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EVICÇÃO DO BEM ARREMATADO EM HASTA PÚBLICA
Alexandre Freitas Câmara*
I – Introdução
O Código Civil brasileiro, aprovado em 2002 e em vigor desde janeiro de 2003,
trouxe uma série de inovações que alcançaram fenômenos processuais. Entre essas
inovações – que precisam ser objeto de consideração dos processualistas para que possam
vir a ser bem compreendidas em todos os seus aspectos e desdobramentos – está o disposto
no art. 447 daquele diploma legal. Estabelece tal dispositivo que “nos contratos onerosos, o
alienante responde pela evicção. Subsiste esta garantia ainda que a aquisição se tenha
realizado em hasta pública”.
O citado dispositivo legal corresponde ao que constava do art. 1.107 do Código
Civil de 1916, cujo texto era o seguinte: “Nos contratos onerosos, pelos quais se transfere o
domínio, posse ou uso, será obrigado o alienante a resguardar o adquirente dos riscos da
evicção, toda vez que se não tenha excluído expressamente esta responsabilidade”.
Pelo confronto entre os dois textos facilmente se verifica que não havia, na lei civil
revogada, qualquer consideração a respeito da existência de direito decorrente de evicção
quando o bem houvesse sido adquirido em hasta pública. É preciso, pois, examinar a
inovação, a fim de que se determine se o bem adquirido em hasta pública (praça ou leilão)
realizada em processo executivo está mesmo garantido contra a evicção.
Sendo afirmativa a solução dada a essa questão, outras surgirão: quem será o
responsável pela garantia, o exeqüente, o executado ou o Estado? Qual o meio processual
para fazer valer essa garantia? Terá havido alguma modificação da natureza da
arrematação? Quais as outras conseqüências jurídicas disso? De outro lado, sendo negativa
a resposta, outros problemas surgem: como proteger o arrematante contra o risco da
evicção? Qual o verdadeiro significado da parte final do art. 447 do Código Civil? São
questões como essas que se passa a enfrentar, não sem antes se fazer uma brevíssima
análise do conceito de evicção.* Advogado. Professor de Direito Processual Civil da EMERJ (Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro) e dos cursos de pós-graduação das Universidades Estácio de Sá e Católica de Petrópolis. Ex-Presidente da Comissão Permanente de Direito Processual Civil do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros).
II – O conceito de evicção
Ao tempo do Código Civil de 1916, lecionava o saudoso CAIO MÁRIO DA SILVA
PEREIRA: “Chama-se evicção a perda da coisa, por força de sentença judicial, que a atribui
a outrem, por direito anterior ao contrato aquisitivo”.1 Deste conceito não se afastava
ORLANDO GOMES: “Dá-se a evicção quando o adquirente vem a perder a propriedade ou
posse da coisa em virtude de sentença judicial que reconhece a outrem direito anterior sobre
ela”.2 Tal modo de ver a evicção encontra guarida na mais clássica doutrina civilista
brasileira. É o que se pode ver, por exemplo, em CLÓVIS BEVILÁQUA, para quem a evicção
“consiste na perda, total ou parcial, da posse de uma coisa, em virtude de sentença que a
garante a alguém que a ela tinha direito anterior”.3
Já sob a égide do Código Civil de 2002 tem-se encontrado uma pequena variação
desse conceito, resultante não só da mudança legislativa mas também – principalmente – da
evolução jurisprudencial ocorrida ainda sob o império da lei anterior. Assim é que, para
MARCO AURÉLIO BEZERRA DE MELO, “evicção é a perda da coisa por decisão judicial ou
administrativa que importe em legítimo reconhecimento de que o bem transferido pertencia
a outra pessoa distinta do transferidor e, por via de conseqüência, não pode ser titularizado
pelo adquirente”.4 De toda sorte, fica claro que só há o fato da evicção quando o adquirente
de um bem o perde em razão do reconhecimento do direito de outrem sobre o mesmo,
anterior à aquisição dele pelo evicto.
A evicção é, pois, a perda de um bem em razão do reconhecimento de que o mesmo
já pertencia, antes da aquisição, a pessoa distinta do alienante.
Questão fundamental para a análise do tema objeto deste breve ensaio é a de saber
em que casos existe a garantia da evicção. Afirma o art. 447 do Código Civil que a evicção
se dá nos contratos onerosos. Sendo certo que é a partir da lei que se deve buscar
1 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 7ª ed., 1986, p. 88.2 Orlando Gomes, Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 14ª ed., 1994, p. 97.3 Clóvis Beviláqua, Direito das obrigações. Rio de Janeiro: Editora Rio, edição histórica, 1977, p. 177.4 Marco Aurélio Bezerra de Melo, Novo Código Civil anotado, vol. III, tomo I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 60.
determinar o sentido da norma jurídica, deve-se pois restringir a garantia contra a evicção a
esse tipo de contrato.
O Código Civil de 1916 estabelecia que só haveria garantia contra a evicção nos
contratos onerosos que fossem destinados a transferir domínio, posse ou uso do bem. O
Código Civil de 2002, porém, não faz essa restrição. Por conta disso, recente doutrina
afirma que “o novo Código Civil afastou a antiga qualificação dos contratos onerosos
presente no art. 1.107 do Código Civil de 1916. Com efeito, o art. 447 do novo Código
dispõe que nos contratos onerosos o alienante responde pela evicção. Assim, o novo
Código Civil brasileiro não limitou a evicção aos contratos onerosos que constituem título
para a transferência do domínio, da posse ou do uso. Mas permanece a exigência lógica de
uma transmissão de direito, imanente à noção de vantagem patrimonial dos contratos
onerosos, pois, conforme exposto acima, a privação é sempre de um direito que foi
transferido ao adquirente, uma vantagem patrimonial que lhe foi atribuída e que teve por
título um contrato”.5 E prossegue: “Os contratos onerosos garantidos contra a evicção são
aqueles que se constituem em títulos para a transmissão de um direito. Seu escopo jurídico
é uma modificação da titularidade do direito, e com isso uma modificação na atribuição de
bens jurídicos”.6
Sempre se discutiu se os bens arrematados em hasta pública estariam garantidos
contra a evicção. Já ao tempo do Código Civil de 1916 afirmava ORLANDO GOMES existir
uma modalidade de evicção, por ele denominada evicção expropriatória, que ocorreria
“quando o bem, já penhorado, quando foi vendido, vem a ser alienado em hasta pública”.7
O Superior Tribunal de Justiça, em acórdão recente (proferido posteriormente à entrada em
vigor do Código Civil de 2002, mas referente a caso ocorrido antes disso), afirmou que “a
natureza da arrematação, assentada pela doutrina e pela jurisprudência, afasta a natureza
negocial da compra e venda, por isso que o adquirente de bem em hasta pública não tem a
garantia dos vícios redibitórios nem da evicção”.8
Já se afirmou, porém, em obra doutrinária elaborada já sob a égide do Código Civil
de 2002, em anotações ao art. 447 deste diploma legal, que “o artigo consolida posição
5 José Eduardo da Costa, Evicção nos contratos onerosos. São Paulo :Saraiva, 2004, p. 86.6 Idem, ibidem.7 Gomes, Contratos, p. 97.8 Recurso Especial nº 635.322-SP, relator Ministro Luiz Fux, v.u., j. em 11/5/2004.
doutrinária no sentido de estender a evicção à pessoa que adquire por arrematação judicial
em processo de execução”.9
Pois é precisamente esta possibilidade que se quer examinar aqui, para que se
verifique se é correto o entendimento segundo o qual o bem adquirido em arrematação em
hasta pública realizada em processo executivo estaria mesmo garantido contra a evicção. A
solução deste problema, porém, exige um exame mais acurado da natureza jurídica da
arrematação.
III – Natureza jurídica da arrematação
No processo de execução por quantia certa é preciso que o Estado obtenha o
dinheiro necessário para satisfazer o crédito exeqüendo. Na maioria das vezes isto ocorre
através da penhora de um bem que, alienado em hasta pública, é transformado em dinheiro
no patrimônio do executado para que, dali expropriado, esse dinheiro se transfira para o
patrimônio do exeqüente. Neste processo, chama-se arrematação ao “ato executório de
caráter expropriatório, através do qual os bens penhorados são alienados em hasta pública a
quem mais der, para com o dinheiro apurado ser pago o crédito do exeqüente”.10
A antiga doutrina processual brasileira considerava a arrematação como uma venda
do bem em hasta pública. Assim, por exemplo, em obra clássica da literatura jurídica
brasileira, afirmou-se que “arrematação é a assignação judicial da cousa que faz objecto da
venda publica ao lançador, que offerece maior preço”.11 Conceito rigorosamente idêntico se
encontra em outra clássica obra da literatura processual luso-brasileira.12
Foi, porém, pioneira a doutrina brasileira em negar à arrematação natureza
contratual. Impende seja referida, aqui, a clássica passagem do primeiro verdadeiro
processualista brasileiro sobre o tema:
“O princípio geralmente aceito, que a arrematação é verdadeira venda
e se regula pelos mesmos princípios, é uma abstração sem a luz precisa
9 Bezerra de Melo, Novo Código Civil anotado, vol. III, t. I, p. 60.10 Leonardo Greco, O processo de execução, vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 362.11 Joaquim Ignácio de Ramalho, Praxe brasileira. São Paulo: Ypiranga, 1869, p. 655.12 Joaquim José Caetano Pereira e Souza, Primeiras linhas sobre o processo civil (acomodadas ao foro do Brasil por Augusto Teixeira de Freitas), Rio de Janeiro: Garnier, 1907, p. 337.
para a solução da questão; e tanto assim que todos o invocam, e as
divergências continuam. Explicar-me-ei, pondo de parte todo o receio de
prolixidade. A arrematação assemelha-se à venda no ponto único de dar-
se em ambas a alienação da propriedade, mediante o preço equivalente
pago em moeda; mas a venda é um contrato, efeito do livre
consentimento, que exprime a vontade dos contratantes, e a arrematação é
uma desapropriação forçada, efeito da lei, que representa a justiça social
no exercício de seus direitos e no uso de suas forças para reduzir o
condenado à obediência do julgado; a idéia de que a entrega do ramo
representa o consentimento do executado dado pela interposta pessoa do
juiz, é uma ficção fútil e pueril. Desta diferença, tão substancial, devem
resultar necessariamente diversas relações, diversos princípios, e por
conseguinte, diversos efeitos”.13
Desde a obra de PAULA BAPTISTA a doutrina brasileira vem reafirmando a tese
segundo a qual a arrematação é uma expropriação forçada do bem, e não uma venda
judicial.14 O caráter contratual da arrematação também é negado pela mais autorizada
doutrina estrangeira. Assim é que, por exemplo, para LIEBMAN a arrematação não é um
contrato.15 Também para a moderna doutrina italiana a “venda forçada” (expressão ainda
muito usada por processualistas peninsulares) difere do contrato de compra e venda por um
aspecto fundamental: ela prescinde totalmente da vontade daquele que “seria o vendedor”.16
Quem resolveu bem a questão, ainda que fale – equivocadamente – em “venda
forçada”, foi GARBAGNATI, que assim afirmou: “em regra, o processo de expropriação se
13 Francisco de Paula Baptista, Teoria e prática do processo civil e comercial. São Paulo: Saraiva, 1ª tiragem, 1988, pp. 149-150, nota de rodapé nº 3. Registre-se que a edição aqui citada é uma reimpressão (com atualização ortográfica) da terceira edição, de 1872. A primeira edição deste original e importante livro é de 1855.14 Entre outros, assim o afirmaram expressamente José Frederico Marques, Manual de direito processual civil, vol. 4. São Paulo: Saraiva, 7ª ed., 1987, pp. 177-178; Moacyr Amaral Santos, Primeiras linhas de direito processual civil, vol. 3. São Paulo: Saraiva, 6ª ed., 1983, p. 319; Humberto Theodoro Júnior, Curso de direito processual civil, vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 28ª ed., 2000, p. 202. A esta teoria manifestei expressamente minha adesão em Alexandre Freitas Câmara, Lições de direito processual civil, vol. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 8ª ed., 2004, p. 327.15 A teoria de Liebman sobre o ponto – bem como suas críticas às teorias divergentes – podem ser encontradas em seu clássico livro Processo de execução. São Paulo: Saraiva, 3ª ed., 1968, pp. 108-115.16 Crisanto Mandrioli, Corso di diritto processuale civile, vol. III. Turim: G. Giappichelli, 10ª ed., 1995, p. 77.
desenvolve através de uma fase liquidativa, que tem por escopo a conversão em dinheiro do
bem penhorado do devedor inadimplente. A sanção expropriativa, nesta primeira fase, se
concretiza na venda forçada do bem penhorado, que implica a alienação coativa, por meio
do órgão jurisdicional, da propriedade do bem mesmo”.17
Fica certo, assim, que a expropriação do bem penhorado no processo de execução
não tem natureza contratual. O bem penhorado sai do patrimônio do executado
independentemente de sua vontade e até mesmo contra ela. O Estado, através de seu poder
de império (manifestado na função jurisdicional), retira o bem penhorado do patrimônio do
executado e o transfere a quem mais der na licitação conhecida genericamente como hasta
pública. É, pois, uma expropriação forçada (a expropriação liquidativa, de que fala
GARBAGNATI), e não uma venda.
Não tendo a arrematação natureza contratual, não se insere ela, certamente, na
primeira parte do disposto no art. 447 do Código Civil (segundo o qual “nos contratos
onerosos, o alienante responde pela evicção”). Resta saber, porém, se a segunda parte do
dispositivo (“subsiste esta garantia ainda que a aquisição se tenha realizado em hasta
pública”) incide quando se tratar de arrematação em processo executivo, o que constitui o
objeto central deste estudo.
IV – Evicção e arrematação em processo executivo
Como já afirmado anteriormente, sempre houve muita discussão a respeito de haver
ou não a garantia da evicção quando se arremata um bem em hasta pública no processo
executivo. É evidente, porém, que aqui não serão levadas em conta as opiniões daqueles
autores que reconhecem natureza contratual à arrematação (pois para estes,
indubitavelmente, haverá garantia pela evicção em razão da própria natureza contratual da
arrematação por eles afirmada).18
Assim é que, para LIEBMAN, “embora não se possa falar de garantia da evicção
propriamente dita, porque o executado não vendeu, é inegável o direito do arrematante de 17 Edoardo Garbagnati, Il concorso di creditori nel processo di espropriazione. Milão: Giuffrè, 1983, pp. 12-13.18 Assim é que, por exemplo, e à guisa de exemplo desta tendência doutrinária, Carnelutti defendia a natureza contratual da arrematação (Instituciones del proceso civil, vol. III. Trad. esp. de Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires: El Foro, 1997, p. 38) e, logicamente, afirmava que o bem arrematado estava garantido contra a evicção (ob. cit., p. 44).
reaver o que pagou sem causa. Quem se enriqueceu indevidamente com o pagamento é o
executado, que se livrou das dívidas à custa de bens alheios; ele é obrigado, pois, a
indenizar o arrematante. Mas, as mais das vezes, ele é insolvente; o arrematante poderá,
então, repetir dos credores o que receberam, porque, embora tivessem direito ao
pagamento, não o tinham a ser pagos pela alienação de bens de terceiros”.19 Este
entendimento foi acompanhado pela maior parte da doutrina brasileira sob a égide do
Código de Processo Civil de 1973.20 Aderindo expressamente a essa tese, manifestou-se em
passagem lapidar HUMBERTO THEODORO JÚNIOR:
“A arrematação, no entanto, não é um contrato, mas uma
desapropriação, de sorte que não se pode falar em responsabilidade
contratual como é a da garantia da evicção”.
“Mas como a alienação forçada não exclui a ação reivindicatória de
titulares do domínio sobre o bem arrematado, desde que estranhos à
execução, há de se dar solução ao problema do arrematante que vem a ser
privado do bem adquirido em hasta pública”.
“Trata-se de indenizar quem efetuou um pagamento sem causa, com
injustificado enriquecimento do devedor que teve uma dívida quitada, e
do credor que recebeu seu crédito, de quem não era obrigado pela dívida”.
“É inegável, portanto, o direito do arrematante a recuperar o preço
indevidamente pago”.
“A solução mais plausível é, sem dúvida, a oferecida por Frederico
Marques, apoiada em Micheli e Liebman; embora não haja compra e
venda na arrematação, o executado responde pela evicção, porque se o
seu patrimônio é garantia comum de todos os credores, seria injusto, caso
o bem arrematado não lhe pertencesse, fosse o arrematante obrigado a
arcar com todo o peso da execução, beneficiando os credores com um
enriquecimento injustificado porque obtido à custa de algo que não era
devido”.
19 Liebman, Processo de execução, p. 124.20 Assim, por todos, Frederico Marques, Manual de direito processual civil, vol. 4, p. 200.
“Daí a conclusão de Liebman, de que o primeiro responsável pela
reparação do prejuízo do arrematante é o executado e, subsidiariamente, o
credor”.21
Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, como já se afirmou, houve quem
tivesse visto na parte final do seu art. 447 a solução do problema. Para o ilustre civilista
MARCO AURÉLIO BEZERRA DE MELO, “o artigo consolida posição doutrinária no sentido de
estender a evicção à pessoa que adquire por arrematação judicial em processo de execução.
Desta forma, é assegurado ao arrematante que se veja na iminência de ser privado da coisa
em decorrência da evicção que exija judicialmente a garantia dos credores que deverão
restituir ao evicto o valor que pagou pelo bem, pois, afinal de contas, foram eles que
levaram o bem à hasta pública e, assim, acabaram por assumir objetivamente o risco por
eventual evicção da coisa”.22 Observe-se, então, que para este preclaro jurista não só se
estabeleceu a garantia pela evicção no caso de bem arrematado em hasta pública realizada
no processo executivo, mas se deve considerar (e aqui ele se afasta do entendimento
anteriormente predominante) que o responsável é o exeqüente.
Também escrevendo sob a égide do Código Civil de 2002, manifestou-se ARAKEN
DE ASSIS a respeito do tema, que busca responder à seguinte questão; “E o adquirente na
hasta pública é evicto?”
Responde aquele culto processualista nos seguintes termos:
“Aqui é preciso considerar a unidade do poder jurisdicional. Ao sub-
rogar a vontade do executado, a instâncias do exeqüente, ou veicular a
ação deste na esfera jurídica do obrigado, conforme o ângulo da análise,
e, a um só tempo, decidir o domínio a favor de terceiro, o Estado assume
o risco de entregar com uma mão o que, em seguida, retirará com a outra.
Daí resulta o dever de indenizar o evicto”.
“Ademais, a inserção do Estado no negócio de arrematação autoriza
imputar-lhe responsabilidade pelo dano porventura causado a terceiro.
Deste modo, o Estado responderá solidariamente com as partes da relação
21 Theodoro Jr., Curso de direito processual civil, vol. II, p. 216.22 Bezerra de Melo, Novo Código Civil anotado, vol. III, t. I, p. 60.
processual pela evicção do arrematante. Tem razão Wilard de Castro
Villar, censurando na tese de Liebman o ‘enfoque da arrematação no
campo privado’”.
“Por isso, o art. 447, segunda parte, do CC de 2002 – que repetiu, no
art. 457, a regra respeitante à litigiosidade da coisa –, põe termo a
quaisquer dúvidas, rezando: ‘Subsiste esta garantia ainda que a aquisição
se tenha realizado em hasta pública’”.23
Para o jurista gaúcho, pois, a responsabilidade pela evicção no caso de bem
arrematado em processo executivo existe, e é solidária (entre as partes do processo
executivo e o Estado-juiz). Também aqui, pois, se verifica um afastamento da teoria
liebmaniana que tradicionalmente predominou na doutrina brasileira.
De outro lado, em decisão já citada neste estudo, proferida após a entrada em vigor
do Código Civil de 2002 (ainda que se referindo a caso ocorrido antes disso), o Superior
Tribunal de Justiça – tendo sido relator o eminente processualista LUIZ FUX – adotou o
entendimento que sempre foi dominante na doutrina brasileira, sustentado originariamente
por LIEBMAN.24 No voto do relator se colhe que “a natureza da arrematação, assentada pela
doutrina e pela jurisprudência, afasta a natureza negocial da compra e venda, por isso que o
adquirente de bem em hasta pública não tem a garantia dos vícios redibitórios nem da
evicção. Em outras palavras, na arrematação, o arrematante não adquire nenhuma ação de
garantia. O arrematante lesado pode desfazer a arrematação, investir contra o devedor que
liberou-se com alienação juridicamente interditada ou voltar-se mesmo contra o credor que
se pagou de modo indevido, mas jamais, sub-rogar-se em crédito do processo de
expropriação cuja própria execução ultimou-se com o pagamento do precatório.25 Ao
arrematante reserva-se o acesso à justiça amplo à evitar o locupletamento sem causa,
podendo constringir o crédito do expropriado, em medida acautelatória que lhe garanta o
pagamento a posteriori. Deveras, outra alternativa não se lhe reserva”.
Tenho para mim que o art. 447, in fine, do Código Civil não estabelece a garantia
contra a evicção para os bens adquiridos em hasta pública em processo executivo. A 23 Araken de Assis, Manual do processo de execução. São Paulo: RT, 8ª ed., 2002, p. 742.24 Ver acórdão citado na nota nº 8.25 Registre-se que, no caso examinado pelo STJ, a evicção se deu porque o bem arrematado havia sido, anteriormente, desapropriado pelo Município da Estância de São Vicente.
evicção só é garantida, a meu juízo, quando o bem é adquirido através de negócio jurídico
de direito privado, o que – como já se pôde ver – não se dá na hipótese.
Ficam, assim, dois problemas a enfrentar: determinar como se pode proteger o
arrematante contra os riscos da evicção se o art. 447, in fine, do Código Civil não é
aplicável ao caso; e fixar o real significado da parte final do art. 447 da lei civil. É a solução
dessas duas questões que se passa a buscar.
V – Proteção do arrematante contra os riscos da evicção
Tendo ficado assentado que o art. 447 do Código Civil não se aplica nos casos de
arrematação de bem em hasta pública realizada em processo executivo, resta saber como
proteger o arrematante dos riscos da evicção.
É de se observar que não se sustenta aqui a impossibilidade de haver evicção no
caso de ser o bem adquirido em hasta pública. O que se afirma é que não existe a garantia
pela evicção, na forma do art. 447 do Código Civil. Isto deve ser dito porque, como afirma
a doutrina especializada, “o fato da evicção não se confunde com a garantia da evicção”.26
Pode ocorrer, pois, de alguém arrematar bem em hasta pública e, posteriormente, vir
a perder a propriedade do bem arrematado por conta do reconhecimento da existência de
direito de outrem, anterior à arrematação. À guisa de exemplo, pode-se invocar o caso,
julgado pelo STJ no acórdão mais de uma vez citado neste estudo, de ter sido o bem
penhorado desapropriado pelo Poder Público antes da arrematação. Pode, também, ter
ocorrido penhora de bem de terceiro que, por qualquer razão, não tenha ajuizado embargos
de terceiro para buscar protegê-lo. Nada impede que este terceiro, verdadeiro proprietário
do bem arrematado, ajuíze em face do arrematante demanda reivindicatória, a qual poderá
ser acolhida já que a arrematação em face do proprietário estranho ao processo executivo é
ineficaz.
Entendo que a melhor forma de se proteger o arrematante dos riscos da evicção é
adotar a teoria liebmaniana, que prega a aplicação analógica das regras sobre evicção. O
arrematante evicto poderá, então, ir a juízo em face do executado, já que foi este que se
beneficiou diretamente (por ter sido extinta sua obrigação), a fim de buscar o preço que
26 José Eduardo da Costa, Evicção nos contratos onerosos, p. 12.
pagou pela coisa mais as perdas e danos que tenha sofrido. Subsidiariamente, porém, deve
ser reconhecida a responsabilidade do exeqüente, que viu seu crédito satisfeito à custa da
arrematação de um bem que não poderia ter sido adquirido pelo arrematante por não
pertencer ao executado.
É de se considerar, porém, que assim como o executado pode ter-se tornado
insolvente, o que – no dizer de LIEBMAN – justificaria a responsabilidade subsidiária do
exeqüente, pode este também ser insolvente. Deve-se considerar, pois, o Estado
responsável – em caráter subsidiário à responsabilidade do exeqüente –, por ter assumido o
risco da evicção ao promover a expropriação forçada do bem em hasta pública. Não me
parece, porém, possível concordar com a posição sustentada por ARAKEN DE ASSIS,
anteriormente referida, pois não pode haver solidariedade que não esteja expressamente
prevista em lei ou em contrato e, no caso sub examine, nada há na lei (e não existe qualquer
contrato) estabelecendo a solidariedade entre o Estado e as partes do processo executivo.
VI – O real significado do art. 447, in fine, do Código Civil
Estabelecido que o art. 447, parte final, do Código Civil de 2002 não se refere à
arrematação em hasta pública realizada em processo executivo, resta determinar seu
verdadeiro alcance. E isto não é, salvo melhor juízo, tarefa das mais difíceis.
Impende deixar claro, porém, e desde logo, que o art. 447 do Código Civil só
estabelece garantia contra a evicção nos contratos onerosos. Apenas neste campo, e em
nenhum outro, o alienante fica com a obrigação de indenizar o adquirente se este sofrer
com o fato da evicção.
Ocorre que há casos em que o contrato oneroso de alienação de um bem se dá em
hasta pública. E isto ocorre nas alienações judiciais, regidas pelo art. 1.112, nº III a V do
Código de Processo Civil.
Nesses casos, regidos pelo Código de Processo Civil entre os procedimentos de
jurisdição voluntária, ocorre a venda de um bem em juízo. O que se tem ali é mesmo a
venda do bem, e não sua expropriação forçada, já que os interessados vão a juízo afirmando
sua vontade de alienar a coisa (que, nas hipóteses ali regidas, só podem ser alienadas com a
participação do Estado-juiz, como se dá, por exemplo, na alienação de bens de incapazes).
O que se dá no caso em exame é que o ordenamento jurídico só atribui validade e eficácia à
compra e venda nesses casos se a mesma se der em juízo. Isto, porém, não afasta nem
modifica a natureza do negócio jurídico celebrado, ainda que a venda se dê em hasta
pública.
A natureza negocial da alienação de bens, nos casos mencionados, é confirmada
pela natureza voluntária da atividade jurisdicional exercida pelo Estado-juiz na espécie. Isto
porque na jurisdição voluntária o que se pede ao Estado-juiz é, precisamente, a integração
de um negócio jurídico de direito privado, o qual só será válido e eficaz se realizado com a
participação do órgão jurisdicional.27 Já tive oportunidade de afirmar, sobre a jurisdição
voluntária, que “só se estará diante de verdadeira jurisdição voluntária quando o
demandante estiver em juízo pretendendo obter um ato judicial que confira validade e
eficácia a um negócio jurídico de direito privado que, sem a participação do juiz, seria
inválido e ineficaz”. Naquela ocasião, tive oportunidade de figurar exatamente o exemplo
da alienação de bens de incapazes, afirmando: “Trata-se de negócio jurídico de direito
privado, cuja validade e eficácia dependem da intervenção judicial”.28
Nos casos mencionados, pois, ter-se-á um negócio jurídico de direito privado
destinado à alienação de um bem ou um direito, o qual poderá se efetivar em hasta pública.
A natureza contratual da alienação, porém, não é nestes casos afastada (como se dá na
arrematação), o que faz com que exista a garantia pela evicção. Pois é tal garantia que o art.
447, in fine, do Código Civil está a afirmar. Alienado o bem, por força de um contrato
oneroso, estará o adquirente protegido contra os riscos da evicção ainda que tal alienação se
dê em hasta pública.
VII – Conclusão
Encerra-se este breve estudo afirmando-se as duas conclusões a que nele se chegou:
em primeiro lugar, afirma-se não haver propriamente garantia contra a evicção quando o
bem é arrematado em hasta pública efetivada em processo executivo (caso em que há o fato
27 Sobre o ponto, seja-me permitido referir o que afirmei alhures: Alexandre Freitas Câmara, Lições de direito processual civil, vol. III. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 6ª ed., 2004, p. 564: “Tendo o demandante manifestado em juízo pretensão de integração de negócio jurídico de direito privado, ter-se-á jurisdição voluntária”.28 Idem, ibidem.
da evicção mas não a garantia contra a evicção). Nesta hipótese, por não haver a garantia
da evicção, mas por não se poder aceitar que o evicto fique com um prejuízo irreparável,
admite-se a responsabilidade do executado e, subsidiariamente, e nesta ordem, a do
exeqüente e a do Estado. Em segundo lugar, afirma-se haver garantia contra a evicção, na
forma do art. 447, in fine, do Código Civil de 2002, quando o bem é alienado através de um
contrato oneroso, ainda que esta alienação se realize em hasta pública, o que só pode
ocorrer em procedimentos de jurisdição voluntária, caso em que a alienação não perde
natureza contratual.