Martin Buber - Eu e Tu - 8º Edição - Ano 1974

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5/21/2018 MartinBuber-EueTu-8ºEdio-Ano1974-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/martin-buber-eu-e-tu-8o-edicao-ano-1974 1/240 M a r t in  B uber EU e TU TRADUÇÃO DO ALEMÃO, INTRODUÇÃO E NOTAS POR  N ewton  A q u il e s  V on  Z uber Professor na Faculdade de Educação da Unícamp CENTAURO EDITORA 

Transcript of Martin Buber - Eu e Tu - 8º Edição - Ano 1974

  • M artin B u b er

    EU e TUTRADUO DO ALEMO,

    INTRODUO E NOTAS POR

    N ew t o n A q u iles V o n Z u b e rProfessor na Faculdade de Educao da Uncamp

    CENTAUROE D I T O R A

  • Traduzido do original alemo

    Ich und Du, 8? ed. Lambert Schneider, Heidelberg, 1974

    Nenhuma parte desta obra pode ser duplicada ou reproduzida sem autorizao expressa dos editores.

    EDITOR4 MOR4ESRua Ministro Godoy, 103605015 So Paulo SP

    Tels: (011) 62-8987 e 864-1298

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  • C O N T E D O

    INTRODUO........................................................................... V1. Dados Biogrficos................................................... XI

    2. Caractersticas do Pensamento ................................. XV

    3. Influncias ................................................... .. XXII

    4. EU e TU, De uma Ontologia da Relao a uma

    Antropologia do Inter-humano................................. XL

    PRIMEIRA PARTE ................................................................... 1

    SEGUNDA PARTE..................................................................... 41

    TERCEIRA PARTE............................................................................. 85

    POST-SCRIPTUM........................................................................ 139

    NOTAS DO TRADUTOR .......................................................... 157

    GLOSSRIO............................................................................... 169

  • INTRODUO

    O paradoxo a paixo do pensamento; o pensador sem paradoxo como um amante sem paixo, um sujeito medocre. Martin Buber, por ter assumido o paradoxo tanto em sua vida como em suas obras, se apresenta Como um dos grandes pensadores de nossa poca. Sua mensagem antropolgica constitui, sem dvida, um marco essencial dentro das cincias humanas e da filosofia. A dimenso hermenutica de sua obra sobre a Bblia e sobre o Judasmo faz de Buber um dos pilares que ainda sustentam toda a evoluo contempornea da reflexo teolgica. Notvel, e de relevante importncia, foi o seu trabalho de

    traduo da Bblia para o alemo, empreendimento este iniciado em colaborao com seu amigo Franz Rosenzweig e finalizado aps a morte deste em 1929. Mais particularmente, a sua filosofia do dilogo, obra-prima de um verdadeiro profeta da relao (do encontro), situa-se como uma relevante contribuio no mbito das cincias humanas em geral e da antropologia filosfica. Seus extensos e profundos estudos sobre o Hassidismo projetaram

  • Buber ao mundo intelectual do Ocidente como exmio escritor e como o revelador desta corrente da mstica judaica.

    Entretanto, devemos reconhecer que a vasta produo de Buber ainda permanece desconhecida em nosso meio. A nosso ver, a atualidade de Martin Buber se fundamenta num duplo aspecto: primeiramente no vigor com que suas reflexes tornam possveis novas reflexes, Embora pertencentes ao passado, elas provocam a ponto de exercer fascnio sobre aqueles que com elas se deparam; em' segundo lugar, no comprometimento deste pensamento com a realidade concreta, com a experincia vivida. Pensamento e reflexo assinaram um pacto indestrutvel com a praxis, com a situao concreta da existncia. Martin Buber representa um dos exemplos do verdadeiro vnculo de responsabilidade entre reflexo e ao, entre praxis e logos. Para ele a experincia existencial de presena ao mundo ilumina as reflexes. A fonte de seu pensamento sua vida; sua existncia a manifestao concreta de suas convices.

    A crescente presena das idias de Martin Buber se faz sentir de um modo bastante marcante nos mais diversos domnios da cultura moderna. Seus estudos sobre a Bblia e o Judasmo tiveram uma influncia decisiva na teologia contempornea, sobretudo na teologia protestante. Suas obras filosficas tm influenciado vrias das chamadas cincias humanas:

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  • psiquiatria, psicologia, educao, sociologia e toda uma corrente da filosofia contempornea que se preocupa com o sentido da existncia humana em todas as suas manifestaes. A mensagem buberiana evoca no pensamento contemporneo uma notvel nostalgia do humano, Sua voz ecoa exatamente numa poca que paulatina e inexoravelmente se deixa tomar por um esquecimento sistemtico daquilo que mais caracterstico no homem: a sua humanidade. Sendo assim, a obra de Buber fundamental para a abordagem da questo antropolgica.

    Esta mensagem humana, fornecida ao homem contemporneo caracteriza-se por uma exigncia de reviso de nossas perspectivas

    v sobre o sentido da existncia humana. A nostalgia que envolve uma converso prope um projeto de existncia a ser realizado e no uma simples volta a um passado distante numa postura de mero saudosismo romntico. A afirmao do humano no um objeto de anlises objetivas, exatas, infalveis, mas sim um projeto que envolve o risco supremo da prpria situao humana da reflexo.

    No raras vezes o pensamento de Buber sofreu interpretaes ambguas, e at mesmo errneas, que poderiam facilmente ser evitadas se se tivesse observado uma certa postura de abordagem exigida pela profundidade da obra. Martin Buber no um pensador qualquer, no um autor no meio de outros perfazendo um sistema de pensamento filosfico ou teolgico.

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  • H muita verdade na auto-caracterizao de Buber como "atypischer Mensch" (homem atpico). Como no se trata de uma construo sistematicamente elaborada, sua obra exige uma abordagem cuidadosa e criteriosa; os aventureiros busca de solues rpidas e receitas para crises existenciais podero decepcionar-se logo nas primeiras pginas, desencorajados pelas ruelas austeras de um pensamento que vrias vezes se manifesta por conceitos, frases e passagens obscuros.

    Nossa inteno aqui introduzir as principais idias de Buber ao leitor que o desconhece ou o conhece atravs de breves citaes. No se trata de um trabalho exaustivo sobre o pensamento de Buber ou sobre a sua filosofia. Trata-se de uma introduo leitura de EU E TU que ora apresentamos em traduo portuguesa. No entanto, como a nosso ver EU E TU a chave de todas as outras obras de Buber, acreditamos que o leitor, aps o conhecimento deste livro, poder mais facilmente abordar qualquer estudo deste grande pensador.

    A essncia do pensamento buberiano re- vela-se, talvez mais do que a maioria dos outros pensadores, estruturada como um crculo. Isto decorre do sentido que Buber deu ao comprometimento da reflexo com a existncia concreta, ao vnculo da praxis e do logos. Tal comprometimento uma das caractersticas principais do pensamento de Buber. No prprio nvel da reflexo, pelo fato de a filosofia ser um desvelamento progressivo, seus esfor

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  • os ontolgicos aparecem necessariamente entrelaados com reflexes prticas. Este aprofundamento filosfico anseia sem cessar um ambiente de busca de um efetivo engajamento. Sua filosofia do dilogo da relao ponto central de toda a sua reflexo tanto., no campo da filosofia ou dos ensaios sobre religio, poltica, sociologia e educao, atingiu sua expresso madura em EU E TU graas fonte representada pelo Hassidismo e sua mensagem. Na mstica hassdica Buber encontrou no s o princpio, mas a luz e o molde para a sua reflexo. Podemos mesmo afirmar que a compreenso de EU E TU ser completa quando for levada em considerao toda a influncia da mstica em geral (Budismo, Taosmo, a mstica alem, a mstica judaica) e mais especificamente do Hassidismo.

    No entanto, Buber no pode ser considerado um representante de um misticismo irracional. Seno, como articular tal qualificao com sua obra EU E TU que traz reflexes religiosas profundamente ligadas a uma ontologia? Alm do mais, a dimenso ontolgica de sua reflexo no nos permite afirmar que estamos diante de um sistema filosfico pronto do mesmo modo como podemos dizer que a filosofia de Hegel se apresenta como um sistema. Entretanto, podemos, em nossa preocupao de refletir criticamente sobre o pensamento de Buber, destacar temas ou conceitos mais importantes e centrais contidos na obra e que servem de estrutura conceituai para a abordagem de

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  • outros pontos da doutrina ou das idias que seriam, neste caso, conseqncias do tema essencial.

    Esquematicamente, a obra de Buber pode apresentar-se sob trs facetas: Judaimo, ontologia e antropologia. Cada uma delas se liga s outras de um modo circular. A renovao, projeto que Buber prope ao Judaismo, implica uma ontologia da relao que, por sua vez, tem suas conseqncias em vrios campos, tais como educao e poltica, Podemos abordar essas facetas de um modo cronolgico ou lgico. Dentro desta ltima perspectiva, a ontologia da relao (da palavra como dilogo) est presente como fundamento de todos os outros temas, seja de um modo retrospectivo nas suas concepes sobre o Judaismo e na hermenutica do Hassidismo, seja de um modo prospectivo na sua traduo da Bblia, na sua antropologia filosfica, em seus estudos sobre educao ou poltica, orientados para uma tica do interhu- mano. O fato primordial do pensamento de Buber a relao, o dilogo na atitude existencial do face-a-face.

    Nesta introduo propomos ao leitor algumas consideraes sobre os dados biogrficos de Buber, algumas caractersticas de seu pensamento e de sua vida, as principais idias queo influenciaram (aqui destacaremos a mstica hassdica) e finalmente fazemos algumas reflexes sobre o sentido de EU E TU no conjunto da obra.

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  • I ) DADOS BIOGRFICOS

    Martin Buber nasceu em Viena aos 8 de Irvereiro de 1878. Aps o divrcio de seus pais, partiu para Lemberg, na Galcia, cidade onde moravam seus avs paternos. Buber passou i sim sua primeira infncia com seu av Saio- m i .io Buber, grande autoridade da Haskalah. Junto desta famlia o jovem Buber teve a chance de experimentar a unio harmoniosa entre a tradio judaica autntica e o esprito liberal tia Haskalah. A atmosfera era propcia para uma piedade sadia e para um profundo respeito pelo estudo. Teve a a oportunidade de aprender o hebreu, de er os textos bblicos e de tomar contato com a tradio judaica. Aos 14 anos voltou a morar com o pai. Matriculou-se no ginsio polons de Lemberg. A filosofia, sob a forma de dois livros, marcou sua primeira e influente presena na vida de Buber entre seus 15 e 17 anos. Nesta poca, como ele mesmo nos relata, o seu esprito estava tomado por idias de tempo e de espao. Em sua obra O problema do homem" ele faz aluso a uma experincia que exerceu profunda influncia sobre sua vida Um constrangimento, que no podia explicar, tinha se apoderado de mim: eu tentava, sem cessar, imaginar os limites do espao, ou seno a inexistncia de um limite, um tempo que comea e que termina sem comeo nem fim. Um era to impossvel quanto o outro; um deixava to pouca esperana quanto o outro; contudo, falavam-nos que no havia

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  • opo seno escolhendo um ou outro de tais absurdos. Sob forte tenso, eu vacilava entre um e outro, e acreditava que iria enlouquecer, e este perigo tanto me ameaava que eu pensava seriamente em escapar da confuso por meio do suicdio". Foi ento que lhe caiu s moso livro "Prolegmenos" de Kant, onde encontrou uma resposta para sua indagao. Nesse livro ele verificou que o espao e o tempo no so nada mais que formas atravs das quais efetuamos a percepo das coisas e que elas em nada afetam o ser das coisas existentes. Descobriu tambm que tais formas entram, de algumas maneira, na constituio de nossos sentidos. to impossvel dizer que o mundo infinito no espao e no tempo, quanto dizer que finito, pois nem um nem outro pode ser contido na experincia e nenhum pode ser encontrado no mundo. "Eu podia, diz Buber, "dizer a mim mesmo que o Ser mesmo est subtrado tanto ao infinito quanto ao finito espacial e temporal, pois que no faz seno aparecer no espao e no tempo, e no se esgota a si mesmo nesta sua aparncia. Eu comeava ento a perceber que h o eterno, muito diferente do infinito, e que, no obstante, pode haver uma comunicao entre eu, homem, e o eterno. (O problema do homem). Outro livro lido por Buber foi "Assim falava Zaratustra", de Nietzche; Buber se empolgou tanto com a mensagem de Zaratustra que resolveu traduzi-lo para o polons. A viso nietzscheana do tempo como eterno retorno impediu Buber de

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  • lt*r tun concepo diferente do tempo e da eternidade.

    Em 1896 Buber entrou para a Universi- Imle de Viena, matriculando-se no curso de filosofia e Histria da Arte. Mais do que em i|ii.ilquer lugar, encontrava-se em Viena o rxi-mplo tpico de uma cultura aberta a toda .sorte de influncias, oriundas de todos os qua- drantes do mundo intelectual. Encontravam-se

  • humanidade do homem. Foi a que Buber travou amizade com Gustav Landauer, personagem este que o influenciou profundamente.

    Buber era um membro ativo no seio da comunidade universitria. Os jovens se reuniam amide, para discutir em conjunto os problemas que mais lhes interessavam. As reunies se realizavam maneria de seminrios nos quais cada um dos participantes tinha a chance de expor um trabalho que seria discutido por todos. Buber fez a duas exposies: uma sobre Jakob Boehme e outra intitulada Antiga e nova comunidade onde afirmou ns no queremos a revoluo, ns somos a revoluo.

    Participante ativo dos primeiros Congressos do movimento sionista, Buber foi escolhido 1 secretrio. Alguns anos mais tarde chefia uma revolta de ciso no seio do movimento, por discordar da orientao do presidente e fundador Theodor Herzl.

    De 1916 a 1924 Buber foi editor do jornal DER JU D E. Em 1923 foi nomeado professor de Histria das Religies e tica Judaica, na Universidade de Frankfurt. A cadeira, nica na Alemanha, foi posteriormente substituda por Histria das Religies. De 1933, quando foi destitudo do cargo pelos nazistas, at 1938 Buber permaneceu em Heppenheim. Em 1938 aceitou o convite da Universidade Hebraica de Jerusalm, para l ensinar Sociologia. Buber tinha ento 60 anos. Esse perodo foi de intensa atividade intelectual. Suas pesquisas se aprofundaram em diversas reas: estudos sobre a

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  • 1'iUi.i. ludasmo e Hassidismo; estudos poiiu- .... , *n k i(dgicos e filosficos.

    Itnhcr morreu em Jerusalm a 13 de junho i le l ) 5 .

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    2) CARACTERSTICAS D O PEN SAM ENTO.

    'Ti necessrio ter conhecido Martin Buber pi ,uai mente para se compreender num instan- i. .1 1'ilosofia do encontro, esta sntese do evento l.i eternidade. Nestas palavra de Bachelard vnno:; a convico profunda de algum que m i edita na necessidade de se encarar com se- i kJmli tal obra e tal vida, ligadas por um mi< iiI>> inquebrantvel. A impresso que a pre- irnr.i dc Buber causava no seu interlocutor nos > relatada por G. Mareei: "Fiquei profundamente impressionado, desde o incio, com a ii.tmleza autntica de tal homem que me pare- i.i r ealmente comparvel aos grandes patriar-< .!, tln Antigo Testamento. Mareei emprega >> in mo "plenitude para caracterizar a perso- n.illilade e a existncia de Buber, cuja magna- nlmidade surpreendia desde o primeiro encontro. ( )lhar profundo que parecia tocar a intimidade .li seu interlocutor, e que, contudo, sabia aco- IIht na simplicidade e na fugacidade de um di.ilogo. Uma presena autntica emanava deii.i pessoa, e a profundeza de seu semblante

    residia na presena a si mesmo. Exatamente por esta presena a si mesmo que ele podia

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  • tornar-se presente aos outros, acolhendo-os incondicionalmente em sua alteridade. A abertura e a disponibilidade com relao ao outro encontravam em Buber um suporte: a zona de silncio, na qual se inscreve a confiana no outro. O olhar encontra rapidamente o calor e a gratuidade da resposta. Quem ouve se no para responder? Tal disponibilidade lhe fora inspirada, desde a juventude, pela vida das comunidades hassdicas que havia visitado durante a estadia na casa de seu av, Salomon Buber. Nesta poca a semente do Tu j havia sido lanada: o lugar dos outros indispensvel para a nossa realizao existencial.

    A plenitude citada por Mareei no seria verdica se acaso no soubssemos descobrir, ao lado da amabilidade do acolhimento e da abertura aos outros, a firmeza de sua personalidade, quando se tratava de defender um ponto de vista considerado como certo. Tal firmeza era logo orientada para uma constante procura do verdadeiro, em meio s mltiplas verdades. Esta plenitude no dilogo caracterizava a prpria postura intelectual de Buber, pois ele nunca se desligava do mundo, e suas idias nunca eram excogitadas numa recluso acadmica. Ele viveu plenamente as tarefas do mundo tais como elas se lhe apresentavam. Desde os primeiros anos de sua formao intelectual vemos Buber frente de grupos estudantis. Dentro do movimento sionista com o qual se unira, ele entrou em conflito com os seus dirigentes pois estes s se mostravam interessados em assun-

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  • 1 1 ri | n 'I>( kos ou diplomticos. O jovem Buber, lt. I. i .mdo um pequeno grupo, defendeu uma* niHvpfio mais ampla do sionismo: uma con- c pi .io que fosse, em sua essncia, um esforo |e libertao e purificao interior e um meio Ir fliivar o nvel social e cultural das massas 1 1 1 1 1. i n . is. Esta firmeza de atitude demonstrava..... vida interior muito madura e consciente,l.i ;t ada numa compreenso bastante aguda do niklo de liberdade pessoal. Somente tal vida

    mi. rior poderia lhe dar foras para enfrentar .in dificuldades inerentes sua prpria existncia, dificuldades estas provindas da marca que a circunstncia histrica impingia no s a i'le mas a muitos outros, a ponto de torn-los pessoas diferentes, pois eram judeus. Isto, ao invs de lhe ser desfavorvel ou um motivo de desdm, enriqueceu sua experincia ao reve- lar-lhe a verdadeira origem de seu poder criador.

    Outra caracterstica marcante desta personalidade e deste esprito filosfico, foi uma grande f no humano. Ele vivia ardentementeo Menschensein e pde superar todas as suas dificuldades, buscando uma soluo para o problema existencial do homem atual. Ele havia entendido a voz que o interpelava, e ao mesmo tempo desejava que todos os homens tentassem responder a ela. Buber nunca quis figurar comoo porta-voz de um sistema filosfico. Via sua misso como uma resposta vocao que havia recebido: a de levar os homens a descobrirem a realidade vital de suas existncias e a abri

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  • rem os olhos para a situao concreta que esta- vam vivendo. Como Scrates, ele ajudava, com sua presena, o parto dos espritos nos homens. Seu esforo foi sempre sustentado pela esperana de atingir o fim, pois sem a esperana no se encontrar o inesperado, inacessvel e no-encontrVel, como j afirmava Herclito.

    Buber no se deixa etiquetar por qualquer sistema doutrinrio conhecido. Qualificaes como mstico, existencialista ou personalista nada mais fazem do que desvirtuar o sentido de sua vida e de sua obra. Alis, ele mesmo se qualificou como atypischer Mensch. O maior compromisso de sua reflexo com a experincia concreta, com a vida. Ele aliou, com rara felicidade, a postura e as virtudes de um homem atual (de seu tempo, do sculo X X ) com as razes profundas do Judasmo primitivo. Em realidade, ele encarnava o sbio e o profeta tentando simplesmente advertir os homens a respeito de sua situao. No se tratava de receitas tradicionalmente conhecidas ou imperativos inadiveis, mas um apelo aos homens para que vivessem sua humanidade mais profundamente, movidos pela nostalgia do humano.

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    Durante a primeira guerra mundial, depois que meus prprios pensamentos sobre as coisas mais elevadas haviam tomado uma ori-

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  • cntao decisiva, eu falava s vezes sobre minha posio a meus amigos; ela era semelhante a uma estreita aresta. Desejava exprimir com isso que no me coloco numa larga e alta plancie de um sistema feito de proposies seguras quanto ao Absoluto, mas sobre uma senda estreita de um rochedo, entre dois abismos, onde no existe segurana alguma de cincia enuncivel, mas onde existe a certeza do encontro com aquilo que est encoberto. (O problema do homem, pg. 92 da traduo francesa). Esta afirmao revela, talvez melhor que qualquer outra, o significado e o valor da vida e do pensamento de Buber. Nela podemos encontrar no somente a santa insegurana mencionada em sua obra "Daniel" (1913),

    mas tambm todo vigor e profundeza potica e filosfica de E li E TU Esta estreita aresta no uma soluo de tranqilidade que se torna um refgio para os espritos pusilnimes; no , de forma alguma, uma posio de facilidade que tende a transcender a existncia real eivada de paradoxos e contradies, ignorando-os simplesmente a fim de escapar das situa

    es delicadas e embaraosas provocadas por eles. Tal aresta onde Buber se coloca, antes de mais nada o vislumbre da unio paradoxal da plenitude, superando as solues de compromisso daquilo que geralmente entendido como dilemas ou alternativas: orientao- -atualizao, Eu-Tu Eu-Isso, dependncia-liber- dade, bem-mal, unidade-dualidade. A unio dos

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  • contrrios permanece um mistrio na profunda intimidade do dilogo. Dilogo plenitude.

    De fato, dilogo" uma categoria que pode servir de via de acesso compreenso da obra de Buber. Dilogo foi o tipo de compromisso de relao que a vida e a obra deste autor selaram entre si.

    Apesar da vida de Buber ostentar profundas marcas de divises, de contrastes, de opo- sies, no sob esta categoria de ruptura que devemos abord-la. Pode parecer uma diviso, a distino existente entre dois perodos de sua vida, o primeiro at 1938 (perodo alemo) eo segundo, de 1938 at a sua morte (perodo israelense). Eles, em verdade, esto estreitamente unidos. Sem dvida, Buber conheceu experincias drsticas de profunda ruptura, mas sua vida permanece nica, plenamente voltada para uma aspirao: o humano. Em cada aspecto de sua vida e de sua obra, seja o aspecto filosfico seja o aspecto religioso, o poltico ou o existencial, um fator nico os centraliza numa mensagem vivida: o dilogo. EU E TU, publicado em 1923, no perodo alemo, fundamenta suas obras posteriores, mesmo as datadas do perodo israelense, e que versavam sobre educao, sociologia, poltica e principalmente sua antropologia filosfica. Estas ltimas nada mais so que explicitaes ou manifestaes enriquecidas por outras experincias existenciais da filosofia do dilogo de EU E TU. Por outro lado, os seus estudos sobre Judaismo e sobre o Hassidismo, no segundo perodo, re-

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  • iletem a intuio primitiva e o mesmo elan" U* uma renovao em profundidade do Judasmo apresentado primeiramente em seus En~ i.tios sobre o Judasmo, publicados em 1909.

    No se pode falar propriamente de condicionamento de um dos temas sobre os outros.< > modo pelo qual Buber os relaciona ao longo

    suas reflexes, fazendo-os como que equi- lundamentantes, a principal caracterstica de mui filosofar. Mesmo tratando dos mais diversos temas em qualquer dos campos, separadamente, percebemos neles a presena marcante

  • qualificou em EU E TU, o encontro essencialmente um evento e como tal ele acontece. Sem dvida Buber foi profundamente marcado por aquilo que, quando ainda criana em visita a uma comunidade hassdica, acontecia entre o hassid, sequioso de palavras de conforto e orientao, e o tsadik, o guia da comunidade, que confortava seus hassidim com palavras. Do mesmo modo foi singular para ele a experincia na adolescncia quando, em casa de seu av, brincava com seu cavalo favorito at que em dado momento algo aconteceu, algo foi dito a ele e ele respondeu ao apelo; o dilogo acontecera. A fonte de onde brotou o dialgico era pois profundamente vivencial, concreta, existencial,

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    3) INFLUNCIAS.

    a) Consideraes gerais

    Martin Buber mais um pensador do que um filsofo acadmico ou um telogo profissional. A vitalidade de seu pensamento toma sua fora no sentido da concretude existencial da experincia de presena ao mundo. A obra inexoravelmente unida vida. A grande diferena entre Buber e grande parte dos filsofos profissionais repousa no sentido que atribudo relao entre uma questo terica e a praxis. A uma questo qualquer os filsofos respondem atravs da exposio de posies tericas, apelando para a experincia existencial ou, diga-

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  • uur;, para o plano emprito, somente como iniplcs ilustrao para a retido das teorias.

    I . t. i s no mantm para eles um vnculo pro- Imulo com a praxis ou, se houver tal vnculo, rlc r mais uma imposio de normas e orien- i.imu-s que nunca surtem efeito, pois simplesmente ignoram o sentido profundo da praxis. Iv-.ta nada tem a dizer. Buber, ao contrrio, ra- 11

  • o criadora de Buber. No primeiro, de ordem filosfica, incluiremos algumas personalidades que estiveram presentes na reflexo de Buber eo clima ou movimento filosfico dentro do qual se situam Buber e sua obra. No segundo, englobaremos, de modo geral, o misticismo budista, o taosta e o judaico mais particularmente a mstica hassdica.

    Vrios fatores provocaram em Buber a nostalgia do humano. Muitas influncias de fora variada serviram como provocao, outras como elan para a reflexo, outras como suporte ou como clima. No nos possvel, no mbito desta introduo, um estudo minucioso dessas influncias, embora reconheamos sua importncia. Podemos, no entanto, enumer-las, e consagrar um momento para aquela que foi pelo menos bastante significativa ao seu pensamento e que a nosso ver contribuiu decisivamente para a compreenso do sentido da mensagem por ele legada

  • i >1 1 . i, palavras, disse ele que recebeu, como j i!nmamos, de Feuerbach um impulso decisivoi na a construo de sua filosofia do dilogo. Ptimordial no pensamento de Feuerbach sobre " ' i mhecimento do homem que ele considera> ('* como o objeto mais importante da filosofia.I Ic n,ti v o homem enquanto indivduo, mas nino a relao entre o eu e o tu. No pargrafo >*> di* sua obra Princpios da Filosofia do Fu.~ liiit) Feurbach afirma: O homem, individualmente no possui a natureza humana em si nu mo nem como ser moral nem como ser |n ir ante. A natureza do homem no contida....ente na comunidade, na unidade do homem

    i nrn o homem, mas numa unidade que repousa* lu si vmente sobre a realidade da diferenai nt 1 1 * eu e tu". Feuerbach rejeita a filosofia da n li-nf idade absoluta pois esta leva a uma nega- i.iii das distines imediatas (isto est bem rliiio no pargrafo 56 da mesma obra). 1eiiibach estabelece a distino entre eu e tu '"mo uma forma de rejeio ao idealismo, hiilurr, retomando a intuio de Feurbach, diri- ilnt seu interesse para a relao entre os seres humanos, A maior crtica que Buber apresentoui t r d e Feuerbach diz respeito substituio, Ir lia por Feuerbach, da relao com Deus pela rrluo eu e tu. Buber ainda criticou o mtodo |M.,iulativo de Feuerbach segundo Buber, vitr mtodo impediu que Feuerbach levasse adiante suas intuies e suas afirmaes.

    patente certa afinidade entre Buber e Kant. H ntima relao entre as idias de

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  • Buber e o princpio kantiano no plano da moral: no devemos tratar nosso semelhante simplesmente como meio, mas tambm como um fim: nos diversos tipos de relao Eu-Tu, o homem considerado como fim e no como meio. H sem dvida vrios modos atravs dos quais trato meu Tu como um meio {eu peo sua ajuda, eu solicito uma informao), assim como h diversas maneiras pelas quais sou tratado como meio. O encontro onde a totalidade do homem est presente e onde existe total reciprocidade um dos modos de Eu-Tu. errado catalogar todos os outros modos de Eu-Tu, que no conhecem a total reciprocidade, como modos de EU-ISSO.

    Tanto a obra como o estilo de Nietzsche marcaram profundamente o pensamento de Buber. Como j vimos, o prprio Buber relata a impresso causada pelo livro Assim falava Zaratustra, ainda na sua fase de adolescncia.

    Merecem especial destaque os seus mestres mais prximos Dilthey e Simmel. Franz Ro- senzweig, lder da Academia Judaica Livre de Frankfurt e amigo ntimo do autor esteve tambm presente nas reflexes de Buber, sobretudo atravs da obra 'Der Stern der Erloesung" (A estrela da Redeno), publicada em 1921.

    Gustav Landauer tambm exerceu influncia sobre Buber. A amizade com Landauer proporcionou significativa riqueza de idias para Buber, Desde o primeiro encontro em Berlin por volta de 1900 at a morte de Landauer em 1922, uma grande amizade uniu os dois pensa-

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  • ilotrs. De um modo particular, foram as con- >f|H,fies de Landauer sobre o conceito de comunidade que chamaram a ateno de Buber. A Ir mi disso, ambos estavam interessados no> indo da mstica. Foi a primeira edio moder- n.i dos escritos de Mestre Eckart, editada porI .mdauer, que levou Buber a estudar o pensa- inrnto mstico alemo. O mtodo de Buber na mlrta e na compilao dos contos hassdicosh.istante se assemelha com o mtodo empregadoI h ir Landauer na sua edio e interpretao da nlirn do Mestre Eckart.

    Se quisssemos inserir Buber dentro de uma corrente do pensamento filosfico talvez pudssemos optar pela Filosofia da Vida (Le- lirnsphilosophie ). Neste ponto marcante a influncia de seu mestre Dilthey. Do mesmo modo, muitas das afirmaes, passagens ou conceitos utilizados por Buber permitem apro- Min-lo de um certo intuicionismo. Porm, estas duas correntes no poderiam ser tomadas aqui no seu sentido tcnico ou como usualmente empregado na histria da filosofia. Avanamos esta afirmao com todo o cuidado, pois qualquer precipitao ao generalizar acarretaria em erro histrico - Buber no se filia

    a movimento filosfico algum, ainda que possamos, com cuidado, aproxim-lo de uma corrente ou de um mtodo. Sem dvida alguma, Buber tributrio de uma poca; vrias vezes ele deve pagar um certo preo pela prpria situao histrica que vivenciou.

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  • De modo geral, no difcil constatar que as obras de Buber revelam um profundo compromisso com a vida. A vida realizada e confirmada somente na concretude do "cada-dia. Segundo Buber, o projeto da filosofia explicitar a concretude vivida da existncia humana a partir do prprio interior da vida. Percebe-se que este pacto com a existncia concreta levou Buber a uma postura um tanto ctica frente aos sistemas filosficos. Tal atitude de reserva e de certo ceticismo era comum na tradio da Le- bensphilosophie. O trecho de uma das importantes obras de Buber a que aludimos h pouco, onde ele falava da estreita aresta, denota esta atitude ctica no s para com os sistemas filosficos mas tambm para com a atitude filosfica de um modo geral. Para Buber, a filosofia e o filosofar so primordialmente atos de abstrao. Esta afirmao implica uma crtica maneira de abordar a realidade, na medida em que estes atos de abstrao nos separam da concretude da existncia vivida. Abordando o sentido do estudo da existncia humana (do conhecimento antropolgico), Buber suficientemente claro em estabelecer a distino entre a abstrao e o conhecimento antropolgico, opondo entre si os dois modos de abordagem. Aquela nos separa da vida enquanto que este tenta abordar o fluxo concreto da vida partindo de seu interior. A abordagem prpria antropologia filosfica deve ser realizada como um ato vital. A no se conhecer, diz Buber referindo-se abordagem antropolgica, per-

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  • ntmii > rndo na praia contemplando as espumas il,i!i mulas. Deve-se correr o risco, necessrio iii . 1 1 \f na gua e nadar. (Cfr. O problema ./. homem, pgina 18 da traduo francesa).

    Vrias afirmaes de Buber permitem n|tio.\im'lo do intuicionismo. Este deve ser> nii udido como uma participao na concretude l.i vida, em oposio ao conhecimento concei- in.il prprio de um espectador alienado con- urhide do fluxo existencial. Buber critica a li oria Bergsoniana da intuio, pois v nela um crio perigo. Com efeito, no ato da intuio, pode se ser subjugado pelo ato da intuio- ni, com isso, atingir a verdadeira realidade do

    nhjeto intuido que se coloca aqum do momento de presena, momento este em que se H-.ili/.a a intuio. Podemos dizer simples e deliberadamente (o mbito desta introduo no nos permite aprofundar tais afirmaes) que Buber se aproxima da perspectiva intuicionista na medida em que distingue radicalmente duas ilitudes de situao no mundo, dando primazia . 1 atitude pr-cognitiva e pr-reflexiva (no- conceitual) existente entre o homem e o ente que se lhe defronta no evento da relao dia- lgica.

    Por fim notemos que vrios conceitos utilizados por Buber e cujo sentido se aproxima daquele dado pelo intuicionismo decorrem tambm da influncia exercida por Dilthey.

    *

    O interesse que norteou Buber para o estudo das fontes da mstica e dos ensinamentos

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  • judaicos teve sua origem num sentimento profundo de carncia de fundamento de sua prpria existncia. Esta procura de razes o conduziu para aquilo que, sob diversas formas, podemos chamar de auto-afirmao judaica. O primeiro passo foi sua participao, ainda nos tempos de universidade no movimento sionista. Porm, logo em seguida, ele liderou o movimento de oposio contra a faco poltica comandada por Theodor Herzl, radicalizando a ciso no seio da instituio. A fundao de um estado poltico no deveria ser seno uma fase do renascimento judaico.

    Foi ainda o descontentamento consigo mesmo que o conduziu ao estudo da mstica judaica, estudando os msticos alemes Mestre Eckart e Angelus Silesius. Encontrou-se assim com a mstica hassdica cuja vitalidade operou uma transformao em seu pensamento. De um intelectual alemo procura de razes judaicas Buber passou a ser um pensador cujo esprito era profundamente judaico. A paixo pelo humano encontrava razes na sua lealdade para com o seu povo.

    Exatamente nesta poca, quando aprofundava seus contatos com o Hassidismo, lhe sobreveio um novo tipo de estmulo intelectual: as primeiras tradues das obras de Kierke- gaard. O teor da mensagem soava-lhe como uma exigncia de que toda a filosofia deveria ser centrada na existncia concreta do indivduo. Embora diferentes em suas manifestaes, Kierkegaard e Nietzsche rejeitavam o idealis-

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  • tu.. Iilosfico. Enquanto Kierkegaard rejeitava

    .. i .u lonalismo filosfico a partir da afirmao

    .l.i Ir religiosa, Nietzsche o fazia a partir da n.iiividade humana.

    De uma fase mstica Buber passou por 1 1 tu. i fase existencial cujo principal exemplo Ihinicl, obra publicada em 1913. A unio com o Absoluto j no era mais procurada por ser ilusria, ela no opera a unio no interior da< \ istnica individual; nela o prprio ser no l< viino sua verdadeira integrao e a separad o interior permanece. O prprio conceito de unidade ser visto posteriormente como uma Ia lha na sua abordagem valorativa da existn- ria humana. EU E TU contm severas criticas proposta mstica da unidade. Esta categoria si-r substituda pela categoria da relao que . fundamental para a compreenso do sentido da existncia humana. No princpio a relao. A relao, o dilogo, ser o testemunho originrio e o testemunho final da existncia humana.

    *

    b) O HASSID ISM O Buber conhecido tanto pela sua filosofia

    do dilogo como pelos seus estudos sobre o Hassidismo, sobretudo pela sua obra Die Erzaehlungen der Chassidim, que apareceu em traduo portuguesa sob o ttulo Histrias do Rabi. (Editora Perspectiva)

    Embora no encarasse sua tarefa como um empreendimento hermenutico e histrico, Bu-

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  • ber legou ao Ocidente uma das tradies religiosas de grande riqueza mstica e espiritual. O assduo contato e a intimidade que manteve, durante anos, com este movimento da mstica hassdica representaram para Buber mais do que uma simples influncia, o clima ou o molde do seu pensamento.

    Diz Buber que um dos aspectos mais vitais do movimento hassdico o fato de que os hassidim contavam entre si histrias sobre seus lderes, os tzadikim. Grandes coisas haviam presenciado, participando delas e a eles cumpria relat-las, testemunh-las. A palavra utilizada para narr-las mais que mero discurso: transmite s geraes vindouras o que de fato ocorreu, pois a prpria narrativa passa a ser acontecimento, recebendo consagrao de um ato sagrado (cfr. Histrias do Rabi, pg.

    11 )No se trata de uma mera coletnea ela

    borada por Buber, pois, como ele mesmo afirma, o que os hassidim narravam em louvor de seus mestres no podia ser enquadrado em qualquer molde literrio j formado ou em formao . . . O ritmo interno dos hassidim por demais acelerado para a forma calma de narrativa popular, queriam dizer muito mais do que ela podia conter. (Idem pg. 12). Buber entendeu sua tarefa como uma sorte de informao no sentido de dar formas destas lendas que os hassidim contavam sobre seus tzadikim. E mais, devido ao elemento sagrado que a enforma devido vida dos tzadikim e

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  • ilr.jria elevada dos hassidim, essa lenda me- i.il precioso, embora por vezes impuro, mistu- mdo escria, {Idempg. 13).

    Contrariamente a algumas crticas que lhe niiim dirigidas, Buber no utiliza a massa informe das lendas como um veculo de suas prprias idias a respeito da mstica hassdica.( Vs personagens principais os tzadikim no so meros porta-vozes daquilo que Buber pirtensamente havia colocado em suas bocas, ou no entusiasmo dos que reletavam os has- idim para o bem de sua causa, ou de sua ilosofia do dilogo, ou de suas idias sobre Deus, religio ou mstica. Buber nos narra o que ele ouviu e no o que ele nos queria falar.O metal precioso de que fala Buber, poderia ser melhor entendido como pedra preciosa, um diamante que dever ser lapidado. O fato de que ele no acrescenta nada em seu relato destas histrias, no significa que Buber n-las deu como encontrou, ou que nos relatou tudoo que encontrou; ele atingiu a perfeio atravs da lapidao, do esmero. Ele prprio diz que Histria do Rabi por exemplo, contm um dcimo de tudo o que foi coletado. Este livro, em bela traduo, vai nos mostrando pedras preciosas, uma aps as outras, sem haver estabelecimento de hierarquia entre elas. Todas revelam o sentido religioso e humano da existncia concreta dos tzadikim dentro de uma tradio religiosa viva e cheia de piedade.

    Herman Hesse, referindo-se a esta obra de Buber, afirmou em carta datada de 1950:

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  • "Buber, como nenhum outro autor vivo, enriqueceu a literatura universal com um genuno tesouro".

    Pode-se afirmar que Buber encontrou-se duas vezes com o Hassidismo. A primeira, em sua infncia, quando acompanhou o pai durante uma visita a uma comunidade hassdica de Sadagora na GALCIA (Polnia). Nesta ocasio misturavam-se a espontaneidade de uma criana aberta ao mundo, que vive todas as experincias e permanece nelas, e uma comunidade que ainda retratava a primitiva comunidade dos primeiros discpulos do Baal-Schen- -Tov. Em seu trabalho **Meu caminho para o Hassidismo", Buber, relatando aquele encontro, afirmou que recebeu tudo como criana, isto , no como pensamento mas como imagem e sentimento.

    As recordaes deste encontro desvaneceram atravs dos anos at que procura de razes e de sua auto-afirmao encontrou-se com o movimento sionista que representou um retorno ao judaismo na vida de Buber. Foi ento que um livro, Testamento de Israel BaalSchen-Tou caiu-lhe s mos e sua leitura f-lo experimentar a alma hassdica; nessa poca ele vislumbrou o significado primitivo de ser judeu. Eu via aberto a mim, diz Buber, o judasmo como religiosidade, como piedade, como Hassidismo. As imagens de minha infncia, a lembrana do tzadik e de sua comunidade me iluminaram e me levantaram, e reconheci a idia do homem perfeito. Ao mesmo tempo descobri a vocao

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  • ili proclamar isto ao mundo ( Meu Caminho paru o Hassidismo, pg. 89 de "Hinweise").

    No judasmo da dispora sempre houve comunidades cujos membros se chamavam "hassid (piedoso, devoto). O Hassidismo urgiu na Polonia, no sculo X V III. Caracte- i ava-se por um esforo de renovao da mis- liia judaica. Um trao comum a todas essas comunidades hassdicas que por sua santi- dnde, piedade e unio com Deus, aspiravam a uma vida santificada aqui na terra. Esta nova manifestao do judasmo uma vida nova, na qual o antigo e o tradicional so aceitos e se mostram transfigurados na simples e cotidiana existe ncia de cada um, para lhe proporcionar uma nova luz. Com o Hassidismo aparece um novo sentido de piedade. A manifestao deste esprito de renovao se concretizava na pessoa do tzadtk, o mestre, o lder da comunidade. O fundador do movimento foi Rabi Israel ben Hliezer, apelidado de Baal-Shen-Tov, o possuidor do bom Nome (1700-1760). Ele e seus discpulos se dedicaram uma vida de fervor, alegria e piedade. Representavam uma reao contra o rabinismo tradicional, na sua tendncia legalista e intelectual; enfatizavam a simplicidade, a devoo de cada dia, na concretude de cada momento e na santificao de cada ao. Esta nfase na piedade e no amor de Deus tem suas razes nos Profetas e nos Salmos.

    Se quisermos situar o Hassidismo no contexto do Judasmo ps-biblico, podemos consider-lo, segundo M . Friedman, como o encon

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  • tro de trs correntes: a lei judaica apresentada na Halakhah talmdica; a lenda judaica expressa na Haggadah; e a tradio mstica judaica ou Kabbalah. O Hassidismo no admite diviso entre tica e religio. No h distino entre a relao direta com Deus e a relao com o companheiro. Ademais, a tica no se limita a uma ao ou a uma regra determinada. No Hassidismo a Kabbalah se tornou ethos, afirma Buber; este movimento no reteve da Kabbalah seno o necessrio para a fundamentao teolgica de uma vida inspirada na responsabilidade de cada indivdjuo pela parte do mundo que lhe foi confiada.

    Buber resumiu assim o sentido da mensagem hassdica: Deus pode ser contemplado em cada coisa, e atingido em cada ao pura. O ensinamento hassdico essencialmente uma orientao para uma vida de fervor, em alegria entusistica (Histrias do Rabi, p. 20). Este ensinamento no uma teoria que existe independentemente de sua realizao, mas a complementao terica de vidas realmente vividas por tzadikim e hassidim. V-se um novo tipo de relao entre o mundo e Deus, que no simplesmente pantesta, pois no h absoro de um pelo outro. A imanncia de Deus no implica absoro do mundo por Deus. Pelo contrrio, ao afirmar esta relao, a doutrina hassdica pode ser qualificada de panen- testa, isto , longe de uma identificao entre Deus e mundo ela significa e afirma a realidade do mundo como mundo-em-Deus. O comrcio

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  • n.il do homem com Deus tem no s seu lugar, iii is tambm seu objeto no mundo. Deus se di-i i.|i- diretamente ao homem por meio destas

    1 1 usiis e destes seres que Ele coloca na sua vida: i> liomem responde pelo modo pelo qual ele se uuiduz em relao a estas coisas e seres en- vi.idos de Deus (Prefcio de Livros Hass- mundo a morada de Deus, ele se torna IH ir isso do ponto de vista religioso um rtmTuoento (idem). Para Buber, o Hassidismo '1' Munciou e afastou o perigo da separao en- 11 r ;i vida em Deus e a vida no mundo. 1'uher considera, alis, esta separao como o p*e;)do original e a doena infantil de toda religio". Ele eliminou efetivamente o muro I lassidismo realiza uma unio autntica e oncreta, Sem resvalar para o pantesmo, diz Buber", que aniquila ou debilita o valor dos v.ilores ' a reciprocidade da relao entre o liiimano e o divino, a realidade do Eu e do Tu |ii< no cessa mesmo beira da eternidade o li.issidismo tornou manifestas, em todos os "rs e todas as coisas, as irradiaes divinas, n\ ardentes centelhas divinas, e ensinou como e aproximar delas, como lidar com elas e, mais, i >1 1 1 0 elev-las, redim-las e reat-las sua raiz I'iimeira (Histrias do Rabi, pg. 21). O

    XXXVII

  • Hassidismo ensina a todos a presena do Deus no mundo.

    Como ser o homem responsvel pela tarefa de realizar Deus no mundo? Se diriges a fora integral de tua paixo ao destino universal de Deus, se fizeres aquilo que tens a fazer, seja o que fr, simultaneamente com toda tua fora e com essa inteno sagrada, a Kavan, reune Deus e a Schehin, eternidade e tempo. Para tanto no precisas ser erudito, nem sbio: nada necessrio exceto uma alma humana, unida em si e dirigida indivisa- mente para o seu alvo divino (Idem, p. 22).

    O Hassidismo concretizou profundamente, como nos mostram as Histrias do Rabi, trs virtudes que se tornaram essenciais para a realizao da tarefa de cada um: o amor, a alegria e a humildade. Foi pelo amor que o mundo foi criado e atravs dele que ser levado perfeio. O temor de Deus somente uma porta que leva ao amor de Deus, que ocupa lugar central na relao entre Deus e o homem. Deus amor, a capacidade de amar, a mais profunda participao do homem em Deus.

    A alegria entusistica provm do reconhecimento da presena de Deus em todas as coisas. A humildade a procura constante do verdadeiro si-mesmo que atinge sua perfeio como parte de um todo, de uma comunidade. Todas as virtudes atingem sua perfeio pela orao no sentido mais lato de qualquer ao santificada em qualquer momento do dia ou da noite.

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  • A verdadeira relao com o tzadik sustentar o hassid em sua busca de realizao. O tzadik o amparador do corpo e da alma. A grande tarefa do tzadik faciltiar aos seus hassidim a relao imediata com Deus e no substitu-la. Ele dever orientar o hassid em sua tenso, em seu ir-em-direo-a-Deus. Um dos princpios fundamentais do hassidismo, diz Buber, que o tzadik e o povo dependem um do outro. . . Sobre sua inter-relao repousa a realidade hassdica. Aqui tocamos aquela base vital do hassidismo, da qual se esgalha a vida entre entusiasmadores e entusiasmados. A relao entre o tzadik e seus discpulos to somente a sua mais intensa concentrao. Nesta relao, a reciprocidade se desenvolve no sentido da mxima clareza. O mestre ajuda os discpulos a se encontrarem e, nas horas de depresso, os discpulos ajudam o mestre a reencontrar-se. O mestre inflama as almas dos discpulos; e eles o rodeiam e iluminam. O discpulo pergunta e, pela forma de sua pergunta, evoca, sem o saber, uma resposta no esprito do mestre, a qual no teria nascido sm essa pergunta. (Histrias do rabi, p. 25).

    A vitalidade do fervor religioso, o ensinamento completado pela prtica cotidiana e concreta; um novo tipo de relao com Deus, de servio a Deus atravs do mundo; um profundo esprito de comunidade; o amor como elemento fundamental; a inter-relao, no autntico inter-humano do tzadik e seus hassadim formando a comunidade; a alegria entusistica;

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  • novo sentido ao mundo e das relaes do homem com o mundo; a transposio da diviso entre o sagrado e o profano, tais so algumas das principais facetas do ensinamento hassdico que marcaram decisivamente o pensamento e a vida de Buber.

    A intimidade de Buber com o hassidismo repousa sobre uma inefvel relao de simpatia. Ela produziu um vnculo de autopatia, isto , se Buber delapidou as histrias auxiliando-as a se manifestarem mais claramente, do mesmo modo, a mensagem do hassidismo fecundou e provocou o pensamento de Buber. Talvez se pudesse falar de remodelagem mtua. O Hassidismo foi o farol convidativo, decisivo e provocador de uma tomada de conscincia da tarefa e do sentido da existncia humana no mundo.

    *

    4) EU E TU, DE U M A ON TOLOG IA DA RELAAO A U M A A N T ROPOLOG IA D O INTER-HU- M ANO .

    EU E TU representa, sem dvida, o estgio mais completo e maduro da filosofia do dilogo de Martin Buber. Ele a considerava como sua obra mais importante: obra na qual apresentou, de modo mais completo e profundo, sua grande contribuio filosofia. EU E TU no simplesmente uma descrio fenomenolgica das atitudes do homem no mundo ou simples-

    X L

  • mente uma fenomenologia da palavra, mas fiimbm e sobretudo uma ontologia da relao. Podemos dizer que a principal intuio de IJuber foi exatamente o sentido de conceito de lao para designar aquilo que, de essencial, .icontece entre seres humanos e entre o Homem e Deus.

    A reflexo inicial de EU E TU apresenta . 1 palavra como sendo dialgica. A categoria primordial da dialogicidade da palavra o entre. Mais do que uma anlise objetiva da

    estrutura lgica ou semntica da linguagem, o

  • de sua mensagem, mas tambm pelo fato de que ela se situa no centro ou no comeo de toda a obra: a chave ou a via de acesso a todos os outros escritos pertinentes aos mais diversos domnios onde se manifestou a atividade reflexiva de Buber. Obra de maturidade, EU E TU teve conseqncias diretas nas suas obras posteriores sobre antropologia filosfica, educao, poltica, sociologia, bem como nos seus estudos e exegeses da Bblia e sobre o Hassidismo ouo Judaismo. Todas as influncias de filsofos ou de correntes filosficas, do pensamento mstico em geral, do Budismo, Taoismo, da mstica judaica e do Hassidismo se encontram nesta monumental reflexo, verdadeira obra-prima da primeira metade do sculo. A mensagem de EU E TU, em cada um de suas trs etapas, apresenta temas que ainda hoje provocam e fecundam nossa reflexo.

    A base de EU E TU no constituda por conceitos abstratos mas a prpria experincia existencial se revelando. Buber efetua uma verdadeira fenomenologia da relao, cujo princpio ontolgico a manifestao do ser ao homem que o intui imediatamente pela contemplao. A palavra, como portadora de ser, o lugar onde o ser se instaura como revelao.

    A palavra princpio, fundamento da existncia humana. A palavra-princpio alia-se categoria ontolgica do entre ("zwischen") objetivando instaurar o evento dia-pessoal da relao. A palavra como di-logo o fundamento ontolgico do inter-humano.

    XLII

  • O fato primitivo para Buber a relao. () escopo ltimo apresentar uma ontologia da existncia humana, explicitando a existncia dialgica ou a vida em dilogo. As principais categorias desta vida em dilogo so as seguintes: palavra, relao, dilogo, reciprocidade como ao totalizadora, subjetividade, pessoa, responsabilidade, deciso-liberdade, inter-huma- no.

    Mais do que uma metafsica ou ma teologia sistemtica, EU E TU uma reflexo sobre ;i existncia humana. A questo antropolgica do sentido da existncia interpelou Buber.i udo o mais est integrado a esta questo. Por exemplo, a problemtica de Deus, ponto importante nas obras de Buber, integrada na questo da pessoa humana, ser de relao. Assim, Deus ser o Tu ao qual o homem pode falar e nunca algo sobre o qual ele discorrer sistemtica e dogmaticamente. O Tu eterno aquele que nunca poder ser um ISSO. Sobre a questo de Deus, a intuio fundamental de Buber entender o novo tipo de relao que o homem pode ter com Ele, porque para o homem no importa talvez o que Deus em sua essncia, mas sim o que Deus em relao a ele, homem. Deus , pois. Aquele com o qual o homem pode estabelecer uma relao interpessoal. Buber encaminha o problema de Deus,

    ultrapassando a dicotomia sagrado-profano, atravs da realidade da existncia humana.

    *

    X L 1 I I

  • EU E TU se apresenta em trs partes. Segundo um antigo projeto de Buber abandonado logo no incio, e u e t u representava o primeiro captulo ou a primeira parte de uma obra em cinco partes. Esta primeira parte, EU E TU, Buber a subdividiu nos seguintes tpicos: 1. Palavra; 2. Histria; 3. Deus.

    A ontologia da relao ser o fundamento para uma antropoloqia que se encaminha para uma tica do inter-humano. Diz-se ento que o homem um ente de relao ou que a relao lhe essencial ou fundamento de sua existncia. Com isso assistimos ao encontro do pensamento de Buber com a tradio fenomenol- gica, na medida em que grande parte dos filsofos que a ela pertencem partem tambm deste princpio do homem como ser situado no mundo com o outro. O maior mrito que cabe a Martin Buber est no fato de ter acentuado de um modo claro, radical e definitivo as duas atitudes distintas do homem face ao mundo ou diante do ser. As atitudes, como veremos adiante, se traduzem pela palavra-princpio Eu-Tu e pela palavra-princpio Eu-Isso. A primeira um ato essencial do homem, atitude de encontro entre dois parceiros na reciprocidade e na confirmao mtua. A segunda a experincia e a utilizao, atitude objetivante. Uma a atitude cognoscitiva e a outra atitude ontol- gica.

    O sentido que Buber atribuiu ao conceito de relao, aliado radical distino ontolgi- co-existencial, uma aquisio que ter pro

    X L I V

  • fundas influncias para a abordagem da \ istnria humana. No se pode mais prescindir destas reflexes em qualquer perspectiva que c tome do humano, seja na antropologia filosfica ou em cincias humanas. Se a sua afirmao da existncia humana como ser de relao no original alis o prprio Buber re- t onheceu ter recebido o impulso decisivo deI vuerbach, o mesmo no se pode dizer no que se refere distino que ele estabeleceu fiitre as duas atitudes do homem e os dois tipos de mundo a elas correspondentes. De qualquer forma, sua penetrante e vigorosa reflexo e o modo proftico com que lana sua mensagem baseada nestes dois princpios da existncia Immana o dialgico e o monolgico e sobretudo a coerncia e intimidade entre EU E TU e o restante de sua vasta obra, colocam-no cm um lugar inquestionavelmente singular na Histria da Filosofia e do pensamento contemporneo. Todos aqueles que abordaram os mesmos temas, fundamentais em filosofia, no o fizeram com to grande profundidade e beleza de linguagem.

    *

    O mundo mltiplo para o homem e as atitudes que este pode apresentar so mltiplas. A atitude um ato essencial ou ontolgico em virtude da palavra proferida. Cada atitude atualizada por uma das palavras-princpio, Eu-Tu ou Eu-Isso. A palavra-princpio, uma vez proferida, fundamenta um modo de existir.

  • Ela uma palavra originria, fundamental, Grundwort. O homem, como j foi dito, um ser de relao. Podemos nos referir aqui ao conceito de intencionalidade como ele entendido na fenomenologia. A relao no uma propriedade do homem, assim como a intencionalidade no significa algo que esteja na conscincia, mas sim algo que est entre a conscincia e o mundo ou o objeto. Sendo assim, a relao tambm um evento que acontece entre o homem e o ente que se lhe defronta. No o homem que o condutor da palavra mas esta que o conduz e o instaura no ser. Notemos aqui ntidas reminiscncias judaicas sobre o sentido dado palavra que no logos (razo), mas dabar. A atitude de abertura do homem e a doao originria do ser formam a estrutura da relao e u -s e r . "A essncia do ser se comunica no fenmeno, diz Buber. A contemplao a atitude que instaura a presena imediata do hom em -Eu ao mundo.

    Dentre as mltiplas atitudes que o homem pode apresentar diante do mundo, Buber destaca duas que so as duas possibilidades do EU revelar-se como humano. Em face da doao do ser no fenmeno, o homem, EU, profere a paJavra-princpio. Em outros termos o homem pode atender ao apelo do ser. Tal deciso essencialmente passiva e ativa, ela uma atitude de aceitao ou de recusa. Estas duas atitudes, repetimos, so atualizadas pelas pala- vras-princpio proferidas. Ser EU significa proferir uma das duas palavras. Sendo a palavra

    X L V I

  • portadora de ser, o homem que a profere existe autenticamente graas a ela. Existir como e u ou proferir a palavra princpio uma e mesmal oisa. A prpria condio de existncia como ser-no-mundo a palavra como di-logo. H uma distino radical entre as duas palavras- -princpio. O e u de uma palavra-princpio diferente do EU da outra. Isso no significa que existem dois Eus mas sim a existncia de tuna dupla possibilidade de existir como homem. A estrutura toda dual. H dois mundos, duas relaes. Chamamos relao para Eu-Tu e relacionamento para Eu-Isso. Tu e Isso so duas fontes onde a eficcia da palavra se desenvolve constituindo a existncia humana. As torrentes caudalosas que brotam do Isso, das coisas, provm de um modo convergente da fonte primordial que o Tu. O Tu primordal e consequentemente o Isso posterior ao Tu. No princpio relao. A abordagem reflexiva, cog- noscitiva de objetos, do Isso, s poder ser levada a efeito na medida em que passa pelo lugar ontolgico do encontro de duas pessoas. No constitui novidade o que muitos filsofos contemporneos afirmam sobre a prioridade da relao ontolgica sobre a relao cognoscitiva do homem com o mundo. Sem dvida, tanto estes filsofos como o prprio Buber souberam estar atentos e se enriquecer da mesma fonte.

    O fenmeno da relao foi descrito por Buber com o emprego de vrios termos: dilogo, relao essencial, encontro. Devemos estar atentos ao sentido de cada um deles. Por exem-

    XL.VII

  • pio, encontro e relao no so a mesma coisa. O encontro algo atual, um evento que acontece atualmente, A relao engloba o encontro. Ela abre a possibilidade da latncia; ela possibilita um encontro dialgico sempre novo. Mesmo durante o relacionamento Eu-Isso o homem guardaria a possibilidade de uma nova relao. Beziehung, uma possibilidade de atualizao do encontro dialgico, Begegnung.

    O dialgico para Buber a forma explicativa do fenmeno do interhumano. Interhu- mano implica a presena ao evento de encontro mtuo. Presena significa presentificar e ser presentificado. Reciprocidade a marca definitiva da atualizao do fenmeno da relao. O "entre assim considerado como a categoria ontolgica onde possvel a aceitao e a confirmao ontolgica dos dois polos envolvidos no evento da relao.

    As duas palavras-princpio instauram dois modos de existncia: a relao ontolgica Eu-Tu e a experincia objetivante Eu-Isso. Esta diferena antropolgica se fundamenta no conceito de totalidade que determina a relao ontolgica Eu-Tu. A palavra-princpio s pode ser proferida pelo ser na sua totalidade.

    As duas palavras-princpio ao se atualizarem no s estabelecem dois modos de ser-no- -mundo, mas tambm imprimem uma diferena no estatuto ontolgico do outro. No entanto, o fundamento cabe palavra-princpio Eu-Tu. Segundo Buber o Tu ou a relao so originrios. O Tu se apresenta ao Eu como sua con-

    X L V III

  • Eu-Tu envoltos na vibrao recproca do face- -a-face.

    Buber estabelece, como vimos, uma distino entre as duas palavras-princpio. Para queo evento instaurado pela palavra-princpio Eu- -Tu seja dialgico necessrio o elemento de totalidade. Totalidade no simples soma dos elementos da estrutura relacionai. Esta totalidade se vincula totalidade do prprio participante do evento. Esta totalidade do Eu que profere a palavra-princpio deve ser entendida como um ato totalizador, uma con-centrao em todo o seu ser. O homem est apto ao encontro na medida em que ele totalidade que age. Mais que a independncia do todo, como evento relacionai, nico, Buber entende a totalidade como independncia da prpria relao em face dos componentes desta estrutura. Porm esta independncia no absoluta, mas relativa: cada elemento da estrutura considerado isoladamente pura abstrao. O evento acontece em virtude do encontro entre o Eu e o Tu na reciprocidade da ao totalizadora. A totalidade presente no Eu-Tu no simplesmente a soma das sensaes internas do eu psicolgico. A totalidade precede ontologicamente a separao. A palavra Eu-Tu precede a palavra Eu- -Isso. Eu-Isso proferido pelo Eu como sujeito de experincia e utilizao de alguma coisa. A contemplao anterior ao conhecimento. A inteligncia, o conhecimento conceituai que analisa um dado ou um objeto posterior intuio do ser. Eu-Isso posterior ao Eu-Tu.

    L

  • ( ) Ku de Eu-Isso usa a palavra para conhecer > inundo, para impor-se diante dele, orden-lo,< id utur-lo, venc-lo, transform-lo. Este mundo nada mais que objeto de uso e experincia.

    O problema da totalidade permanece no< i-ntro das preocupaes de Buber em relao . 1 questo antropolgica. Tal preocupao se coaduna com a sua concepo da tarefa filos-I Ica, a saber, a reflexo sobre questes reais iquelas que envolvem um compromisso atual com a totalidade da pessoa em todas as suas manifestaes. As categorias da totalidade e do "entre so fundamentais na antropologia filosfica de Buber. Se EU E TU nos revela o dilogo como fundamento da existncia humana, nc a questo antropolgica dever ser abordada como um ato vital de procura do sentido da existncia humana, ento trata-se de perserutar o dialgico no ser humano. O "entre permitir, como chave epistemolgica, abordar o homem na sua dialogicidade; e s no encontro dialgico que se revela a totalidade do homem. A nfase sobre a totalidade acarreta, como corolrio, a rejeio da afirmao da racionalidade da razo como caracterstica distintiva do homem.

    *

    As duas palavras-princpio fundam duas possibilidades do homem realizar sua existncia. A palavra Eu-Tu o esteio para a vida dialgica, e Eu-Isso instaura o mundo do Isso, o lugar e o suporte da experincia, do conhecimento, da utilizao.

    L I

  • A atitude do Eu pode ser o ato essencial que revela a palavra proferida com a totalidade do ser, ou ento uma postura notica, objeti- vante. Na primeira, o Eu uma pessoa e o outro o Tu; na segunda, o Eu um sujeito de experincia, de conhecimento e o ser que se lhe defronta um objeto. A este segundo tipo de Eu, Buber chama de ser egtico, isto , aquele que se relaciona consigo mesmo ou o homem que entra em relao com o seu si-mesmo. Eu-Tu e Eu-Isso traduzem diferentes modos de apreenso da realidade, ao mesmo tempo que instauram uma diferena ontolgica no outro plo da relao, seja como Tu seja como Isso. A contemplao (Schauung ) a doao do ser como Tu ao Eu, pessoa, que o aceita. A inteligncia, o conhecimento, a experincia a apreenso do ser como objeto. Na contemplao, a atitude no cognoscitiva mas ontolgica. No conhecimento ou na experincia a atitude no presena do ser que se revela na contemplao, um tornar-se presente ao ser e com o ser.

    Em suma, existem dois modos de presena. Sendo originrios, a relao Eu-Tu e o conceito de presena recebem seu sentido autntico na doao originria do Tu. No encontro dial- gico acontece uma recproca presentificao do Eu e do Tu. No relacionamento Eu-Isso se o Isso est presente ao Eu no podemos dizer que o Eu est na presena do Isso. A alteri- dade essencial se instaura somente na relao Eu-Tu; no relacionamento Eu-Isso o outro no encontrado como outro em sua alteridade. Na

    L I I

  • " l.u.o dialgica esto na presena o Eu nino pessoa e o Tu como outro.

    *

    H diversos modos de existncia Eu-Isso. Iluber os resume em dois conceitos: experin-< i.i ("Erfahrung ) e a utilizao ou uso (Ge- l'inuchen ). A experincia estabelece um con- liu io na estrutura do relacionamento, de certo modo unidirecional entre um Eu, ser egtico, um objeto manipulvel.

    Este relacionamento se caracteriza por uma coerncia no espao e no tempo; ele < oordenvel e submetido ordem temporal. () relacionamento implica que os entes, coisas

  • aquisies da atividade cientfica e tecnolgica da histria da humanidade. Em si o Eu-Isso no um mal; ele se torna fonte de mal, na medida em que o homem deixa subjugar-se por esta atitude, absorvido em seus propsitos, movido pelo interesse de pautar todos os valores de sua existncia unicamente pelos valores inerentes a esta atitude, deixando, enfim, fenecero poder de deciso e responsabilidade, de disponibilidade para o encontro com o outro, como mundo e com Deus. A diferena entre as as atitudes no tica mas ontolgica. No se deve distingu-las em termos de autenticidade ou inautenticidade. Enquanto humanas, as duas atitudes so autnticas. Quando, por esta razo, a relao perde o seu sentido de construtora do engajamento responsvel para com a verdade do inter- humano, a ento, o Eu-Isso destruio do si-mesmo, e o homem se torna arbitrrio e submetido fatalidade.

    Se o homem no pode viver sem o Isso, no se pode esquecer que aquele que vive s com o Isso no homem,

    *

    Quando a deciso vital do homem percebeo sopro do esprito entre ele e o parceiro da relao, acontece a converso, advm a resposta, surge o Tu. No existe nenhum meio ou contedo, nenhum interesse interposto nesta doao do Tu e na aceitao do Eu. doao gratuita do Tu, o Eu responde pela aceitao

    JLI 7

  • Imrdiata. Ento, na presena, na proximidade '|in- une os semelhantes, o Eu, pessoa, encontra i Tu. Buber distingue trs esferas onde acon- Ifcr a relao: a relao com os seres da natu- nva, a esfera dos homens e a esfera das essn- (if. espirituais. O critrio de maior valor repousa sobre a reciprocidade. Assim a relao >lr maior valor existencial o encontro dial- llloo, a relao inter-humana onde a invocao i-ucontra sua verdadeira e plena resposta. Devimos estar alertas ao equvoco de atribuir ao Tu, em Buber, o significado simplista de pessoa
  • objeto de seu estudo e investigao, adotando uma atitude Eu-Isso, j que esta uma exigncia metodolgica interna de sua cincia. Tal distino entre pessoas mais aptas a tomar tal atitude Eu-Tu ou Eu-Isso que outras no tem fundamento j que se trata de duas atitudes vitais que no representam dois tipos de posturas estanques que alguns homens pudessem tomar e outros no. No so, ademais, dois estados de ser, mas dois modos de ser, de existncia pessoal que o homem deve tomar incessantemente, quer uma quer outra, num ritmo constante.

    As duas atitudes so reversveis e conver- tveis em virtude da deciso do homem como Eu e do significado do que acontece entre o Eu e o mundo. A deciso do Eu no significa criao ou constituio do outro. Buber, denuncia e rejeita o Eu como substncia. Encontraremos duas dcadas mais tarde a mesma denncia contra o "ego cogito do solipsismo cartesiano feita por Merleau-Ponty. Tanto na Estrutura do Comportamento como na Feno- menologia da Percepo Merleau-Ponty rejeita a noo de conscincia como funo universal da organizao da experincia; ele apresenta a conscincia como uma rede de intenes significativas nico modo possvel de unir a conscincia e a ao (Estrutura do Comportamento, 186-188). Para Merleau-Ponty o sujeito no pura interior ida de, mas abertura ao outro, sada para o outro (Fenomenologia da Percepo, 478). O cogito no mais constituinte mas

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  • prejeto ou perspectiva sobre o mundo. Assim ele o mundo se converte no campo de

    iit im;i experincia e deixa de ser um objeto de pensamento, (idem 178). O Eu no , repeti- mos, uma realidade em si, mas relacionai. No U> pode falar em Eu sem mundo, sem Isso ou *iriii o Tu. Se o Eu decide-se por uma ou por mi m a atitude., significa que o fenmeno da rdno Homem-Mundo como um todo que de- ! (nr a possibilidade do Eu decidir. Do Eu de- pende a deciso, no de tomar uma atitude masi Ir tomar tal atitude, pois ele no , seno Itiando decide tomar tal atitude diante do mundo. A iniciativa e o fundamento pertencem ao ser como Tu. O Tu se oferece (no pro- inado) ao encontro e o Eu decide encontr-lo. 'lemos, ento, o escolher e o ser-escolhido, na miitua ao do face-a-face. Parece difcil a explicao deste paradoxo de realidades independentes e equifundamentantes. Buber afir- que o Tu inefvel, ele no pode ser objetivado abordado atravs de expresses explicativas, esclarecedoras e por isso mesmo re- ilutoras a uma realidade que ele, por natureza, no pode ser.

    de suma importncia, para a filosofia do outro de Buber, a irredutibilidade do Tu a um objeto que minha atitude determina e experi- encia, sobre o qual pode falar e enunciar juzos predicativos. Em hiptese alguma o outro pode ser um objeto. Se isto acontecer, e a est o destino do homem, o Tu j no mais seno um Isso, uma soma de qualidades, til a um

    lvii

  • propsito realizvel. O Tu no pode ser representado, j que a apresentao aqui essencialmente presena, instante nico do dilogo; a representao sugere de algum modo a independncia do sujeito com relao ao representado.

    A relao atual (atuante) envolve simul

    taneamente passividade e espontaneidade. A afirmao de Buber clara: Ich werde am Du torno-me Eu na relao com o Tu. O Tu orienta a atualizao do Eu e este, pela sua aceitao, exerce sua ao na presentificao do outro que, neste evento, o seu Tu.

    No Tu, finitude e ilimitao se confundem. A temporalidade a presena da atitude transcendente. A presena instaura tambm a finitude. Neste evento da relao finitude e transcendncia se relacionam dialeticamente, pois minha abertura ao outro, que meu Tu, define ao mesmo tempo meu ser como finito, isto , relacionai, Esta finitude no limitao no

    sentido de ob-jetivao (oposio prpria ao mundo do Isso), mas a prpria relao dia- lgica na medida em que o Eu se vincula onto- logicamente ao Tu, sem que ambos percam sua realidade e atualidade. Tal atualidade, diz Buber, supe ao e paixo, ou atividade e espontaneidade, uma autntica alterao pois o Eu age sobre o Tu e o Tu, sobre o Eu.

    As relaes Eu-Tu, embora no apresentem coerncia no espao e no tempo, no esto simplesmente no ar, desligadas. H algo sub-

    LVIII

  • |m ente que as une como que num fluxo cons-i.nite de latncia e patncia: a nostalgia doI m As duas atitudes, segundo Buber, se atua- li .mi sucessivamente em um ritmo constante. M.o podem ser tomadas simultaneamente. Osii rii antes fugazes de relao entremeiam na vida do homem os inmeros e prolongados momentos de relacionamento Eu-Isso. A pre-1 n
  • seres humanos, alm do Eu e aqum do Tu na esfera entre os dois. Do mesmo modo a verdadeira comunidade no nasce do fato de que as pessoas tm sentimentos umas para com as outras {embora ela no possa, na verdade, nascer sem isso) ela nasce de duas coisas: de estarem todos em relao viva e mtua com um centro vivo e de estarem unidas umas s outras em relao viva e mtua.

    O fenmeno da resposta essencial relao. Quem ouve se no para responder? A experincia de receber a palavra e respond- -la o mago do entre ou a revelao vivida pela reciprocidade, Esta experincia vivida de um vnculo numa situao de apelo e resposta encerra para Buber o fenmeno da responsabilidade em seus dois sentidos: primeiro, como resposta e, segundo, como a obrigao" de responder. Para Buber a responsabilidade como projeto do homem na histria de viver num nvel real e essencial da vida humana a resposta ao apelo do dialgico. A responsabilidade transcendendo o nvel moral, para um nvel mais amplo, o nome tico da reciprocidade.

    Podemos resumir as principais caractersticas do mundo do Tu em: imediatez, reciprocidade, presena, totalidade, incoerncia no espao e no tempo, a fugacidade e a inobjetivao. A reciprocidade permanece como o parmetro valorativo das diversas relaes Eu-Tu nas diferentes esferas que Buber distinguiu.

    *

    L X

  • O problema de Deus aparece mais claramente na terceira parte de EU E TU, cujo ttulo ttulo poderia ser at mesmo O Tu eterno. Porm, s compreendemos claramente as concepes de Buber sobre o Tu eterno aps uma m ereta compreenso das duas primeiras partes > do Post-scriptum escrito em 1957 quando Muber esclarece alguns pontos que haviam sus-< ilado controvrsias.

    Um dos pontos mais notveis , a nosso ver, a extrema fidelidade desta concepo para com a intuio central de seu pensamento e a rx trema coerncia desta concepo com as conseqncias que dela resultaram. Como, ilualmente, nssa poca se caracteriza mais por um eclipse de Deus, a preocupao de Buber voltava-se principalmente para o esclarecimento do dilogo com Deus a fim de torn-lo de novo possvel para o homem contemporneo. Assim, a reflexo sobre a palavra, o seu sentido na existncia humana, o sentido e a tarefa que a prpria histria reserva a este mundo do homem desenharam o clima no qual a relao absoluta entraria em cena, ao mesmo tempo que exigiam para a sua prpria condio de possibilidade, a relao com o Tu eterno. Trata-se de uma conversa com Deus. Como j dissemos, a problemtica de Deus considerada a partir da existncia humana, pois, a palavra de Deus se faz presente na histria do homem. A palavra de Deus, diz o Post-scriptum, penetra todo evento da vida de cada um de ns, assim como cada evento do mundo que nos envolve,

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  • tudo o que biogrfico, tudo o que histrico transformando-o, para voc e para mim, em mensagem e exigncia. A princpial implicao da concepo buberiana sobre o Tu eterno que no nos interessa saber nada sobre Deus, Tu eterno, para que possamos entrar em contato com Ele e falar com Ele. E mais, no Deus em si que interessa ao homem, mas a relao entre ele e Deus que profundamente significativa. Buber tenta exprimir a unidade que ele v entre Deus, o homem e o mundo. No se trata de uma unio mstica, mas de uma comunho. Sem dvida, Deus o totalmente outro, mas Ele o totalmente mesmo, o totalmente presente. A revoluo buberiana, se aqui couber este termo, deixa de lado a perspectiva metafsica que v uma dupla ordem de seres:o imanente e o transcendente. Tais categorias

    empregadas na compreenso da concepo buberiana so ineficazes e mesmo sem sentido.O significado desta absoluta alteridade e da absoluta presena na esfera do encontro como Tu eterno tem seu correspondente no sentido da independncia e da relao na esfera humana. H como que um paralelismo entre a esfera humana e a esfera do encontro com o Tu eterno. No podemos, porm, prolongar este paralelismo. Os dois tipos de relao dialgicas so diferentes num ponto. Se o Tu pode se tornar um Isso na esfera humana, o Tu eterno, sendo a alteridade absoluta, no pode, em termos ontolgicos, ser reduzido a um Isso.

    LXII

  • Um dos pontos cruciais que suscitou maior i imtrovrsia foi o conceito de reciprocidade |it . sente na relao do homem com o Tu eterno. IVrgunta-se se possvel compar-la com a reciprocidade que caracteriza a relao dial- qica no nvel humano em qualquer uma das trs v.feras. Buber acrescentou alguns esclarecimentos no Post-scriptum. Ele afirma que para entendermos a diferena no tocante a esta ques- io no se deve fazer apelo distino entreo raciocinai e o irracional mas sim compreender ,i distino entre a razo que se desliga das outras foras da pessoa humana, declarando-se soberana, e a razo que participa da totalidade e da unidade da pessoa humana, trabalhando i* se exprimindo a si mesma dentro desta to- talidade.

    Sendo, para Buber, a realidade humana a via de acesso para a problemtica de Deus,

    .is suas concepes sobre o Tu eterno e o sentido da relao pura so, mais que uma teologia ou uma filosofia da religio, um verdadeiro humanismo. No teria sido esta a justificativa da atribuio, em 1963, do prmio Erasmo pela Academia Holandesa de Amsterd? Mais que um humanismo com aparncia de um idealismo moral, o humanismo buberiano on- tolgico. Sua mensagem a tarefa atribuda

    ao homem: realizar o divino no mundo, tornar possvel uma teofania, ultrapassando o dogmatismo e o esprito objetivante das religies estabelecidas pela religiosidade da exis

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  • tncia concreta. Sem dvida, h forte influncia do Hassidismo sobre Buber nesta proposta da responsabilidade do homem em realizar e instaurar o divino no mundo.

    O humanismo buberiano nos permtie tambm efetuar uma leitura humanista de Buber. "O homem no ento, como afirma R. Mis- rahi, somente o fim tico de uma doutrina ontolgica, mas o comeo desta doutrina e de todo o pensamento ulterior (Martin Buber pgina 48). A palavra, a relao, a reciprocidade so atos do homem. no humano que devemos encontrar a raiz e o fundamento da ontologia do face-a-face.

    Esta nfase dada ao humano, ao ser da relao, nos permite entender a severa crtica que Buber endereou s msticas tradicionais, na medida em que estas levam a uma negao do Eu, ou do si-mesmo que absorvido pela divindade. "A doutrina da dependncia no deixa ao Eu, que sustenta o arco universal da relao pura, seno uma realidade to v e dbil, a ponto de no mais se acreditar que ela seja capaz de sustentar algo; uma destas doutrinas da absoro faz desaparecer este arco no momento de sua perfeio; a outra considera-o uma quimera a ser superada** (EU E TU, pg. 98).

    Para Buber, o Eu o suporte e o fundamento da relao pura e absoluta. Buber nega as msticas do xtase e as msticas do aniquilamento de si mesmo. Ambas negam este poder de suporte prprio do Eu. As primeiras ms-

    LXIV

  • i. ,ri nfirmam a absoro na unidade Buber as l. nuncia por negarem a prpria dualidade t u . Tu e por se tratar, alm disso, de uma lalsa mm idade. Em seu xtase, o mstico no atinge m mi idade verdadeira.com o divino, mas conhece aua prpria unidade. As segundas msticas,I. aniquilamento do Eu na divindade e no ' .1 mesmo, so tambm rejeitadas pela negaao ,| verdadeira dualidade na relao Eu-lu rierno. O exemplo a que Buber se refere a

    lrmula dos Upanishads.Em suma, o misticismo tradicional de

    nunciado por Buber por negar ao Eu a rea- lldade que lhe essencial na relao. Nao se trata do Eu do egtico, mas do Eu da relao

    I u-Tu.Falar de Deus reduzi-lo a um objeto

    . omparvel a outros objetos e que pode ser usado ou explorado# seja em nome de um sis- i.-ma dogmtico ou de mera religio. Alis, a propsito de religio, convm notar, de passa- ciem, uma afirmao feita por Buber numa en- trevista rdio BBC em 1961. D e v o confessar que no gosto muito de religio e fico muito< ontente que esta palavra no se encontra na IJblia (transcrito por R. G. Smith em sua obra Martin Buber, pg. 33).

    Ns podemos falar com Deus, o que significa voltar-se para Ele. O tema da converso importante em EU E TU. Converso Implica uma mudana radical. O a p e lo bube- riano extrapola o campo religioso. Buber ja diagnosticava, em 1923, uma tendncia da so-

    LX V

  • ciedade contempornea (que ele chamou de 'doente ) de contribuir para uma degradao do sentido do humano. A confiana na fora do dilogo, do Tu no desvirtuou este diagnstico orientando-o para um pessimismo. Ao contrrio, a vida do homem pode, pela converso, orientar-se para o caminho de uma nova era, graas a um novo sentido de comunidade.

    Este otimismo permitiu que E li E TU sobrevivesse, por dezenas de anos, s crticas, s controvrsias, s ideologias, s teologias, aos entusiasmos, movimentos e doutrinas.

    *

    A existncia e a reflexo de Buber foram norteadas por uma questo fundamental, cujo sentido e alcance foi se ampliando. Como Kierkegaard, Buber sentiu a exigncia de procurar uma soluo ao problema no qual estava mergulhada a humanidade, uma ruptura entreo homem e Deus. A tarefa a que Buber se imps, foi a de buscar um meio para recuperar a relao entre homem. Deus e o mundo, tornando de novo possvel o dilogo entre Deus e o homem. No vemos em Buber uma ordem sistemtica e preconcebida para abordar este problema. Ao contrrio, o esforo por ele empreendido no sentido de elucidar esta questo, foi se desenvolvendo medida da ocorrncia dos acontecimentos, numa espcie de contnuo recomeo. Seus escritos respondiam a exigncias ocasionais e especficas; outras vezes, exi-

    L X V l

  • q# nelas mais amplas encontravam respostas mi*; nmplas.

    Os trs elementos homem, Deus, mun- iln - foram sendo paulatinamente abordados t.l) diversos prismas. Assim o sentido do mundo

    liiimano (apresentado na segunda parte de EU K TU) ser explicitado com reflexes desen- "Ividas em: Distncia originria e relao, A

  • lanava. A sua resposta era a responsabilidade histrica que ele prprio descobriu em sua obra e manifestava na sua prpria existncia.

    A nostalgia do humano, nele provocada por situaes de profunda crise no mundo dos homens onde a controvrsia e cises imperavam, aliava-se a uma profunda esperana no poder de relao, na fora do dilogo que faria do homem uma pessoa livre e responsvel diante de seu destino. EU E TU provocou outros escritos no mbito da antropologia filosfica: Distncia originria e relao", O que comum a todos, "A palavra que deve ser proferida", "Culpa e sentimento de culpa". A cura atravs do encontro". No campo da educao Buber aplicou e explicitou a filosofia do dilogo. Podemos ler: "Sobre a Educao", "Sobre a formao do carter" , "Discursos sobre a Educao".

    Em seu ensaio "Sobre a Educao" Buber afirma que com a criana o gnero humano comea a cada instante. Realmente est no seio do prprio ser do homem o poder de sempre recomear. Ao lado do instinto de autor, como denomina a necessidade de sempre estar na origem de cada coisa, Buber distingue em cada homem a necessidade de dilogo. Esta dupla necessidade de relao e criao se fundamenta nas duas palavras-princpio.

    No mbito da poltica, o mago da mensagem buberiana baseava-se no desejo de comunidade, apresentando a possibilidade para o

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  • m u povo de realizar topicamente a verdadeira tiiopia. O seu socialismo utpico repousava obre uma verdadeira metafsica da amizade, do encontro dialgico.

    *

    A profunda esperana e f no homem presentes em sua obra e em sua vida, incentiva-i.i 1 1 1 Buber a lanar, exatamente atravs da obra e da vida, um apelo que se concretizou romo uma voz, um dilogo, um testamento le- liado a todos ns que estamos realmente preo- tipados com a sorte do homem.

    Assim, diante da imensido da obra e da i iqueza existencial deste mestre torna-se dif- fll, para muitos, compreender exatamente a sua dirmao: no tenho ensinamentos a transmitir. . Tomo aquele que me ouve pela mo c o levo at a janela. Abro-a e aponto para fora. No tenho ensinamento algum, mas conduzo um dilogo .

    Poderamos cercear o vigor deste homem tt* o qualificssemos de existencialista, comparando-o aos grandes filsofos e pensadores romo Kierkegaard, Nietzche, Heidegger, Jas- pcrs. Se o mago do existencialismo ou da filo- lofia da existncia se revela de um lado como protesto e denncia contra sistemas, abstraes i- conceitos e de outro como a afirmao e a fxigncia de compromisso com a concretude e com o desafio da existncia concreta de cada um. talvez todos esses filsofos tenham falhado

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  • no seu intento, no dialogando com o desafio da existncia em speros monlogos se enclausuraram na aridez de seus sistemas, teses e abstraes. Poderamos concluir, como afirmao professor W . Kaufmann, que na realidade s existiu um existencialista que no foi exatamente existencialista, e sim, Martin Buber.

    *

    Resta-nos agora apresentar ao leitor algumas ponderaes gerais sobre a obra EU E TU como um todo, que ele eventualmente deseja conhecer. Quais so as caractersticas de EU E TU e qual a postura que ela exige para sua compreenso?

    O estilo de Buber muitas vezes se apresenta como obscuro. Em muitos trechos, por motivos de prazer esttico diante de expresses belas e ricas, o sentido chega a ser ofuscado. A construo e o ritmo so brilhantes, o que s vezes dificulta a compreenso de vrias passagens se quisermos efetuar somente uma leitura. Como o mistrio e a profundidade nos fascinam, a tentativa de simplesmente compreender o que Buber tem a nos dizer desvia o nosso desejo de critic-lo ou mesmo em nos perguntar se o que ele afirma verdadeiro ou no.

    A aceitao ou a consagrao no revelam necessariamente a fora e o poder interno de uma obra. Obras que j nascem grandes e so anunciadas como a ltima palavra, podem co-

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  • iiIk i cr uma existncia curta. Por outro lado, (i'ini|o que foi demasiadamente compreendido .... ii seita retiscncias; o espanto ou admira- i * ii.io deixa mistrio algum a ser desvendado.

    I l obras que perduram alguns anos, algu- iiki'i sobrevivem seu autor, outras ressuscitam...... . depois, outras ainda so lanadas defini-iivmnente na magnificncia da imortalidade.

    IU E TU foi revelada em alemo. Vrias nuii.is revelaes se sucederam, tornando-aI >M|.imente conhecida.

    O encanto de seu mistrio continua fasci- " nulo muitos leitores. Tem-se a impresso de iu. Buber manifestou propositadamente suas liItHns atravs de um discurso obscuro e s ' - i s enigmtico, empregando expresses ar-i Isas e mesmo forjando neologismos que no

    . 1 0 facilmente compreendidos numa primeira li ilura, obrigando o leitor a ter uma postura li terminada diante da obra. O livro no deve mt considerado como um mero meio de comunicao, um objeto de prazer esttico, de experincia, mas um verdadeiro Tu com o qual se< labelece um dilogo genuno. No um livro p.ira ser lido mas, diramos, para ser ouvido.

    O prprio Buber, segundo afirmam aque- l i que o conheceram pessoalmente estava mais preocupado, em suas palestras, conferncias e ursos, em estabelecer imediatamente laos n- iimos de genuno dilogo do que em transmitir unia doutrina. Ele desejava mostrar a cada interlocutor o caminho para sua existncia. No .uninhos que levam a parte alguma mas cami

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  • nhos que exigiam a destruio das distncias atravs da encarnao do Eu-Tu. O caminho no traado a partir de um mundo conceituai de abstraes, incuo e vazio. Ele surge de experincia vivida na concretude existencial de cada ser humano. No um constructo terico forjado para o bem de uma causa, de uma doutrina polemizante, mas um verdadeiro existencial.

    Milhares de leitores j consagraram a obra atravs das dcadas porque seu mistrio no lhes causou pessimismo ou derrota diante do incompreensvel ela velava uma riqueza insondvel. neste sentido que o estilo da obra a revela e ao mesmo tempo a oculta.

    Talvez seja exagero afirmar que caminhos como o que nos apresentou Buber, e que EU E TU hoje nos mostra, levam a este ressurgimento de aspiraes profundas provindas de recnditos do humano, que se manifestam hoje atravs das voltas, por exemplo, mstica oriental ou ao cristianismo primitivo.

    EU E T U nos revela, como tambm a traduo buberiana da Bblia, uma faceta importante do pensamento de Buber: a preocupao em captar o sentido originrio das palavras. Como tradutor, ele foi um verdadeiro intrprete da Bblia. Talvez a estranheza com que foi recebida sua traduo revele aquela fora de

    indicao de que nos fala Herclito em seu fragmento 93. O deus, cujo orculo est em Delfos, no fala nem esconde, ele indica.

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  • Nossa maneira de compreender as palavras foi como que embrutecda pelo uso, tor-ii.mdo-nos insensveis para o seu sentido pri-.... dial. Ento em certo sentido elas nos cho-' ihii, como a verdade nos incomoda s vezes, pelo brilho de sua luz.

    Todo EU E TU fala de encontro, pretende r um dilogo e por isso padece com as insu-I ii n ncias aparentes decorrentes de um estilo t imimtico; como o prprio dilogo, que noI h uIl* ser impessoal, mas interpessoal, acontece iiiini clima de mistrio.

    Seria to estranho, podemos nos pergun-i ir, aproximar o carter enigmtico de certas passagens ou o estilo de Buber em EU E TU . 1 observao que Heidegger fez em sua pe- ulr;ir interpretao dos fragmentos dos pr-so- lticos dizendo que a associao de palavras, aparentemente sem articulao entre si, noi i-presenta um estgio primitivo e obscuro que imda no atingiu a perfeio atual de nossa Imgua mas denota uma densidade que j foi perdida atualmente?

    Apesar do estilo, muitas vezes, parecer romntico e o jogo de palavras atingirem um mximo grau de perfeio e beleza, intraduz- veis, a mensagem profunda anti-romntica. Suas expresses recusam qualquer afetao. Por exemplo, a fora extraordinria que Buberi onfere ao conceito de presena responsvel pela mudana de perspectiva em tpicos como Deus, encontro, liberdade, responsabilidade.

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  • O encontro entre Deus e o homem no se realiza em lugar ou tempo determinados, mas acontece aqui e agora, na presena; cada lugar lugar, cada tempo tempo. Os gregos enfatizavam e glorificavam a viso. Lemos em He- rclito, no fragmento 101a,. Os olhos so melhores testemunhas que os ouvidos. Os seus deuses eram representados visualmente atravs de belas imagens. Os hebreus no visualizavamo seu Deus. Ele era invisvel. Ele s podia ser ouvido. Vimos a nfase da afirmao de Buber. No se pode falar Dele. mas falar com Ele. Ele no um objeto de observao ou culto; Ele s pode ser encontrado na presena que a cada vez nica e insubstituvel. Ele um Tu atemporal, um Tu eterno.

    O modo como Buber apresenta EU E TU, como ele nos fala, lana a ns um desafio: qual o modo pelo qual vamos entrar em contato com a obra? Como dissemos, o contedo enigmtico de certas passagens nos faz compreender que estamos diante de um livro que no pode ser lido s uma vez. um estilo provo- cador que exige ateno e talvez duas ou trs leituras. Devemos ouvir o que ele tem a nos dizer em vez de procurar um contedo progra- mtico ou sistemtico que apresenta frmulas estereotipadas atravs de jarges modsticos, solues fceis e imediatas para o mal de nosso sculo. Se algum considerar EU E TU como um ensaio filosfico no sentido tcnico do termo, tentando rever a falsidade ou a ve- rificabilidade de um argumento ou de uma afir-

    LXXIV

  • m.n,,o, acharia, neste livro, campo para uma uca arrazadora. Se ao contrrio, estivermos icntos e dispostos a ouvir, dialogar, ento

    vi irmos que a questo antropolgica nos con- f tonta, nos provoca, nos arrebata para o sen-i ulo do paradoxal.

    Esta tarefa que empreendemos, fornecendo M IE TU em portugus, apresentou dificulda- 1 11 s para ns, pois estivemos conscientes da lite-i .il impossibilidade de traduzi-lo. Nossa preten- n.io em reler Buber foi tentar ouvir dele o que muda quer nos dizer. 54 anos aps sua primeira publicao, esta obra permanece atual e atuante.I v. li vemos menos preocupados com a beleza de ilo ou com a exatido dos termos no vern-< nIo, do que com a fidelidade ao pensamento e um a responsabilidade pa