Evocação da fome sem angústia - Antônio Callado

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Evocação da fome sem angústia* Por Antônio Callado Para quem escreve é um privilégio ter passado fome algum dia. Não é uma experiência fácil, ao alcance de qualquer um, pois o próprio cerne desse fato estranho que é passar fome é sua inevitabilidade. Passar fome voluntariamente é jejum um sacrifício religioso, um arma da greve, tudo que se queira mas que tem a ver com fome. Pode-se ainda passar fome por falta de tempo, por preguiça de cozinhar, por vontade de morrer, mas também isto não constitui fome. Fome é o estado fisio-psicológico de quem não tem o que comer, não pode arranjar o que comer, não sabe de onde tirar o que comer. Essa espécie da fome inelutável, fome- penedo, fome-granito, fome inarredável também não a passamos, infelizmente. Menos um material de construção! Mas acreditamos firmemente já haver passado mais fome num espaço de tempo reduzido, é verdade do que muito escriba que anda por aí. Nos últimos dias de dezembro de 1944 deixei meu trabalho na BBC de Londres e, no pequeno porto de New Haven, embarquei para Dieppe, na França. Íamos eu e o paulista Marcelino Carvalho por novamente no ar em Paris, depois da guerra, o programa da Paris Mondial (que passava a se chamar Radiodiffusion Française) para o Brasil. Por assim dizer, a França ainda mal se desocupara. Em Lorient, em St. Nazaire, mesmo em Calais lá em cima havia ainda núcleos de alemães que se batiam e que haviam deixados em paz pelas forças da Segunda Frente, na sua desapoderada carreira para Berlim. Marcelino de Carvalho já tinha morado na França durante quatorze anos, conhecia bem a doce terra e portanto, logo ao desembarcar, teve uma impressão algo má das coisas. Para mim, o que importava era que após três anos em Londres eu ia conhecer a capital latina por excelência.

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Crônica de Antônio Callado publicada em janeiro de 1954 no jornal Correio da Manhã

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Evocação da fome sem angústia*

Por Antônio Callado

Para quem escreve é um privilégio ter passado fome algum dia. Não é uma experiência

fácil, ao alcance de qualquer um, pois o próprio cerne desse fato estranho que é passar

fome é sua inevitabilidade. Passar fome voluntariamente é jejum – um sacrifício

religioso, um arma da greve, tudo que se queira mas que tem a ver com fome. Pode-se

ainda passar fome por falta de tempo, por preguiça de cozinhar, por vontade de morrer,

mas também isto não constitui fome.

Fome é o estado fisio-psicológico de quem não tem o que comer, não pode arranjar o

que comer, não sabe de onde tirar o que comer. Essa espécie da fome inelutável, fome-

penedo, fome-granito, fome inarredável também não a passamos, infelizmente. Menos

um material de construção! Mas acreditamos firmemente já haver passado mais fome –

num espaço de tempo reduzido, é verdade – do que muito escriba que anda por aí.

Nos últimos dias de dezembro de 1944 deixei meu trabalho na BBC de Londres e, no

pequeno porto de New Haven, embarquei para Dieppe, na França. Íamos – eu e o

paulista Marcelino Carvalho – por novamente no ar em Paris, depois da guerra, o

programa da Paris Mondial (que passava a se chamar Radiodiffusion Française) para o

Brasil. Por assim dizer, a França ainda mal se desocupara. Em Lorient, em St. Nazaire,

mesmo em Calais lá em cima havia ainda núcleos de alemães que se batiam e que

haviam deixados em paz pelas forças da Segunda Frente, na sua desapoderada carreira

para Berlim. Marcelino de Carvalho já tinha morado na França durante quatorze anos,

conhecia bem a doce terra e portanto, logo ao desembarcar, teve uma impressão algo má

das coisas. Para mim, o que importava era que após três anos em Londres eu ia conhecer

a capital latina por excelência.

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Digamos de passagem e mui rapidamente que, logo ao pisarmos em Dieppe e ao

tomarmos nosso primeiro cálice de calvados, começou-me a inchar um molar a

bombordo da boca. O dente inchou de tal forma que entrei pelo Ano Novo de 1945 (o

da Vitória) com o rosto enorme. Todos os dentistas de Paris estavam à la campagna. Era

como se houvesse uma lei mandando todos os dentistas para o campo, a romperem

bucolicamente o Ano Novo. Acabei entre pracinhas norte-americanos, num enorme

estabelecimento odontológico de guerra. Foi esta a única vez em que me arrancou um

dente um tenente. A princípio, aquele dentista das forças armadas me encheu de uma

desconfiança sem limites. Precisei dizer a mim mesmo que afinal de contas o Tiradentes

era alferes também, ou 2ª tenente, não tendo ficado o menor indício histórico de que

fosse um mau profissional do boticão. Mas deixemos em paz esse dente, que ainda não

pude perdoar. Se o mencionei foi porque ele me saiu da caveira mas ficou para sempre

cravado em minha lembrança da chegada a Paris.

Tudo de triste se esquece, quando se chega a Paris. Só tem um defeito, Paris. É tão

bonita, que a gente sente um vago temor irracional de que a desmontem de súbito.

Parece ter sido erigida por artistas para alguma celebração, algum 14 de Julho todo

especial. Os homens não estão habituados a viver todos os dias cercados de beleza,

como acontece em paris. A viagem, de Dieppe à capital, num trem gelado, sem

calefação alguma (com o dente a latejar) e diante de uma paisagem já nevosa, de

macieiras hírias de frio, começando a cobrir-se de cristais de gelo como árvores de

açúcar-candi, fora esquecida ao primeiro passeio logo que nos levou do Trocadêro ao

Arco do Triunfo, à Praça da Concórdia, ao Louvre, ao Luxemburgo, finalmente. (A

frenética ilustração desta página é apenas um detalhe do Arco do Triunfo).

Mas logo de início – leit-motiv que repercutiria durante toda nossa estada – começamos

a ver que tudo em Paris era à base do câmbio negro e que os preços das refeições em

restaurantes ou da comida em armazéns eram assustadores. Os cupões do racionamento

alimentar (que na Inglaterra valiam como se fosse dinheiro e correspondiam exatamente

ao que diziam ser) não tinham o menor valor, na França, porque o tabelamento de

preços era inteiramente fictício. Como sempre acontece nesses casos havia trabalhadas

explicações psicológicas para a escassez de gêneros, que tanto os encarecia. Para

alguns, os camponeses tinham sido instruídos pelas Forças Francesas do Interior a não

entregarem o que produziam aos emissários alemães, durante a ocupação. Expulsos os

alemães, precisava-se esperar que o camponês visse que era patriótico entregar agora a

sua manteiga, seu queijo, seu leite, seu vinho e seus legumes... Ora, o camponês, como

todo mundo, queria entregar sua mercadoria em troca de algum valor e não de

moedinhas de pura lata que então circulavam e que não valiam nem simbolicamente,

como vale o dinheiro-papel; porque os preços eram tabelados a um nível irrisoriamente

baixo em relação ao custo da vida. Tanto assim que, usando cigarros como moeda,

qualquer um podia trazer do campo queijos de manteiga e dúzias de ovos, sem precisar

explicar coisas evidentes ao camponês, como a partida do “boche”.

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O resultado de tudo isto era que os preços do essencial (subsidiados e controlados na

Inglaterra) eram fantásticos em relação aos salários então pagos na França. Quem

ganhasse francos (como os funcionários da Radiodiffusion Française, por exemplo...)

estava mal da vida. Quem, ao contrário, tivesse em Paris libras, ou principalmente,

dólares a trocar, estava muito melhor do que em Londres, sem dúvida. Na querida

Londres puritana só alguns galés da gula se davam ao trabalho de procurar o reduzido

câmbio negro para obter alguma coisa. Todo o essencial chegava a todas as mesas, e

barato. Os abonados, se quisessem, podiam se fartar do não-racionado, que custava caro

– frangos, caviar, salmão. A carne, o ovo, a batata – estes o racionamento tornara

sagrados.

Em Paris, quem entrasse com dinheiro na Crémallière, no Vatican, em qualquer

restaurante dos bons, ou mesmo em qualquer blatro modesto, podia engolir numa só

refeição praticamente todas as calorias de um britânico durante uma semana. Mas

palavra que era duro, de um ponto de vista francês ou de quem ganhava francos, ler as

correspondências de jornalistas americanos de passagem, que visitavam os restaurantes

com bastante dinheiro no bolso, e depois, pelos jornais, aconselhavam o governo de

Washington a não emprestar dinheiro nenhum à França pois lá passara-se a vela da

libra! O jornalismo pode ser uma infâmia mesmo sem más intenções: basta a

superficialidade.

Dentro de pouco tempo eu e minha mulher, que veio de Londres alguns dias depois de

mim, já sabíamos o que significava ficarmos em Paris: era, com intervalos de barriga de

cheia, passar fome... Juntos, ganhávamos na Radiodiffusion uns 15 000 francos. Uma

boa refeição para dois saía por uns 500 francos. Duas por dia eram 1 000 francos.

Precisávamos, portanto, só para comer bem, uns 30 000 francos por mês, quando

tínhamos 15 000 não só para a comida, como para morar num hotel e viver, de um

modo geral... Um bico de traduções que arranjei depois na Cooperation Inteliectuelle

não deu para mudar muito as coisas.

Havia, sem dúvida, os tais intervalos de barriga cheia – e como nos eram gratos, aqui,

novamente, não era possível deixar-se de fazer um paralelo entre Londres e Paris. Na

Inglaterra, a cantina da BBC ou mesmo um restaurante inglês de classe regular,

cometiam com frequência o crime nefando de estragar coisas raras em tempo de guerra

– como um pato, por exemplo. O terrível gravy dos anglos, o eterno molho que

despejam em cima de tudo, às vezes vinha como um sudário, branco, todo branco,

pálido e frio, sobre um lindo pato marrom, encharcado, penetrando, aguando a ave rara.

Em paris, ao contrário, de qualquer dos humildes pedaços da vaca fazia-se algo com

gosto de faisão de raça, algo nobre. Qualquer peixinho au beurre noir pode ter graças

realengas na França.

Em suma, comer, na França é algo muito importante. Ora, várias vezes comemos bem

na França, com vinhos ótimos e tudo. Em primeiro lugar, havia o Marcelino, que além

de trabalhar na Rádio fazia uma crônica diária para a Columbia Broadcasting System,

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gravando-a diretamente em Nova York. Ganhava em dólares, o bandeirante. De vez em

quando comiamos os dólares da Columbia. E havia fontes bastantes generosas de

convites. Yvonne Nothman é a mulher do Gastão Nothman, secretário do embaixador

do Brasil em Londres. Como norte-americana, alistou-se durante a guerra nos serviços

auxiliares da Aviação e morava num dos palácios das Mil e uma Noites que eram, em

Paris, os hotéis requisitados para o Exército norte-americano. Pois Yvonne (que já dera

de me arrancarem o tal dente) convidava-nos também para almoçar ou jantar no seu

hotel. Mário Guimarães, secretário de Embaixada em Paris foi outro anfitrião.

Alimentou-nos algumas vezes e forneceu-nos este produto tremendamente escasso por

lá: água quente para banhos. (Só a caça ao banho dá um capítulo inteiro de memórias!)

Não esqueçamos o baiano Ulman, que vive em Paris há longos anos e que abriu,

enquanto estávamos lá, o Club Panamericala, perto da Opera, e que mais de uma vez,

por convite, serviu-nos lautas refeições. E, last but not least, nosso principal refúgio e

lar em Paris – a casa de Gérrar e Maria Elisa Morel, um casal franco-brasileiro de

excepcional encanto. jamais esquecerei a noite gelada em que cheguei com minha

mulher à casa dos Morel e encontrei na lareira esta coisa incrível: um fogo de lenha,

madeira a crepitar, a estalar, rostos alegres, banhados no reflexo daquelas línguas de

volúpia de gato, quase a ronronar, uma garrafa de velha aguardente francesa no chão.

Maira Elisa explicou, com a placidez, do costume:

– Estamos queimando as estantes de livros.

Depois ela contou que há muito queriam estantes novas, que aquelas estavam realmente

muito antigas, etc. Ma tenho a impressão de que sem o frio daquela noite – e sem esse

doce prazer, esse talento de receber que é às vezes puro resultado de human kindness

em alto grau, como no caso de Maria Elisa Morel – as estantes teriam continuado no

mesmo lugar.

O jantar, como sempre, foi ótimo aquela noite. A cozinheira Angèle apresentou um

assado puramente gaulês da categoria, os vinhos servidos pelo dono da casa eram de

grande oportunidade, como se tivessem nascido para exatamente aquele assado. Mas o

que principalmente me ficou na lembrança foi aquele fogo erudito, despertado na lenha

de uma biblioteca muito bem selecionada, aquela recepção ígnea do fogo de verdade, do

fogo sempre grato à mal civilizada natureza do homem.

Ainda veremos num outro artigo como a fome raspa o verniz da civilização e expõe o

primitivismo da gente com pouquíssimo esforço.

* Crônica publicada no Correio da Manhã, de 8 de janeiro de 1954.