Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

18
GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 22, pp. 73 - 88, 2007 EVOLUÇÃO DO RELEVO NA SERRA DO MAR NO ESTADO DE SÃO PAULO A PARTIR DE UMA CAPTURA FLUVIAL 1 Déborah de Oliveira* José Pereira de Queiroz Neto** *Professora Doutora do Departamento de Geografia da FFLCH/USP. E-mail: [email protected] **Professor Doutor do Departamento de Geografia da FFLCH/USP. E-mail: [email protected] RESUMO: A Serra do Mar surgiu por recuo erosivo da falha Paleocênica de Santos, situada mais a leste, na plataforma continental sul-americana. A Falha de Santos provocou o abatimento do planalto, correspondente à superfície Japi. Com o recuo erosivo das escarpas da Serra do Mar, rios do planalto foram capturados, como o rio Guaratuba, em Boracéia-SP. A bacia do alto rio Guaratuba localiza-se no Parque Estadual da Serra do Mar, no reverso imediato da escarpa da Serra do Mar, a aproximadamente 45º 56’e 45º 52’de longitude oeste e 23º 38’e 23º 42’de latitude sul. O rio Guaratuba corre de NE para SW, em seu primeiro trecho. A mudança brusca de direção do rio para N-S sugeriu tratar-se de uma captura fluvial por recuo das cabeceiras, como conseqüência da erosão regressiva da Serra do Mar. Algumas evidências dessa captura foram encontradas: a referida mudança brusca de direção do rio, que passa de NE-SW para N-S, cortando os alinhamentos NE- SW das rochas, no cotovelo de captura, próximo à escarpa; um vale abandonado pantanoso próximo ao cotovelo de captura, correspondendo a um terraço com seixos do antigo leito do rio Guaratuba, anterior à captura; o perfil longitudinal do rio Guaratuba com uma forte ruptura de declive no cotovelo de captura. PALAVRAS-CHAVE: Serra do Mar; recuo erosivo; captura fluvial; rio Guaratuba. ABSTRACT: Serra do Mar emerged by erosional processes of Santos fault line to the Upper Cretaceous, in the present continental south-american platform. Santos fault line caused abatement of the plateau, which corresponds at Japi erosional surface. The scarp’ s retreat of Serra do Mar caused the river capture of plateau’ s rivers as Guaratuba, in Boracéia-SP. Alto Guaratuba basin is located at Parque Estadual da Serra do Mar, near Serra do Mar scarp, approximately at 45º 56’ and 45º 52’ of longitude west and 23º 38’and 23º 42’of latitude south. Guaratuba river flows from NE-SW on the plateau to N-S on the scarp and its change suggests that Guaratuba is captured by headward erosion, as result of Serra do Mar’ s regressive erosion. Some evidences are found: the elbow of capture in a sharp change from NE-SW to N-S, cutting rocks’ structural lines, near the scarp; a wind gap swampy and gravelly, near the elbow of capture, as an ancient Guaratuba’ s riverbed; river profile of Guaratuba as a powerful slope rupture. KEY WORDS: Serra do Mar; regressive erosion; river capture; Guaratuba river.

Transcript of Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

Page 1: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 22, pp. 73 - 88, 2007

EVOLUÇÃO DO RELEVO NA SERRA DO MAR NO ESTADO DESÃO PAULO A PARTIR DE UMA CAPTURA FLUVIAL1

Déborah de Oliveira*José Pereira de Queiroz Neto**

*Professora Doutora do Departamento de Geografia da FFLCH/USP. E-mail: [email protected]**Professor Doutor do Departamento de Geografia da FFLCH/USP. E-mail: [email protected]

RESUMO:A Serra do Mar surgiu por recuo erosivo da falha Paleocênica de Santos, situada mais a leste, naplataforma continental sul-americana. A Falha de Santos provocou o abatimento do planalto,correspondente à superfície Japi. Com o recuo erosivo das escarpas da Serra do Mar, rios do planaltoforam capturados, como o rio Guaratuba, em Boracéia-SP. A bacia do alto rio Guaratuba localiza-seno Parque Estadual da Serra do Mar, no reverso imediato da escarpa da Serra do Mar, aaproximadamente 45º 56’ e 45º 52’ de longitude oeste e 23º 38’ e 23º 42’ de latitude sul.O rio Guaratuba corre de NE para SW, em seu primeiro trecho. A mudança brusca de direção do riopara N-S sugeriu tratar-se de uma captura fluvial por recuo das cabeceiras, como conseqüência daerosão regressiva da Serra do Mar. Algumas evidências dessa captura foram encontradas: a referidamudança brusca de direção do rio, que passa de NE-SW para N-S, cortando os alinhamentos NE-SW das rochas, no cotovelo de captura, próximo à escarpa; um vale abandonado pantanoso próximoao cotovelo de captura, correspondendo a um terraço com seixos do antigo leito do rio Guaratuba,anterior à captura; o perfil longitudinal do rio Guaratuba com uma forte ruptura de declive nocotovelo de captura.PALAVRAS-CHAVE:Serra do Mar; recuo erosivo; captura fluvial; rio Guaratuba.ABSTRACT:Serra do Mar emerged by erosional processes of Santos fault line to the Upper Cretaceous, in thepresent continental south-american platform. Santos fault line caused abatement of the plateau,which corresponds at Japi erosional surface. The scarp’s retreat of Serra do Mar caused the rivercapture of plateau’s rivers as Guaratuba, in Boracéia-SP. Alto Guaratuba basin is located at ParqueEstadual da Serra do Mar, near Serra do Mar scarp, approximately at 45º 56’ and 45º 52’ of longitudewest and 23º 38’ and 23º 42’ of latitude south. Guaratuba river flows from NE-SW on the plateauto N-S on the scarp and its change suggests that Guaratuba is captured by headward erosion, asresult of Serra do Mar’s regressive erosion. Some evidences are found: the elbow of capture in asharp change from NE-SW to N-S, cutting rocks’ structural lines, near the scarp; a wind gap swampyand gravelly, near the elbow of capture, as an ancient Guaratuba’s riverbed; river profile of Guaratubaas a powerful slope rupture.KEY WORDS:Serra do Mar; regressive erosion; river capture; Guaratuba river.

Page 2: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

74 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 22, 2007 OLIVEIRA, D. de. & NETO, J. P. de Q.

Introdução: a escarpa da Serra do Mar em SãoPaulo

A Serra do Mar estende-se do Rio deJaneiro a Santa Catarina, formando um conjuntode escarpas festonadas. Em São Paulo, elaimpõe-se como típica borda de planalto, niveladaem altitudes de 800 a 1.200m. Conforme ROSS(1985), a Serra do Mar pertence à unidademorfoescultural dos Planaltos em CinturõesOrogênicos, no subcompartimento dos Planaltose Serras do Atlântico Leste-Sudeste. Segundoesse autor, sua gênese vincula-se a vários ciclos

de dobramentos acompanhados demetamorfismos regionais, falhamentos eextensas intrusões. Domina no Planalto Atlânticoum modelado composto por formas convexas,com vales profundos e elevada densidade dedrenagem. Sua origem está relacionada aprocessos tectônicos de movimentação verticalocorridos no Cenozóico e que, conformeALMEIDA & CARNEIRO (1998), surgiu a partir dafalha de Santos situada na plataformacontinental, de onde recuou por erosão até aposição atual, atingindo a falha de Cubatão emalguns trechos.

Page 3: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de SãoPaulo a partir de uma captura fluvial, pp. 73 - 88 75

Para ZALÁN & OLIVEIRA (2005), aSerra do Mar Cretácea constituía um imensop lana l to mac iço, cu jo f lanco les te eraprovavelmente abrupto e tinha um desnívelde 3.000m para a Bacia de Santos (2.000mac ima do n íve l do mar) . Estes autoressugerem que este megaplanalto começou arachar e colapsar localmente no final doPaleoceno e mais abrangentemente no iníciodo Eoceno. Este abatimento individualizouriftes paralelos à costa, formando longoscorredores de grábens, como o Gráben deSantos.

A vertente atlântica do sudeste doBrasil, em especial o trecho que inclui as serrasda Mantiqueira, do Mar e o litoral, representao campo mais complexo no que diz respeitoàs relações genéticas entre o relevo e osprocessos geológicos que vêm ocorrendo aolongo do tempo. (ALMEIDA & CARNEIRO, 1998)

A partir da últ ima orogênese pré-cambriana e ao longo de todo o Paleozóico eboa parte do Mesozóico, período de certaquietude tectônica, as cadeias de montanhasgeradas passam a sofrer erosão. Parte-se dopressuposto de que este longo tempo deexposição aos agentes erosivos pode terdestruído todo o registro da superfície dacrosta e, sobretudo, pelo fato de que asrochas e estruturas aflorantes formaram-se apartir de fenômenos geodinâmicos que sóacontecem a milhares de metros deprofundidade. Pode-se concluir que a grandeherança pré-cambriana para a formação doatual relevo consiste na qual idade ediversidade de seus t ipos l i tológicos,principalmente em relação às suascaracterísticas texturais, granulométricas emineralógicas e na trama estrutural de primeiraordem, representada pelos grandes feixes dedireção NE-SW (Cinturão TranspressivoParaíba do Sul) que, por sua vez, controlamas estruturas de menor grandeza edimensões, nas quais rochas de diferentesnaturezas podem aparecer desdepreservadas até pouco ou intensamentemilonitizadas.

Além da gênese das rochas basálticase a lca l inas , que completam o quadrolitológico da região, este regime tectônicodo Paleógeno resulta, por soerguimento dasporções oc identa is , e abat imento dasor ienta is , na formação de importantesdesníveis topográficos e basculamento deblocos, forçando um reequilíbrio do terreno,seja pela erosão remontante, seja peladeposição de sedimentos. Destaca-se o fatode que este é o marco inicial da morfogênesede todo o Sudeste Atlântico Brasileiro, poisa conf iguração do re levo, a macroorganização da drenagem e a própr iasituação costeira decorrem deste processo(SILVA, 1999), muito embora a atual Serrado Mar provavelmente não ocupe a mesmaposição original, devido ao recuo da escarpapor erosão, e cujo desmonte veio a contribuirpara o preenchimento da bacia de Santose, também, para a formação do Grupo Bauruda bacia do Paraná (ALMEIDA & CARNEIRO,1998).

O processo erosivo que no final doCretáceo Superior, levou ao desenvolvimentoda “superfície Japi”, exumou o embasamentocristalino, com seus diques de diabásio eint rusões a lca l inas na área coste i ra . Aerosão teria sido muito mais intensa navertente oceânica, de acentuado declive, quena continental. Ali a erosão, por ação dosrios, do mar e de movimentos de massa, fezrecuar a escarpa até três a quatro dezenasde quilômetros, abandonando numerosasilhas e entalhando a “superfície Japi” e maistarde as super f í c ies neogên icas ne laembutidas. Os detritos dessa erosão foramentão levados para a borda da plataformacont inental ( formações Santos, Juréia eI ta ja í -Açu) e para a Bac ia do Paraná( formação Bauru) . Essa super f í c ie , noentanto, fo i deformada por f lexuras egrandes fa lhamentos entre o f ina l doCretáceo e o in íc io do Terc iár io ,prossegu indo menos intensamente noEoceno/Oligoceno e provavelmente até oMesomioceno. (ALMEIDA & CARNEIRO, 1998)

Page 4: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

76 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 22, 2007 OLIVEIRA, D. de. & NETO, J. P. de Q.

Os falhamentos escalonados da Serrada Mant ique i ra e da Serra do Marcomandaram a drenagem em declives cadavez mais acentuados. Os níveis de base maispróximos e cada vez mais baixos devido aotectonismo post-cretáceo no sudeste doP lana l to At lânt i co ter iam forçado umainversão progress iva de par tes dasdrenagens que iam para o interior atravésde “múltiplas capturas”, como assinalara AB’SÁBER (1954). Com o recuo erosivo dasescarpas da Serra do Mar, alguns rios dop lana l to foram capturados, como o r ioGuaratuba, em Boracéia-SP.

A captura fluvial (river capture oust ream p i racy) cor responde ao desv ionatural das águas de uma bacia fluvial paraoutra, promovendo a expansão de umadrenagem em detrimento da vizinha. Elapode ocorrer através da absorção, do recuodas cabeceiras, do aplainamento lateral, dotransbordamento ou do desvio subterrâneoCHRISTOFOLETTI (1975). Conforme MILLER(1915), um rio comete pirataria (piracy) aoconquistar seu vizinho.

Pode-se observar um conjunto deevidências que confirmam a ocorrência decapturas fluviais, como o que chamamos de

cotovelos de captura (elbows of capture),que correspondem a uma mudança bruscano curso de um rio numa curva de 90º e quesão influenciados por fatores geológicos,aos quais o rio ajusta-se; colos ou valesmortos, secos ou abandonados (co ls orwind-gaps), sabendo-se que a existência deum colo não é uma prova de captura, mas apresença de cascalhos no seu vale. O valeseco ou abandonado (wind gap) é apenasum colo no topo do interflúvio cortado pelorecuo da nascente de dois rios, que tem suasnascentes em oposição uma à outra. O perfillongitudinal do rio ajuda a reconstituir suahistória, assinalando rupturas de declivequando seu nível de base rebaixa-se no localonde é capturado por outro rio. (SMALL,1977)

A bacia do alto rio Guaratuba localiza-se no Parque Estadual da Serra do Mar eatravessa a Estação Biológica de Boracéia-USP, no reverso imediato da escarpa daSerra do Mar, a aproximadamente 45 º 56’ e45 º 52’ de longitude oeste e 23 º 38’ e 23 º

42’ de latitude sul, situa-se no município deBer t ioga, que l imi ta-se a nor te com omunicípio de Salesópolis e a oeste com omunic íp io de B i r i t iba Mi r im e medeaproximadamente 40km 2.

Page 5: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de SãoPaulo a partir de uma captura fluvial, pp. 73 - 88 77

Page 6: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

78 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 22, 2007 OLIVEIRA, D. de. & NETO, J. P. de Q.

A drenagem que formou-se noplanalto, escarpa e planície individualizoua inda mais es tes compart imentos . Noplanalto ela adaptou-se às formas colinosase amorreadas gu iada pe las d i reçõesestruturais. Nas escarpas da Serra do Mar,os rios têm suas cabeceiras no alto da serrae, em seguida, vencem esta faixa estreitade cerca de 5 km, constituída por escarpasabruptas, rupturas violentas de declive ealguns rios cortando transversalmente asdireções estruturais. (MACHADO, 1979)

ROSSI (1999) divide a área de estudoem dois compartimentos geomorfológicos:Planalto e Escarpa, onde predominam osgna isses e gran i tos , respect ivamente.Apresenta vegetação t íp i ca de f lo restaPluvial Tropical, com predomínio de mataal ta, com 20 a 25 metros de a l tura noPlanalto e mata de porte alto a médio (15 a20m de altura) na Escarpa. Sofre influênciada Massa Tropical Atlântica e possui climatropical úmido, com temperaturas médiaselevadas e chuvas periódicas e abundantes.

O P lana l to apresenta do is r iosprincipais: o Claro, que localiza-se mais aonor te e o Guaratuba, loca l i zado maispróximo da Escarpa. Ambos acompanham adireção brasileira NE-SW e a falha do BairroAlto, localizada no Planalto (rever FIGURA 1).A drenagem originária da bacia do rio Clarodirige-se para a bacia do rio Tietê, enquantoa do rio Guaratuba dirige-se para o OceanoAtlântico, mudando de direção na borda daEscarpa, passando de NE-SW para N-S.Apresenta rede hidrográfica com padrão emtreliça, devido ao intenso fraturamento enatureza bandada da rocha, orientada, emsua maior ia na d i reção NE-SW e,subordinamente a NW-SE, com inserção derios em ângulos agudos a retos, devido aoalto controle geológico/estrutural. É umazona com morros e desníveis altimétricos deaté 300m. As decl ividades são variadas,abrangendo desde pequenas planícies aolongo dos principais cursos d’água, ondepredominam declividades de 0 º a 2º (0 a 3%),

até vertentes com declividades maiores de25º (46%).

O limite Planalto/Escarpa caracteriza-se por rupturas de declive convexas bruscas,sem cornija rochosa (ROSSI, 1999).

A Escarpa apresenta af loramentosrochosos e cicatrizes de escorregamentos,testemunhos de movimentos de massa. Écaracterizada por relevo de denudação, comgrande desníve l a l t imétr ico e paredõesincl inados caindo abruptamente, com osmaiores desn íve is chegando a at ing i r1.260m no lado leste da bacia. ConformeROSSI (1999), no trecho do Guaratuba, aescarpa corresponde ao subcompartimentode alta e média vertente, sobre granitos,onde dominam os declives entre 12 a 250 (21a 46%), os mais acentuados na a l tavertente. Apresenta rede de drenagem compadrão paralelo, com menor densidade dedrenagem que no Planalto.

Materiais

Foram se lec ionadas as segu intesfotos-aéreas e cartas topográficas da áreade estudo:

-Levantamento aerofotográf ico doEstado de São Paulo, pancromát ico, naescala aproximada de 1:25.000, realizadopela Aerofoto Natividade em 1962, nos 79367, 7 9368 e 7 9369 e Levantamentoaerofotográfico do Estado de São Paulo,pancromát ico, na escala aproximada de1:25.000, rea l i zado pe la BaseAerofotogrametria e Projetos S/A em 1973,nos 40.765, 40.766, 40.767, 40. 780, 40. 781,40.782;

-Carta topográfica Salesópolis, escala1:50.000, fo lha SF23YDV1 e SF23YDV3,publicada pelo IGG-SP em 1971;

-Carta topográfica Salesópolis, escala1:50.000, folha SF 23-Y-D-V-1/3, publicadapelo IBGE em 1984;

Page 7: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de SãoPaulo a partir de uma captura fluvial, pp. 73 - 88 79

-Cartas topográficas Serra Guaratubae Fazenda Florestal do Rio Grande, escala1:10.000, fo lhas SF23YDV1SOD eSF23YDV1SOB, publicadas pelo IGC em 1988.

Procedimentos

O trabalho segue a abordagem daaná l i se geomorfo lóg ica proposta porAB’SABER (1969) sobretudo nos seguintesníveis: 1) compartimentação da topografia,caracterizando e descrevendo as formas derelevo de cada compartimento, 2) obtençãode in formações s i s temát icas sobre aestrutura superficial da paisagem, atravésda observação da geologia e dos solos.

Trata-se de área de difícil acesso, comuma estrada que acompanha os rios Claro eGuaratuba até a represa de captação deágua. Por essa razão, a maior parte dasobservações foi feita por fotografias aéreas.No entanto, há pontos de indefinição dedrenagem, pela dificuldade de verificar adireção dos rios em foto-aérea e em campo,em função da grande dens idade davegetação e também pela imprecisão das

cartas topográficas disponíveis.

A foto interpretação baseou-se noestudo dos seguintes fatores: tonalidade etextura, formas topográficas e drenagemconforme RICCI & PETRI (1965) , paraelaboração da carta morfológica e da redede drenagem.

Apresenta um embasamentocristalino cuja composição pouco varia. Éconstituído sobretudo por gnaisses de grãfina a média, porfiroblásticos ou não, decompos ição gran í t i ca , mais ou menosmi lon i t i zados, com ou sem segregadosquartzo-silicáticos (veios, lentes e bolsõesquartzosos ou pegmatóides) associados.Apresentando foliações miloníticas bem amuito bem desenvolvidas, concordantes coma direção geral NE-SW, mergulhos a SE, emparte com lineações minerais impressas emseus respectivos planos. Contudo, dentrodeste quadro aparentemente homogêneo,há uma importante anisotropia textura ldev ido ao própr io ar ranjo est rutura l egranulométrico, e que condiciona boa parteda drenagem e dos interflúvios.

Page 8: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

80 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 22, 2007 OLIVEIRA, D. de. & NETO, J. P. de Q.

Page 9: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de SãoPaulo a partir de uma captura fluvial, pp. 73 - 88 81

Page 10: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

82 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 22, 2007 OLIVEIRA, D. de. & NETO, J. P. de Q.

As formas foram ass ina ladasin ic ia lmente de l imi tando os topos comrupturas convexas, que aparecem em grandequantidade em todo o Planalto, os limitesdas vertentes com as planícies com rupturascôncavas e posteriormente, delimitando aescarpa, os esporões em cr i s ta emamelonados. A legenda da Escarpa foiadaptada de DOMINGUES (1983). Os níveistopográficos foram assinalados cruzando-seo overlay da morfologia com as curvas den íve l das car tas topográf i cas SerraGuaratuba e Fazenda Florestal do MorroGrande no seguinte intervalo hipsométrico:< 820, 820-840, 840-860 e > 900m. Por fim,procurou-se ass ina lar os a l inhamentos,tanto da drenagem quanto dos morros(FIGURA 3).

Os proced imentos gera is dedigital ização das curvas de nível, cotas,est radas e drenagem e e laboração dascartas e perfis, correspondem ao programaILWIS, desenvo lv ido pe lo Inst i tu te forAerospace Survey and Earth Sciences (ITC),Enschede, Holanda, disponível em versãoWindows. Trata-se de um s is tema deinformação geográf i ca, que conta commódulos de tratamento digital de imagens,de análise espacial e de entrada de dados.(WESTEN, 1997)

Com base nas cartas 1:10.000 foramdigitalizadas todas as curvas de nível doPlanalto e as curvas mestras da Escarpa econfeccionadas cartas na escala 1:25.000,compatibil izadas com a escala das fotos-aéreas.

Page 11: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de SãoPaulo a partir de uma captura fluvial, pp. 73 - 88 83

Page 12: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

84 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 22, 2007 OLIVEIRA, D. de. & NETO, J. P. de Q.

Page 13: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de SãoPaulo a partir de uma captura fluvial, pp. 73 - 88 85

Resultados

Os produtos cartográficos elaboradosdestacam nitidamente o Planalto da Escarpa,tanto quanto a densidade e padrões dedrenagem, quanto a sua forma. Afotointerpretação preliminar mostrou que oPlanalto apresenta grande densidade depequenos morros alinhados na direção NE-SW, assim como os dois rios principais, oClaro e o Guaratuba (FIGURA 3). Foramident i f i cados os segu intes n íve istopográficos no Planalto:

NIa e NIb – norte e sul da carta, acimade 900m;

NII – centro da carta, entre 840 e900m;

NIII – corredor entre os rios Claro eGuaratuba, entre 820 e 840m e

NIV – nas bacias dos rios Claro eGuaratuba, a menos de 820m.

O Planalto apresenta uma grandedensidade de pequenos morros alinhadospreferenc ia lmente na d i reção NE-SW esubord inadamente na d i reção NW-SE,acompanhando a direção dos alinhamentosdos cursos d’água. O r io Guaratubaacompanha a direção da falha do Bairro Alto,posicionada na direção NE-SW. O divisor deáguas que separa a bacia do rio Claro eGuaratuba também está tambémposicionado na direção NE-SW.

A Escarpa tem a forma de um grandeanfiteatro côncavo. Sua borda apresentamui tos enta lhes que se aprox imam dadrenagem no Planalto, iniciando a formaçãode gargantas. O rio Guaratuba, na Escarpa,apresenta um poder de entalhamento maior,devido a grande declividade, descendo bemencaixado em seu vale.

A drenagem do Planalto também estárelacionada à presença de fraturas e falhase é orientada, de modo geral, no sentido NE-SW. Predomina no Planalto a drenagem emtreliça, que ocorre sob controle estrutural

acentuado, composta por r ios pr incipaisconseqüentes, recebendo af luentessubseqüentes que f luem em d i reçãotransversal aos principais, com fluência emângulos retos (FIGURA 4). No Planalto comoum todo predomina a angularidade média darede de drenagem, relacionada a fatoresest rutura is e na Escarpa predomina aangular idade baixa, condic ionada pelasaltas declividades.

O anfiteatro da Escarpa apresentaesporões em cr ista e mamelonados queconvergem para o r io Guaratuba, compadrão de drenagem pinado. A borda daEscarpa funciona como um divisor de águasentre o P lana l to e a Escarpa. Mu i tosafluentes do rio Guaratuba deságuam nesterio ainda no Planalto, porém alguns rompema borda da Escarpa, descendo o grandeanfiteatro, aí desaguando no rio Guaratuba(FIGURA 3).

Os produtos cartográf icos digita isressa l taram os n íve is topográf i cosrepresentados na FIGURA 3. O Planalto estáentre as curvas de n íve l de 790m (nocotovelo do r io Guaratuba) e 970m. Asaltitudes mais elevadas encontram-se nonorte e no sul da carta, configurando níveistopográficos posicionados na direção NE-SW,assim como os rios Claro e Guaratuba. O rioGuaratuba, em direção à sua nascente,apresenta um vale mais amplo, a 800m dealtitude, com direção geral NE-SW. Este valetorna-se mais encaixado em direção aocotovelo, na borda da escarpa, onde mudade direção para N-S. O nível de base do rioGuaratuba é mais baixo do que o do rio Clarono Planalto. O cotovelo do rio Guaratubaestá a 790m, enquanto o rio Claro está a810m de altitude. (FIGURA 5)

O modelo hipsométrico (FIGURA 5) eo mode lo t r id imens iona l (F IGURA 6)ressa l taram os n íve is topográf i cosidentificados nas fotos-aéreas e propiciarama visualização dos níveis NIa e NIb comaparência de “horst” e os níveis NII, NIII e

Page 14: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

86 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 22, 2007 OLIVEIRA, D. de. & NETO, J. P. de Q.

NIV como “gráben”. O NIb aparece bem nítidointerrompido, com o anfiteatro da Escarpaatingindo o cotovelo do rio Guaratuba.

O cor redor ent re os r ios C laro eGuaratuba apresenta cascalheira em solosEspodossolo Hidromórfico e Gleissolo PoucoHúmico, registrada por ROSSI (1999). A

fotointerpretação revelou a vegetação decampo úmido, confirmada em campo, ondeencontra-se Gleissolo com seixos rolados,próximo à referida cascalheira. O campoúmido apresenta-se como uma c lare i radentro da mata, com vegetação baixa e solototalmente encharcado.

No cotove lo do r io Guaratubaobservamos o r io correndo ob l íquo àsestruturas do gnaisse e, em seguida, naborda da Escarpa, pos ic ionado

perpendicularmente aos alinhamentos NE-SW antes de descer a Escarpa em direçãoao Oceano Atlântico.

Page 15: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de SãoPaulo a partir de uma captura fluvial, pp. 73 - 88 87

Page 16: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

88 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 22, 2007 OLIVEIRA, D. de. & NETO, J. P. de Q.

O rio Guaratuba apresenta um perfillongitudinal com uma mudança brusca de

dec l iv idade após seu cotove lo, quandodesce a Escarpa, com desnível de 800m.

Conclusões

As in formações fornec idas pe lascartas foram confirmadas no campo comoevidências de captura fluvial apontadas porSMALL (1977): a presença do cotovelo decaptura mostrando o rio Guaratuba deixandoa direção brasileira NE-SW e passando acorrer obl íquo às estruturas do gnaisse(FOTO 2), até posicionar-se perpendicularaos alinhamentos quando muda de direçãopara N-S na borda da Escarpa (FOTO 3); apresença de um vale abandonado, que nocaso chamamos de campo úmido, po is

apresenta-se como uma clareira dentro damata, com vegetação baixa, solo totalmenteencharcado e presença de seixos rolados (FOTO1); o perfil longitudinal do rio Guaratuba (PERFIL1), com ruptura de declive acentuado nocotovelo de captura e o nível de base do rioGuaratuba mais baixo do que o do rio Claro nocotovelo de captura. A reunião dos resultadosobtidos mostra a interferência da tectônica naconstrução do relevo e da erosão na suamodelagem. A tectônica foi responsável pelaelaboração dos níveis topográficos, comaparência de “horst e gráben”, que hoje estãosendo destruídos pela erosão.

Page 17: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de SãoPaulo a partir de uma captura fluvial, pp. 73 - 88 89

O grande anfiteatro mostra que aerosão regressiva da Escarpa da Serra doMar rompeu o nível NIb e capturou o rioGuaratuba, que antes corria em direção aorio Claro, afluente do Tietê e, atualmentedeságua no Oceano Atlântico.

As evidências deste caso de capturafluvial não foram destruídas no tempo eencontram-se presentes na pa isagem,podendo indicar que as capturas fluviais naSerra do Mar podem ser mais comuns do queo registrado até agora.

Notas1 Parte da Tese de Doutorado do primeiro autor, financiada pela Capes.

Bibliografia

AB’SÁBER, A. N. Um conceito de geomorfologiaa serviço das pesquisas sobre o Quaternário.Geomorfologia 18, São Paulo, Instituto deGeografia da USP, 23p., 1969.

AB’SÁBER, A. N. A geomorfologia do Estado deSão Paulo. In: Aspectos Geográficos da TerraBandeirante. Rio de Janeiro: Conselho Nacionalde Geografia, IBGE, 1954, 295p.

ALMEIDA, F. F. M. & CARNEIRO, C.D.R. Origem eevolução da Serra do Mar. Revista Brasileira deGeociências, São Paulo, 28(2): 135-150, 1998.

CHRISTOFOLETTI, A. Capturas fluviais. In:Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo:1975. vol. 5, p. 2049-2051.

DOMINGUES, E. N. Estudo de processosgeomorfológicos do escoamento fluvial eevolução de vertentes na Serra do Cubatão,Serra do Mar-SP. 1983. 153f. Dissertação(Mestrado) – Departamento de Geografia,Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.

IPT. Mapa Geológico do Estado de São Paulo,Série Monografias n° 6, 2 Vol., São Paulo, IPT,126p., 1981.

MACHADO, L. Estruturação hortoniana de baciashidrográficas do planalto paulistano e dasescarpas da Serra do Mar-SP. 1979. 215f.Dissertação (Mestrado), Departamento de

Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas, Universidade de São Paulo,São Paulo.

MILLER, A. M. Wind gaps. Science, Washington,p. 571-573, 1915.

OLIVEIRA, D. de A captura do Alto RioGuaratuba: uma proposta metodológica para oestudo da evolução do relevo na Serra do Mar,Boracéia-SP. 2003. 105f. Tese (Doutorado) –Departamento de Geografia-FFLCH-USP, SãoPaulo.

RICCI, M & PETRI, S Princípios deaerofotogrametria e interpretação geológica.São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1965. 226p.

ROSS, J.L.S. Relevo brasileiro: uma proposta declassificação. Revista do DG-USP, no 4, p. 25-39,1985.

ROSSI, M. Fatores formadores da paisagemlitorânea: a Bacia do Guaratuba, São Paulo –Brasil. 1999. 168f. Tese (Doutorado) -Departamento de Geografia, Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanas,Universidade de São Paulo, São Paulo.

SILVA, J. C. C. da. Contribuições aos estudosda geodinâmica ambiental do segmento lestedo Pórtico Guanabarino, Niterói, RJ. 1999. 155f.,Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade

Page 18: Evolução do relevo na Serra do Mar no Estado de São Paulo a ...

90 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 22, 2007 OLIVEIRA, D. de. & NETO, J. P. de Q.

Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.

SMALL, R.J. The study of lanforms. Cambridge:Cambridge University Press, 1v., 1977.

WESTEN, V. Ilwis 2.1 for Windows– Theintegrated land and water information system

(User’s Guide). Holanda: ITC, 1997. 511p.ZALÁN, P. V. & OLIVEIRA, J. A. B. de Origem eevolução estrutural do Sistema de RiftesCenozóicos do Sudeste do Brasil. B. Geoci.Petrobras, Rio de Janeiro, v. 13, n.2, p, 269-300,2005.

Trabalho enviado em setembro de 2007

Trabalho aceito em outubro de 2007