Fabiana Pedroni PCardeais - Revista Dobra ·...

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O encantamento da dobra Lugares de passagem Fabiana Pedroni Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (IA UNESP) [email protected] Resumo: A partir do estudo do projeto artístico Engenharia Naval em Papel, do Coletivo Mono gráfico (201213) e da Trilogia da Margem, de Suzy Lee, abordamos a dobra como ele mento construtor e agenciador do espaço. A dobra funciona como uma porta, que é passagem, entrada e saída, barreira e limite, assim como aquela que organiza espaci almente um cômodo e o torna habitável. Partimos de ações cotidianas, como dobrar barquinhos de papel e manusear livros, para compreendermos de que modos a dobra pode ser aquela que imprime marcas e que cria passagens. Ao considerarmos a dobra e o dobrar como elemento e ação presentes em lugar específico, buscamos mostrar como o dobrar nos conecta com o outro e com nossa história, e como a dobra nos conecta com o corpo de um livro. PalavrasChave: dobra Coletivo Monográfico livro ilustrado Suzy Lee. Doutoranda em Artes, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Instituto de Artes, São Paulo, Brasil. ORCID: https://orcid.org/000000032272431X

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O encantamento da dobra Lugares de passagem Fabiana Pedroni * Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (IA-­ UNESP) [email protected] Resumo:

A partir do estudo do projeto artístico Engenharia Naval em Papel, do Coletivo Mono-­gráfico (2012-­13) e da Trilogia da Margem, de Suzy Lee, abordamos a dobra como ele-­mento construtor e agenciador do espaço. A dobra funciona como uma porta, que é passagem, entrada e saída, barreira e limite, assim como aquela que organiza espaci-­almente um cômodo e o torna habitável. Partimos de ações cotidianas, como dobrar barquinhos de papel e manusear livros, para compreendermos de que modos a dobra pode ser aquela que imprime marcas e que cria passagens. Ao considerarmos a dobra e o dobrar como elemento e ação presentes em lugar específico, buscamos mostrar como o dobrar nos conecta com o outro e com nossa história, e como a dobra nos conecta com o corpo de um livro. Palavras-­Chave: dobra;; Coletivo Monográfico;; livro ilustrado;; Suzy Lee.

* Doutoranda em Artes, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Instituto de Artes, São Paulo, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-­0003-­2272-­431X

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O encantamento da dobra. Lugares de passagem. Fabiana Pedroni

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1. A dobra de um ao outro: como vamos encontrá-­la?

Entre um cômodo e outro, uma porta. Você pode abri-­la, se estiver fechada, ela pode se tornar passagem, uma entrada ou saída. Se a porta se mantiver fechada, será barreira, obstáculo que te impede de avançar, mas você ainda pode tocar na margem, perceber o limite entre dentro e fora. Ao refletir sobre o meu constante uso da porta como lugar-­comum de partida para a escrita e visu-­alização dos caminhos possíveis para o texto, observo as possibilidades contex-­tuais e conceituais desta metáfora. Façamos o seguinte exercício: imagine uma porta. Por este comando nossas portas, que têm o mesmo nome, se diferenciam. Cada uma é constituída de material específico, de cor e tamanho variados. A minha porta é de madeira escura, áspera e muito, muito alta, porque é porta de infância, é porta que se impõe gigante sobre um corpo pequeno, que arranha e solta farpas em mãos delicadas. Para além da especificidade da reminiscência, é possível que nossas portas imaginadas se aproximem, pois elas atendem a uma ideia geral que se ancora em solo e tem uma estrutura móvel, a qual permite a variação entre dentro e fora. Ora estamos dentro de casa e fora da rua, ora estamos fora de casa e dentro do mundo. A porta abre, fecha, separa, junta. Mas o que permite que este recorte material possa se mover e interagir com o es-­paço? A dobra.1

São as dobradiças que seguram a porta e que possibilitam uma folha rígida percorrer e alterar o espaço a seu redor. A dobradiça é uma estrutura que se pode dobrar sobre si mesma e tornar a porta um elemento móvel. Mas, e se a porta que você imaginou fosse uma porta sanfonada? Esta, sim, é a que usa a dobra em sua máxima potência. A folha da porta recolhe-­se sobre si mesma a correr sobre um trilho, para abrir passagem;; e desdobra-­se, para ocupar todo o portal.

A imagem que construímos da porta é a que nos acompanhará durante todo o percurso deste texto. O trabalho em si não se dedica às portas, mas elas têm o poder de sintetizar e esclarecer pontos cruciais para falar de dobras, pois talvez sejam as que mais nos acompanham no dia a dia sem percebermos. E muitas das dobras que aqui serão trabalhadas se escondem na sua própria na-­turalidade cotidiana.

1 Este raciocínio segue uma estrutura de porta tradicional, presa por dobradiças, que articulam a ação de abrir e fechar. Há portas que não fazem uso de dobradiças, mas de outro sistema de abertura e fechamento, como a porta que corre em trilhos ou a porta pivotante, em que a folha da porta gira em torno de um eixo vertical, um pivô, com pinos de fixação colocados encima e embaixo do portal.

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O desafio que agora enfrentamos é de ver o que está sempre ao alcance dos olhos, mas que, por seu caráter habitual, não damos devido valor. Como dar atenção a um hábito, e por quê?

Em diferentes campos do saber, para conferir valor ao que é recorrente, o suspendemos de seu lugar comum de apresentação. Nos estudos do comporta-­mento ambiente, por exemplo, ao trabalhar com a cegueira botânica, criamos ações que nos permitem ver criticamente aquilo que já está ali. Se olhamos para um girassol, deixamos de ver apenas a planta, para ver toda ação a seu redor, desde o musgo preso ao galho tombado no chão à abelha que se aproxima. Ou, se nos aproximarmos do âmbito das artes, observaremos uma infinidade de ar-­tistas que retiram, do mundo habitual, objetos, representações e sentimentos para serem trabalhados como produções poéticas. Deslocados, uma xícara, um pneu, uma roda de bicicleta, um sem-­nome de seres, tornam-­se arte e ganham um valor transfigurado.

Para aproximarmo-­nos da dobra como elemento agenciador de diferentes lugares, forçamos um deslocamento que cria contraste com a situação originária. O hábito ainda parece o mesmo, mas a situação deslocada o constitui para fora do comum. Lemos o hábito menos como um substantivo masculino, que equivale a uma prática automática de rotina, e mais como um entendimento de verbo, o habitar – uma atenção voltada aos modos como habitamos e enfrentamos o mundo.

Veremos, aqui, o diálogo entre duas propostas de habitar a dobra: a pri-­meira recorre ao projeto “Engenharia Naval em Papel”, do Coletivo Monográfico (2012-­13). E a segunda, a um estudo dedicado à Trilogia da Margem, da autora e ilustradora sul coreana Suzy Lee, composta por uma série de três livros infan-­tis: Onda (2008), Espelho (2009) e Sombra (2010). 2

Em 2012, o Coletivo Monográfico, nome dado a um ajuntamento de artistas com composição variada, mas, naquele tempo, formado por Fabiana Pedroni, Joani Souza e Rodrigo Hipólito, receberam um prêmio da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Brasil, para desenvolver o projeto “Ínfimos-­Corri-­queiros Pormenores-­Possessivos” (ÍC-­PPs). Tal trabalho dedicava-­se a tomar posse de elementos ínfimos e corriqueiros para construir significados. Dentro deste projeto havia várias propostas artísticas em que a ideia de construção era erigida sobre o que é largamente reconhecido. Dentre as propostas, uma nos interessa em particular: a “Engenharia Naval em Papel” (ENeP), que toma a ação de fazer barquinhos de papel em um ato poético do dobrar, reduzir e empilhar. 2 No Brasil, a Trilogia da Margem foi publicada pela Cosac Naify, mas, originalmente, o primeiro livro a ser publicado foi “Espelho” (Mirror, 2003, Editora Corraini, Itália), depois “Onda” (Wave, 2008, Chronicle Books, EUA) e “Sombra” (Shadow, 2010, Chronicle Books, EUA). Neste projeto chamamos a união dos três livros de “Trilogia da Margem”, como referência ao estudo de Suzy Lee sobre seu próprio trabalho (2012).

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Num canto da sala, meio equilibrado pela quina da parede, uma pilha de bar-­quinhos de papel, quase um pequeno castelo. Na base há um de tamanho comum, como se feito com uma folha de caderno, sobre ele outro com me-­tade do tamanho e sobre este outro ainda menor. Reduzem-­se até o barqui-­nho da ponta, minúsculo (...). É algo tão vazio e tão pontual, tão largamente reconhecido, que serve bem à construção. Ali, empilhados, os barquinhos convidam à significação.3

O “desprovido de significado” nem sempre é taxativo. Significamos na me-­

dida em que construímos. Um barco é um barco;; um barco de papel, ainda é um barco?

Apanhe uma folha qualquer de papel. Dobre-­a ao meio, arranhe suas cur-­vas com a unha e empregue força para rasgar sua estrutura. Atenção para não ferir fora da marca da dobra, mas invista de modo grosseiro o suficiente para permitir expor as entranhas da folha. Sentirá entre seus dedos desníveis parti-­culares que ferramentas como estiletes e tesouras não compreenderiam. Feita a divisão, reserve uma das partes e a outra, dobre, como um bifólio. Para facilitar os próximos passos, veja o esquema a seguir (Figura 1). É possível que chegue um momento em que seu corpo guiará a dobra, como se a ação de dobrar fosse inata tanto quanto o é respirar. A ação eleva o hábito à repetição mecânica ao mesmo tempo em que libera o sujeito para a reflexão. Enquanto o corpo executa as dobras, a mente pensa sobre a dobra, sobre as trocas, sobre o fazer. Como não acreditamos mais em dualidades, o corpo também pensa e a mente corpo-­rifica.

Junto do manual, na Figura 1, vemos o Cartão-­poema, ancorado entre pá-­ginas à espera de dobras corriqueiras. Esta é uma das três ações que compõem a ENeP. Os Cartões-­poema deixados entre livros em uma biblioteca pública le-­vam consigo marcações de recorte. O sujeito que os encontrar pode rasgar, do-­brar, reduzir e empilhar barquinhos com o papel cedido.4

3 Disponível em: https://notamanuscrita.com/2012/12/20/engenharia-­naval-­em-­papel/ 4 Para conferir o texto do Cartão-­poema, além dos livros escolhidos para a ancoragem,consultar: <https://notamanuscrita.com/2012/12/20/cartao-­poema-­01-­acao-­01-­2/>. Acesso em: 03 set. 2019.

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Figura 1. Coletivo Monográfico, Manual Faça, Reduza e Empilhe Barquinhos;; Cartão-­Poema (ação 01), 2012. Montagem, Vitória, ES, Brasil. Fonte: https://notamanuscrita.com/2012/12/20/engenharia-­naval-­em-­papel/

As outras duas ações foram desenvolvidas na cidade de Santa Leopoldina,

na região serrana do Estado do Espírito Santo. Nas margens do rio Santa Maria, Porto de Cachoeiro, como era conhecida a cidade interiorana, tornou-­se ponto de encontro entre tropeiros e canoeiros. De Santa Leopoldina, o café e outras mercadorias dirigiam-­se para Vitória, e já não se sabia onde os barquinhos es-­tavam, se no rio ou se no mar. Santa Leopoldina foi “filha do sol e das águas” no romance de Graça Aranha, “Canaã” (1902). Sua relação com a literatura e a história do Estado, além da memória do povo, tornou-­a poesia deixada nas ruas em forma de barcos (ação 02, Figura 2) e a velejar pelo rio de Santa Maria (ação 03, Figura 3).

Os sentidos entre leitura e feitura são dos mais diversos. Na ação 01, lemos para dobrar, na ação 02, desdobramos para ler os poemas, e, na ação 03, faze-­mos uma leitura de mundo ao acompanhar o navegar e afundar dos barquinhos coloridos.

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Figura 2. Coletivo Monográfico, Barcos-­poema (ação 02), Santa Leopoldina, ES, Brasil. Fonte: https://notamanuscrita.com/2012/12/20/engenharia-­naval-­em-­papel/

Figura 3. Coletivo Monográfico, Barquinhos (ação 03), Santa Leopoldina, ES, Brasil. Fonte: https://notamanuscrita.com/2012/12/20/engenharia-­naval-­em-­papel/

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Como último desdobramento da proposta artística, o Coletivo Monográfico realizou uma exposição na Galeria Alice Holzmeister (Figura 4). Nesta, estavam presentes 1980 barquinhos de papel, alguns empilhados sobre a mesa, outros presos à linhas, conectados como rede a garrafas de vidro com poemas.

Figura 4. Coletivo Monográfico, Engenharia Naval em Papel, Galeria Alice Holzmeister – Museu do Colono. Santa Leopoldina, ES, Brasil, entre 14 de março a 14 de julho 2013. Fonte: https://notamanuscrita.com/2013/05/02/registros/

Mais à frente, trabalharemos alguns aspectos da dobra em relação a estas

propostas do Coletivo Monográfico, mas, por agora, encontremos a dobra nos livros de Suzy Lee.

Diferente dos trabalhos artísticos da ENeP, a dobra nos livros não é verbo, não é manipulação de dobrar e desdobrar, mas um substantivo, uma denomina-­ção. A dobra é a porção central que reúne as páginas de um livro, ao mesmo tempo em que as separa ao o abrirmos. Na Trilogia da Margem, de Suzy Lee, como veremos, a dobra constrói o livro, em sua estrutura de objeto, como tam-­bém participa da narrativa. Essa trilogia é assim nomeada por Lee devido à te-­mática dos três livros ilustrados – Onda (2008), Espelho (2009) e Sombra (2010) – girarem em torno da ação das personagens com as margens das páginas;; neste sentido, principalmente em relação às margens internas, que limitam a dobra.

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Elementos estruturais dos livros comummente ignorados, como a dobra e as margens, passam a ser vistos e pensados com atenção devido a seu deslo-­camento para dentro da narrativa, para dentro da ação do próprio livro. É a dobra que vai ser tocada, percebida e atravessada pelas personagens e que se modi-­ficará para os olhos do leitor. Deixemos as maiores especificidades do trabalho da trilogia para mais tarde, para, por ora, respondermos à pergunta que abriu este tópico: como encontramos as dobras? Retirando-­as de seu lugar comum através de uma ação poética que lhe atribui significados distintos além do origi-­nal.

2. Dobrar para desdobrar: a ação em seu lugar

Coloquemo-­nos diante da porta. Ela se encontra fechada, quase intranspo-­nível senão pela ação de um sujeito. Abra a porta, atravesse-­a. Vire-­se e olhe para trás, ela permanece aberta. O espaço, que antes seu corpo ocupava, como sujeito da ação, agora é paisagem, um dentro tornado fora através da sua tra-­vessia. O abrir de uma porta altera a estrutura no dobrar da dobradiça, assim como modifica o lugar pelo deslocamento da folha da porta e do corpo do sujeito que a atravessa. Este lugar é tanto o espaço quantificável que os corpos ocupam (porta e sujeito), quanto o espaço como locus, como lugar, um lugar da ação de travessia.

Tanto nos barquinhos da ENeP quanto nos livros da Trilogia da Margem, o lugar admite espacialização, mas a ela não se restringe. Ao impor dobras no papel, afastamos e aproximamos pontos de uma folha, trabalhamos com noções geométricas e espaciais entre os planos que passam a constituir a estrutura dos barquinhos. Como objeto, a formação espacial é importante, principalmente se observamos os 1980 barquinhos presentes na Galeria Alice Holzmeister (Figura 4). Cada um ocupa uma localização na instalação, a indicar se está no chão, suspenso na parede ou flutuando pelo meio da sala expositiva preso às linhas. Assim como na exposição “Engenharia Naval em Papel”, nos livros a página cria espacializações, distâncias e deslocamentos físicos das personagens. Mas em ambos, a organização espacial prepara o lugar para ser habitado, porque espera pela ação do sujeito.

Sem a presença do sujeito a percorrer entre os barquinhos e a dialogar sobre a história de Santa Leopoldina, sobre o que cada um compreende pela importância de se estar em uma cidade cortada por um rio que não se vê, que se ignora como comummente ignoramos a dobra de um livro, temos um amon-­toado de papel sem significados tão ricos.

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Michel de Certeau (1998), a partir da tradição fenomenológica, sobretudo de Merleau-­Ponty, aponta para uma distinção entre o espaço geométrico e o espaço antropológico, aquele da experiência, de uma relação singular com o mundo: “(...) o espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente defi-­nida por um urbanista é transformada em espaço pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema de signos” (Certeau, 1998, p. 202). Espaço ou lugar? a cidade é os dois.5

Na ação 02 da ENeP, os Barcos-­poema deixados pela cidade de Santa Leopoldina possuíam diferentes localizações espaciais: foram deixados nas ja-­nelas, nos troncos de árvores, nas grades de pontes, nas portas das casas, nos telefones públicos, nos muros, nos bancos... mas em cada uma, o Barco-­poema esperava para ser visto e lido. Para ler, era preciso desdobrar, adentrar as mar-­cas deixadas no corpo do papel, iniciar uma ação. E a leitura é aquela que abre portas de possibilidades de conexão entre o sujeito e o trabalho artístico. Qual poema encontraria? O que o poema levaria a refletir e sentir? Qual o lugar dessa imagem, do Barco-­poema? Um lugar habitado, certamente, que se vale de toda a memória e vivência do sujeito que o desperta.

Quando dezenas de pessoas se encontram entre os barquinhos na Galeria, é quando o espaço se torna plenamente habitado. Vários hábitos e histórias são contadas durante a feitura e empilhamento de barquinhos. O esforço para reduzir ao mínimo possível uma dobra é o alcance da troca discursiva. O lugar do barco não é a água, mas as mãos e as falas (Figura 5).

5 Apesar de Certeau indicar que o “espaço é um lugar praticado” (L’espace est le lieu pratique), há uma certa tensão entre as palavras que nos levaria a outros caminhos de discussão que não o proposto. Por ora, vale destacar que a noção latina de Spatium (espaço) era destinada à me-­dição de uma distância ou intervalo entre dois pontos, ou a designação de locais precisos;; já a noção de locus (lugar) teria uma maior abrangência semântica, não como uma noção abstrata, mas, relacionada a seu conteúdo concreto, como uma vila, uma igreja. Desse modo, na compre-­ensão da expressão traduzida ao português, parece-­nos fazer mais sentido uma inversão da ordem usada por Certeau, em que passaríamos a ter o lugar como um espaço praticado.

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Figura 5. Coletivo Monográfico, Engenharia Naval em Papel. Encontro entre o historiador Lelli-­son Souza, a artista Joani Caroline e os alunos do ensino médio da Escola Estadual Alice Holz-­meister. Fonte: https://notamanuscrita.com/2013/05/02/registros/

Já nos livros da Trilogia da Margem, o lugar é habitado pelas personagens e pelo sujeito que as acompanha na narrativa. Quando se habita, cria-­se rela-­ções entre todos os elementos que compõem a arquitetura do livro, desde as personagens, as cores, a localização espacial, até às margens, à dobra, desde o sujeito que o cria ao sujeito que o experiencia. Tudo constrói a ideia de livro.

E Suzy Lee evidencia que todos os elementos que compõem os livros ilus-­trados podem funcionar de modo distinto do convencional. Não se prioriza o texto sobre a imagem, e aquilo que se ignorava (a dobra, a margem) torna-­se central para sua apreensão discursiva e material.

Em muitos dos livros infantis, as narrativas se apresentam em página dupla, ou seja, quando se abre o livro, todo o espaço composto por duas páginas que se enfrentam são palco expansivo da mesma narrativa, como se compusessem de apenas uma página. Esse recurso não é tão comum em outros livros, princi-­palmente de literatura adulta ou naqueles em que o texto é espacialmente pre-­dominante em relação à imagem. Nestes, as páginas são separadas em conte-­údo pela dobra central, e não unidas. Contudo, mesmo no uso de página dupla, é muito comum que essa união seja feita através de uma dobra ignorada. Suzy Lee, ao invés de suprimir a presença da dobra, a coloca como centro da narra-­tiva. E isso causa, certamente, um misto de estranhamento e encantamento. No livro de estudo sobre a trilogia, Lee (2012, pp. 4-­5) nos adverte:

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Pouco depois da publicação do livro Onda, recebi uma mensagem do dono de uma livraria do Reino Unido sobre a ilustração contida na página anterior deste livro [Figura 6]. “Estamos um pouco confusos com as páginas duplas, parece faltar algumas partes da criança e das gaivotas. É assim mesmo? Ve-­rificamos com nosso fornecedor, com o distribuidor e com outra livraria e to-­dos os exemplares são iguais a este. Será que não entendemos o sentido ou o impressor se equivocou? ... Foi um erro de impressão?”

Suzy Lee (2012, p. 182) responde, na última frase do mesmo livro, “... isso não é um erro de impressão”. E complementamos, isso é a compreensão de que o livro não é um suporte sujeito a regras rígidas de design editorial, em que per-­sonagens não deveriam ocupar a dobra central. O livro é um corpo ativo, um lugar habitado que cria diálogo entre seus elementos e com o sujeito que o ex-­periencia.

Figura 6. Suzy Lee, Onda, 2008.

Em Onda, observamos, no início do livro, uma separação entre o espaço

da página que a menina ocupa à esquerda e o espaço ocupado pela onda à direita. A narrativa de páginas duplas é mediada pelas margens internas e pela dobra. A separação entre estes dois espaços começa a se diluir na medida em que avançam as ações entre a menina e a onda. Em vários momentos, há indí-­cios de que esta separação não é tão rígida. Após atravessar a dobra central do livro para o espaço direito do mar, há uma contaminação de azul na roupa preta (carvão) da menina e nas asas das gaivotas. Quando as gaivotas voam de volta para o espaço à esquerda da dobra, elas retornam com manchas azuis de onda. O encontro entre menina e onda permitido pelo atravessamento da dobra, trans-­forma o corpo do livro, que já não se divide em dois espaços distintos. Agora, no fim da narrativa, tudo é onda.

O lugar da dobra no livro Espelho é evidenciado também por uma separa-­ção inicial das personagens, no caso, uma menina e seu reflexo (Figura 7).

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Figura 7. Suzy Lee, Espelho, 2009. Fonte: montagem da autora.

Após o encontro, em que uma se surpreende com a presença da outra, elas

se põem a dançar pela página até sumirem pela dobra. Quando elas reapare-­cem, não há mais espelhamento nem simetria. Qual das duas meninas é o re-­flexo? Uma imagem se irrita e expulsa a outra da página. A página, que é espe-­lho, se solta e cai. Conseguimos observar com grande clareza a exploração da materialidade na página e desta como um lugar habitado. Depois da quebra, a menina volta a ficar sozinha, como no início do livro, isolada por uma página em branco. Contudo, há uma inversão de localização da menina que antes estava à direita e, no final, passa à esquerda da página dupla – o que levanta a dúvida sobre quem era o reflexo. Não sabemos o que aconteceu dentro do corpo do livro.

Assim como também não sabemos o que acontece na dobra em Sombra (Figura 8). Nesse livro, uma menina brinca no sótão e vê a sombra, que ela faz com a mão, tornar-­se um pássaro. O pássaro-­sombra voa da página-­parede para o mundo real, aquele da mesma página em que a menina está. O pássaro fugiu de um lobo, formado pelas sombras de outros objetos do sótão. Entre a caçada do lobo e a defesa do pássaro, as personagens se misturam no ato de atravessar a margem central e a dobra do livro. No fluir da narrativa de Sombra, uma voz interrompe a brincadeira com um chamado, “O jantar está pronto!”. A menina apaga a luz e, com um “click”, palavra materializada, tudo se torna preto, pelas próximas três páginas. Depois de apagada a luz, um novo “click” faz a brinca-­deira continuar, independente da presença da menina.

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Figura 8. Suzy Lee, Sombra, 2010. Fonte: montagem da autora.

Em todos esses três livros, cria-­se um intervalo na estrutura entre as duas

páginas. Não se trata de uma espacialidade em si, de uma página entre outras duas, mas um entre-­páginas que evidencia o livro narrado em seu lugar especí-­fico.

A potencialidade de integração do livro ao seu entorno, este entendido no sentido mais amplo possível de experiência com o mundo, versa sobre as muitas noções de site-­specificity. É certo que o termo site-­specific tornou-­se corriqueiro na teoria da arte como referência às práticas iniciadas na década de 1960, pois inicialmente abrigava os trabalhos dos artistas minimalistas e, posteriormente, ganhou força com as polêmicas em torno da recepção de trabalhos de arte pú-­blica, notoriamente o caso do Tilted Arc (1981), de Richard Serra. Contudo, as muitas definições de site-­specificity giram em torno da caracterização de uma dependência qualitativa contextual que não isola o termo como uma categoria, mas sim como uma espécie de procedimento mais geral, como um conceito que auxilia na apreensão de modos de agir e pensar (Kwon, 2002, p. 166). Como afirma Nick Kaye (2000, p. 2), site-­specificity pode ser entendido em termos de processo, como um “trabalho específico do lugar”. E aqui o trazemos como uma

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O encantamento da dobra. Lugares de passagem. Fabiana Pedroni

Revista Dobra, nº 4 ISSN: 2184-­206X

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tradução, uma leitura crítica que “textualiza espaços e espacializa discursos” (Barreto, 2008, pp. 172-­173).

Responder criticamente à inserção dos barquinhos e dos livros em seu lu-­gar específico, que é aquele de um entorno habitado, significa encontrar na do-­bra a ação de marcar um corpo e de permitir a passagem por sua estrutura. Se nos muitos barquinhos de papel a dobra é aquela que cria o corpo que navega ou que afunda, no livro, ela pode ser a construção de um outro mundo, uma interiorização do lado de fora a desdobrar em ações das personagens e do su-­jeito que o experiencia. A dobra é essa porta que se abre e fecha, que movimenta nosso corpo e nossa experiência para uma atenção àquilo que seria corriqueiro, mas que se torna centro de nossa vivência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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