediatez. O próprioamor não pode persistir na imediatez da rela~ção; ele dura, porém numa alternância de atua~lidade e de latência. Cada Tu no mundo é obri~gado por sua própria natureza, a se tornar umacoisa para nós ou de voltar sempre ao estadode coisa.

118 Somente em uma relação que tudo envol~ve, a própria latênda é atualidade. Somenteum, Tu, por essência, não deixa de ser um Tupara nós. Quem conhece Deus, conhece, semdúvida, o distanciamento de Deus, e o tormen~to da seca que ameaça o coração angustiado,mas não a ausência de presença. Nós é quenão estamos sempre presentes.

O amante da Vita Nuova diz, exata ejustamente, o mais das vezes EUa e, somente

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às vezes, V oi. O vidente do Paradiso, quandodiz Colui, usa um terno impróprio -- por ne~cessidade poética -- e sabe disso. Que se in~voque Deus como um Ele ou como um Isso ésempre uma alegoria. Ao dizermos Tu para Eleé o sentido mortal tornando palavra a verdadeinquebrantáv.el do mundo.

*

Toda relação atual no mundo é exclusiva;ó outro penetra nela e vinga a sua exclusão.Spmente na relação com Deus a exclusividade ea inclusividade absolutas se unem numa uni~dade, onde tudo é englobado.

Toda relação atual no mundo repousasobre a individuação; esta é a sua delícia pois,Só assim é .permitido o conhecimento mútuo da~gJJ~Jes que são diferentes;"ela é também o seulimite pois, assim impede tanto o perfeito reco~nhecer como o perfeito ser~reconhecido. Na re~lação perfeita, o me~ Tu engloba o meu si~~mesmo, sem no entanto, ser o si~mesmo; o meureconpecimento limitado se expande na pos~sibilidade ilimitada de ser reconhecido.

Toda relação atual no mundo realiza~senuma permuta de atualidade e latência, todoTu individual deve transformar~se em crisálidado Isso para que as asas. cresçam novamente.Mas, na verdadeira relação, a latência não émais que a pausa da atualidade onde o Tupermanece presente. O Tu eterno é, segundosua essência, um Tu; é nossa natureza que nos

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obriga a inseri~lo no mundo do Isso e nalin~guagem do Isso.

*

o mundo do Isso é coerente no espaço eno tempo.

O mundo do Tu não tem coerência nem noespaço nem no tempo.

Sua coerência ele a possui no centro ondeas linhas prolongadas das relações se cortam:no Tu eterno.

No grande privilégio da relação pura, osprivilégios do mundo do Isso são abolidos. Acontinuidade do mundo do Tu é asse,guradograças a esse privilégio:, os momet\tos isoladosdas relações se unem para. uma vida de vínculono mundo. Este privilégio confere ao mundodo Tu seu poder formador; o espírito é aptoa penetrar nele e transformá~lo. Graças a esteprivilégio não somos abandonados à estranhezado mundo, nem à desatualização do Eu e àtirania de fantasmas. A conversão consiste emreconhecer novamente o centro e a ele voltar~~se novamente. Neste ato essencial ressurge a

for~ de relação .do homem. a onda de todasas relações se espalha em torrentes vivas e re~120 nov~ nosso mundo.

Talvez não só o nosso, pois, podemospressentir o duplo movimento .-- de um lado odistanciamento da fonte primordial graças aoqual o Todo, c universo se mantém no devir,de outro lado, a volta para a fonte primordialgraças à qual o universo se redime .-- como a

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formà p.::imordial metacósmica inerente ao mun...do como totalidade em' s,eu vínculo com aquiloque não é mundo, dualidade cuja forma hu .mana é a dualidade de atitudes, das palavras .~princípio e dos aspectos 90 mundo. Este duplomovimento por força do destino, se desdobrano tempo e está encerrado por graça, ,na cria ...ção intempora1. que inconcebivelmente, é aomesmo tempo liberação e preservação, liber~tação e ligação. O nosso conhecimento a res­peito da dualidade silencia diante do paradoxodo mistério originário.

*São três as' esferas nas quais o mundo da

relação se constroi.A primeira é a vida com a natureza onde

a relação permanece no limiar da linguagem.A segundá esfera é a vida com os· homens

onde a relação toma forma de linguagem.A terceira é a vida com os setesespiri~

tuais onde a relação embora sem línguagemgera a finguagem ..

Em cada uma destas esferas, em cada' atode relação, através d'e tudo o que se nos tornapresente, vislumbramos à orla do Tu eterno,em cada uma percebemos um sopro dele, emcada Tu nós nos dirigimos ao Tu eterno, se~ 121gundo o modo específico a cada esfera. Todasas esferas são inclu{das nele, mas ele não estáincluído em nenhuma.

Através delas irradia~se uma presençaúnica.

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Não podemos desligá~las da presença.Da vida com a natureza podemos extrair

o mundo "físico", o mundo da consistência: davida com os homens, o mundo "psíquico" e daafetibilidade; da vida com os seres espirituais,o mundo "noético", o da validade. Todas asesferas perdem então sua transparência e por~tanto o seu sentido; cada uma tornou~se utili~zável e opaca, e permanece opaca mesmo quenós lhes atribuamos nomes brilhantes comoCosmos, Eros, Logos . .'Na verdade, não háCosmos para o homem senão quando o universose torna uma moradia com terra sagrada, naqual ele apresenta a sua oferta; não há Erospara ele, senão quando os seres se lhe tornamimagens do eterno e a ,comunidade com elestorna~se revelação; não há Logos para ele se~não quando ele se dirige ao mistério através daobra e do serviço no espírito.

O silêncio imperativo da forma que apa~rece, a linguagem amante, o mutismo anuncia~dor da criatura: todas são portas na presençada Palavra.

Porém, quando o encontro perfeito deverealizar~se, estas três portas se reunem em umportal que é o da vida atual, e então não sabesmais por qual delas entraste.

*122 Entre as três esferas uma se destaca: é

vida com os homens. Aqui a linguagem se com~pleta como seqüência no discurso e na réplica .Somente aqui, a palavra explicitada na lingua~

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~.

,gem encontra sua resposta. Somente aqui, apalavra~princípio é dada e recebida da mesmaforma, a palavra da invocação e, a palavra daresposta vivem numa mesma lingua, o Eu e oTu não estão simplesmente na relação mas tam~bém na firme integridade.7 Aqui, e somenteaqui, há realmente o contemplar e o ser~con~templado, o reconhecer e o ser~reconhecido, oamar e o ser~amado.

É esta a entrada principal em cuja abet~tura abrangente incluem~se as duas portas la~terais.

"Quando um homem está intimamente uni~do a sua mulher, estão envolvidos pelo soprodas colinas eternas".

A relação com o ser humano é a verda~deira imagem da>relação com Deus, na qual averdadeira invocação participa da verdadeiraresposta. -Só que na resposta de Deus tudo, oTodo se revela como uma linguagem.

*Porém, a solidão não é ela também uma

porta? Não se revela, às vezes, no mais silen~cioso isolamento, uma visão inesperada? O in~tercâmbio consigo mesmo não pode transfor~ 123mar~se misteriosamente em um intercâmbiocom o mistério? E mais, não é aquele que nãoé submetido a nenhum ser, o único dignode se encontrar com o Ser? '.'Vem, ohl So~litário, para o solitário", exclama Simeon.o Novo Teólogo para o seu Deus.

.- Há dois tipos de solidão, segundoaquilo de que ela se afasta. Se solidão significa

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afastar ...se do comércio com as coisas de expe­riências e utilização, então ela é sempre ne...cessária. não só para a relação _~suprema massobretudo para o ato de relação. Porém se secompreentler a solidão como ausência de re­lação. não é aquele que abandonou os seresque será acolhido por Deus; mas aquele que foideixado pelos seres aos quais ele endereçava

__9_ Tu verdadeiro. Permanece preso a algunsdentre os seres somente aquele que cobiça uti.:.lizá-Ios; aquele que vive' no poder da presenti...ficação só pode estar ligado a eles. Só aqueleque está vinc~lado com os seres está prontopara o' encontro com Deus. Pois, somente ele,leva .ao encontro da atualidade de Deus umaatuaJidade humana.

Ademais, há dois tipos de solidão segundoaquilo a que elas se propõem. Se a solidão é olugar onde se realiza a purificação como sefaz necessária para aquele que está vinculadoantes de penetrar no Santo dos Santos, masnecessária. também no_meio de suas provações

'. entre a queda inevitável e a subida para com­provação, então, é para a solidão que _somosfeitos. Porém, se a solidão é uma fortaleza daseparação, onde o homem mantém um diálogoconsigo mesmo, não com o intuito de por-se àprova e de dominar...se em vista do que o es­pera, mas para desfrutar a complexão de suaalma, tal é a verdadeira decadência do espíritona espiritualidade. Tal decadência pode ,au-.

121 mentar até o último abismo onde o homem ilu­dido imagina possuir em si Deus e falar com

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ele. Mas, embora Deus nos envolva e habite emnós, jamais o possuímos em nós. E podemos fa...lar com ele somente na medida em que nadamais falar em nós.

*Um filósofo moderno acha que cada ho..­

mem crê necessariamente seja em Deus, sejaem "ídolos', isto é, em algum bem fjnito -- suanação, sua arte, no poder, no saber, no dinheiro,no "constante triunfo com mulher" -- um bem'que se lhe torna absoluto e que se interpõe en...tre Deus e ele e que basta somente demonstrar­-lhe a qualidade relativa deste bem para "des..­.truir" os ídolos e para o ato religioso voltar,por si mesmo, ao objeto adequado.

Esta concepção supõe que o contato dohomem CQmos bens finitos que ele "idolatra"é, em última análise, da mesma natureza queo contato com Deus e' só difere quanto ao ob-jeto; neste caso, a simples substituição do obje-to falso pelo autêntico poderia salvar o pecador.Has o contato de um homem com "algo espe­daI" que usurpou o trono supremo dos valoresde sua vida e desalojou a eternidade, é orien­tado sempre para o experienciar e o utilizar de 125um Isso, de uma Coisa, ou de um objeto deprazer. Pois, somente tal contato pode obstruira perspectiva sobre Deus pela interposiçãoopaca do mudo do Isso; a relação que profereo Tu abre sempre. de novo esta perspectiva.Aquele que é dominado pelo ídolo, que ele querganhar, possuir e reter, que é possuído pela

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vontade de posse, não tem outro caminho paraDeus senão a conversão que é uma mudança,não somente quanto ao fim, mas também quantoao tipo de movimento. Cura--se o possesso reve-­lando--Ihe e ensinando--lhe o verdadeiro vínculoe não orientando para Deus sua obsessão. Se aI.•guém permanece no estado de posse, o quesignifica o fato de, em vez de invocar o nomede um demônio ou de um ser disfarçado emdemônio, se invocar o nome de Deus? Signi ..fica que, Comisso, ele blasfema. É blasfêmiaquando alguém depois que o ídolo saiu atrásdo altar, pretende apresentar a Deus a ofertaímpia sobre o altar profanado.

Quando um homem ama uma mulher detal modo que ele a torna presente em sua vida,o Tu do olhar dela lhe permite vislumbrar umraio do Tu eterno. Mas aquele que é ávido de"triunfos sempre renovados" -- apresentareisa. esta cobiça um fantasma de eternidade?Quem se consagra ao serviço de um povo, noardor de um imenso destino, se ele quiser de-­votar--se a ele, pensa em Deus. Porém àquelepara o qual a nação é um ídolo, a cujo serviçoele queria tudo submeter, porque nesta imagemele exalta sua própria imagem, acreditais quebasta que o façais se desgostar para que ele vejaa verdade? E o que significa que alguém quetrata o dinheiro -- o não--ser encarnado "comose fosse Deus?" Que há de comum entre a vo-­lúpia de apoderar--se de um tesouro e conser-­vá--Io com alegria na presença daquele que setorna presente? Pode o servo de Mamon dizer

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Tu ao dinheiro? E o que deve ele fazer comDeus, se ele não sabe dizer Tu? Ele não podeservir a dois senhores, mesmo que seja um apóso outro, ele deve, antes de tudo, aprender aservir diferentemente.

O convertido, graças à substituição, tem umfantasma que ele chama Deus. Porém, Deus aeterna presença não se deixa possuir. Infeliz opossesso que crê possuir Deus!

*

Afirma--se que o homem "religioso" é aque .•le que não necessita estar em relação com omundo ou com os seres,~porque o estado de vi ..da sociaL determinado do exterior, é ultrapas ..sado por uma força ,que só agiria do interior.Confunde-:se assim ,sob o conceito de sociaLduas coisas fundamentalmente diferentes: acomunidade, que se edifica pela-relação, e amassa de unidades humanas sem relação entresi, isto é, a ausência de relação, que se tornouevidente no homem moderno. Porém, o claroedifício da comunidade para a qual pode--seser libertado da masmorra da sociabilidade éobra da mesma força que atua na relação dohomem com Deus. Todavia, esta relação nãoé uma relaçãô entre outras; ela é a relação to-­ta] na qual todas as torrentes desaguam sem,com isso, se esgotar. Mar e rios -- quem de.•seja aqui distinguir e traçar limites? Não hásenão um fluxo do Eu para o Tu, cada vez maisilimitado, uma maré única e sem limites da vi--

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da atual. Não se pode dividir a vida entre umarelação atual com Deus e um contato inatual deEu~Isso com o mundo; não se pode orar ver~dadeiramente a Deus e utilizar o mundo. Aqueleque só conhece o mundo como algo que se uti~liza vai conhecer Deus do mesmo modo. Suaprece é um modo de se desobrigar; ela cai noouvido do nada. Tal homem é o homem semDeus, e não o "ateu" que, do fundo da noitee da nostalgia da janela de seu quarto, invocao inominado.

Afirma~se ainda que o homem religiosose apresenta diante de Deus como o Indivíduo,como o único, separado, porque ele ultrapassoutambém o estado do homem "moral" que aindaestá inserido no dever e na obrigação do mun~do. O homem moral ainda está sobrecarregadocom a responsabilidade de todos atos dos ho~mens de ação, pois ainda está totalmente deter~minado pelo estado de tensão entre o ser e odever~ser e que, em sua abnegação grotesca esem esperança, atira, aos poucos, o seu coraçãono abismo infinito entre os dois. O "religioso",porém, livrou~se daquela ~ensão e elevou~seàquela outra entre Deus e o mundo; aí impera alei d,eexc1uir a inquietude da responsabilidadee também a lei do que~exige~de~si~mesmo.Nãohá maisvontade própria, mas só o conformar~secom o que é disposto; aí, todo dever fundamen~ta~se no absoluto, e o mundo, se elé subsisteainda, perdeu o seu valor. Deve~sedesempenharo seu papel nele, por assim dizer, sem compro~misso, visto que toda atividade se reduz ao na~

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da. Isto significa dizer que Deus não teriacriado senão um mundo aparente e o homemcomo um· ser para a vertigem. Sem dúvida,aquele que se apresenta diante da Face, ultra..passou o dever e a falta, não porque tenha seafastado do mundo, mas pelo contrário, porquerealmente dele se aproximou. Não se tem d~~ver e culpa senão para com os estranhos; paracom familiares tem~se afeição e ternura. Para,quem se apresenta diante da Face, o mundo sóse torna realmente presente, à luz da. eterni..dade, na plenitude da presença; ele pode então,de um só impulso, proferir o Tu a todos, aoser de todos os seres. Não há mais aí a tensãoentre o mundo e Deus, mas somente a atuali..dade única. Tal homem não se libertou daresponsabilidade;>ele permutou a tormenta deuma responsabilidade finita, que procura resul..tados pelo poder do elan de uma responsabi..lidade infinita, a força de assumir com amor aresponsabilidade por todos os acontecimentosinexploráveis do mundo o estar~inserido~no..-1Ilundodianteda Face de Deus Sem dúvida, elerenuncIou para sempre às avaliações morais. O"mau" é aquele por quem ele se sente profun..damente responsável, aquele que é o mais ca~rente de seu amor; porém deverá ele exercitaro decidir~se nas profundezas da espontaneida~de, até a morte; ele deverá sempre realizar ocalmo decidir..se...sempre no agir corretamente.O agir, então, não será em vão: ele é intencio..na!, é uma missão, tem...se necesSidadedele, ele 129pertence à criação; porém, este fazer não impõe

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mais ao mundo, cresce nele como se fosse onão ...fazer.

*

o que é o eterno: o fenômeno primordialpresente no aqui e agora que nós chamamos Re...velação? É o fenômeno pelo qual o homem nãosai do momento do encontro supremo do mes...mo modo como entrou. O momento do encontronão é "vivência" que surge na alma receptiva ese realiza perfeitamente; algo aí ácontece nohomem. Às vezes parece um sopro, às vezes.como se fora uma luta, pouco importa: acon ...tece. Ao sair do ato essencial da relação pura.o homem tem em seu ser um mais, um acréscimosobre o qual ele nada sabia antes e cuja ori...gem ele não saberia caracterizar corretamente.Não importa como a concepção· cie:ptífic.a domundo, em seu esforço legítimo emestabele ...cer uma causalidade sem lacuna, .classifica aproveniência da novidade; quanto a nós,_a quemimporta a verdadeira consideração do atual.não basta aqui· um subconsciente ou qualqueroutro mecanismo psíquico~ A verdade é querecebemos algo que não possuíamos antes e orecebemos de tal modo que sabemos que istonos foi dado. Em linguagem bíblica: "Aquelesque esperam em Deus receberão a força emtroca". E, como diz Nietzche, fiel à realidade

130 até em sua descrição: "Toma ...se sem pergun­tar quem dá". 8

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O homem recebe e o que ele recebe nãoé um "conteúdo" mas uma presença. umapresença que é uma força. Esta presençae esta força encerram três fatos, que emboraindivisos, podemos encará-Ios separadamente.Em primeiro lugar, toda a plenitude da ver ...dadeira reciprocidade, do fato de ser acolhido,de estar vinculado; sem que se possa, de aI...gum modo, dizer como é feito aquilo a que seestá ligado e sem que esta ligação nos facilitea vida -- ela nos torna a vida mais pesada,porém mais pesada de sentido. Apresenta-seentão o segundo ponto: é a inefável confirma ...ção do sentido. Este sentido é garantido. Nada,nada mais pode ser sem sentido. A questão dosentido da vida não se coloca mais. Porém seela se colocasse, ~ão precisaria ser respondida.Não sabes demonstrar o sentido e não sabes de­fini-Io, para ele não possuis nem f~rmula nemimagem e, no entanto, ele é para ti mais certoque os dados de teus sentidos. O que tem elea ver conosco então? O que exige de nós estesentido revelado mas oculto? Ele não é inter ...pretado -- isso não nos é possível -- ele sóquer que o realizemos. É este o terceiro ponto:não se trata do sentido de uma "outra vida",mas de nossa vida, não de um "além", masdeste nosso mundo, e ele quer que nós o colo­quemos à prova, nesta vida, neste mundo. Em- 131

bora este sentido possa ser concebido, ele nãopode, no entanto, ser experienciado; ele nãopode ser experienciado mas pode ser realizado,e é isso o que solicita de nós. A garantia não

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deseja permanecer fechada dentro de mim. elaquer nascer no mundo por meu intermédío. Po.­rém, assim como o sentido não se deixa transmi~tir nem ser formulado em uma teoria válida eaceitável por todos, a sua colocação à provana ação não pode ser formulada em obrigaçõesválidas, não é prescrita, não é consignada emnenhuma tábua que pudesse erigir~se acima detodos as cabeças. Cada um só pode pôr à pro~va o sentido recebido com a unicidade de seuser e na unicidade de sua vida. Assim comonenhuma prescrição pode conduzir~nos ao en~contro, do mesmo modo nenhuma nos faz delesair. Somente a aceitação da presença é exi~gida não só para ir~para~ele, mas também, emum novo sentido, para sair-dele. Assim comose chega ao encontro, com um simples Tu noslábios, do mesmo modo, se é enviado ao mundocom o Tu nos lábios.

Aquilo diante do que vivemos, aquilo noque vivemos, a partir do qual e para o qualvivemos, o mistério, permaneceu como era an~teso Ele se nos tornou presente e se nos reve~lou em sua presença como a salvação; nós o"reconhecemos" sem, no entanto, termos deleum conhecimento que diminuísse ou atenuasepara nós o seu caráter misterioso. Nós nosaproximamos de Deus mas não adiantamos nadecifragem, no desvelamento do Ser. Sentimos

132 a salvação mas não a solução. O que recebe~mos não podemos levar aos outros dizendo:isto deve ser conheddo, isto deve ser feito. Sópodemos ir e pôr à prova. E isso não é para

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nós uma simples obrigação, é um poder, umdever absoluto.9

T aI é a revelação eterna, presente aqui eagora. Não conheço nenhuma revelação e nãocreio em Ilenhuma que não seja, em seu fe~nõmeno originário, semelhante a esta. Eu nãoacredito em uma auto~denominação ou em um.aauto~definição de Deus diante do homem. Apalavra da revelação é esta: "eu sou presentecomo aquele que sou presente" .10 O que serevela é o que se revela. O ente está presente,nada mais. A fonte eterna de força· brota, oeterno toque nos aguarda, a voz eterna ressoa,nada mais.

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O Tu .eterno não pode, por essência, tor_nar~se um Isso, pois ele não pode reduzir-Se auma medida ou a um limite mesmo que sejaà medida do incomensurável, ao limite do ili­mitado. Por essência ele não pode ser COtlce~bido como uma soma infinita de qualidades,nem como uma soma de qualidades elevadê\s àtranscendência. Não pode tornar~se um Isso,porque não pode ser encontrado nem no IIlUtl_do, nem fora do mundo porque ele não Podeser experienciado nem pensado; nós pe.camoscontra Ele, o Ser, quando dizemos: "Eu Creioque ele é"; além disso, "Ele" é uma metáforê\,mas "Tu" não é uma metáfora.

E, no entanto, fazemos, conforme nossaprópria essência, do Tu eterno um Isso, Um

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algo, reduzímo~lo sempre a uma coisa. Não porcapricho. A história reificada de Deus, a pas~sagem do Deus~coisa através das religiões e seusconstrutos laterais, através de suas inspiraçõese trevas, seja em momentos de enaltecimentoou menosprezo da vida; o distanciamento ou avolta ao Deus vivo; as transformações de pre~sença, de forma, de objetivação, de conceitua ..ção, de dissolução, de renovação, é um caminho,tudo isso é o caminho.

De onde provém o conhecimento explícito ea prática ordenada das religiões? A presença e aforça da revelação, (pois, todas as religiões in~vocam necessariamente algum tipo de revelação,seja pela palavra, seja por um evento naturalou psíquico --- não há, em suma, corretamentefalando, senão religiões reveladas) então, a pre~sença e a força que o homem recebe na reve ..lação, como se transformaram em "conteúdo"?

A explicação tem dois aspectos. O aspec~to exterior. psíquico, nós o conhecemos. ao con~siderarmos o homem em si. isolado da História;o aspecto interior, efetivo. o fenômeno origi­nário das religiões quando recolocamos o ho~mem na História. Os dois aspectos estão inter~ligados.

134 O homem aspira posuir Deus; ele aspirapor uma continuidade da posse de Deus no es..paço e no tempo. Ele não se contenta com ainefável confirmação do sentido, ele quer vê-Iadifundida como um contínuo. sem interrupçãoespado-temporal que lhe forneça uma segu ..

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rança a sua vida, em cada ponto, em cada mo..mento.

Tão intensa é sua sede de continuidadeque o homem não se satisfaz com o ritmo vitalda relação pura onde se alternam atualidade elatência. onde é nossa força de relação que di~minui. por isso, a presença, e não a presençaoriginária. Ele aspira à extensão temporal, aduração. Deus se torna um objeto de fé. Ori ..ginariamente a fé completa, no tempo. os atosde relação e, gradualmente, ela OS substitui. Emlugar do ritmo essencial e sempre renovado dorecolhimento e da expansão, estabelece-se umaestabilidade em torno de um Isso no qual secrê. A confiança obstinada do lutador queconhece a distância· e a aproximação de Deusse transforma cada vez mais completamente nasegurança do usufrutuário persuadido de quenada pode 1he acontecer, pois ele crê que existeAlguém que não permite algo lhe suceder.

Também não satisfazem a sede de continui~dade do homem, a estrutura vital da relaçãopura, a "solidão" do Eu em presença do Tu, alei segundo a qual o homem. embora possa en~cerrar o mundo no encontro. não pode ir paraDeus e encontrá~lo senão como pessoa. Ele de~seja a extensão espacial. a representação naqual a comunidade dos fiéis se une com seuDeus. Deus se torna deste modo. um objeto deculto. O culto. também completa. originaria~ 135mente. os atos de relação, na medida em queinsere a oração viva, o dizer~Tu imediato emum conjunto espacial de grande poder de ima~

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a graça, reflete sobre aquele que concede estedom e assim não atinge nem um nem outro.

N a experiência da· vocação. Deus é parati a presença. Aquele que, em missão, percorreo caminho, tem Deus diante de si; quanto maisfiel o cumprimento da missão, mais intensa econstante a proximidade. Ele não pode, semdúvida, ocupar~se de Deus, mas pode entreter~~se com ele. A reflexão ao contrário, faz deDeus um objeto. O seu movimento, qne apa~rentemente o faz dirigir~se para o fundamentooriginário, não passa, na verdade, de um as~pecto do movimento universal de afastamento.Do mesmo modo o movimento, que aparente~mente realiza aquele que cumpre sua missão,ao afastar~se dele, pertence, na realidade, aomovimento universal de aproximação.

Pois estes dois movimentos fundamentais,metacósmicos: a expansão para o próprio sere a conversã.o para o vínculo, encont~am suamais alta forma humana, a verdadeira formaespiritual de seu confronto e de sua conciliação,de sua composição e separaçãoll na história docontato humano com Deus. Na conversão, oVerbo nasce sobre a (erra, na expansão, ele setransforma e se encerra na crisálida da religião,

.em uma nova conversão, ele renasce com asasrenovadas.

Aqui não reina o arbitrário; embora o mo~vimento para o Isso vá, às vezes, tão longe aponto de oprimir e ameaçar, sufocar o movi~mento de retorno ao Tu.

138 As poderosas. revelações que as religiõesinvocam, se assemelham fundamentalmente às

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~ \~revelações silenciosas que se passam em todotempo e lugar. As revelações poderosas queestão na origem das grandes comunidades, nosmovimentos de transição das etapas da huma~nidade, nada mais são do que eterna revelação.A revelação, no entanto, não é derramada so~bre o mundo através de seu destinatário, comose o fosse através de um funil; ela chega a ele,ela o toma em sua totalidade, em todo o seumodo de ser e se amalgama a ele. Também ohomem, que é a "boca", é exatamente a boca enão um porta~voz, não é um instrumento, masum órgão que soa segundo suas próprias leis esoar é transformar.

Há todavia, uma diferença qualitativa en~tre as etapas da história. Há uma maturação dotempo, onde o elemento verdadeiro do espíritohumano, oprimido e soterrado, amadurece paraa disposição, sob tal pressão e em tal tensãoque, ele só espera um toque daquele cujo con~tato produz o surgimento. A revelação, que aíse produz envolve na totalidade de sua cons~tituição, ela o funde e imprime nele uma forma,uma nova forma de Deus no mundo.

É assim pois, que, ao longo do caminhoda História, através das transformações doelemento humano, são chamados à forma di~vina sempre novos domínios do mundo e doespírito. Esferas sempre novas tornam~se olugar da teofania. O que aqui atua não é maiso poder próprio do homem, também não é a pura 139passagem de Deus, é uma mistura de divinoe humano. Aquele a quem na revelação, foi

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confiada uma missão, leva em seus olhos umaimagem de Deus -- por mais supra sensível queseja, ele leva nos olhos de seu espírito, nestaforça visual de seu espírito não é de modoalgum, metafórico, mas plenamente real. Oespírito, por sua vez, responde também atra­vés de uma visão, através de uma visão for­madora. Embora nós, terrestres, não perceba­mos jamais Deus sem o mundo, mas só o mundoem Deus, ao percebermos, criamos eternamentea forma de Deus.

A forma também é uma mistura de Tu eIsso; ela pode solidificar-se em um objeto de fée de culto; porém em virtude da essência darelação que subsiste nela, ela se transformasempre em presença. Deus é próximo de suasformas, enquanto o homem não se afasta delas.Na verdadeira prece, o culto e a fé se unem ese· purificam para a relação viva. O fato de averdadeira prece permanecer viva nas religiõesé o sinal de sua verdadeira vida; enquanto vi­vem nela, elas permanecem vivas. A degene­ração das religiões significa a degeneração daprece nelas. Na medida em que o poder derelação é cada vez mais encoberto pela objeti­vidade, torna-se cada vez mais difícil de nelaspronunciar o Tu COmo ser total e indiviso, e ohomem, para poder fazê-lo, aeve finaJmentesair de sua falsa segurança para a aventura doinfinito, sair da comunidade reunida somentesob a cúpula do templo e não sob o firmamen­to para projetar-se para a última solidão. Atri-

140 buir este anseio ao subjetivismo é desconhecê-

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-10 profundamente; a vida diante da Face éa vida na atualidade única, o único U objecti ..•vum" verdadeiro; e o homem que se projeta pa­ra este fim quer, antes que o falso e ilusório obje­tivo tenha perturbado a sua verdade, refugiar­-se naquele que é realmente. Enquanto, o subje­tivismo absorve Deus na alma, o objetivismofaz dele um objeto; este é uma falsa segurançaaquele uma falsa libertação; ambos são desviosdo caminho da atualidade, ambos são tentativasde substituição da atualidade.

Deus é próximo de suas formas, enquantoo homem não as afasta d'Ele. Porém, quandoo movimento de expansão das religiões difi­culta o movimento de conversão e afasta aforma de Deus, apaga a face da forma, seuslábios desfalecem, suas mãos caem, Deus nãoa conhece mais e a morada universal, construí­da em volta de seu altar, o cosmos humano caiem ruínas. Que o homem, diante de sua ver­dade destruída, não veja mais o que aí aconte­ceu é próprio do aconte.cimento.

Aconteceu a decomposição da Palavra.

A Palavra está presente na revelação, elaage na vida da forma e seu valor está no reinoda forma morta.

Tal é a ida e a vinda da Palavra eternae eternamente presente na história.

As épocas nas quais a palavra está pre ...sente, são aquelas onde se renova o contato doEu e do mundo. As épocas onde reina a Pa­lavra ativa são aquelas nas quais perdura o

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acordo entre o Eu e o Mundo. As épocas nasquais a Palavra se torna válida são aquelasnas quais se realizam a desatualização, a alie~nação entre o Eu e o Mundo, a fatalidade dodevir - até que sobrevenha o grande tremore a suspensão do alento na obscuridade, e osilêncio preparador.

A estrada não é, por~m, circular. Ela é ocaminho. Em cada novo Eon, a fatalidade setorna mais opressora, a conversão mais assola~dora. E a teofania se torna cada vez mais pró~xima, ela se aproxima sempre mais da esferaentre seres, se aproxima do reino que se ocultano meio de nós, no "entre". A história é umaaproximação misteriosa. Cada espiral do ca~minho nos conduz igualmente a uma perdiçãomais profunda e a uma conversão mais origi~nária. Porém o evento que do lado do mundose chama conversão, do lado de Deus, se chamaredenção.

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POST~SCRIPTUM

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Quando, (há mais de 40 anos), eu esbo~ 145cei pela primeira vez este livro, o que me im~peliu a fazê~lo foi uma necessidade interior.Uma visão que, desde minha juventude, apa~recia sem cessar, para logo em seguida se es~vaecer, atingiria uma claridade constante quepossuia, tão evidentemente, um caráter supra~pessoal, que eu compreendi imediatamente quemeu dever era ser seu testemunho. No entanto,logo após ter~me convencido da dignidade de,pelo meu serviço, tdmar a palavra e de ter sen~tido no direi.to de dar a este livro sua forma de~finitiva, constatei que deveria ser completadoem vários pontos, independente do texto jáformulado ( 1). Assim, apareceram alguns escri~tos menores (2) cuja finalidade era, quer escla~recer melhor aquela visão, por meio de exemplos,quer explicá~la, para que objeções pudessem serrefutadas, ou ainda de criticar certas concepções

(1) - Publicado em 1923.(2) - Zwiesprache (Diálogo) 1930.Die Frage an die Einzelnen (A questão ao indivíduo) 1936.Ueber da Erzierische (Sobre a função educadora) 1926.

Em Buber, M. Conferências sobre Educação, Heidelberg,Lambert Schneider, 1962.

Das Problem des Menschen (O Problema do homem) (Emhebraico 1943) Heidelberg, Lambert Schneider, 1961.

Todos os títulos reunidos em: Martin Buber, Werke ErsteBand: Schriften zur Philosophie (M. Buber - Obras, Pri­meiro Volume: Escritos sobre Filosofia). München, Heidelberg,1961.

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que, embora tenham trazido importantes escla_recimentos, não conseguiram apreender o sen­tido central daquilo que era mais essencial paramim, a saber, os vínculos íntimo entre a relação

146 com Deus e a relação com o homem. Mais tar­de, melhores esclarecimentos foram acrescen­tados, uns, relativos aos fundamentos antropo­lógicos (3), outros, relativos às implicações so­ciológicas (4) . Verificou-se, todavia, que issoainda não esclarecia tudo de um modo suficiente.Os leitores incessantemente dirigiam-se a mimpara perguntar sobre o sentido de tal passagemou de tal outra. Durante muito tempo eu res­pondi a cada um deles, mas logo notei quenão poderia atender todas as exigências e ade­mais, não devo limitar as relações dialógkasàqueles leitores que se decidiram a falar. Tal­vez haja, justamente dentre os silenciosos,aqueles que merecem uma atenção especial. As­sim resolvi responder publicamente, primeira­mente a algumas questões essenciais que se re­lacionam em certo sentido.

---2---

Eis, como poderia ser formulada, com al­guma precisão, a primeira ques$ão: se, como

(3) - Urdistanz und Beziehung (Distância original erelação 1950.

Heidelberg, Lambert Schneider, 1960.(4) - Elemente des Zwischenmensohlichen (Elementos do

Interhumano) 1954.Em M. Buber - Das Dialogische Prinzip (O Princípio

Dialógico) Heidelberg. Lambert· Schneider 1962. Obras.Primeiro Volume 1962.

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diz esta obra, nós podemos nos encontrar emrelação Eu-Tu não somente com outros ho­mens, mas também com os entes ou coisas que, 147na natureza, vêm ao nosso encontro, em quese fundamenta a diferença entre aqueles e es-tas? Ou então, de um modo mais preciso: seesta relação implica uma reciprocidade abran­gendo efetivamente os dois parceiros, o Eu e oTu. como pode a relação com aquilo, que ésimples natureza, ser entendida como uma re­lação deste tipo? Ou mais exatamente: se de...vemos admitir que seres ou coisas da naturezanos quais encontramos nosso Tu, nos conce-dem uma certa espéde de reciprocidade, de queespécie é esta redprocidade e o que nos per­mite atribuir este conceito tão fundamental?

A esta questão não existe, aparentemen ...te, uma {esposta uniforme. Aqui em vez detomar a natureza como um todo, como de há­bito se faz, devemos considerar seus diversosdomínios. O homem outrora, "domou" os ani­mais e é ainda capaz de exercer este singularpoder. Ele os atrai em sua atmosfera e os levaa aceitá-Io, ele, o estranho, de um modo ele­mentar, a atendê-lo. Ele obtém da parte delesuma reação ativa e muitas vezes suprendenteàs suas solicitações e apelos, reação esta que é,geralmente, tanto mais intensa e direta quantomais a sua posição, com relação a eles, é um di­zer- Tu autêntko. Pois os animais, como as.crianças sabem discernir se as manifestações deternura são dissimuladas ou não, são autênticasou não. Um contato semelhante se produz

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também, às vezes, entre o homem e o animalfora do âmbito da domesticação: aí trata~se dehomens que trazem, no fundo do seu ser, a vir~

148 tualidade de um contato com o animal não co­mo se fossem, em certo sentido, pessoas •.ani­mais" mas antes, pessoas dotadas de uma espi~ritualidade elementar.

O animal não é duplo, como o homem: adualidade das "palavras~princípios" Eu~Tu eEu~Isso lhe é estranha, embora ele possa muitobem dirigir sua atenção a um outro ser quantocontemplar objetos. Podemos sempre afirmarque, nesse caso, a dualidade é latente. Estaesfera considerada como dizer tu que emana denós em direção à criatura, pode ser chamadalimiar da mutualidade.

O mesmo não se aplica aos domínios danatureza, aos quais falta a espontaneidade quetemos em comum com o animal. A planta, comoa concebemos, não pode reagir à nossa açãosobre ela, não pode "retribuir". Isto não sig....nifica, no entanto, que não participamos denenhuma espécie de reciprocidade. Emboranão exista aí ação ou atitude de um indivíduo,existe, sem dúvida, uma reciprocidade do pró~pri~ ser, uma reciprocidade que não é senão oSer. Aquela totalidade viva e a unidade daárvore, que se recusam ao olhar mats perscruta~dor daquele que só se limita a explorar masque se oferecem àquele que diz Tu, estão pre~sentes quando o homem está presente; ele per~mite à árvore manifestá~las e, pelo fato de ser,a árvore as manifesta. Nossos hábitos de pen~

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samento nos dificultam reconhecer que, aqui,algo suscitado pela nossa atitude, algo que vemdo Ser, se desperta e brilha diante de nós. Nestaesfera, o essencial é nos entregar livremente à 149atualidade que se nos oferece. A esta vastaesfera que se estende das pedras às estrelas,atribuo o nome de pré~limiar, isto é, últimograu antes do limiar.

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Mas, então, apresenta~se a questão sobre aesfera que poderia ser chamada, para empre~gar a mesma imagem, a esfera do "supra~li~miar", aquela além da porta, a esfera que cobrea porta: a esfera do espírito. Aqui, também sefaz necessária a distinção entre dois setores;entretanto 'á divisão aqui operada, é mais pro~funda que aquela no seio da natureza. Ela éa separação entre aquilo que, de um lado, noque se refere ao espírito, já se manifestou nomundo e tornou~se perceptível aos nossos sen~tidos, e, de outro lado, aquilo que ainda nãose incorporou no mundo, mas que, no entanto,está pronto a se encarnar tornando~se presençapara nós. Esta distinção é fundamentada nofato de eu poder, por assim dizer, te mostrar,meu leitor, aquilo que de espiritual já foi reali~zado, sem no entanto, poder mostrar~te aoutra. Posso chamar tua atenção sobre as obrasdo espírito que existem efetivamente, ou sobreuma coisa ou ser da natureza que existem

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atualmente e também sobre algo que te é atualou virtualmente acessível. Não é possível, noentanto, indicar~te algo que ainda não se incor~porou no mundo. Quando ainda me pergun~tam, onde. no âmbito desta região, se encontraa mutualidade, não posso senão fazer indireta~

150 mente alusão a determinados fenômenos, im­possíveis de serem descritos, na vida do homem,ao qual o Espírito se revelou como encontro.E, finalmente, se o modo indireto se revelainsuficiente, nada me resta senão apelar, meuleitor, para o testemunho de teus próprios se~gredos, que embora estejam, quem sabe, soter­rados. podem ainda ser atingidos.

Voltemos. então à primeira região, aqueladenominada dos "entes à mão" pois, aqui, pode­mos tomar apoio sobre exemplos.

Aquele que questiona torna presente a simesmo uma das sentenças de um mestre mortohá milhàres de anos e tenta acolher esta sen~tença, na medida do possível, pelo sentido doouvido, como se o Mestre estivesse presentepronunciando-a pessoalmente. Para tanto, devevoltar~se com todo o seu ser, para aquele quea profere e que não existe, isto é, a atitude quedeve tomar para com este homem, ao mesmotempo vivo e morto, deve ser aquela que euchamo o dizer~Tu. Caso consiga (é:1 vontade eo esforço, na verdade, não bastam, mas pode

retomar sem cessar, a tarefa), perceberá, deinício talvez indistintamente, uma voz idênticaàquelas cujo som encontraremos em outrasdentre as sentenças do Mestre. Agora, não po-

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derá mais realizar aquilo que poderia, enquantoconsiderar a sentença como um objeto: nãopoderá isolar nem seu conteúdo nem seu ritmo: 151não acolherá senão a totalidade indivisÍvel deuma fala. 1

Porém, isto é ainda ligado a uma pessoa,à manifestação em cada caso, da pessoa emsua palavra. Ora, o que quero dizer não selimita a uma contínua presença de uma existên~da pessoal em palavras. Para isso, devereiapelar agora para um exemplo que não estejaafetado de nenhum elemento pessoal. Escolhoum exemplo, que evocará, em muitos de nós,intensas lembranças. Trata~se da coluna dóri~ca, onde ela se revela a um homem capaz dese entregar à sua contemplação e disposto adedicar~se a isto ..k mim ela se apresentou pelaprimeira vez em Siracusa, em um muro de umaIgreja, onde, outrora, fora incrustrada. Miste,.riosa medida originária revelando,.se de ummodo tão sóbrio e tão desprendido, que nelanão havia sequer detalhes a serem considera~dos ou objeto de prazer. Eu era capaz de reali~zar aquilo que deveria ser feito, a saber, tomarposição e manter esta atitude em face da formaespiritual, desta realidade que, passada pelosentido e pelas mãos do homem, encarnou~segraças a eles. O conceito de mutualidade desa,.parece aqui? Ou ele mergulha novamente nastrevas, ou então ele se transforma em um estadoconcreto de coisas, um estado que recusa termi,.nantemente a conceitualização, mas que é claroe autêntico.

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Nesta perspectiva, poderemos também con~siderar a outra região, aquela daquilo que "nãoestá à mão", aquela do contato com os "seresespirituais", a da origem da palavra e da Forma.

152 Espírito tornado verbo, espírito tornadoforma. Aquele que foi tocado pelo espírito enão se impermeabiliza à sua presença, sabe, emum ou outro grau sobre o fato fundamental.Tais coisas não germinam e não se desenvol~vem no mundo dos homens sem serem semea~das; sabe que elas nascem do encontro doHomem Com o Outro. Não de encontro comidéias platônicas (que, aliás, não tenho conhe~cimento direto e nas quais não posso ver o ser)mas encontro com o Espírito, que nos envolvee que penetra em nós. Aqui, mais uma vez,lembro~me da estranha confissão de Nietzche,abordando o fenômeno da "inspiração", acon~selhando que se receba sem perguntar quemoferece. Certo, não se perguntará, mas nem porisso não se deixa de agradecer.

Peca aquele que tenta apoderar~se doespírito quando ,conhece o seu sopro, ou quetenta descobrir sua natureza. Porém, é umainfidelidade para com ele atribuir~se a si este

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Reconsideremos conjuntamente o que foidito a respeito dos encontros com o elementonatural e daqueles com o elemento espiritual.

153 Temos o direito - poder~se~ia perguntar- de falar de "resposta" ou de "apelo" pro~

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venientes de uma ordem exterior àquela paraa qual, em nossas considerações sobre a ordemdos seres, reconhecemos espontaneidade econsciência, como se algo ocorresse do mes~mo modo sob forma de resposta e apelo nomundo humano no qual vivemos? O que aquise disse sobre isso, teria outro valor do que umametáfora de "personificação'? Não haveria aquio perigo de um "misticismo" problemático, queapaga os limites determinados, que são neces~sariamente traçados por todo conhecimentoracional?

A estrutura clara e sólida da relação Eu~~Tu, familiar a todo aquele de coração abertoe que possui coragem para aí se engajar, nãoé de natureza mística. Para compreendê~la,devemos, às vezes, nos desligar de nossos há~bitos de pensamentos, sem, no entanto, renun~ciar às normas originais que determinaram omodo próprio de o homem pensar aquilo que éatual. Como no reino da natureza, do mesmomodo, a ação que se exerce sobre nós no reinodo espírito - do espírito que se prolonga namensagem e na obra, do --espírito que aspiratornar~se mensagem e obra - deve ser com~preendida como uma ação que provém do Ser.

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Na questão seguinte não se trata mais delimiar, pré~limiar ou supra~limiar da mutuali~dade, mas da própria mutualidade como portade entrada de nossa existência.

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Pergunta-se: o que se passa na relaçãoentre os homens? Realiza-se sempre numa re­ciprocidade total? Pode ela, deve ela sempre

154 realizar-se assim? Não depende ela, como aliás,tudo o que é humano, das limitações de nossadeficiência e não está submissa às restriçõesdas leis internas de nossa existência com ooutro?

O primeiro destes dois obstáculos é bemconhecido. Desde o próprio olhar com que vêscada dia o teu "próximo" que te admira comolhos espantados como se fosses um estranho,ele que, no entanto, carece de ti. até a tristezados santos, que não cessam de apresentar agrande oferenda --- tudo te diz que a plenamutualidade não é inerente à existência emcomum entre os homens. Ela é um dom ao qualdeve-se estar sempre receptivo e que nunca setem como algo assegurado.

Há, no entanto, diversas relações Eu-Tuque, por sua própria natureza, não podem rea­lizar-se na plena mutualidade, se ela deve con­servar a sua característica própria.

Uma relação deste gênero, eu caracterizei.em outro lugar,5 como a relação do autênticoeducador ao seu discípulo. Para auxiliar arealização das melhores possibilidades existen­ciais do aluno, o professor deve apreendê-Iocomo esta pessoa bem determinada em suapotencialidade e atualidade, mais explicita­mente, ele não deve ver nele uma simples somade qualidades, tendências e obstáculos. ele deve

(5) - Ver nota 2 acima.

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compreendê-Io ,como uma totalidade e afirmá-Ionesta sua totalidade. Isto só se lhe torna pos­sível, no entanto. na medida em que ele o en­contra, cada vez, como seu parceiro em umasituação bipolar. E, para que sua mfluênciasobre ele tenha unidade e sentido, ele deveexperienciar esta situação, a cada manifestação 155e em todos os seus momentos, não só de seulado, mas também do lado de seu parceiro;ele deve exercitar o tipo de realização que euchamo envolvimento. Entretanto, se acontecercom isso. de ele despertar também no discípuloa relação Eu-Tu, de tal modo que este o apre­enda e o confirme igualmente como esta pessoadeterminada. a relação específica educativapoderia não ter consistência se o discípulo, desua parte, experimentasse o envolvimento. istoé, se ele e~periendasse na situação comum, aparte própria do educador. Do fato de a rela-ção Eu-Tu terminar ou de ela tomar um carátertotalmente diferente de uma amizade, fica clarauma coisa: a mutualidade não pode ser plena­mente atingida na relação educativa como tal.

Outro exemplo, não menos instrutivo paraas restrições da mutualidade, encontramos narelação entre o autêntico psicoterapeuta e seupaciente. Se ele se limita em "analisá-Io", istoé, em trazer à luz de seu mkrocosmos fatoresinconscientes, e através desta libertação, apli­car as energias transformadas a atividadesconscientes da vida. ele pode trazer algumasmelhoras. Na melhor das hipóteses, ele podeauxiliar uma alma difusa e estruturalmente

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pobre a, de algum modo, se concentrar e seordenar. Porém, aquilo que lhe incumbe, emúltima análise, a saber, a regeneração de umcentro atrofiado da pessoa, não será realizado.

156 Só poderá realizar isso quem, com um grandeolhar de médico. apreender a unidade latentee soterrada da alma sofredora, o que só seráconseguido através da atitude interpessoal deparceiros e não através da consideração e es~tudo de um objeto. Para o terapeuta favorecerde um modo coerente a libertação e a atualiza~ção daquela unidade, em uma nova harmoniada pessoa com o mundo, ele deve estar, assimcomo o educador. não somente aqui no seu poloda relação bipolar, mas também no outro polo,com todo o seu poder de presentificação e ex~perienciar o efeito de sua própria ação. Porém,de novo, a relação específica de ..cura" termi~naria no momento em que o paciente lembrassee conseguisse praticar, de sua parte, o envolvi~mento experienciando assim o evento no ladodo médico. O curar ,como o educar não épossível, senão àquele que vive no face~a~face,

. sem ,contudo deixar~se absorver.A limitação normativa da mutualidade

seria demonstrada de um modo mais claro, semdúvida, no exemplo, do orientador de consci~ência, pois aí, um envolvimento por parte deseu parceiro violaria a autenticidade sacral desua missão.

Todo vínculo Eu~Tu, no seio de uma re~lação, que se especifica como uma ação comfinalidade exercida por um lado sobre o outro,

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existe em virtude de uma mutualidade que nãopode tornar~se total.

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Com referência a isso, só mais uma ques ... 157tão pode ser abordada; é necessário que assimseja pois ela é, incomparavelmente, a maisimportante. Perguntar ...se~ia: como pode o Tueterno ser, na relação, ao mesmo tempo exc1u...sivo e inclusivo? Como o encontro Eu~Tu dohomem ,com Deus, encontro que exige um mo...vimento absoluto em direção a Ele e do qualnada pode desviar, pode englobar todas asoutras relações Eu~Tu deste homem e ofere-cê...las a Ele? .,

Note~se bem, a questão não se aplica aDeus, mas unicamente à nossa relação comEle. Eu devo, no entanto, para responder,falar dele. Na verdade nossa relação com Eletranscende, como tal. todas as oposições, por~que ele, como tal, as transcende.

Sem dúvida, podemos somente falar sobreo que Deus é em sua relação com o homem.E, mais, isso só poderia ser dito de um modoparadoxal; ou mais exatamente, por um empregoparadoxal de um conceito; ainda mais clara­mente, pela ligação paradoxal entre um con­ceito nominal e um "adjectum" que se contra­diz com o conteúdo que usualmente lhe atribui ...mos. Esta contradição se justifica na medidaem que se re.conhece que é indispensável de...

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signar o objeto por esta noção e que a designa~ção só pode ser justificada assim e não de outromodo. O conteúdo do conceito sofre uma ex~tensão transformadora -- o mesmo acontece,porém, com cada conceito que nós, impelidospor realidade de fé, tomamos à imanência eaplicamos à ação da transcendência.

A relação com Deus como pessoa 2 éindispensável para quem, como eu, não entendepor "Deus" um princípio, embora místicos comomestre Eckart, às vezes assemelham~no ao Ser;para aquele que, como eu, não identifica"Deus" com uma idéia, embora filósofos comoPlatão, possam, às vezes, tê~lo concebido comotal; para quem, sobretudo, como eu, entendepor "Deus" -- não importa o que seja alémdisso -- aquele que entra numa relação ime~diata conosco homens, através de atos criado~res, reveladores e libertadores 3 possibilitan~do~nos, com isso, a entrar em uma relação ime~diata com Ele. Este fundamento e este sentidode nossa existência constituem, a cada vez, umamutualidade que só pode existir entre pessoas.Embora o conceito de personalidade seja, semdúvida, incapaz de definir a essência de Deus,é' possível e necessário, no entanto, dizer queele é também uma Pessoa. Se eu. quisesse tra ....duzir o que se deve entender com isso, excep~cionalmente, em uma linguagem filosófica, a deSpinoza, por exemplo, deveria dizer que, dosinumeráveis atributos de Deus, não só dois,como entende Spinoza, mas três nos são paranós homens, conhecidos: a espiritualidade, da

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qual tem origem o que chamamos Espírito; anaturalidade -- que consiste no que chamamosnatureza -- e. em ter,ceiro lugar, o atributo dapersonalidade. Dela, deste atributo, nasce omeu ser~pessoal, e o ser~pessoal de todos oshomens, assim como daqueles outros atributosoriginam, tanto o meu ser~espiritual como meuser~natural e o de todos os homens. E, somenteeste terceiro atributo da personalidade se nosrevela diretamente em sua qualidade de atri~buto.

Porém, agora no que diz respeito ao con~teúdo universalmente conhecido do conceito dePessoa, se anuncia a contradição. Não perten~ce à essência da pessoa o fato de sua indivi ....dualidade. embora existindo em si. ser relati~vizada na totalidade do Ser pela pluralidadede outras' individualidades? Mas, evidentemen ....te, isso não se aplicaria a Deus. A esta con~tradição contrapõe ....se a designação paradoxalde Deus como pessoa absoluta, isto é, umapessoa não passível de relativização. Deusentra na relação imediata conosco como pessoaabsoluta. A contradição desaparece em um nívelsuperior de consideração.

Deus -- podemos agora afirmar -- trans~mite sua absoluticidade à relação que Ele esta~belece com o homem. O homem que se dirigea Ele não tem necessidade de se afastar denenhuma outra relação Eu~Tu; ele as conduzlegitimamente a Ele e as deixa que se transfi~gurem na "face de Deus".

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Todavia, deve~se, acima de tudo, evitarinterpretar o diálogo com Deus, o diálogo,sobre o qual eu falei neste livro e em quase to~dos que o seguiram, como algo que ocorressesimplesmente à parte ou acima do quotidiano.

160 A palavra de Deus aos homens penetra todoevento da vida de cada um de nós, assim comocada evento do mundo que nos envolve, tudoo que é biográfico e tudo o que é histórico,transformando~o para. você e para mim, emmensagem e exigência. A palavra pessoal tornacapaz e exige, evento após evento, situação apóssituação, da pessoa humana firmeza e decisão.Acreditamos muitas vezes, que nada há a per~ceber, mas obstruímos há muito tempo, nossosouvidos.

A existência da mutualidade entre Deus eo homem é indemonstrável, do mesmo modoque a existência de Deus é indemonstráveI.Porém, aquele que tenta falar dEle dá seu tes~temunho e invoca o testemunho daquele aquem Ele fala, seja um testemunho presenteou futuro.

Jerusalém, outubro, 1957.

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NOTAS DO TRADUTOR

NOTAS DA PRIMEIRA PARTE

1 - WESEN. A tradução mais correta é essência. MestreEekart foi o primeiro a introduzir este conceito na filosofiaalemã para traduzir essência. Trata-se de um termo que Buberemprega muito freqüentemente atribuindo-lhe um sentidoprofundo, Nem sempre achamos um termo para traduzir, paraexaurir toda a riqueza de sentido atribuido em cada passa­gem. As vezes Buber empregou o substantivo \Vesenheit,forma rara em alemão. Geralmente Wesen significa paraBuber, em EU E TU, se?', natureza. Raramente lemos essência.Porém, acreditamos que o sentido mais rico tenha algo a ver,em Buber, com o antigo alemão wesan sein. Por esta razão,em várias passagens preferimos traduzir wesen por ser pre­sente, pois, sendo presença e presente conceitos centrais nopensamento de Buber, o ser no sentido mais profundo é oser na relação que exige a totalidade de presença. O pró­prio parâmetro que Buber utiliza para estabelecer o maiorou menor valor para uma relação EU-TU, a reciprocidade,se baseia numa presença mais completa ou menos completados integrantes do evento da relação. Assim, nesta passagem:"A palavra-princípio EU-TU só pode ser proferida pelo serna sua totalidade" (mit dem ganzem Wesen). A vida de re­lação é para Buber a vida atual de presença. Então não ésó enquanto ser que o homem se dispõe ao evento de relaçãomas como ser na sua totalidade de presença, como ser pre­sente. Outras vezes, diante da dificuldade de traduzir todaa riqueza do pensamento de Buber conservamos o sentidomais comum "essência". Assim na passagem mais adiante:"1Vesenheiten werden in de?' Gegenwart gelebt" (o que éessencial é vivido no presente) é uma frase um tanto desnor­teante, pois, como é que seres, essências, serão vividos?Podem ser vividos? E mais, "Wesenheiten" no plural é maisraro ainda. Denota algo abstrato e geral. Mesmo que tivés­semos encontrado e?'lebt (vivenciar, experienciar) em vez degelebt, não deixaria de ser um tanto embaraçante, pois"erleben" e "Erlebnis" ainda se aproximam do contexto daErfharung, experiência própria do mundo do ISSO. Optamos

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pela tradução "o essencial", pois é abstrato e geral como quisBuber e se aproxima de sua intenção principal que é vidade relação com a vida essencial, a vida de -presença, presenteaqui e agora. Aquele que está presente em um evento derelação dialógica é essencial, pois proferiu a palavra-princípiocom todo o seu ser. Isto se torna menos embaraçante coma segunda parte da frase na passagem citada: "Gegenstaen­dlichkeiten in der Vergangenheit" (as objetividades no pas­sado). O objeto (Gegenstand) já está cristalizado no mundodo ISSO. Gegenstand não pode ser "wesen" para empregarmosuma linguagem bem simples, pois carece de "presença", pelomenos enquanto objeto. Ora, se não podemos afirmar, arigor, que um objeto não tem essência, pelo menos, podemosdizer que ele não é um "ser presente", pois, como dissemos,ele carece de presença.

2 - ERFAHREN. O substantivo é E1'fahnmg. No mesmoparágraio Buber emprega também o verbo "befahren" cujatradução literal poderia ser "caminha1' na superfície". Ambosse relacionam com "fahren" andar, viajar. Traduzimosbefahren por "explo1'Uj' a superficie", pois cremos ser aintenção de Euber indicar que a experiência é uma ida inten­cional que permanece na superfície das coisas.

3 - ER LEIBT MIR GEGENUEBER."Leib" significa corpo; o verbo leiben poderia ser tradu­

zido por encorporar. No texto Buber distingue Leib e Koerper,Leib é o corpo humano na sua manifestação concreta exis­tencial como corpo vivido. Poderíamos associar esta distinçãoàquela que fez Scheler entre corpo percebido que ele chamaKoerpe1' e corpo experienciado que ele chama Leib. Estamesma distinção é operada por Biswanger. Gegenueber é umtermo abundantemente utilizado por Buber. GegenUelJe1'pa­rece ter sido forjado para traduzir o "vis-à-vis" francês. Àsve:r.esBuber o emprega como substantivo. Neste caso optamospeio termo pUj'ce·iro. Em outras passagens traduzimos porfa.ce-a-face e confronto. Na presente frase optamos por umatradução que se aproxima a nosso ver do sentido que Buberquis exprimir. Em pessoa é uma expressão talvez imprópriaem se tratando de uma árvore. Mas quer significar que nãose trata apenas de uma massa inerte e compacta que seposta simplesmente diante do homem, mas é a árvore quepode integrar o evento de relação e portanto ser um TUpara o homem num momento de verdadeira presença.

4 - WIRKLICHKEIT, wirklich, ve1-wi1'klichen, entwil'­klichen são termos freqüentemente utilizados por Buber. Eleos associa de um modo bastante nítido e praticamente eOI

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todas as passagens onde aparece o termo, com wirken atua.!'e Werk ob1'a. Numa tentativa de permanecer o mais fielpossível ao contexto de EU E TU, optamos por uma tra­dução que nos parece ser mais próxima ao sentido que Buberlhe deu, a saber, atualidade para Wirklichkeit, atual parawirklich e atuar para w·irken. Além disso podemos associá-Iasà presença e presente no sentido buberiano. De fato, maisadiante Buber irá afirmar que "Toda vida atual é encontro".A autenticidade da vida enquanto atual é ser vida deencontro (Begegnung), assim como a autenticidade doencontro só é atingida numa vida de atualidade, de presençaefetiva, atuante, visto que o autêntico encontro implica uma"presentificação" (Ve1'gegenwaertigung) mútua do EU e doTU e uma Wechselwi1'kung uma ação mútua, uma atuaçãorecíproca, Deixamos o termo realidade e real quando Buberemprega especificamente Realitaet e real.

5 - GEGENW AERTIGE.Gegenwart significa presença e presente. É um dos termos

chaves em EU E TU, Presente como oposto ao passado eao futuro e presente como "en1 presença de". O presentecomo momento presente transcende de algum modo o puroinstante unidimensional na intersecção de duas facções dotempo. O presente em> Buber evoca-nos o "instante" kier­kegaardiano que é decisivo e pleno de eternidade; ele é aplenitude dos tempos. Na primeira Parte de EU E TU Buberemprega o substantivo abstrato Gegenwaertigke-it que podeser traduzido por presentidade.

6 - LIEBE 1ST EIN WELTHAFTES WIRKEN,Haft é um sufixo utilizado para adjetivos e haftigkeit

para substantivos. Pode significar propriedade ou o fato deter como também a expressão "algo como". Buber o empregamais neste segundo sentido como que dando a entenderque os conceitos são incapazes de atingir o rigor de sentidode uma idéia. 1Velthaft é uma delas. Inúmeras são as pala­vras que Euber forjou com os sufixos haft e 7wftigkeit.

7 - MANA.Há vários sentidos para a palavra Mana. Oscila entre

uma noção de força impessoal universal e uma personalidadede caráter sacro ou divino. Para os Algonquinos (índios doCanadá) o Mana recebe o nome de "manitu"; para osIroqueses, o nome de "orenda" e "brahman" para os povosda índia antiga. O Mana é o aspecto positivo do ocultoenquanto que o "tabu" é o aspecto negativo. O oculto comoMana é carregado de um poder milagroso. O termo exprimea idéia religiosa elementar de força sacral (impropriamente

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de fluído) independente das concepções e crenças animísticas,como a forma mais simples de religiosidade. Codrington nasua obra "The Melanesians" afirma que o Mana é uma força,uma influência de ordem imaterial e, em certo sentido.sobrenatural, que se revela, no entanto, por uma força física,ou por um poder de superioridade que o homem possui. Osprimitivos, desconhecendo as causas físicas e naturais dosfenômenos da natureza, visto que seus conhecimentos nãoatingiram o estágio capaz de conceber uma causa geral capazde produzir algo do nada, recorrem à hipótese de um con­ceito dinâmico que é o Mana. Não é fácil de se definir comprecisão o que é o Mana, pois é de natureza material e aomesmo tempo invisível e intocável; sem ser espiritual par­ticipa da natureza espiritual. É uma espécie de fluído materialdesprovido de inteligência pessoal mas capaz de receber erepercutir a impressão de todas as idéias e de todos osespíritos (Saintyves - La Force Magique: du mana desprimitifs au dynamisme scientifique, págs. 20"22. Paris,1914) .

8 - Em latim no original.

9 - ICH-WIRKEND-DU UND DU-WIRKEND-ICH.

10 - ICHHAFTIGKEIT.

11 - VERBUNDENHEIT. Trata-se de um termo utilizadopor Buber nas três partes do livro. É pouco comum nalinguagem corrente, É de difícil tradução. De um certo modoRuber nos fornece um paradigma nesta passagem. Optamospelo termo vínculo. Trata-se de uma determinada relaçãoentre dois seres que não é mera juxtaposição, nem relaçãocausal, nem conexiio; o termo associação se aproxima, masainda não atinge o grau de intimidade que é verificado na"Vel'bundenheit" como a emprega Buber. Associação, alémdisso, se aproxima de "socius" e este ainda não é o "p1·óx·imo"numa proximidade de presença. Vínculo denota uma relaçãoíntima entre dois seres.

12 - DER ZUM LEIB HEIFENDE KOERPER.Ver nota 6 desta 1m1'te, ~

NOTAS DA SEGUNDA PARTE

1 - GEIST. Espírito. Espírito evoca-nos aqui o sentidoatribuído ao conceito no contexto bíblico. Para Buber, aBiblia (por ele tracluzicla com a colaboração de F. Rosenzweig)

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deve apresentar ao homem contemporâneo uma direção emsua vida concreta. Esta posição exigiu de Buber uma ati­tude hermenêutica em sua tradução que tentava redescobriro sentido original dos termos (Grundschrift). Embora admi­tisse que o resultado deste trabalho hermenêutico de decifrara própria palavra por uma nova leitura (Buber chamava otexto de palimpsesto) pudesse aparecer paradoxal e, atêmesmo, vexatório para o homem moderno. Ele afirmava tam··bêm que, o paradoxo e o vexame podem conduzir à instrução.O texto bíblico estabelece uma relação entre espírito e vida."Ruah" significa espír·ito e vento. Lemos no Gênese 1:2 "oespírito de Deus pairava sobre as águas". Deus não se res­tringe a um reino natural ou espiritual mas é origem dosdois. O espírito, "RUAH", se relaciona à vida e não aointelecto. "Ruah" significa sopro, o sopro do céu sob a formade vento e o sopro sob forma de espírito. Para o primitivo,os dois sentidos são inseparáveis pois ele sente e interpretao entusiasmo que se apodera dele, a ação irresistivel doespírito nele como o vento da tempestade se apodera de tudo.O 2spírito, "RUAH"> não está sobl'e Moisés pois a Voz esta­beleceu com ele uma conversa de pessoa à pessoa. Moisésé o depositário do espírito que nada mais é do que o fato deser admitido em uma relação dialógica com a divindade. Écurioso notar, como nos lembra Buber, a diferença de inter­locução que se estabelece entre Moisés e Deus de um lado,e Deus e os Profetas, de outro lado. Enquanto Deus se fazconhecer aos· profetas "em visão", a Moisés Ele se manifestavisualmente e não em enigmas. Os profetas têm visões quedevem ser primeiramente decifradas, enquanto que, paraMoisés, é na realidade visual que a vontade de Deus semostra. Aos primeiros Deus fala "em sonho", para MoisésEle fala "boca-a-boca" e Moisés lhe responde. Este contatoexprime. como diz Buber, uma comunicação que é ainda maisíntima que o "face-a-face" (Exodo 33:11). Em uma emissãodo sopro, do hálito, a Palavra é soprada por Deus e inspi­rada pelo homem. (Ver M. Buber - Die Schrift und ihreVerdeutschung, 167).

Em EU E TU vemos vislumbrar também este sentido doespírito como força geradora do dia-logo, a palavra entreos dois estabelecendo o inter-valo entre o Eu e o Tu naintimidade e na presença do evento do face-a-face. Buberafirma que o espírito é a resposta do homem a seu Tu. Aresposta instaura o diálogo, a inter-ação onde o EU confirmao TU em seu ser e é por ele confirmado. O EU exerce umaação, atua sobre o TU e este atua sobre o EU. Nesteencontro se estabblece a alteridade na medida em que existeuma alter-ação mútua. Podemos, então, relacionar aqui osentido que é dado na interpretação buberiana à Palavra

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divina, ao Espírito em sua manifestação divina. A palavraé, em sua essência divina, um poder que age sobre o homema quem ela é dirigi da, e, ao mesmo tempo, uma ação dohomem sobre ela embora uma ação de caráter diferente,tributária da condição própria do homem.

2 - STATT IHM ZUZUBLICKEN, BEOBACHTET.Zubliclwn é um verbo pouco comum. Compreende-se mais

facilmente zuhoeTen - ouvir, escutar. Preferimos então, pro­curando uma maior fidelidade ao contexto de todo o livro,traduzir zublicken por contemplaT em oposição a obse1'Var ­beobachten. A observação implica um objeto observadoenquanto que contemplaçáo é mais uma resposta ao TU noevento da relação.

3 - "GOLEM" é uma palavra que aparece uma só vezna Bíblia no salmo 139:16. Significa ai "sem forma". A litera­tura hebraica da Idade Média empregava-a para designar amatéria sem forma. Buber explica que Golem é um pedaçode argila animado sem alma. Poderíamos traduzi-lo porautômato. Achamos interessante retomar a forma tardia dalenda como Jacob Grimm expôs em seu "Diário para Ere­mitas'" de 1808: "Os judeus poloneses fabricam, depois decertas orações e dias de jejum. a forma de um homem emargila. Se eles pronunciam sobre ele o "Scheruhamphoras"miraculoso (o nome de Deus) este homem deve tornar-sevivo. Embora não possa falar, ele pode, no entanto, com­preender suficientemente o que se lhe diz ou ordena. Eles odenominavam "Golem" e o utilizavam como empregado paraexecutar trabalhos domésticos. Ele não deve jamais sair decasa. Em sua fronte está escrito emeth (verdade). Ele crescecada dia e ponto de se tornar facilmente maior que todosque vivem em casa mesmo que tenha sido fabricado bempequenino. Os que vivem na casa, com medo deste Golem,apagam então a primeira letra do nome para que ele setorne meth (está morto). E. assim ele cai, se desmorona ese transforma novamente em argila. Um homem havia dei­xado, por descuido, crescer demasiadamente o seu "Golem".Tão grande estava que já não era mais "possível alcançara sua fronte. Então, tomado pelo medo, ele ordenou a seuservo que lhe tirasse as botas, para que quando o Golemestivesse abaixado, pudesse atingir sua fronte. Tendo conse­guido, retirou a primeira letra, mas todo aquele peso deargila caiu sobre ele e o matou". (Cfr. Beate Rosenfeld, DieGolemsage und ihre Verwertung ind der deutschen Literatur.Breslau 1934. Citado por Scholem, G. G. - La Kabbsle.pág. 180).

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4 - SEELENVOGEL.

Trata-se de uma noção mítica da alma que se incorporaem animais ou aves. Segundo uma crença dos povos primi­tivos, a alma de um homem após a morte, sobrevive em umanimal, um réptil ou uma ave (Seelenvogel). Esta crença sebaseia na crença da migração das almas. Esta idéia pri­mitiva da passagem da alma ou da essência vital para umaforma particular se fundamenta na concepção de lima almaobjetiva ou de uma pluralidade de almas em um indivíduoparticular. Há então a possibilidade de uma destas almasse separar para poder sair através da boca. A alma deveser pequena para que possa passar pela boca. Diz-se assimque a alma voa, sendo representada por aves ou insetosv():'tdores. Para os Bororos a alma se encarna numa arara.Na dificuldade de encontrarmos um termo exato optamospela expressão, sem dúvida imprópria de "alma-pássaro".

5 - HEIMARMENE. Termo grego utilizado por Platãono Fédon 115a e no Gorgias 512e, cuja tradução é "destino".

6 - KARMAN. 11: um conceito sânscrito utilizado na>

religião Hindu e no Budismo, que pode ser traduzido poração. "O Karman" é a força gerada pelas ações de umapessoa. O destino do homem após a morte depende de suaexistência atual ou das anteriores.

7 - ABLAUF.

8 - UMKHER. Buber quer traduzir o termo TESHUV ARhebraico. Ao traduzirmos Umkher por "conversão" tentamosnos aproximar o máximo possível do clima do pensamentobuberiano. A "Umkher" é no sentido prOfundo do termo umaconversáo e não a "metanoia", a volta como foi propostapor PIa tão aos homens na metáfora da caverna. A conversãoengaja o homem na total concretude de sua existência. No­te-se a ênfase dada por Buber a "Umkher" pois a repete4 vezes na frase seg~,inte. Naturalmente Buber se coloca natradição judaica quando acentua fortemente a imediatez darelação dialógica com Deus. Há uma diferença clara entrea doutrina cristã da conversão que é uma adesão ao Cristoe a doutrina judaica para a qual o homem pode converter-sea qualquer momento e ser aceito por Deus. sem necessidadede mediação.

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4,- SCHIEDLICHKEIT.

5 - IMMER-WIEDER -WERDEN-MUESSEN.

NOTAS DA TERCEIRA PARTE

2 - Khandogya Upanishad lU 14,4.

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I13 - DER ELEKTRISCHE SONNE. 11: uma expressão

curiosa. Segundo Buber o homem do qual se fala aqui colocouno teto uma forte luz elétrica, como um pequeno sol que podeser uma defesa contra os tormentos de um sonho em estadode vigília e também ,um símbolo para os pensamentos queele invoca. Assim a Lâmpada elétrica seria o "sol e]étrico"ou o "so] artificial da noite",

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9 - Wir koennen nur gehen und bewaehren. Und auchdies "soIlen" wir nicht - wir koennen - wir muessen.

1 - Evange]ho de S. João 10:30.

3 - Afirmação de Mestre Eckart.

7 - REDLICHKEIT. Pode ser traduzido por honestidade.integridade. Possui a mesma raiz de reden falar, Rede fala,discurso.

6 - "GRANDE VEICULO". E a tradução do Mahayana.O Grande Veículo é um ramo do Budismo formado por váriasseitas sincréticas que se encontram sobretudo no Tibet, noNepal, China. e Japão. Sua língua se baseia em cânones dosânscrito, acredita em um ou vários deuses; apregoa o idealbodhisattva da compaixão e da salvação universal. Ao ladodo "Grande Veículo" existe o "Pequeno Veícu]o", Hynayana,que é um ramo menor e mais conservador do Budismodominante principalmente no Ceilã.o, Burma, Tailandia eCambodja. Adota a escrita Palí, que é utilizada tanto comolinguagem escolar como linguagem litúrgica.

8 - Referência a Nietsche, ECCE HOMO 3' parte ondediscute o "Assim fala. Zaratustra".

10 - Das Wort der Offenbarung ist: Ich bin da aIs derich da bin.

Esta é a tradução de "EHYEH ASHER EHYEH".Cremos que se deve compreender a principal preocupação da

9 - OPFER. A Tradução do termo alemão Opfer porsacrifício não exprime toda a riqueza do hebraico Qorban.Cremos poder relacionar o termo empregado por Buber emEU E TU a saber Opfer com a tradução que ele utilizouem uma passagem bíblica - Da1'nahung - pois este evocamelhor a riqueza do sentido da raiz hebraica qarab, "estarpróximo" no sentido de "aproxima1·". Na verdade, este con­ceito implica a existência de dois seres. Um deles, tentandodiminuir a distância que os separa, se aproxima (qarab)através de um qorban. Diante da dificuldade de encontrar­mos um termo com a mesma riqueza de sentido, preferimoso termo oferta com a conotação de presente que se oferecea alguém. A oferta - qorban - é aquilo que me proporcionaa proximidade na presença. O homem oferece seu presente,sua oferta para poder aproximar-se da presença de Deus.Podemos notar também, que em outro contexto Buberescolheu para a tradução de todas as formas derivadas daraiz - ya'ad - formas correspondentes do gegenwaertigsein.Fiel ao sentido rico do ya'ad, Buber traduz a tenda na qualDeus se faz presença, se faz presente, por "Zelt der Gegen­wart". Em sua obra "Koenigtum Gottes" (O reino de Deus)Buber fala da "das Zelt der goettlichen Begegnung oderGegenwaertigung" (tenda do encontro ou da presentificaçãode Deus). Assim cremos que o termo escolhido oferta nosentido de presente se aproxima da intenção manifestada notexto, isto é, de um encontro onde se quer estar na presençade Deus. A oferenda, aquilo que é oferecido, relembra avontade constante de renovar sempre este "encontro".

10 - EIGENWESEN. Literalmente poderia ser traduzidopor ser pr6prio. 11: um termo inusitado, mesmo em alemão, AliásBuber aprecia muito forjar palavras não se importando como uso ou o sentido que possam ter na linguagem comum.Em uma carta ao tradutor da primeira edição inglesa deEU E TU Buber recusou o termo individualidade. ComoBuber estabelece uma distinção entre Eigenwesen e Person, otradutor recorreu aos conceitos já consagrados na linguagemfilosófica de pessoa e indivíduo. No contexto Eigenwesen éo EU da palavra-princípio EU-ISSO enquanto que Personé o EU da palavra-princípio EU-TU. Eigen1qesen se refereà relação homem com o seu "si-1nesmo". Preferimos então aexpressão ser eg6tico ou simplesmente o termo "eg6tico'\embora se trate de um termo pouco comum. Mais adianteBuber utiliza o termo Eigenmensch que traduzimos poregotista.

11 - SCHIBBOLETH. Marco Distintivo.

12 - Va]ore no original.

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interpretação buberiana da palavra Çla revelação como umaimportância especial dada ao conceito de "p?'esença". Deusassegura a Moisés que estará com ele. Por duas vezes Deuscomeça por EHYEH-eu serei presente. Não se deve perderde vista a questão central que é uma situação de diálogo.Aí não se trata do homem mas de Deus, do nome divino.Para o homem no estado de pensamento mágico, o nomeverdadeiro de uma pessoa não é a simples denominação masa essência mesma da pessoa, de certo modo destilada de suarealidade embora permaneça presente neste nome. A pessoamesma é inacessível, oferece resistência. Porém através donome ela se torna acessível. O nome verdadeiro, porém. podeser diferente daquele que é geralmente conhecido. Este enco­bre, vela aquele. O nome verdadeiro pode diferenciar-se donome comum pela pronúncia. À questão a respeito de seunome, Deus responde a Moisés: Ehyeh asher Ehyeh. A tra­dução mais comum é: "Eu sou aquele que sou" significandocom isso que EHYEH se designa como o existente, o eter­namente existente, aquele que persiste imutavelmente emseu ser. Não se pode, entretanto, afirma Buber, tirar do·verbo, na linguagem bíblica, o sentido da existência pura.Além disso esta interpretação deixa transparecer um tipode abstração que normalmente não se manifestava em umaépoca de vitalidade religiosa em expansão. Buber o entendeno seu sentido profundo de "ser p?'esente". Ademais podemosperguntar: seria a intenção do narrador de mostrar queDeus, em um momento memorável em que anuncia a liber­tação de seu povo, desejava conservar e acentuar sua dis··tância em vez de apresentar claramente sua proximidade, suapresença? Então, que força e sentido manífesta a claraintenção dos dois "EHYEH", como se lê em :mxodo 3:12? "Euserei, eu estarei presente" de modo absoluto e não como emoutras passagens "Eu serei presente em tua boca", "Euestarei junto de ti", "Eu não necessito ser invocado poisserei presente junto a vós" Por trás destas palavras, afirmaBuber, percebe-se a resposta verdadeira endereçada aos adep­tos da magia egípcía e àqueles que foram tocados pela técnicamágica:. é inútil tentar invocar o nome de Deus. Com efeitono Egito os mágicos ameaçavam os deuses que não queriamcumprir suas ordens. suas vontades e acatar seus desejos,dizendoclhes que atirariam seus nomes aos demôrl.ios e extrai­riam suas bocas de suas cabeças. Se no Egito a religião nadamais era do que regras de magia, no diálogo da "Sarçaardente" a religião é desmagificada.

Além disso o nome de Deus se transforma como afirmaBuber: "Dentre todas as suposições relativas ao emprego donome YHVH pelos Hebreus nas épocas que precedem suahistória, uma somente permite tornar tudo isso inteligível,

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depois que pesquisas foram feitas na direção que ela indica,sem que permaneçam contradições. A meu conhecimento foiBernard Dhum que a formulou há várias décadas, em umcurso inédito da Universidade de Goettingen. Talvez estenome não seja senão um prolongamento de hu (ele) assimcomo outras tribos árabes chamavam Deus "o uno, o ine­fável". O grito, prossegue Buber, dos derviches: Ya-h1t setraduz por "Oh! Ele". E em um dos hinos mais importantesde um místico persa Djelaleddin Rumi pode-se ler: "é o Unoque procuro, é o Uno que eu vejo, é o Uno que eu chamo.ELE o primeiro, ELE o último, ELE é o exterior, ELE é ointerior. Não conheço mais ninguém senão Ya-hu (Oh! ELE)e Ya-man-hu (Oh! Ele que é)". A forma originária do gritopode ter sido Ya-lmva, se for permitido ver no árabe huvaa forma semítica primitiva do pronome "ele" que em hebráicose diz hu (Cfr. M. Buber MOISE (tradução francesa naspáginas 71 e 72). Então de uma vocalização, de uma excla­mação pronunciada no êxtase, meia-interrogação, meio-pro­nome proveniente do fonema primitivo Ya-h1t aparece umaforma verbal precisa. de acol'do com regras gramaticais que,na terceira pessoa (havah é idêntco a hayah) significa amesma coisa que EHYEH anuncia na primeira pessoa."YHVH é aquele que será, que estará aí", isto é, aquele queestará presente não importa onde ou quando, mas a cadamomento do presente· e em cada lugar onde alguém estiverpresente. Enquanto a exclamação primitiva saudava o Deusescondido, a.. forma verbal é sua manifestação. Assim lemosno :E:xodo: 3:14: "EHYEH, 'eu sou presente', 'eu serei pre­sente' me envia a vós" e logo depois: "YHVH o Deus devossos pais me envia a vós". Podemos pois compreendercomo Buber entende a palavra da Revelação EHYEH ASHEREHYEH como "Ich bin da ais der ích da bin". Acreditamospoder assim nos aproximar da riqueza de sentido que Bubertentou captar na palavra da Revelação traduzíndo-a "Eu soupresente como aquele que sou presente".

11 - Vemos aqui clara alusão aos fragmentos 8, 17 e 21de Empédocles. No seu fragmento 8 Empédocles afirma:"Dir-te-ei ainda uma outra coisa: não há nascimento paranenhuma das coisas mortais; não há fim na morte funesta;há somente mistura e dissociação dos elementos compostos.Nascimento nada maís é que um nome dado pelos homensa este fato".

NOTAS DO POST-SCRIPTUM

1 - GESPROCHENHEIT. :E: um substantivo abstratoforjado por Buber que significa algo que é falado. Diante dadificuldade de tradução daquilo que exatamente quer dizer

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Buber, preferimos um termo que pode se aproximar do seusignificado, fala. A fala como mensagem e como manifestaçãoconcreta desta mensagem através da palavra.

2 - PESSOA. Não se trata de saber o que Deus é em simesmo mas o que Ele é na relação com o homem. Deus nãoé pessoa em sua essência mas em sua relação com o homem.Buber escolhe um caminho radical para a compreensão doser de Deus em termos de seu sentido para o homem, aomesmo tempo que empreende uma compreensão do homemem termos de seu ser-com-Deus. Mais adiante Buber empregao termo Personhaftigkeit, assim como Naturhaftigkeit eGeisthaftigkeit.

3 - IN SCHAFFENDEN, OFFENBARENDEN, ERLO­ESENDEN AKTEN ...

Criação, Revelação e Redenção. Estes três termos encer­ram o núcleo da interpretação buberiana da palavra de DeuSque é o símbolo do encontro dialÓgico. Tudo na escritura égenuinamente fala (Gesprochenheit) afirma Buber em suaobra "Die Schrift und ihre Verdeutschung", pág. 56. A Bíbliaé a incessante proclamação de uma mensagem (Botschaft)e a realidade desta proclamação é sempre assumida e estásempre presente. Os três pontos essenciais no diálogo entrea "terra e o céu" são a criação, a revelação e a redenção. ABíblia encontra as gerações pela exigência de ser reconhecidacomo a verdadeira história do mundo, isto é, o fato de omunelo ter um começo e um fim. A criação é a origem e aredenção o fim. A revelação entretanto, não se apresentacomo um ponto fixo, datado entre os dois. Mesmo a revelaçãono Sinai não é este ponto intermediário, mas antes umacontínua escuta e uma tomada de consciência no momentopresente de sua atualização. O importante é a apropriaçãopelo homem do evento bíblico no momento, no instante pre­sente, pois, para Buber, o encontro existencial é central enão está sujeito ao condicionamento histórico. 11:interessanterelembrar, mesmo que rapidamente. uma faceta da mensagemhassíelica sobre a redenção. O Hassielismo reage contra omodo messiãnico de se distinguir um homem do outro, ouuma, época de outras ou uma ação de outras. A força paracooperar na redenção foi atribuída a todos os homens indis­tintamente. Ê pela santificação sem preferência de tudo oque se faz; do ato de levar Deus ao longo d1 vida, a consa­gração de nosso vínculo co'm o mundo que pode realizar-sea redenção. Foi tal ensinamento de um vínculo inseparávelentre o mundo e o homem que exerceu uma influência mar­cante sobre Buber a ponto de este afirmar que o destinoinevitável elo homem é amar o mundo, pois, não é em umpretenso "além" do mundo, mas no seu "interior" que ohomem por1e encontrar o divino.

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AbhaengigkeitAblaufAngessicht

BeziehungBewaerungBegegnungBewusstheit

BefahrenEcstimmungBesinnung

DinghaftigkeitDaszwischen •

ErlebenErfahren

Erlebnis

EigenmenschenEigenwesen

GegenseitigkeitGdstGegenwartnOJEm

Gegenueber

Heils1eben

IchhaftigkeitIchbezogenheit

GLOSSÁRIO

sentimento de dependênciadecursoface, semblante

relaçãocolocar à prova, comprovarencontroEstado ele ser consciente ou de ter

consciênciaexplorar a superfíciedestino

'> lembrança

coisidadeentre

vivenciarexperienciar. Erfahrung- conheci­mento práticoexperiência interior ou vivida, vi­

vênciaegotistaser egotico ou simplesmente egótico

reciprocidadeespirito. ver notapresença, presenteautômato. pedaço de argila animadoface-a-face, parceiro

vida de salvação

egoidacleegocentricidade

169

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Koerper

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Machtwille

Opfer

Punkthaftigkeit

RealitaetrealRedlichkeitRede

SchauenSr.heinweltSeeJenvogel

UmkehrUnterredungUmfassung

VerhaeltnisVfJrbundenheitVerhaltenheitVergegenwaertigenVergegen waertigungVerwirklichenVereinigungVerfremdungVersenkungVorhanden

'Nesen

'WirldichWirklichkeitWirklichenWerkWeisung

170

.;::orpo físico, corpo percebido

.;::orpo vivido

"",ontade de poder

?>ferta

pnidimensionalidade

:realidade:real;integridade;fala

contemplar;Illundo de aparência"alma-pássaro". ver nota

conversão

conversaçãoenvolvimento

contatovínculoretençãopresentificarpresentificaçãoatualizarunificaçãoalienaçãoabsorção"à mão". Heidegger explorou mais o

sentido de vorhanden ou Vorhan­denheit

traduzimos por ser, natureza, essên­cia e no sentido mais rico em EUE TU por ser 4 presente

atualatualidadeatuarobra

ensinamento e também direção. :m atradução de Torah.

~Impresso nas oficinas da

EDITORA PARMA LTOA.Telefone: (011) 912·7822

Av. Antonio Bardella. 280Guarulhos - São Paulo - Brasil

Com filmes fornecidos pelo editor

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