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CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 45-61, Jan./Abr. 2012 45 Edna Castro EXPANSÃO DA FRONTEIRA, MEGAPROJETOS DE INFRAESTRUTURA E INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA Edna Castro * DOSSIÊ INTRODUÇÃO As estratégias governamentais e empresa- riais voltadas para a Amazônia, no Brasil, reve- lam o aumento do interesse pela exploração dos recursos naturais da região para além de suas fronteiras políticas. A Pan-Amazônia ocupa, as- sim, uma posição central na geopolítica brasilei- ra. Por outro lado, os Estados nacionais vizinhos na região amazônica também se movimentam eco- nomicamente na expansão da fronteira, que é con- cebida como um espaço estratégico e um campo aberto à produção de commodities com a vanta- gem competitiva de facilidade de escoamento para o mercado mundial. Empresas transnacionais e organismos multilaterais, como atores globais, têm pressio- nado a esfera política para modificar dispositi- vos legais e instituições a fim de adequá-los à nova economia. Os Estados nacionais continuam a ter papel importante na regulação social, política e econômica, e permanecem protagonistas, mas sob uma lógica liberalizante do capital, tendo, inclusi- ve, sucumbido a certos acordos de agências regu- ladores internacionais e penalizado as relações de trabalho, como se observa na atual crise dos paí- ses da Comunidade Econômica Europeia (CEE). Nesse quadro da economia mundial, a competição intercorporações e inter-redes tende a intensificar- se. Empresas impulsionadas pela concorrência procuram continuamente reestruturar-se, buscan- do formas de reduzir custos e visando demandas futuras (Castro, 2004). A articulação de grandes empresas industriais e financeiras que funcionam em rede resulta também da unificação, nos países mais avançados, dos mercados financeiro, cambi- al, de títulos e valores (Chesnais, 1996). Neste artigo, procuramos demonstrar a as- sociação entre as políticas nacionais brasileiras e os projetos de intervenção da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura da América do Sul (IIRSA). Os Planos de Aceleração do Crescimento (PAC I e II) e a IIRSA assumem a mesma orienta- * Doutora em Sociologia. Professora da Universidade Fede- ral do Pará (UFPA). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Trabalho, Empresas e Transformações Sociais, do Diretório do CNPq. Campus da UFPA. Av. Augusto Correa, n.01. Guamá. Cep: 66075-090. Belém - Pará - Brasil. [email protected] As análises da relação entre políticas desenvolvimentistas e as dinâmicas socioterritoriais na Amazônia têm se voltado para a dimensão nacional. Este artigo procura revelar o aumento do interesse pela exploração dos recursos naturais da região para além de suas fronteiras políti- cas, tornando-se a Pan-Amazônia um espaco central na geopolítica brasileira. Os Planos de Aceleração do Crescimento (PAC I e II) e a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura da América do Sul (IIRSA) assumem a mesma orientação de integração competitiva, adotando um modelo de modernização com base em megaprojetos de investimentos. A IIRSA, no âmbito sul-americano, como bloco regional, e o PAC, em âmbito nacional, são programas voltados para a logística de transporte, energia e comunicação. No plano continental, expressam dinâmicas socioterritoriais irreverersíveis e representam interesses comuns do Brasil e dos demais paí- ses, via modelo dominante de expansão da fronteira amazônica a partir dos anos 70 do século XX. Palavras-chave: fronteira, políticas estatais, integração, megaprojetos, Pan-Amazônia.

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EXPANSÃO DA FRONTEIRA, MEGAPROJETOS DEINFRAESTRUTURA E INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA

Edna Castro*

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INTRODUÇÃO

As estratégias governamentais e empresa-riais voltadas para a Amazônia, no Brasil, reve-lam o aumento do interesse pela exploração dosrecursos naturais da região para além de suasfronteiras políticas. A Pan-Amazônia ocupa, as-sim, uma posição central na geopolítica brasilei-ra. Por outro lado, os Estados nacionais vizinhosna região amazônica também se movimentam eco-nomicamente na expansão da fronteira, que é con-cebida como um espaço estratégico e um campoaberto à produção de commodities com a vanta-gem competitiva de facilidade de escoamento parao mercado mundial.

Empresas transnacionais e organismosmultilaterais, como atores globais, têm pressio-nado a esfera política para modificar dispositi-vos legais e instituições a fim de adequá-los à

nova economia. Os Estados nacionais continuama ter papel importante na regulação social, políticae econômica, e permanecem protagonistas, mas sobuma lógica liberalizante do capital, tendo, inclusi-ve, sucumbido a certos acordos de agências regu-ladores internacionais e penalizado as relações detrabalho, como se observa na atual crise dos paí-ses da Comunidade Econômica Europeia (CEE).Nesse quadro da economia mundial, a competiçãointercorporações e inter-redes tende a intensificar-se. Empresas impulsionadas pela concorrênciaprocuram continuamente reestruturar-se, buscan-do formas de reduzir custos e visando demandasfuturas (Castro, 2004). A articulação de grandesempresas industriais e financeiras que funcionamem rede resulta também da unificação, nos paísesmais avançados, dos mercados financeiro, cambi-al, de títulos e valores (Chesnais, 1996).

Neste artigo, procuramos demonstrar a as-sociação entre as políticas nacionais brasileiras eos projetos de intervenção da Iniciativa para aIntegração da Infraestrutura da América do Sul(IIRSA). Os Planos de Aceleração do Crescimento(PAC I e II) e a IIRSA assumem a mesma orienta-

* Doutora em Sociologia. Professora da Universidade Fede-ral do Pará (UFPA). Coordenadora do Grupo de PesquisaTrabalho, Empresas e Transformações Sociais, do Diretóriodo CNPq.Campus da UFPA. Av. Augusto Correa, n.01. Guamá. Cep:66075-090. Belém - Pará - Brasil. [email protected]

As análises da relação entre políticas desenvolvimentistas e as dinâmicas socioterritoriais naAmazônia têm se voltado para a dimensão nacional. Este artigo procura revelar o aumento dointeresse pela exploração dos recursos naturais da região para além de suas fronteiras políti-cas, tornando-se a Pan-Amazônia um espaco central na geopolítica brasileira. Os Planos deAceleração do Crescimento (PAC I e II) e a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura daAmérica do Sul (IIRSA) assumem a mesma orientação de integração competitiva, adotandoum modelo de modernização com base em megaprojetos de investimentos. A IIRSA, no âmbitosul-americano, como bloco regional, e o PAC, em âmbito nacional, são programas voltados paraa logística de transporte, energia e comunicação. No plano continental, expressam dinâmicassocioterritoriais irreverersíveis e representam interesses comuns do Brasil e dos demais paí-ses, via modelo dominante de expansão da fronteira amazônica a partir dos anos 70 do séculoXX.Palavras-chave: fronteira, políticas estatais, integração, megaprojetos, Pan-Amazônia.

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ção de integração competitiva, adotando um mo-delo de modernização com base em megaprojetosde investimentos. Ambos estão articulados pelaconcepção de eixos de integração e desenvolvimen-

to. A IIRSA, no âmbito sul-americano, como blocoregional, e o PAC, em âmbito nacional, são progra-mas voltados para a logística de transporte, energia ecomunicação. No plano continental, essa logísticarepresenta interesses comuns do Brasil e dos demaispaíses nos projetos de infraestrutura. Ela reedita omodelo de desenvolvimento que orientou a expan-são da fronteira amazônica a partir dos anos 70 doséculo XX e provocou conflitos socioterritoriais queenvolveram diferentes atores locais e intensificarama exploração de recursos naturais e o desmatamento.A tendência observada na pesquisa em curso1 é airreversibilidade dessas dinâmicas, pois a Pan-Ama-zônia tornou-se um grande palco de ações governa-mentais e empresariais, é entendida como central nãoapenas para o Brasil, mas também para a América doSul. Populações locais, com suas práticas sociais esaberes relativos ao território, têm produzido leiturasdesse processo, a partir de movimentos sociais e ét-nicos que revelam novos processos de dominaçãoincorporados ao modo de implantação dos projetosde infraestrutura e às práticas de agentes que violamdireitos sociais e étnicos, como o resultado dadesterritorialização que atinge grupos de populaçãotradicional, na extensão pan-amazônica.

IIRSA, ANTECEDENTES E RELAÇÃO COMOS EIXOS DE DESENVOLVIMENTO DOPLANEJAMENTO BRASILEIRO

A Associação Latino-Americana de LivreComércio, criada em 1960, já visava a eliminaras barreiras ao comércio entre os Estados, masnão conseguiu impor-se. Em 1969, os países cri-aram o Pacto Andino, fundado em um modelode planejamento do desenvolvimento com alocaçãode investimentos. Retomando princípios presen-tes na matriz da Associação Latino-Americana de

Integração (ALADI) a partir de negociações entre oBrasil e a Argentina, o Mercosul nasce com o mes-mo objetivo de integração de mercados, “enqua-drado na concepção do Consenso de Washingtondo livre comércio como instrumento único e sufi-ciente para a promoção do desenvolvimento, re-dução das desigualdades sociais e geração de em-pregos, na melhor tradição das Escolas deManchester e de Chicago” (Guimarães, 2008, p.32).Em 1994, os Estados Unidos lançaram, no contex-to da Cúpula das Américas, o projeto de uma Áreade Livre Comércio das Américas (ALCA), apos-tando no livre comércio, que se “configuraria comoum processo unificador do território formado portodos os países sul-americanos, seguindo orienta-ções do Fundo Monetário Internacional (FMI) e daOrganização Mundial do Comércio (OMC)” (2008,p.36).

Na Primeira Cúpula dos Presidentes daAmérica do Sul, realizada em 1999, foi assinadoum protocolo de intenções e de cooperação entre12 países pan-americanos, institucionalizando aIIRSA, que pretendia traçar novas bases para umaregionalização no continente. Em setembro de2000, em Brasília, doze presidentes dos Estadosnacionais da América do Sul consolidaram a IIRSAe reconheceram, como questão principal paradirecionar investimentos, a infraestrutura físicainstalada na região, pois sua fragmentação im-pedia o crescimento do mercado interno sul-americano e a abertura de novos mercados. Emjulho de 2002, a Cúpula de Estados reúne-se emGuayaquil (Equador) para decidir sobre o proje-to de infraestrutura. Em dezembro de 2004, aIIRSA é finalmente aprovada na cidade de Cuzco,no Peru, como estratégia principal de investi-mentos. Outras organizações têm-se associadonesse processo de formulação de novas diretri-zes geopolíticas, do espaço andino ao amazôni-co. Para os governos sul-americanos, a IIRSA re-presenta, para seus países, a possibilidade de tor-narem-se mais competitivos no mercado inter-nacional e, dessa forma, usufruírem de condi-ções vantajosas no processo de globalização. Talperspectiva também constitui um dos fundamen-1 Pesquisa do CNPq, bolsa de produtividade.

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tos da política internacional do governo brasilei-ro presente na proposta do Plano Plurianual 2004-2007. Em ambos os casos, trata-se da integraçãosul-americana a partir de sua integração física.

O conceito de integração, nessa perspec-tiva, pressupõe necessariamente ações estatais,uma esfera supranacional. Não são menciona-dos nem valorizados os processos de integraçãoexistentes há séculos nas fronteiras, marcadospor populações que ali vivem e têm suas práti-cas ancoradas em uma dada ordem social e eco-nômica. As esferas supranacionais que conce-bem a IIRSA consideram-na como uma

estrutura sistêmica e de integração, cuja logísticatem por base o desenvolvimento da telecomuni-cação, do transporte e de energia, a fim de criar ascondições para a sua integração econômica, polí-tica, social, cultural (IIRSA, 2004, p.7; 2011, p.23).

A integração da América do Sul constituium dos objetivos principais das estratégias polí-ticas e econômicas dos governos sul-americanos,estando no centro da política externa brasileira.A noção de Eixos Nacionais de Integração cons-tituiu a estratégia maior para estreitar as rela-ções com os países da América do Sul, na gran-de fronteira política, conformando um bloco eco-nômico com maior poder de fogo, dada a orga-nização em curso de outros nichos de mercado,nos diferentes continentes. Certamente, aintegração geográfica por meio da construção devias de comunicação terrestres seria o primeiropasso desse processo., pois, como analisa Gui-marães (2008, p.9), a

política externa não poderá ser eficaz se não esti-ver ancorada na política brasileira na Américado Sul. As características da situação geopolíticado Brasil, isto é, seu território, sua localizaçãogeográfica, sua população, suas fronteiras, suaeconomia, assim como a conjuntura e a estrutu-ra do sistema mundial, tornam a prioridade sul-americana uma realidade essencial.

Por outro lado, o governo brasileiro tem de-fendido seu projeto desenvolvimentista e testado,nas relações internacionais, sua capacidade denegociar novos mercados no espaço sul-america-

no. Não se trata apenas de discursos diplomáti-cos, mas de ações concretas efetivadas por meiode novas regulamentações e acordos de coopera-ção que apontam na direção de financiamentos eprojetos de infraestrutura e permitam uma ligaçãomultimodal entre os países. Observa-se a busca deeficácia simbólica atribuida às novas estruturas depoder, que estão associadas, em última análise, aestratégias do campo político (Bourdieu, 1989). OBrasil, por intermédio de suas instituições, como oBanco Nacional de Desenvolvimento Econômico eSocial (BNDES), tornou-se um financiador de pro-jetos em inúmeros fronteiras nacionais de paísesda IIRSA.

A “visão estratégica” do planejamento nacio-nal e a concepção do PAC I e II

O conceito de território foi retomado pelaárea do planejamento no final dos anos 90 doséculo XX, como possibilidade de inovação nasformas de intervenção pública, associada à no-ção de participação. O Ministério do Planejamen-to, Orçamento e Gestão, em documentointitulado Estudo da dimensão territorial para o

planejamento (volume I: Sumário Executivo) (Bra-sil. Ministério do Planejamento, 2008a), informa ametodologia adotada, bem como justifica o uso danoção de território e de controle territorial, o queseria essencial para obter resultados nas estratégi-as de desenvolvimento nacional, em situação dealta concorrência e de economia fortementeglobalizada e competitiva. Essa noção foi redefinidaa partir de mudanças na produção capitalista quetenderam a comprimir espaço e tempo (Harvey,1998 p.79) e funcionar sob uma lógica dedeslocalização. O território é importante, porémdentro de outra configuração, na qual o espaço édesconectado de valores, lugares, tradições e pas-sa a ser regido por relações econômicas e políticas,protagonizadas sobretudo por agentes do merca-do. Por isso, o rompimento com as raízes, com asheranças culturais e com as territorialidades passaa constituir um desafio para empresas, corporações

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e mesmo para o Estado, em suas políticas que fa-vorecem o mercado, contrariando interesses lo-cais que funcionam com base em uma outra con-cepção de tempo e espaço, ancorada no mundo davida, na cultura, e, portanto, não mediatizada pelomercado. A noção de território adotada pelas polí-ticas governamentais contraria a noção de territó-rio e de territorialidade dos grupos que vivem naAmazônia, regidos por outra ordem social de tem-po e espaço. Para esses grupos, o território é um“espaço sobre o qual um certo grupo garante aosseus membros direitos estáveis de acesso, de usoe de controle sobre os recursos e sua disponibili-dade no tempo.” (Castro, 1997, p.105).

Os Eixos Nacionais de Integração e Desen-volvimento constituíram a matriz do planejamen-to e da intervenção dos últimos governos brasilei-ros e pressupõem uma visão geográfica de domí-nio e controle dos territórios. Os Eixos estão pre-sentes no Plano Brasil em Ação (1996-1999), noAvança Brasil (2000-2003) e igualmente nos Pla-nos Plurianuais de 1996-1999, 2000-2003 e 2004-2007, que revelam as prioridades espaciais do Es-tado.2 A partir de 2007, o planejamento federalpassa a adotar uma visão de futuro denominadavisão estratégica nacional, que pretende tornar-seuma premissa balisadora, orientar os investimen-tos estratégicos e projetar metas para o desenvolvi-mento a médio e longo prazos (Brasil.Ministériodo Planejamento, 2008b). Essa visão estratégicanacional recobre programas, políticas e projetosque o Estado considera importantes para o desen-volvimento econômico do país. Assim, o Progra-ma de Aceleração do Crescimento (PAC I), lança-do em 2007, prossegue o alinhamento da políticaeconômica. Para sua consecução, os instrumentosnormativos e as prioridades deveriam, em princí-pio, estar articulados e adaptados de forma a ori-

entar a intervenção na economia e no território.Ao PAC I estão associados: a Política de Desenvol-vimento Produtivo (PDP), a Política Nacional deLogística e Transporte (PNLT), a Política Nacionalde Transporte Hidroviário (PNTH), o Plano Naci-onal de Viação, o Plano Nacional de Energia 2030e a Matriz Energética Nacional 2030, a Política Na-cional de Aviação Civil (PNAC), o PlanoHidroviário Estratégico, o Plano Nacional de Mi-neração e o Plano de Ordenamento Territorial. To-dos esses dispositivos vinculam-se aos mesmoseixos de desenvolvimento e à mesma visão estra-tégica, unindo macropolíticas a políticas setoriais,regionais e territoriais.

O PAC constitui, assim, uma macropolíticade crescimento econômico, uma estratégia doEstado e dos setores econômicos. A estrutura doPAC I (2007-2010) dividia-se em três eixos:Logística, Energética e Social e Urbana. No PAC2, são seis eixos: PAC Cidade Melhor (enfrentaros principais desafios das grandes aglomeraçõesurbanas, propiciando melhor qualidade de vida);PAC Comunidade Cidadã (garantir a presençado Estado nos bairros populares, aumentando acobertura de serviços); PAC Minha Casa, MinhaVida (reduzir o déficit habitacional, dinamizan-do o setor de construção civil e gerando traba-lho e renda); PAC Água e Luz para Todos(universalizar o acesso à água e à energia elétri-ca); PAC Transportes (consolidar e ampliar a redelogística, interligando os diversos modais, garan-tindo qualidade e segurança); PAC Energia (ga-rantir a segurança do suprimento a partir de umamatriz energética e desenvolver as descobertasno Pré-Sal) (Brasil, 2011, p.31).

Uma primeira observação é que o PACorienta um modelo de crescimento econômico,e não somente um plano de desenvolvimentostricto sensu. Ora, trata-se de um modelo há déca-das criticado pelo seu reducionismo e pela sua ine-ficácia social e ambiental. Ele retoma a experiênciado planejamento da década de 70 para a Amazô-nia e projeta, para essa região, uma modernizaçãocom base na produção de commodities dos setorespecuária, madeira, grãos, minérios e energia.

2 Os Eixos seguem um perfil de intervenção consagrado emdécadas anteriores por meio dos polos de desenvolvimen-to, de regionalização ou dos grandes projetos geopoli-ticamente referenciados. Os Eixos previstos para o Plano2004-2007 consideraram quatro variáveis e seus indicado-res; até aí, não há realmente muita diferença em relação aoplanejamento estratégico dos anos 60 ou 70, como se podeobservar nos seguintes recursos de planejamento: redemultimodal de transportes, hierarquia funcional das cida-des, identificação dos centros dinâmicos e dos ecossistemas.

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Efetivamente, os megaprojetos hidrelétri-cos, de transporte e comunicação formam a basedos investimentos do PAC I e II no Brasil, tantoquanto os projetos do IIRSA na América do Sul.Essas estratégias baseiam-se no mercado global,nos padrões de competitividade e de produtivi-dade que seguem lógicas econômicas e nos pro-cessos de produção que obedecem a agendas dediferentes empresas em redes de clientes, de for-necedores ou consumidores. A questão em jogonão é necessariamente o mercado nacional, em-bora ele esteja potencialmente em expansão eseja fundamental na regulação de custos, ultra-passando inclusive o mercado representado peloconjunto dos países da América do Sul. A miraestá nos países asiáticos, razão da insistência emsaídas pelo Pacífico e pelo Atlântico, para alémAmérica do Sul. Esse mercado externo é alta-mente competitivo e regula os tempos e usos doterritório. Daí uma preocupação constante comos corredores de transporte, para reduzir os cus-tos e, consequentemente, aumentar a rentabili-dade e a competitividade nacional e global.

O avanço do grande capital nacional e in-ternacional, representado pelas grandes empre-sas apoiadas pelo PAC I e PAC II, busca aceleraro crescimento da economia. Somente para o pe-ríodo de 2007 a 2010, o PAC previa investimentosno montante de R$ 503,9 bilhões. Com essas obras,o Estado assegura a implantação de grandes gru-pos empresariais para os mesmos setores: minera-ção, pecuária, exploração madeireira e agriculturamecanizada. Todos eles são produtos decommodities.

Integração da América do Sul e da Pan-Ama-zônia

O Estado brasileiro está cada vez mais in-teressado nas fronteiras políticas. O pensamentogeopolítico brasileiro, cujas matrizes são encontra-das no PAC I e II, considera a região amazônicaextraordinariamente rica em fronteiras e, num zoom

imaginário, percorre o olhar do Nordeste ao Noro-

este, do Oeste ao Sudeste, conferindo a fronteira eas oportunidades de negócios. O Brasil faz fron-teira geográfica com 11 países da América do Sul,e mais de 2/3 dessa faixa de fronteira estão na re-gião amazônica. Trata-se de um olhar simplificadorsobre o sentido das relações políticas entre paísescom situações de fortes assimetrias. Justamente porisso, é fundamental entender as injunções desseprocesso, pois as políticas de integração revelam opoder de decisão do Brasil e o motivo de conten-das diplomáticas recentes entre os países. É umapostura defendida nos meios políticos, técnicos eempresariais, que concebem o Brasil e seu futurosegundo uma visão estratégica e de dominação.

Os projetos da IIRSA estruturam-se emEixos de Integração. São, ao todo, 10 Eixos querecobrem o continente de norte a sul, de leste aoeste. Três deles estão direcionados para a Pan-Amazôna e atendem ao interesse pelas vias detransporte – estradas, ferrovias, rios – do Atlân-tico ao Pacífico. Este artigo refere-se exclusiva-mente a três eixos, os do norte-oeste.3 No eixodo Amazonas (Brasil, Colômbia, Equador e Peru),encontram-se os projetos de duas hidrelétricas norio Madeira, no Brasil (Jirau e Santo Antônio), e,na mesma bacia, estão previstas duas hidrelétricasna Bolívia e quatro no Peru, o que tem sido objetode contestação por parte de populações locais quesentem seus direitos territoriais e identitários ame-açados nos três países. O eixo Escudo Guianês,denominação dada à região formada pela parte ori-ental da Venezuela, pelo extremo norte do Brasil(estados de Amapá e Roraima), pelas Guianas epelo Suriname, elege cidades como referência nalogística de transporte e serviços: Manaus, Cara-cas, Macapá, Georgetown, Paramaribo, Boa Vista,Caiena, Santa Elena de Uiarén, Ciudad Bolivar eCiudad Guayana. O eixo Brasil, Peru e Bolívia, comsaída para o Pacífico, compreende uma enorme ex-tensão territorial – sete departamentos da região

3 O objetivo principal dos projetos da IIRSA é interligar ossistemas modais desses países. Para o Brasil, estãoprojetadas inúmeras centrais de transporte, partindo dosportos de Ilo e Matarani no Pacífico, por exemplo, mastambém de Tumaco (na Colômbia), Esmeraldas (no Equa-dor) e Paita (no Peru), que serão ligados aos portos brasi-leiros de Manaus, Belém e Macapá.

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sul do Peru (Tacna, Moquegua, Arequipa,Apurimac, Cuzco, Puno e Madre de Deus), doisdepartamentos amazônicos da Bolívia (Pando eBeni) e quatro estados do Brasil (Acre, Rondônia,Amazonas e Mato Grosso) (BRASIL. Ministério doPlanejamento, 2008a, p. 12)4 – e toma as vias detransporte como estruturantes do território.

Construídos na mesma perspectiva, os pro-jetos do PAC e da IIRSA articulam-se e parecemcoordenados e complementares, como se observana consulta feita aos dados oficiais das instânciassul-americanas de planejamento. As informaçõescontidas no Quadro 2 mostam uma coerência for-mal nos projetos nacionais e internacionais.

O PAC projetou a pavimentação das rodo-vias Transamazônica, Cuiabá–Santarém (BR-163)e Porto Velho–Manaus (BR-394), que, aparentemen-te, estão distantes da fronteira nacional, se consi-

derada a dimensão geográfica. No entanto, a análi-se de fluxos vincula esses grandes eixos de trans-

porte interno no país aos projetos na fronteira comoutros países. É o caso das rodovias que ligamRondônia e Acre à Bolívia e ao Peru, ligadas defi-nitivamente ao sistema de transporte fluvial,intermodal, do rio Amazonas/Solimões. É o casoda ponte sobre o rio Oiapoque, ligando o Brasil àGuiana Francesa e abrindo, a partir dela, outra sa-ída para o Caribe. É ainda o caso da melhoria dasestradas Manaus–Caracas (BR-432), Boa Vista–SantaElena de Uiarém, também na fronteira com aVenezuela, e da rodovia Boa Vista–Bonfim–Lethem–Linden–Georgetown, na fronteira com aGuiana. Cabe ressaltar ainda que estão em cursoos projetos de construção e de melhorias dos ter-minais fluviais na Amazônia, que vinculam osprojetos do PAC aos do PNLT e aos da IIRSA.Entende-se, nessa ótica, que se está diante de ummovimento ao mesmo tempo rápido e simultâneo,

em múltiplas direções, o que se configura em umnovo espaço de fluxos.

No Brasil, o conjunto de instrumentos quecompõem o sistema de planejamento tem reforçadoprojetos para os estados com grandes faixas de fron-teira – como Rondônia, Acre, Roraima e Amazonas–, não apenas por razões de defesa territorial e segu-rança, mas também por razões de ordem econômica.Amplia-se, assim, a intervenção do Estado e o

4 As três principais saídas para o Pacífico apontadas nosprojetos da IIRSA, que receberão investimentos seus oude governos nacionais, são: a) saída do Brasil pelo Peru–Porto Velho até Cruzeiro do Sul e daí ao Peru; b) saída doBrasil pelo Peru: corredor com o trajeto Porto Velho–RioBranco (BR-364); Assis Brasil (rodovia); PuertoMaldonado–Juliaca–portos de Puno/Ilo ou Matarani); c)saída do Brasil pela Bolívia: Porto Velho–Abunã–GuajaráMirim (BR-364 e BR-317); Guayaramerín–Caracnavi–La Paz,de estrada; La Paz a Patacamaya–Tambo Quemado–portosde Arica e Iquique.

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ordenamento dos espaços amazônicos. Trata-se deum projeto, acima de tudo, de grandes impactos so-ciais e ambientais, por ser amplo, totalizante,hegemônico e autoritário.

Por isso, o Programa de Aceleração doCrescimento, PAC I e II, precisa ser entendidona sua relação com o projeto de integração sul-americana. Ele tem a mesma matriz teórica eideológica da IIRSA. Baseia-se, também, na mes-ma matriz conceitual, por reproduzir a ideia deintegração com os países vizinhos. Não é uma es-tratégia tão somente nacional, mas continental,voltada para o mercado mundial, embora o papelprincipal seja desempenhado pelo Brasil, que se

faz presente estrategicamente com o peso doBNDES, que financia projetos nos diferentes países,e de empresas como a Petrobras e a Vale, que têmplantas de exploração de recursos naturais – minéri-os, petróleo – em quase todos os países sul-america-nos. Instituições supranacionais também participamdo processo de mercantilização e financeirização daeconomia, no PAC I e II e na IIRSA. As seguintesorganizações também consideram a infraestruturafundamental para o mercado: Banco Mundial (BM),Fundo Monetário Internacional (FMI), BancoInteramericano de Desenvolvimento (BID), Comis-são Europeia (CE), Organização de Cooperação e deDesenvolvimento Econômicos (OCDE), Comissão

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Econômica para a América Latina e o Caribe(CEPAL), Organização Marítima Internacional(IMO). Como mostram Boyer (2006, p.51-52) eChesnais (1996, p.80-86), essas instituições têmdispositivos de regulação, acordos e convenções.

PAC E IRSA: o papel do transporte no espa-ço global de fluxos

As mudanças verificadas na economiamundial, com a reestruturação da produção e dosmeios de comércio e com a crescentefinanceirização e globalização, alteraram o padrãotecnológico e o de gestão, importantes para osfluxos de mercadorias, de serviços e, sobretudo,de informações. Assim, inovações tecnológicasadotadas pela engenharia naval foram significa-tivas para alterar o porte e a capacidade dos na-vios de longo curso, o perfil das grandes trans-portadores de contêineres e os processos de ges-tão, reduzindo, portanto, o tempo de navegaçãoe ampliando o fluxo de negócios. Isso levou auma surpreendente dissociação do tempo e doespaço e, ao mesmo tempo, à compressão dotempo e à relativização dos espaços de produ-ção, comércio e consumo.

Fluxos mais rápidos de transporte devidoàs tecnologias empregadas, menor tempo nosportos, mais capacidade em volume de merca-dorias e, consequentemente, o aumento do nú-mero de viagens levaram à redução dos custosmédios por tonelada transportada. Esse tipo detransporte tem crescido no mundo e feito pres-são para a liberação de impasses alfandegários,evidenciando processos de desregulamentação dedispositivos legais, encontrados em diversos pa-íses. Até o último quartel do século XX, não se-ria economicamente viável, para o fluxo de acu-mulação, transportar quantidades imensas demercadorias em fluxos contínuos. Hoje, produ-tos da indústria automobilística, carros, trato-res, peças de reposição circulam com regulari-dade da Coreia do Sul e da China para o porto deSantos, e os fluxos funcionam no ritmo da econo-

mia globalizada, o que produz, no mercado, umefeito de estabilidade institucional, com concessi-onárias instaladas, mecanismos legais operativose expansão de mercado. Países imensos como oBrasil, em todas suas regiões, são abastecidos comum padrão de comércio relativamente compatívelcom concorrentes instalados no parque automobi-lístico brasileiro desde o século XX.

Assim, a logística de transporte passou aser integrada aos fluxos de produção por meiode modelos sofisticados de aplicação just-in-time

e de flexibilização de processos e produtos, combase em sincronização de tempos entre portosinternacionais, nacionais e regionais, indepen-dentemente de países e continentes, de distânci-as e produtos. Isso se tornou possível em funçãoda reestruturação da gestão, com a redução dotempo de armazenamento de mercadorias, a ra-pidez de fluxos, o direcionamento de fornece-dores e clientes (Harvey, 1998). Essa estruturaancora-se no sistema de informação que integra,em rede, tempos e processos diferentes, organi-zando o espaço global de fluxos de mercadoriase permitindo, dessa forma, a acumulação de ca-pital por empresas parceiras no processo.

Nos últimos anos, nas ações governamen-tais e nas estratégias empresariais, observa-se umarevalorização do transporte de cargas por via flu-vial. Dá-se importância à logística de transporte,adotando-se um novo modo de regulação de por-tos e de controle das vias navegáveis. Alguns riospassaram a ser valorizados, por estabelecerem umaligação entre oceanos, do Pacífico ao Atlântico eao Caribe. É o caso dos rios Huallaga, Marañón,Ucayali e Amazonas no Peru, Putumayo e Napono Equador, Putumayo na Colômbia e Iça,Solimões e Amazonas no Brasil, que abarcam6.000 km de vias navegáveis. Fala-se em moder-nização do transporte fluvial e aposta-se na com-pressão do tempo do transporte de cargas e naredução de custos, visando à competitividade daeconomia nacional.

A reestruturação produtiva e a flexibilizaçãoalteraram os fluxos de mercadorias, e houve tam-bém um aumento da produtividade, em decorrên-

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cia da melhoria de dispositivos organizacionais einstitucionais que permitiram a adoção de outromodo de regulação do trabalho e de apropriação dequalidades da força de trabalho e da subjetividadedos trabalhadores (Boyer, 2006), com base em umnovo regime de acumulação. Com a globallização, aeconomia de transporte é cada vez mais determina-da por grandes empresas de armadores internacio-nais. Esses armadores (megacarriers) dominam asrotas mundiais (Leste–Oeste e Norte–Sul). No Bra-sil, as megacarrriers têm o controle do transportede longo curso. Elas participam de uma rota naqual os armadores brasileiros funcionam conjun-tamente com navios de bandeira estrangeira, aten-dendo a um mercado crescente e com lucros extra-ordinários (Agência Nacional..., 2011a).

Ao estudar a reestruturação produtiva naárea portuária do Pará, Castro e Santos (2006, p.27)mostram, para o caso de Belém, as dimensões con-traditórias entre as representações dominantes so-bre a modernização, o poder de competitividadeentre empresas e os efeitos sobre o campo do tra-balho. A introdução de técnicas de modernização,como revelam as autoras, permitiu flexibilizar agestão e o processo de trabalho, levando a granderedução dos postos de trabalho,apesar da expan-são da atividade no Porto da Vila do Conde.

A estratégia de transporte por meio decontêiner possibilitou aos países exportadoresuma situação confortável na estrutura de comér-cio. Inclui-se aí o caso brasileiro, que teve umextraordinário crescimento, segundo informa aAgência Nacional... (2011a, 2011b), de 20,57%nesse setor, quatro vezes mais o alcançado em1994. No sistema da Companhia das Docas doPará, o movimento verificado quase triplicou ovolume de contêineres de 1997 a 2010 (Agên-cia Nacional... 2011b). O crescimento do volu-me de cargas transportadas por via marítima efluvial foi possível graças à introdução de téc-nicas que permitiram aumentar a conectividadeentre mercados, viabilizar as ligações entre lo-cal, regional e global e, consequentemente, re-duzir preços.

As Figuras 1 e 2 mostram, de forma clara, os

territórios para onde se dirigem os investimentos:5

as fronteiras políticas do Brasil, nos estados maispreservados, social e ambientalmente, da violênciados processos ocorridos na Amazônia Oriental eno Mato Grosso, dos anos 70 aos 90, sobretudo.Identificamos, na Amazônia, 41 projetos voltadospara o setor transporte, dos quais 29 distribuídaspelos seguintes estados: 15 obras no Pará, 10 noMaranhão, 14 no Amazonas, 7 em Roraima, 11 emTocantins, 12 em Amapá, 14 em Acre e 17 emRondônia (Brasil. 2011, p.37).

Observam-se, ainda, corredores comconectividade de transporte, que são ligaçõesintermodais, como a integração da BR-319 àhidrovia do rio Amazonas (porto de Manaus), aintegração da BR-163 à hidrovia do rio Amazo-nas e à hidrovia Teles–Pires, a integração da BR-230, Transamazônica, por meio da construçãode uma ponte sobre o rio Araguaia, a integraçãoda hidrovia do rio Amazonas, via BR-230, àhidrovia do rio Tocantins, além das ligações coma ferrovia Norte–Sul–Estrada de Ferro Carajás.Esses corredores estão previstos no contexto damalha nacional com sincronização de tempos, con-forme as partes que compõem o sistema nacionalde transporte. É importante destacar a comunica-ção entre o planejamento da IIRSA e a experiênciabrasileira na área de transporte, no sentido lato,para áreas de fronteira.

A região amazônica, nos diferentes paí-ses, tem uma tradição de transporte fluvial –que remonta a milênios – para passageiros e cargasem embarcações de pequeno, médio e grande por-te, construídas em estaleiros regionais com mãode obra local. No entanto, uma polêmica dividesegmentos envolvidos nessa área de navegação flu-vial a propósito da vontade política de modernizaros meios de transporte, substituindo a atual frotaem madeira por transportes com base em ferro e

5 Os recursos do PAC I para o transporte na região Nortesinalizam prioridades. Dos recursos alocados por modali-dade de transporte, observa-se a seguinte distribuição:setor rodoviário com 60,32%, o ferroviário com 23%; ohidroviário 13,22% e, finalmente, o aeroportuário, com0,28% dos recursos. A integração modal e intermodal fazparte de uma certa concepção de planejamento estratégi-co, cuja logística é fundamental, sendo relevante no casodo planejamento voltado para a Amazônia (Brasil, 2011).

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Figura 1 e 2 – Mapas com obras de transporte rodoviário e ferroviário do PAC I e do PAC II, na Amazônia

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aço, mais rápidos e com capacidade para transpor-tar maior quantidade de carga. As posições são di-vergentes: de um lado, as associações de constru-tores de barcos na Amazônia e de mestres tradici-onais de carpintaria naval defendem a eficácia dasembarcações tradicionais, testadas há séculos, comreduzida ocorrência de acidentes, comparativamen-te ao tamanho da frota, e com geração de trabalho erenda com base em conhecimentos locais, em todaa extensão da região; de outro, setores do mercadoe da engenharia naval, representantes de federa-ções da indústria, e inclusive a Marinha do Brasil,interessados em modernizar a frota, alegando queas embarcações de madeira são obsoletas, não ofe-recem segurança e não são condizentes com a mo-dernização do setor. Cabe ressaltar que a frota exis-tente percorre essa imensidão de cursos d’águacotidianamente e é produzida em centenas de es-taleiros localizados nas áreas ribeirinhas da Pan-Amazônia. Certamente, a relação com o tempo estápresente no confronto entre posições e estratégias,pois há temporalidades em conflito. A moderniza-ção do setor de transporte é defendida nas políti-cas setoriais articuladas ao sistema nacional de pla-nejamento e à visão estratégica de futuro.

AMAZÔNIA BRASILEIRA: modelo de produ-ção de commodities?

A Amazônia foi transformada em uma fron-teira de commodities. A expansão da pecuáriabrasileira ocorre na sua fronteira, com frentesperuanas, bolivianas e colombianas. A expansãodos plantios de grãos (arroz, milho e soja) e a explo-ração de madeira empurram as fronteiras até os seuslimites nacionais. Por outro lado, o interesse pelamineração é bastante amplo, pois grande extensãoda Amazônia tem jazidas minerais.6 A Amazôniatornou-se um mercado de produtos e insumos, li-

gado a redes internacionais altamente sofisticadas ea grandes empresas, como, por exemplo, a Petrobras,a Vale (do Rio Doce), a Andrade Gutierrez e a Cargill.Dos seis grupos de bens exportados pelo País – soja,carne, minérios, suco de laranja, petróleo e celulo-se em 2010 –, os três primeiros eram, majoritaria-mente, produzidos na Amazônia7 (Castro, 2010).

Embora o Brasil tenha diversificado, ao lon-go das últimas décadas, seu parque industrial e suainserção no mercado mundial, ele não deixa de ser,por excelência, um produtor e exportador decommodities. A Amazônia contribui também para aprodução de dois outros produtos do ranking na-cional – celulose e petróleo (com gás natural) –, re-afirmando a importância da exportação no cenárionacional. Por outro lado, a globalização e o aumen-to da competitividade têm provocado, no âmbitolocal, o acirramento das estratégias de apropriaçãode terras e de recursos por empresas nacionais einternacionais, tendo em vista investimentos ime-diatos ou reservas de nichos de mercado. Essas es-tratégias são responsáveis, em grande parte, pelaconcentração fundiária, pela grilagem, pelapistolagem, por conflitos em torno da terra e tam-bém pelo desmatamento acumulado (Castro, 2005,p.46; 2009, p.85). E se atualizam com o avanço paraas últimas fronteiras nacionais.

A política que norteou o avanço da “frontei-ra econômica” organizou-se de forma a permitir aintegração do mercado nacional às estruturas pro-dutivas. Para os grupos que migraram em direção aessa mesma fronteira, como colonos atraídos poruma “política de integração”, o apoio do Estado foireduzido. Nesse contexto, os projetos de coloniza-ção estavam subordinados ao projeto mais amplode modernização institucional e econômica do país.Justamente por isso, o governo federal priorizoupolíticas direcionadas à empresa agropecuária. Num7 Na Amazônia, essas ações são “incentivadas e alimenta-

das pelos grupos sojeiros e minero-siderúrgicos (ao de-fenderem o asfaltamento das estradas e a implantaçãode projetos hidrelétricos) (grupos econômicos Amaggi,Bunge, Cargill, Vale), além de bancos (FMI, BID,Corporação Andina de Fomento, BNDES), como tam-bém grandes empreiteiras brasileiras – Odebrecht,Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez – que, com seuenorme poder econômico, vêm exercendo o lobby àintegração de infraestrutura física nacional e internacio-nal” (Couto, 2008, p.81).

6 Os minerais são de várias naturezas: minerais energéticos(carvão mineral, linhito, urânio), minerais metálicos(chumbo, cobre, cromo, estanho, ferro, manganês,molibdênio, nióbio, níquel, ouro, titânio, zinco), gemas(água-marinha, amazonita, ametista, diamante, esme-ralda, granada, malaquita, opala, quartzo citrino, quart-zo hialino, topázio, turmalina e produção deminerometalúrgicos siderúrgicos, entre outros.

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primeiro momento, os investimentos vão para apecuária, a exploração madeireira e a agricultura.O modelo desenhado pelo Instituto Nacional deColonização e Reforma Agrária (INCRA) para cer-tas áreas da Transamazônica e para a rodoviaCuiabá-Santarém previa grandes propriedades, enão por acaso surgiram as políticas destinadas aapoiar a empresa agropecuária. Igualmente, o Pro-grama Polamazônia foi concebido como um pro-grama de polos agropecuários, madeireiros e mi-nerais, sendo projetados 15 polos no Pará.8 Emum segundo momento, no correr dos anos 80, pre-dominam projetos de mineração e de infraestruturaenergética, estradas e comunicação. Os investimen-tos foram direcionados para a produção mineralno âmbito do Programa Grande Carajás, inclusivepara a construção das hidrelétricas de Tucuruí eBalbina. Nos anos 90, o Plano Brasil em Ação (1996-1999) e, logo após, o Avança Brasil (2000-2003),com os projetos de infraestrutura articulados emeixos de desenvolvimento, traçam as linhas deintervenção no espaço regional com base em pro-jetos de infraestrutura de transporte e comunica-ção. No terceiro momento, abre-se a fronteira a em-presas de mineração, de agricultura mecanizada,de madeira certificada. O PAC viria a consolidarum novo papel a ser dado à infraestrutura – ener-gia, transporte, estradas, comunicação –, visando acriar estruturas de produção de energia, como asdezenas de hidrelétricas projetadas para os princi-pais rios da Amazônia, sobretudo os afluentes dasbacias do rio Amazonas e do Tocantins, e a intensi-ficar a produção de commodities e seu escoamentopara novos mercados.

Em que são diferentes esses momentos? Atu-almente, estão em jogo grandes interesses de em-presas, bancos, agências nacionais e internacionais

etc. e aportes financeiros públicos e privados comcapacidade de impor seus interesses no espaço eno tempo. Por isso, levantamos a hipótese de queestamos diante de um grande investimento gover-namental que tende a provocar transformações paraalém da fronteira nacional.

Expansão da fronteira de commodities: pecuá-ria e mineração

Governos sul-americanos esperam desenvol-ver estratégias empresariais de ampliação da capaci-dade competitiva e adquirir melhores condições nomercado. Para ilustrar, examinaremos a pecuária e amineração na Amazônia brasileira e refletiremossobre os impactos sociais e ambientais que poderãoocorrer com a abertura de estradas e a constituiçãode corredores de escoamento para os principaismercados mundiais.

Todas as grandes regiões do Brasil são pro-dutoras de gado. Em 2009, o Brasil possuía qua-se 75 milhões de cabeças bovinas (74.679.513). Porisso, a pressão sobre a disponibilidade de terraspor parte da pecuária, no mercado de terras brasi-leiro, tem sido uma constante. O Sul e o Sudestelideraram o setor, mas a pecuária cresceu em ritmomais acelerado nas últimas décadas nas regiões Cen-tro-Oeste (maior produtora, com 34%) e Norte (com20%), o que corresponde ao total de 54% de parti-cipação no rebanho nacional. Porém as demais regi-ões têm ainda expressiva participação (46%).

A expansão da pecuária no país foi possívelgraças ao avanço, nos últimos 50 anos, da fronteiraagropecuária sobre a floresta amazônica e o cerradomato-grossense. Contou, para tal, com financiamen-tos públicos diretos, concedidos por meio de incenti-vos fiscais e créditos bancários que privilegiaram osprojetos de pecuária e a concessão de terras, e com osfinanciamentos indiretos, por meio da construção dosprojetos de infraestrutura que garantiam a abertura denovas fronteiras. Isso explica por que mais de umterço do rebanho brasileiro está em terras da Amazô-nia Legal. Mato Grosso, Pará e Rondônia são os esta-dos com maior participação – 27.357.089, 16.856.561

8 A história econômica dessa região está marcada pelainfluência dos investimentos do Programa Polamazôniaque, na década de 70, concedeu gordos subsídios públi-cos a empreendimentos privados nos setores voltadospara a exportação: pecuária, madeira e mineração.Rondônia, Mato Grosso, Tocantins e sudeste e sudoestedo Pará são exemplos da ação de programas governa-mentais de colonização, de abertura de estradas, de mi-neração, energia e incentivos fiscais a médias e grandesempresas de pecuária e madeira, o que determinou oavanço de novas frentes econômicas com apropriaçãode imensos territórios da União.

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e 11.522.891 de cabeças, respectivamente (Tabela 1) –e também com maior taxa de desmatamento cumulati-vo no correr das últimas décadas, o que tem alteradoprofundamente a cobertura florestal e as formas tradi-cionais de ocupação do território. Daí a região ser pal-

co de conflitos e violência.

A pecuária no Estado do Pará foi tradicio-nalmente praticada nas terras baixas da ilha doMarajó e do baixo Amazonas, conhecida comopecuária de várzea, padrão que foi, de longe, ul-trapassado pela pecuária de terra firme e nas áreasde fronteira, no corredor das estradas abertas pelacolonização e pelas madeireiras. Para se ter ideiada velocidade do crescimento da pecuária com aabertura da fronteira e as políticas estatais que fa-voreciam o seu financiamento público, ver os da-dos da Tabela 1. Em 1990, o Pará contava com umrebanho já expressivo de 4.599.000 cabeças; em1995, esse rebanho já ultrapassava seis milhões(6.080.000), chegando a quase 10 milhões(9.668.000) em 2000. Na década seguinte, ganha-ria mais velocidade o crescimento do rebanho;coincidentemente, houve aumento no volume definanciamento da pecuária na Amazônia, com vul-

tosas somas sendo repassadas pelo Banco da Ama-zônia. O rebanho do Pará chega, em 2003, a13.376.608 cabeças e, em 2005, a 18.063.669; em2009, haveria uma queda conjuntural para16.856.561 bovinos, embora o Estado continue aser o segundo maior produtor do país.9

A mineração foi reconhecida pelo governofederal como um dos três pilares de sustentaçãodo desenvolvimento do País (os outros são a agri-cultura e o turismo), pela diretriz do PlanoPlurianual (PPA) 2004-2007 do governo federal edo relatório de junho de 2007 do DepartamentoNacional de Produção Mineral do Ministério deMinas e Energia (DNMP).10 Nesses documentos,afirma-se que os indicadores de desempenho doPrograma Mineração e Desenvolvimento Sustentá-vel apontam resultados “excepcionais” da indús-tria extrativa mineral (inclusive petróleo e GNP) noperíodo (Castro; Sousa; Golobovante, 2010, p.11).

Em 2007, a indústria da mineração e trans-formação mineral contribuiu com aproximadamen-te 5,17% do PIB Brasil (o que significa U$S 70bilhões), enquanto, na Amazônia, o setor partici-pa com apenas 3% do PIB regional e gera, de for-

pois o cruzamento dos dados mostra uma relação diretacom os Estados que mais desmatam. Em 20 anos, a áreaocupada por pastagens, no Mato Grosso, dobrou. E, noPará, multiplicou-se várias vezes.

10 O setor mineral era responsável por 26% do PIB doEstado do Pará em 2005. Se o garimpo, como forma mais

9 Os Estados do Mato Grosso, Pará e Tocantins, com osmaiores rebanhos, ocupam 75,12% das terras na Ama-zônia Legal com pecuária. Esse dado é fundamental parase entender a relação pastagens versus desmatamento,

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ma direta, menos de 2% dos empregos formais daregião. Mas o setor responde por 40% do valorexportado pela Amazônia, e, no Pará e noMaranhão, os metais e minerais, com destaque paraalumínio, ferro e aço, representavam mais de 70%do valor exportado em 2006 (IMAZON, 2006).

Após o processo de privatização, a Vale temampliado sua lucratividade. Em 2002, seu lucrolíquido atingiu um total de R$ 2.043 bilhões (doisbilhões e quarenta e três milhões de reais); em 2003,o lucro líquido ficou em R$ 4.509 bilhões (quatrobilhões e quinhentos e nove milhões de reais); em2004, a empresa teve o maior lucro líquido em 62anos de existência, totalizando R$ 6.460 bilhões(seis bilhões e quatrocentos e sessenta milhões dereais), crescendo até atingir R$ 21,3 bilhões no anode 2008. Apesar da redução para metade no anode 2009, pois o setor foi fortemente afetado pelacrise global, a empresa recuperou-se e mantém-secom lucros crescentes (Castro; Sousa; Golobovante,2010, p.11). O crescimento anual da mineração noPará é de 26%, e a economia do setor mineral temimpactado positivamente a evolução do ProdutoInterno Bruto brasileiro (Sousa, 2011).

MOBILIZAÇÕES COLETIVAS NA PAN-AMAZÔNIA

As análises dos processos de integração sul-americana têm sido apresentadas de forma lacunosa,pouco crítica e sem ligação com os reais processosde dominação. É possível perceber as diferençasentre o discurso dos planejadores e um projeto his-tórico de integração que recomponha as relaçõessociais e culturais, e não apenas econômicas. Lander(2005) considera que, preliminarmente, é necessá-rio perguntar Para quem servirá a integração? Paraos setores privilegiados das sociedades, para o ca-pital, seja ele nacional ou transnacional, que pode-rá mover-se livremente no continente? Ou, ao con-

trário, haveria uma integração para todos que vi-vem nos países envolvidos, superando as contra-dições do capital e a tendência histórica de exclu-são? (Lander, 2005). Tudo dependeria do modelode integração em questão e da maneira como ele se“adaptaria” à lógica dominante de integração deblocos econômicos e de regulação da economia? Oprojeto de integração contempla espaços de auto-nomia e soberania e formula políticas públicascondizentes com as demandas da sociedade, comos territórios coletivos e com o desenvolvimentode seus processos produtivos, conforme pergun-tam os movimentos sociais indígenas na Bolívia?

Os movimentos sociais de várias nacionali-dades são exemplos de formas de sociabilidade ede integração que existem nas fronteiras entre Bra-sil, Peru, Colômbia, Bolívia e Equador, que com-põem a grande faixa fronteiriça da Amazônia Oci-dental, ou nas fronteiras com países do Caribe,Venezuela, Suriname, Guiana, Brasil, Guiana Fran-cesa, já na da Amazônia Oriental. Os temas emdiscussão nesses fóruns são variados, mas, nosúltimos anos, intensificou-se a discussão sobre oterritório, as modalidades de afirmação deterritorialidades e de defesa de processos de traba-lho. Alguns fragmentos mostram a diversidadedesses temas e seus impactos locais: como enfren-tar os resultados do avanço de empresas brasilei-ras e do consequente desmatamento que ocorre noleste do Peru, a exploração madeireira que avançaem direção da Bolívia, os arrozeiros e garimpeirosbrasileiros na fronteira com a Venezuela, ou os pro-blemas apresentados pelos grupos indígenas brasi-leiros na fronteira com a Guiana, ou ainda pelosgarimpeiros no rio Oiapoque, em conflito com aGendarmerie francesa?

Há um desconhecimento completo das ex-periências sociais e do campo de trocas, materiaise simbólicas que marcam as relações e conformama vida social e as relações com a natureza nessasregiões. Nesse quadro da fronteira, há movimen-tos migratórios mais ou menos intensos, que en-volvem migração de trabalho, mas também fazemparte das formas de sociabilidade entre povos quecoabitam esses territórios, alguns milenarmente,

rudimentar de exploração mineral, ainda resiste, a pro-dução atual é dominada por mineradoras que utilizamprocesso intensivo de tecnologia e robotização nas ex-plorações. Os próximos investimentos previstos até 2012,em novos projetos e na expansão dos atuais, somamU$S 17 milhões. Desse total, 97% serão efetivados pelaVale, a maior parte deles na região sudeste do Pará, queresponderá pela maior fatia (86%).

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independementemente de serem unidades nacio-nais diferentes. São identidades e territorialidadesem jogo, espaço de trânsito de culturas e etniaspouco percebidas na superficialidade das interpre-tações sobre as fronteiras. A fronteira é um espaçocomplexo, com muitos atores sociais e étnicos eagentes econômicos, redes de comércio, migrantesque chegam com interesses diversos e veem aí umespaço também de oportunidades e de negócios.

CONCLUSÃO

Procuramos sustentar a ideia de que asmacropolíticas nacionais atuais, voltadas para aAmazônia brasileira, ampliam sua abrangênciaterritorial. A Pan-Amazônia torna-se um espaçode repercussão das dinâmicas nacionais, da in-tervenção de megaprojetos que acabam pordesestruturar uma dada ordem social e ambientalexistente e disponibilizar, assim, novas frontei-ras de terras e recursos naturais.

O Estado tem optado pela solução mais tra-dicional de desenvolvimento – o que se tem reve-lado ineficaz social e ambientalmente –, que é aconstrução de grandes obras de infraestrutura,usando argumentos que supervalorizam os bene-fícios do desenvolvimento. São obras localizadasno território brasileiro e nas áreas amazônicas depaíses vizinhos, por intermédio da IIRSA. Produ-tos como minério, madeira, gado e pescado, naAmazônia, continuam a sair para o mercado porcadeias curtas e com reduzido padrão tecnológico.

Os projetos de grande escala, como as hi-drelétricas em construção no Brasil, no Peru ena Bolívia, ou as estradas, ferrovias e portos apre-sentados pelos governos como obras para o de-senvolvimento e a integração nacional e sul-ame-ricana, são densos em investimento e, por isso,representam um modelo de intervenção no ter-ritório, não apenas do Estado, mas também de gran-des empresas, nacionais e internacionais. Chesnais(1996) mostra que a internacionalização é domina-da mais pelo investimento internacional do que pelocomércio exterior, e, portanto, molda as estruturas

que predominam na produção e no intercâmbio debens e serviços, com forte interação com as institui-ções bancárias e financeiras que definem as aquisi-ções e as fusões. Esses grandes projetos, construídospara oferecer ao mercado os recursos naturais, sãoentregues a grandes empresas, nacionais e estran-geiras, que se localizam, via de regra, em territóriosocupados, mas se impõem à população local comoprioridade nacional.

Além disso, os projetos dos PAC I e II au-mentaram a desterritorialização de povos tradicio-nais na Amazônia brasileira e têm manipulado iden-tidades pelo esvaziamento de sentidos, trazendoesses grupos para o contexto de suas representa-ções sobre a modernização e o processo cilizatório.Têm reproduzido, assim, de forma recorrente ecélere, formas de estigmatização, no sentido enten-dido por Goffman (1982) e de Elias (1994). Essesprojetos têm sido motivo de contestações que di-videm a sociedade brasileira, motivo de tensões econflitos, embora se proponham a reduzir as desi-gualdades sociais e a diminuir a fragmentação in-terna, abordando temas como segurança alimen-tar, patenteamento de conhecimentos tradicionais,titulação de territórios de identidade, reforma agrá-ria e soberania nacional.

Finalmente, a Amazônia, vista no cenárionacional e internacional, sobretudo, pelo aumen-to das taxas de desmatamento e pelo acirramen-to dos conflitos socioterritoriais, localiza-se emuma outra configuração geopolítica. Os olhosvoltam-se para a Pan-Amazônia, imensa região ea última mais preservada do planeta. Imensa fron-teira de recursos, integrada pelas culturas e etniasque milenarmente aí vivem e produzem suas exis-tências, mas agora ameaçadas pelos programasneocoloniais que refazem discursos e prioridadese por estratégias geopolíticas de dominação dasfronteiras. O conhecimento e a demonstração des-ses processos de dominação e dos efeitos que pro-duzem passam a ser prioridade política das socie-dades amazônicas e nacionais.

Recebido para publicação em 3 de novembro de 2011Aceito em 5 de fevereiro de 2012

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REFERÊNCIAS

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Edna Castro

EXPANSION DES FRONTIÈRES, GRANDSPROJETS D’INFRASTRUCTURE ETINTÉGRATION SUD-AMÉRICAINE

Edna Castro

Les analyses de la relation entre politiquesde développement et dynamiques socio-territorialesen Amazonie s’intéressent de plus en plus à leurdimension nationale. Cet article cherche à révélerl’intérêt accru pour l’exploitation des ressourcesnaturelles de la région, au-delà de leurs frontièrespolitiques, ce qui fait que la Pan-Amazonie estdevenue un espace central de la géopolitiquebrésilienne. Les Plans pour l’Accélération del’Économie (PAC I et II) et l’ IIRSA vont dans lemême sens, celui d’une intégration compétitive quiadopte un modèle de modernisation basé sur desmega-projets d’investissements. L’IIRSA, en tantque bloc régional dans le cadre de l’Amérique duSud, et le PAC, dans le cadre national, sont desprogrammes tournés vers la logistique destransports, de l’énergie et de la communication.Sur le plan continental, ils sont l’expression dedynamiques socio-territoriales irréversibles etreprésentent des intérêts communs pour le Brésilet les autres pays par le biais du modèle dominantd’expansion de la frontière amazonienne à partirdes années 70 du siècle dernier.

MOTS-CLÉS: frontière, politiques d’état, intégration,grands projets, Pan-Amazonie.

Edna Castro - Socióloga do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade Federal do Pará - UFPA.Doutora em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Pós-doutora pelo Centre National de laRecherche Scientifique. Professora da UFPA. Pesquisadora do CNPq. Professora Visitante da Université de Québecà Montreal Departamento de Sociologia, Canadá; da Universidade de Brasília, UnB, Departamento de Sociologiae da Université Le Havre, França. Diretora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA/ UFPA – entre 2004 e2008. Foi Presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional –ANPUR, gestão 2007-2009 e exerceu função de Diretora na Associação Nacional de Pós-Graduação em Sociologia– ANPOCS nos períodos (1986-1988 e 1994-1996), da Sociedade Brasileira de Sociologia - SBS (2009-2011).Atualmente é diretora da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC. Tem pesquisas e publicaçõesnos temas: trabalho, políticas públicas, cidades, identidades e territorialidades de grupos tradicionais e conflitossociais e ambientais, Amazônia, Pan-Amazônia, América Latina.

BORDER EXPANSION, SOUTH AMERICANINFRASTRUCTURE AND INTEGRATION

MEGAPROJECTS

Edna Castro

The analysis of the relationship betweendevelopmentalist policies and social and territorialdynamics in the Amazon usually focuses on aBrazilian national perspective. This article aims toreveal an increase of interest in the exploitation ofthe region’s natural resources, beyond its politicalborders, thus turning the Pan-Amazon into a vitalzone in Brazilian geopolitics. The Brazilian GrowthAcceleration Programs (PAC I and II) and theInitiative for the Integration of the RegionalInfrastructure of South America (IIRSA) follow thesame direction of a competitive integration,adopting a modernization model based oninvestment megaprojects. The IIRSA, carried onin South America as a regional block, and the PAC,developed nationwide, are programs that aim toboost transport, energy and communicationlogistics. Continent-wise, they both indicateirreversible social and territorial dynamics andrepresent the common interests of Brazil and theother countries, based on the 1970’s dominantmodel of border expansion in the Amazon.

KEY-WORDS: border, state policies, integration,megaprojects, Pan-Amazon.