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A experiência da música e as escutas contemporâneas Autor: Rodrigo Fonseca e Rodrigues Titulação: mestre em Comunicação Social, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas / UFMG Dados referentes ao autor: coordenador do curso de Comunicação Social ( Publicidade e Propaganda ) da Faculdade Metropolitana de Belo Horizonte/MG; professor de Teorias da Comunicação no IJAA ( Juatuba/MG ); professor de Metodologia Científica, na FUMEC / MG. Endereço: Av. Sete de Abril, 711/201 – Esplanada, Belo Horizonte/MG. Cep. 30.280-240 Telefones: (31)3291-0787 – R. 313 (31)9154-6499 E.mail: [email protected] Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre a dimensão da experiência da escuta contemporânea, buscando examinar os seus estatutos a partir dos escopos que a mídia, a tecnologia e a cultura operam mutuamente na construção perceptiva da nossa experiência sônica e vice versa. Presidem então a esta análise tanto a atenção acerca da dimensão cultural como sobre a perceptual da experiência estética no campo sonoro. Os principais tópicos de abordagem consistem na observação de pontos de partida perceptuais nos quais o ouvinte hipoteticamente se apóia para realizar sua experiência habitual com a música e, a seguir, considerar o pensamento de autores como John Cage, Pierre Schaeffer, Steve Reich, Brian Eno e Sílvio Ferraz acerca das modalidades de escuta contemporânea. The purpose of this article is a reflection about the contemporary listening and its dimensions of experience, attempting to examinate their status starting from the points of views that media, technology and culture impose to the perceptual construction of our sonic experience and vice versa. Leading this analysis are the atenction over both the cultural and the perceptual dimensions of the aesthetic 1

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A experincia da msica e as escutas contemporneas

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A experincia da msica e as escutas contemporneas

Autor: Rodrigo Fonseca e Rodrigues

Titulao: mestre em Comunicao Social, na Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas / UFMG

Dados referentes ao autor: coordenador do curso de Comunicao Social ( Publicidade e Propaganda ) da Faculdade Metropolitana de Belo Horizonte/MG; professor de Teorias da Comunicao no IJAA ( Juatuba/MG ); professor de Metodologia Cientfica, na FUMEC / MG.

Endereo: Av. Sete de Abril, 711/201 Esplanada, Belo Horizonte/MG. Cep. 30.280-240

Telefones: (31)3291-0787 R. 313

(31)9154-6499

E.mail: [email protected]

Resumo:

Este artigo prope uma reflexo sobre a dimenso da experincia da escuta contempornea, buscando examinar os seus estatutos a partir dos escopos que a mdia, a tecnologia e a cultura operam mutuamente na construo perceptiva da nossa experincia snica e vice versa. Presidem ento a esta anlise tanto a ateno acerca da dimenso cultural como sobre a perceptual da experincia esttica no campo sonoro. Os principais tpicos de abordagem consistem na observao de pontos de partida perceptuais nos quais o ouvinte hipoteticamente se apia para realizar sua experincia habitual com a msica e, a seguir, considerar o pensamento de autores como John Cage, Pierre Schaeffer, Steve Reich, Brian Eno e Slvio Ferraz acerca das modalidades de escuta contempornea.

The purpose of this article is a reflection about the contemporary listening and its dimensions of experience, attempting to examinate their status starting from the points of views that media, technology and culture impose to the perceptual construction of our sonic experience and vice versa. Leading this analysis are the atenction over both the cultural and the perceptual dimensions of the aesthetic experience into the sound field. The main topics of aproach launch to show the perceptuals starting points wich the listener stand for reach their habitual experience with the music and then regard the ideas of authors like John Cage, Pierre Schaeffer, Steve Reich, Brian Eno and Slvio Ferraz according to the contemporary listening modalities.Palavras-chave: mediao tecnologia cultura msica contempornea experincia esttica

Texto:

Nesses vinte e cinco sculos, de Plato a John Cage, as reflexes acerca das instncias do belo e da arte musical transitaram entre mltiplos horizontes de investigao, marcados tambm pela sua submisso s diversas escolas de pensamento: da "msica das esferas" arte da sensualidade e da indisciplina, do culto ao hedonismo ao rigor do juzo crtico, da imanncia transcendncia, do fetiche utopia, das rgidas estruturas sistmicas s probabilidades informacionais. Transitou pelas esferas do trgico e do pattico, do apolneo e do dionisaco, do ethos e da metafsica, pela pesquisa sistematizada do seu desenvolvimento gramatical e pela ateno, esta mais recente, sobre as dimenses do seu reconhecimento e das suas modalidades de recepo.

A reflexo que este artigo prope a de atualizar a discusso a respeito da experincia contempornea da msica, em suas diversas modalidades alternativas de inveno e escuta. Para um melhor acompanhamento do seu desenho, importante apontar as principais balizas que o orientam, como a compreenso das nossas potencialidades da percepo sonora e dos condicionamentos e conotaes culturais relacionados na escuta. Tal abordagem visa demonstrar como a anlise da apreenso musical contempornea merece ser repensada, para se entender a experincia sonora como parte do descortinar de novas dimenses comunicativas que ampliam as nossas prerrogativas de escuta.

Sabemos o quanto a gravao, a reproduo e a difuso meditica da msica expandiram as oportunidades para a sua fruio, mas tambm dessacralizaram-nas como formas de contemplao tradicionais. Tambm passamos a experienciar uma audio desritualizada, desprendida dos espaos de confinamento fruitivo, pagando com a disperso da conscincia diante da massiva afluncia sonora. Podemos ouvir, como e quando quisermos, uma mesma pea musical, milhares de vezes e tambm acionamos ou interrompemos, com um simples zapping, qualquer execuo sonora, bem como podemos fazer outras tarefas cotidianas enquanto escutamos msica: durante as leituras, enquanto trabalhamos no computador ou navegamos na rede, nos momentos de introspeco, no carro, em avies, nas salas de espera, elevadores, estaes e supermercados, na rua, enquanto dormimos, na hora do sexo, do banho, do passeio, da ginstica, em festas, coquetis, cerimnias cvicas ou religiosas, boates, festivais, shows, concertos, bares etc. A inflao dos signos sonoros e da exposio excessiva a que somos impingidos, em quaisquer ambientes e situaes sociais, contribuiu para dissolver o culto e a demanda ritualizada de concentrao da experincia tradicional, com o preo da depreciao de seu antigo impacto "aurtico" sobre a percepo.

Em tais contextos, parece haver elementos decisrios especficos recorrentes nas formas contemporneas de pensar, realizar, compartilhar e ouvir msica, num tecido plural de relaes que se influenciam mutuamente. Os princpios de tal experincia sonora advm de: 1) condies mediatizadas nos circuitos de bens de consumo musicais; 2) recursos tecnolgicos que propulsionam novos meios de se gerar a matria sonora e forjarem da novos materiais expressivos; 3) diferentes potencialidades de escuta estimuladas pelas novas formas de acesso musical; 4) posturas estticas que, ao possibilitar alternativas para a experincia sonora, fazem emergir um novo tipo de ouvinte mais atento a tais procedimentos poticos; 5) uma escuta que fomenta a potica dos artistas envolvidos com as prticas criativas renovadas.

Em meio a tantas expectativas difusas nas quais mergulham os ouvintes contemporneos, consideramos, doravante, os estatutos de conotao cultural que condicionaram a escuta a uma atividade repertoriada, bem como as alternativas para ultrapass-la, apontadas por John Cage. Mais frente, abordamos as propostas de uma escuta concreta, no-abstrata, por Pierre Schaeffer, defensor da escuta "acusmtica" para se descondicionarem os sons das suas conotaes simblicas. Passamos a apresentar, em seguida, as prerrogativas da escuta minimalista de Steve Reich para estimular a percepo sobre as nuanas materiais do som, seguidas pelo pensamento de Brian Eno a respeito das modalidades da escuta propulsionadas pela ambient music e apresentamos as alternativas para uma escuta textural e heterognea, advogada por Slvio Ferraz. Antes, porm, importante salientar alguns aspectos culturais que modelam a atividade e as expectativas relacionadas com a experincia perceptual da msica ocidental.

A importncia que atribumos a atitudes e reflexes desconstrutoras enunciadas pelo poeta dos sons que foi John Cage, a partir de seus textos e da sua primeira pea eletroacstica ( Imaginary Landscapes ), criada em 1939, resulta do fato de ele pressentir, assim como outros jovens artistas, as obscuridades ontolgicas em que se viciara a cultura artstica da chamada civilizao ocidental. H, na seguinte afirmao de Cage, mais do que um dos muitos chistes bem-humorados do polmico compositor americano:

"Eu aprendi que os intervalos possuem significados, que eles no so propriamente sons, mas implicam em suas progresses um som no realmente apresentado aos ouvidos, mas mente. Toda questo aqui muito intelectual: fazer pensar em sons que no esto propriamente presentes nos ouvidos. A separao entre ouvido e mente estragou os sons. preciso liberar os sons das idias abstratas sobre eles.( )

Na concepo de Cage, tudo atacado, desconstrudo, dos edifcios ideolgicos armadura sagrada da sintaxe. Ele reivindicava o fim das premissas culturais do concerto clssico como um culto ritualstico da experincia esttica e defendeu, com toda a ironia e bom-humor, maior liberdade escuta, para que saibamos no apenas ouvir a elite dos sons musicais, mas tambm apreciar os rudos dirios:

Uma das coisas que sabemos hoje em dia que, algo que acontece pode ser experienciado, por meio da tcnica eletrnica, como outra coisa. Por exemplo, a gente entrando e saindo de elevadores e os elevadores andando de um andar para outro: essa informao pode ativar circuitos que levam aos nossos ouvidos uma concatenao de sons. Talvez voc no concordasse que o que ouviu era msica. Mas, nesse caso, outra transformao teria ocorrido: o que voc ouviu levou a sua mente a repetir definies de arte e msica que se encontram em dicionrios obsoletos. ( )

Cage convocava as pessoas para que ultrapassassem as molduras culturais para algo mais alm do uso obediente sintaxe musical. Finalmente, o artista sugere que preciso urgentemente descondicionar-se da expectativa auditiva habitual, e estar atento no apenas fraseologia musical ( hierarquia que pressupe sempre algo acabado ), mas a toda e qualquer atividade dos sons.

Pierre Schaeffer, quando exps a problemtica das impurezas simblicas que permeiam a escuta da msica habitual, sugeriu um tipo de escuta acusmtica, proposta anteriormente por seu colega Franois Bayle. Nesta modalidade da escuta, um som ouvido sem que se revele a fonte que o produziu, ou seja, sem qualquer relao do som com o que visvel, tctil ou mensurvel. A experincia da escuta acusmtica mostra que grande parte daquilo que acreditamos estar ouvindo na verdade resultante da experincia visual associada audio, uma escuta quase automtica na qual a cadeia de signos disparada pelo objeto sonoro transforma-se em mensagens complexas. Por esta razo, Schaeffer prope uma escuta que se atenha unicamente sonoridade mesma.

Tal escuta material do som que visa bloquear o conceito e a representao foi expandida pelos compositores minimalistas nos anos sessenta e setenta, perodo que redimensionou, para muitos, os pressupostos da escuta musical. No minimalismo, a escuta no predeterminada com relao a um conceito fixo, mas sim deixada capacidade das faculdades perceptivas do ouvinte de descobrir nuanas do som em si, de localizar pequenos detalhes timbrsticos que se desprendem do continuum sonoro. A escuta chamada a perceber as resultantes espectrais, os sons residuais, os batimentos harmnicos, as melodias e ritmos parasitas, a repetio nua da matria e a tactilidade do tempo pulsante. A msica minimal permite e d tempo ao ouvinte de penetrar no objeto, a fim de descobrir a diferenciao gradual por acrscimos e subtraes sutis de elementos.

Ao expor o ouvinte a jogos reiterativos de duraes extremamente longas aos quais ele no est acostumado, o minimalismo ignora a presso do tempo e redefine a escuta, agora acionada na intensidade perceptiva de cada momento. Na escuta minimal, tanto o conceito quanto a memria parecem ineficazes em representar todos os seus aspectos e os seus movimentos texturais. Nesta modalidade da escuta, como afirma o autor Slvio Ferraz, a memria no chamada a atuar, pois no se trata de relacionar um elemento a outro, mas sim de descobrir e deixar-se levar pela diversidade material que gerada pela reiterao de padres sonoros, no abarcvel pela representao. ( )

O minimalismo contm elementos estticos que o ouvinte no notaria, acostumado a esperar pelas mudanas e pelo drama musical. Mas, apesar do material ser aparentemente limitado, o montante de atividade acionada impulsiona o ouvinte para uma situao perceptiva complexa. O princpio da reiterao do material sonoro desobriga a memria de vasculhar no passado prximo, procura dos elementos formais de construo de um sentido musical. No processo da escuta minimal, somos motivados a ativar as micropercepes presentes numa escuta intensiva. Focaliza-se a matria sonora, nas alternativas formais de sua exposio, nas suas diferentes paradas e comeos, uma vez que a reiterao e o fluxo so dirigidos um foco constante, na escuta das fases que emergem, de modos diferentes, a cada ciclo.

Uma outra possibilidade de experincia sonora anteriormente concebida pelas poticas de Erik Satie e John Cage, aperfeioada por Brian Eno na sua ambient music. De fato, Eno comeara a perceber que a partir dos contextos espao-temporais da escuta cotidiana, a centenria tecnologia voltada para a produo e reproduo musical permitia continuamente a criao de novos ambientes e hbitos de escuta. Perscrutou o quanto podia uma nova modalidade de se fazer e apreender msica, relacionando-se com ela como se estivesse compartilhando o espao com uma espcie de aquarela acstica ou de escultura snica.

Parece que Eno comeou a perceber as transformaes que ocorriam nos hbitos auditivos da poca, no apenas no plano tecnolgico dos aparelhos e espaos domsticos de escuta ( como no surgimento do toca-fitas, rdios e toca-discos portteis ), mas tambm nas lojas de discos que proliferavam e ainda pela penetrao da msica popular norte-americana, desde os anos cinqenta, no mercado da Inglaterra. O sentido de estranheza que essa nova msica propiciava vinha justamente de uma descontextualizao cultural da sua escuta.

Perpassava pelos princpios poticos de Brian Eno o intento de colorir a atmosfera, rodear o ouvinte, criar um senso de espacialidade e profundidade que permitisse tambm ao ouvinte "mover-se" por entre espaos snicos alternativos. A composio ambient de Eno, alm da construo de atmosferas criteriosas, permite ser ouvida em diferentes espaos da vida cotidiana, com diferentes expectativas, tal como antes comearam a imaginar Satie, Varse e Cage. O princpio da ambient music visava, em princpio, a redimensionar o espao e o modo da escuta mediatizada, a fim de permitir ao ouvinte acoplar a sonoridade como um suplemento ao meio-ambiente ntimo da escuta privada.

Para esse non-musician assumido ouvir msica algo como capturar parte de um processo infinito. Por isso ele concebe a presena dos eventos acsticos como algo que simplesmente flui, um infinito continuum no qual ns entramos ou o abandonamos. O estatuto da compreenso auditiva sofre uma mutao, ou seja, outro. E diverso tambm o alcance da escuta na modulao livre da percepo, entre nuanas, planos e texturas, espectros snicos e extratos acsticos permeveis.

A ambient music tambm no exige aquela forma perceptiva proposta pela teoria da Gestalt, feita de relaes entre frente e fundo. O ouvinte pode focalizar muitas coisas, alcanando muito mais do que a representao e a idia musical. Ele pode perceber a msica sob uma variedade de perspectivas que revela diferentes estratgias de escuta. O ambient , de outro ponto de vista, um meio diferente de explorar, em sua experincia, os aspectos verticais na composio do som, os seus espectros de harmnicos, a sua qualidade timbrstica. Enquanto que na msica tradicional o timbre acessrio, na ambient music, a sua dimenso estrutural. As informaes sonoras, tal como se d no minimalismo, no requerem a aptido da memria treinada e conotada pela cultura da msica tradicional na tarefa de enfeixar e apartar lampejos do passado e amarr-los numa suposta estrutura mais profunda.

Novas alternativas para uma escuta contempornea condizente com as formas de composio engendradas nas ltimas dcadas foram coerentemente aventadas por Slvio Ferraz. Atravs do vocabulrio conceitual criado por Gilles Deleuze, ele d especificidade ao pensamento deleuziano ao aplicar detidamente o seu funcionamento no plano musical, quando discute particularmente o conceito de ritornelo. ( )

Na concepo de Slvio Ferraz, h trs categorias aventadas atravs das quais a escuta pode configurar-se: a gestual, a figural e a textural. O gesto atribui aos sons uma rede complexa de significados; a figura atua como a escuta das relaes e funes, fornecendo pontos de referncia para a memria; e a textura diz respeito s nuanas sonoras inabarcveis pela memria e pela representao.

A primeira alternativa a escuta que privilegia o gesto, na qual os sons no so elementos em si, mas sim a sua traduo, a representao sonora de elementos extra-musicais e afetivos. Ela ocorre quando a experincia perceptiva se limita a regras determinadas a priori. A segunda categoria da escuta preestabelece um quadro de smbolos atribudos cada textura sonora, o aspecto simblico da msica como funo estrutural, sejam esses smbolos semnticos ou sintticos. A terceira, informal e no-estrutural, despida de um ponto fixo ou permanente e concebida como uma mnada indivisvel, porm heterognea, que se articula nos espaos potenciais do retorno do diferente, em suas potencialidades rizomticas.

Msico e pesquisador, Slvio Ferraz demonstra, com muita pertinncia, as dimenses possveis da escuta contempornea e advoga em causa de uma escuta mltipla a qual rompe com a estabilidade e o seu confinamento nas formas abstratas e a qual no se limita apenas a um s plano de escuta. Ferraz apresenta as formas possveis de sensibilidade perceptiva na experincia da msica contempornea, ao propor que, para a realizao de uma escuta correspondente aos modos renovados de composio, preciso uma multiplicidade de escutas que aproxime efetivamente as poticas da experincia esttica.

A "escuta textural", para Ferraz, no se refere escuta restrita ao material ou qualidade do material, mas ao devir expressivo do material, demarcando o territrio que a escuta demarca com o seu ritornelo. Tal textura definida no pela diferena de grau, mas pela diferena de natureza: ao deslocar um elemento, ao subtrair algo da textura, ela no se torna uma variao do modelo original, mas simplesmente muda de natureza, transforma-se noutra textura. ( ) Nesse tipo de escuta das nuanas, o que conta no a qualidade sonora em si, um atributo preestabelecido, mas do devir expressivo dessa qualidade ao voltar para a escuta sobre a prpria percepo que realiza o enunciado snico. preciso antes atentar para a escuta da nuana sonora, das texturas e suas potencialidades, no se retendo na mera apresentao de um mero colorido orquestral.

Tal escuta ultra-sensvel das nuanas do espectro sonoro nutre-se de suas dobras imperceptveis, inabarcveis, dos espaos surdos e internos do som. Na heterogeneidade que compe a autopoiesis da escuta textural, instvel e mltipla, o ouvinte passeia por entre os seus espaos e as suas dobras irrepetveis. A instabilidade da textura est diretamente relacionada com a existncia de uma escuta de nuanas, das dobras das texturas no alcanveis pela abstrao. Enreda-se uma espcie de rede complexa em que qualquer ponto de qualquer territrio toca qualquer ponto de qualquer outro territrio, como num rizoma.

Na escuta textural constituem-se os plats, as estratificaes de planos de escuta contemporneos, que se deixam entrecruzar e se permeiam o tempo todo. Trata-se de uma escuta nmade, que passa incessantemente do detalhe forma geral. ( ) O ouvinte vagueia livremente entre escutas texturais, figurais e gestuais, passando por territrios que so o desdobramento infinitesimal de outros territrios, numa intensa atividade de ligar e desligar elementos ou partculas sonoras. Acorrem, nessa modalidade auditiva a ressonncia, os graus de conectividade, os pontos instveis de referncia, a trama inidentificvel de pontos de origem, as linhas de fuga e as mltiplas possibilidades de conexes. ( )

Para Ferraz, mesmo que a multiplicidade de modos composicionais do sculo XX no garanta uma multiplicidade de escutas correspondentes, possvel encontrar, atravs da compossibilidade dos modos de escuta heterogneos, infinitas linhas escapatrias at mesmo em meio aos enunciados sonoros j capturados pelo hbito.

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O ritornelo, segundo a leitura de Ferraz sobre o pensamento de Deleuze, esse movimento de territorializao realizado por matrias de expresso num determinado sistema, num movimento incessante e irreversvel de territorializao, desterritorializao e reteritorializao.Um exemplo de ritornelo, no campo da escuta o da vibrao que se transforma em devir-outro da sensao de vibrao at ao ponto em que o objeto se faa no pensamento como som. O ritornelo da vibrao demarca o territrio do som. A vibrao cria outro territrio ao moldar o ouvido interno e externo e encontra outro territrio no pensamento, na forma de conceitos, perceptos e afectos. Quanto ao ritornelo da escuta musical, msicas diferentes participam na configurao de escutas diferentes e escutas diferentes incidem na configurao de novas musicalidades. FERRAZ, Slvio. Msica e Repetio. 1996, p. 154

Por textura podemos entender ainda a sensao produzida pela configurao e pelo dinamismo dos elementos presentes num determinado fluxo sonoro. Pode ser vista como o primeiro elemento da percepo musical e, por conseguinte, o ltimo: o resultado da sobreposio de elementos numa composio. Tal qual a cor e a temperatura, a textura intensiva, no h como subtrair ou dividir uma textura sem que ela mude de natureza. FERRAZ, Slvio. Msica e Repetio. 1996, p. 166

O ouvinte no apenas ouve um complexo sonoro, mas se torna partcula do tecido sonoro: digamos que o sujeito se transfigura passo a passo com o som, para praticamente percorrer os entremeios desse som. FERRAZ, Slvio. Msica e Repetio. 1996, p. 153

O compositor Xenakis j dizia que a escuta humana no-linear, uma escuta hors-temps: a escuta, para ele, se funda na memria, na coexistncia dos fragmentos disparatados que no so contemporneos do ato de percepo. Por isso Xenakis prope abrir espao para uma composio que ponha em jogo justamente a desordem e a no-linearidade da percepo humana.Cf. FERRAZ, Slvio. Msica e Repetio. 1996, p. 69