Fabiana Turci Salman

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493 Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 ISBN: 978-85-62309-06-9 O SILÊNCIO ESCRITO Fabiana Turci 1 Resumo: O artigo a ser apresentado pretende tensionar o conceito de silêncio na linguagem, apresentando obras visuais em que a palavra está inscrita, não apenas fora de seu suporte tradicional mas, sobretudo, deslocada de sua função comunicativa. Através desse percurso, tentaremos pensar sobre a necessidade de escrever, de escrever e apagar a escrita, e de deixar os rastros, os vestígios do desastre. Tentaremos construir o cenário de uma linguagem feita de sua própria destruição. Palavras-Chave: Crise de linguagem. Artes Visuais. Escritura. Silêncio. Incomunicabilidade. Quando tudo está dito, o que resta para dizer é o desastre . Maurice Blanchot Detenho-me sobre esta ausência, que é toda a página em branco, e também toda a linguagem. Não há vestígios, aqui, de uma crise criativa, uma crise pela primeira palavra que há, sobretudo, intenção neste gesto de fixar a ausência mesma. Entre a página em branco e as palavras que estão sendo escritas, há uma diferença fundante: a página é a imagem daquilo que é só possibilidade, enquanto busco a palavra que seja a ausência da imagem, o silêncio escrito. Detenho-me sobre esta ausência. Calar, nas circunstâncias do papel, seria dizer que tudo cabe. É, portanto, contra a página em branco que se ergue este dizer, como uma fissura. Uma fissura, uma fenda separa e, aqui, talvez marque a divisão da linguagem, entre um uso comum e uma dimensão incomunicável mas também inventa a abertura mesma, um espaço: um entre-lugar. Debruço-me nele, entro. Se numa margem a fala útil, a página em branco, e, noutra, o incomunicável, o que se cala, o entre-lugar, a fissura, dissolve a contradição. Inventa uma linguagem que pode dizer sobre as escrituras que marcam, que sobrecarregam o silêncio. Este dizer se ergue, então, como uma tomada de partido em direção à escrita que concebe sua própria ausência, a ausência de que é feita. E, como se invertesse o próprio lugar, um corte que vai pensar essa escrita fora do suporte do papel. Magritte, um começo. Com sucesso, ele livrou o objeto de sua presença 2 . Mas o livrou através da escrita. Uma figura, portanto, que responde a uma ausência suficiente, enquanto a 1 Mestranda em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. 2 Isto não é um cachimbo (1926), é uma pintura de René Magritte onde se vê a figura de um cachimbo, seguido dos dizeres “Ceci n’est pas une pipe”.

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O SILÊNCIO ESCRITO

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O SILÊNCIO ESCRITO

Fabiana Turci 1

Resumo: O artigo a ser apresentado pretende tensionar o conceito de silêncio na linguagem,

apresentando obras visuais em que a palavra está inscrita, não apenas fora de seu suporte

tradicional mas, sobretudo, deslocada de sua função comunicativa. Através desse percurso,

tentaremos pensar sobre a necessidade de escrever, de escrever e apagar a escrita, e de deixar os

rastros, os vestígios do desastre. Tentaremos construir o cenário de uma linguagem feita de sua

própria destruição. Palavras-Chave: Crise de linguagem. Artes Visuais. Escritura. Silêncio. Incomunicabilidade.

Quando tudo está dito, o que resta para dizer é o desastre .

Maurice Blanchot

Detenho-me sobre esta ausência, que é toda a página em branco, e também toda a

linguagem. Não há vestígios, aqui, de uma crise criativa, uma crise pela primeira palavra – já

que há, sobretudo, intenção neste gesto de fixar a ausência mesma. Entre a página em branco

e as palavras que estão sendo escritas, há uma diferença fundante: a página é a imagem

daquilo que é só possibilidade, enquanto busco a palavra que seja a ausência da imagem, o

silêncio escrito.

Detenho-me sobre esta ausência. Calar, nas circunstâncias do papel, seria dizer que

tudo cabe. É, portanto, contra a página em branco que se ergue este dizer, como uma fissura.

Uma fissura, uma fenda separa – e, aqui, talvez marque a divisão da linguagem, entre um uso

comum e uma dimensão incomunicável – mas também inventa a abertura mesma, um espaço:

um entre- lugar. Debruço-me nele, entro. Se numa margem a fala útil, a página em branco, e,

noutra, o incomunicável, o que se cala, o entre- lugar, a fissura, dissolve a contradição. Inventa

uma linguagem que pode dizer sobre as escrituras que marcam, que sobrecarregam o silêncio.

Este dizer se ergue, então, como uma tomada de partido em direção à escrita que

concebe sua própria ausência, a ausência de que é feita. E, como se invertesse o próprio lugar,

um corte que vai pensar essa escrita fora do suporte do papel.

Magritte, um começo. Com sucesso, ele livrou o objeto de sua presença 2. Mas o livrou

através da escrita. Uma figura, portanto, que responde a uma ausência suficiente, enquanto a

1 Mestranda em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

2 Isto não é um cachimbo (1926), é uma pintura de René Magritte onde se vê a figura de um cachimbo, seguido

dos dizeres “Ceci n’est pas une pipe”.

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palavra ainda encontra-se presa à significação. Palavra, chave de leitura. A palavra migra para

dentro do quadro para questionar o estatuto da imagem, e não o da escrita – que permanece

em sua função informativa, alertando-nos sobre nosso próprio olhar, com a função de dirigir-

nos uma intenção. Não fosse a escrita, a representação do cachimbo de Magritte estaria colada

ao próprio cachimbo; nada mais do que uma imagem sem profundidade, então. É o enunciado

que trai a imagem, conferindo- lhe a espessura dessa ausência. As palavras são, no entanto,

enunciado: dizem apenas aquilo que dizem. À superfície do quadro.

Mas uma palavra que migra já não está, assim, fora de lugar? Ainda que um enunciado

seja normativo, não há certa precisão em deslocar esta função? A operação que se realiza em

Isto não é um cachimbo é uma espécie de deslize interpretativo. Com ele, abre-se espaço para

permutas. Interessa, então, pensar sobre aquilo que, antes de devolver um significado, retira-o

por completo. A palavra que migra, de suporte e de função.

Em Interiores (1880), quadro de Gustave Caillebotte, vemos, em primeiro plano e na

margem direita da tela, um homem recostado em sua poltrona, em posição de leitura,

empunhando o que parece ser um jornal. Logo atrás, quase no centro da tela, uma mulher

olha, através de uma janela, o que está lá fora. Acima de sua cabeça, um letreiro aparece,

entrecortado pela moldura da janela e parcialmente coberto pelas cortinas. A permuta, aqui, é

que precisamente aquilo que olhamos no quadro não pode ser visto. Toda a atenção da cena

está voltada para o exterior, de onde não podemos captar sequer um vestígio de sentido. A

figura cujo olhar nos ultrapassa se mostra de costas para nós: nem sua expressão podemos

apreender. Do fora, só se vê este letreiro ilegível; mínima decomposição de uma escrita,

fragmentos impossíveis de reconstruir. As letras, como são apresentadas, não chegam a

sugerir possibilidades de significâncias – pelo contrário, impedem a leitura, tal como o jornal

nas mãos do homem; sugerem apenas o limite da nossa impossibilidade. Nem dentro, nem

fora: nos encontramos exatamente no centro de um enigma. Sem poder completar o sentido,

sabemos, porém, que ele existe – somente não para nós.

Enquanto Magritte subverte a imagem, utilizando a escrita como chave de leitura,

Caillebotte parece guardar a chave, talvez em um dos bolsos do negro vestido da mulher:

permanecemos, então, devorados.

O que está anunciado, no entanto, é uma presença quase insistente da escritura que,

mais do que apontar para uma crise da representação imagética, encontra justamente na

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escrita sua solução. Mas entre o enunciado e o ilegível, poderia, ainda, haver outra chave? Em

2002, a artista plástica Elida Tessler realiza uma instalação composta por nove claviculários

de metal fixados à parede, que contêm chaves onde estão inscritas palavras retiradas de obras

literárias3. Cada claviculário leva um título, tornando-se uma espécie de gramática expositiva,

de rastro de leitura. Se palavras-chave servem para trazer o essencial de um texto, aqui elas

funcionam como o texto mesmo, só que quase em branco: retirados todos os excessos, cada

palavra-chave é um signo inteiro. Há uma manobra, em Palavras Chaves, de despir o texto de

tudo o que é supérfluo. O que sobra, então, não mais envolve relações de conteúdo, estando,

assim, como que fora da linguagem. Pode uma palavra-chave ser o objeto de seu próprio

silêncio?

As chaves contêm, em si, seu próprio segredo. O segredo promete abrir portas,

leituras; induz compreensões. Em uma grande sala, sob o nome Claviculário4, estão

penduradas cerca de três mil chaves. Ao invés do formato de seu segredo, palavras inscritas.

Sob o cunho do segredo, as palavras, retiradas de um extenso inventário de objetos que

compunham uma casa e de duas cartas endereçadas à artista, são agora palavras-chave que

não remetem a nada, os objetos mesmos substituídos. Que segredo as palavras abrem? Para

Derrida (1994), um segredo existe quando se alcança o limite entre a impossibilidade de

resposta e o seu dever, sua necessidade. Este segredo não concerne a um conteúdo secreto,

nem a uma técnica ou criação artística, não se relaciona com as dissimulações subjetivas, nem

mesmo diz respeito à subjetividade absoluta ou a uma interioridade privada, segredo que não

é místico, que não pertence às categorias da verdade. Nesse lugar, onde a fala ainda não

cessou5 e já não responde a nada, diz Derrida, acontece alguma coisa com a linguagem. Para

ele, este segredo permanece inviolável, porque ele se cala; não pode ser rompido, porque é

estranho à palavra. Em Claviculário, o segredo é a própria palavra estranha à palavra.

3 Palavras Chaves (2002), instalação de Elida Tessler. Informações disponíveis no site da autora:

http://elidatessler.com/pag_nova_obras.htm, acesso em 23 de outubro de 2011, às 21h50. 4 Claviculário (2002), instalação da Elida Tessler concebida para o Centro Universitário Mariantônia (USP -SP).

Informações disponíveis no site da autora: http://elidatessler.com/pag_nova_obras.htm, acesso em 24 de outubro

de 2011, às 18h10. 5 A este respeito, há um trabalho de Elida chamado Você me dá sua palavra?, que tem in ício em 1994 – e fim

não previsto – em que ela solicita às mais diversas pessoas que escrevam a sua palavra em um pregador de

roupas de madeira. A cada exposição, a coleção de palavras é reorganizada. Sempre montada sobre um mes mo

fio de varal – uma linha – a instalação constitui-se em uma escrita contínua e permanente. Note-se, ainda, que a

dimensão subjetiva do pedido (a sua palavra seria o que te define, ou o que te contém) anula -se completamente

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As chaves, nesta imagem, não se prestam a ser leitura – seu segredo, contido todo

dentro de si, é propriamente o que marca a impossibilidade, porque não há nada, enfim, a ser

desvendado. Se não há correspondente para um segredo, a existência da chave sinaliza que, na

linguagem, há ainda algo que se propõe a incomunicar.

A palavra só tem sentido se nos livra do objeto que ela nomeia: ela deve

nos poupar de sua presença ou do “concreto lembrete”. Na linguagem autêntica, a

palavra tem uma função, não apenas representativa, mas também destrutiva. Ela

faz desaparecer, torna o objeto ausente, anula-o. (Blanchot, 1997, p. 36)

Assim, não apenas a chave desaparece – com ela, também a linguagem, mas sobretudo

suas funções, aquilo que a circunda: chave e palavra não podem mais significar possibilidades

de leitura. Assim, Claviculário poderia representar uma dobra em que objeto e linguagem

anulam-se mutuamente, configurando-se como “a formação de uma fala inicial com a qual

serão afastadas as palavras que dizem alguma coisa” (Blanchot, 2005, p. 77).

Mas não basta que digamos isso. Se a formação dessa linguagem repele a mensagem,

a palavra útil, comunicável, o que, enfim, ela diz? O que traz para perto de si, ou o que

nomeia, que não esta negação inicial?

(...) longe de aparecer como o oposto das palavras, ele [o silêncio] é, ao

contrário, suposto por elas e como que seu parti pris, sua intenção secreta; mais

ainda, a condição da palavra, se falar é substituir uma presença por uma ausência

e, através das presenças cada vez mais frágeis, perseguir uma ausência cada vez

mais suficiente. O silêncio só tem tanta dignidade porque é o mais alto grau dessa

ausência que é toda a virtude de falar (que por sua vez é o nosso poder de dar um

sentido, de nos separar das coisas para significá-las). (Blanchot, 1997, p. 41)

Escrever o silêncio, portanto, ultrapassa o encerramento da incomunicabilidade em um

enunciado, já encerrado em si; antes, talvez seja dar a ver essa outra palavra, perseguir a sua

suficiência, sua insubordinação.

Como se esquadrinhasse essa possibilidade, duas séries de León Ferrari, Escrituras

Deformadas (1963) e Brailes (1997), vêm mostrar diferentes desdobramentos do silêncio, da

escrita feita de silêncio. Diferentemente dos Desenhos Escritos, série que inicia em 19626 e

na obra coletiva, constituindo uma espécie de escrita neutra (retornaremos a este ponto). Infor mações disponíveis

no site da autora: http://elidatessler.com/pag_nova_obras.htm, acesso em 24 de outubro de 2011, às 20h34. 6 São parte desta série os trabalhos “Música” (2/5/1962 e 6/5/1962) e “ Livro de artista” (1962), por exemplo.

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que consiste em desenhos abstratos dispostos em pautas “que imitam a escritura tradicional,

mas que não podem conter palavra alguma” (Giunta, 2006, p. 20), as Escrituras Deformadas

são trabalhos em que León atormenta as palavras, retorcendo os textos até o limite do

inteligível. Em algumas destas obras, a escrita superposta e deformada transmuta a palavra em

forma, em outras, pode-se captar alguns vestígios de uma escrita tradicional; em todas elas, no

entanto, mantém-se ainda uma referência ao texto efetivamente escrito ali. Esta manobra se

dá, por exemplo, através da própria nomeação, como é o caso de Carta a um general

(18/6/1963), em que a alusão textual se concebe no título, carregando, assim, para dentro da

obra – de uma escrita desfigurada, emaranhada e convulsa – as possibilidades de significação

desta expressividade.

Eu senti, na realidade, que queria fazer uma arqueologia do signo, porque

suas grafias remexiam na letra constituída e reconhecível para ir atrás, sempre

aquém, como querendo chegar ao ponto e ao momento em que o signo poderia ter

se constituído, esse signo que damos por feito e com o qual nos arranjamos, ganho

do sentido em toda a sua plenitude; esse aquém se distancia no instante em que se

quer apreendê-lo, e se o modo de seu ser tantático é fonte de angústia, também é o

despertar de uma paixão pictórica, perseguir a origem do signo é pintar, é passar à

matéria e nela entrar. (Jitrik apud Giunta, 2006, p. 107)

As Escrituras Deformadas seriam como a tensão exposta entre a impossibilidade de

deter o significado e a atenção à composição do signo, reconhecendo, justamente na figura da

impossibilidade, o que a torna possível. Aqui, o silêncio ganha contornos materiais,

complexos, precisos.

Brailes talvez seja o ponto em que o silêncio se torne mais tátil. Foi entre março e

abril de 1997, na galeria Arcimboldo, em Buenos Aires, durante a exposição Torme ntos-

amores, que León começa essa série, composta por reproduções de fotografias, estampas e

pinturas com inscrições de textos em Braile. Os textos, retirados da Bíblia, de Borges, de

Breton, combinados com nus de Man Ray, pinturas de Giotto, estampas de Utamaro ou

gravuras de Doré, produzem uma intrincada teia de significações, em que imagem e texto se

aproximam, por afirmações e tensões, construindo uma espécie de discurso que está quase

indisponível ao espectador. Não importa se se trata de uma foto de Hitler aos dez anos, onde

está inscrito “E criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou” (Imagem,

1998) ou se são sete versos de Uma Despedida, de Jorge Luis Borges, escritos sobre a

fotografia de uma mulher nua, de Ferdinando Scianna (Tudo o que enterrou o nosso adeus,

2003). O que é requerido do público é que ele toque as obras, realize um ato de leitura por um

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toque que, no entanto, o coloca tão somente em contato direto com a própria imagem, com

seu conteúdo como que revelado pelos contornos desta escrita ausente. O procedimento

realizado por León

(...) obriga o espectador a um paradoxo: deve-se tocar – mais

precisamente manusear – uma imagem de alta voltagem diante do eventual olhar

dos outros. Esse contato, no entanto, não dará ao visitante a informação que

procura. Tudo o que pode ver está compelido a um ato cego. (Leb lenglik apud

Giunta, 2006, p. 229)

Há uma absoluta precisão neste procedimento. Em União Livre (2004), por exemplo, o

texto de André Breton é impresso sobre uma fotografia de Tatiano Maiore. Em preto e

branco, um nu feminino se estende por toda a margem inferior da foto. Exatamente no centro,

as nádegas conduzem a dois caminhos: em primeiríssimo plano, as pernas ligeiramente

dobradas sobrepõem-se ao torso, em segundo plano, que está deitado de lado sobre a cama.

Em último plano, um espelho ainda reflete o verso da imagem, abrigando uma imensa faixa

negra que oculta todo o resto. Os versos de Breton se inscrevem sobre o contorno deste corpo;

para lê-los, somos obrigados a acariciar o improvável relevo, de carne e de palavra. E é como

se, acariciando a imagem e seu conteúdo secreto, lêssemos exatamente “Minha mulher com

seios de crisol de rubis/ Com seios de espectro da rosa sob o orvalho/ Minha mulher com

ventre de desdobra de leque dos dias/ Com ventre de garra gigante/ Minha mulher com dorso

de pássaro que foge vertical/ Com dorso de mercúrio/ Com dorso de luz”7.

Há certamente uma dimensão política (e polêmica) que circunda a obra de Ferrari.

Mas já não importa se há, como é o caso em União Livre, uma coincidência entre a nudez que

imagem e texto propõem, ou se, por outro lado, há um embate “profanatório”, sugerido pelo

texto oculto. Não importa porque aqui se realiza um ato, em que o que se efetiva é a criação

de um discurso que lança a possibilidade de a linguagem responder ao neutro:

A fala neutra não revela nem esconde. Isso não quer dizer que ela nada

signifique (...), isso quer dizer que não significa do modo como significa o visível-

invisível, mas que abre na linguagem um poder outro, estranho ao poder de

aclaração (ou de obscurecimento), de compreensão (ou de mal-entendido). Ela não

significa à maneira ótica; ela se mantém fora da referência luz-sombra que parece

7 União Livre, de André Breton. Tradução de Priscila Manhães e Carlos Eduardo Ortolan, disponível em

http://www.revistazunai.com/traducoes/andre_breton.htm, acesso em 18 de novembro de 2011, às 20h.

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ser a referência última de todo o conhecimento e comunicação (...). (Blanchot,

2010, p. 150)

Sobre um deslocamento de suporte, pelo qual iniciamos esta trajetória, vemos que não

se trata apenas de escorregar por materialidades, subverter formas tradicionais em que artes

visuais e escrituras exerciam os seus discursos; antes, trata-se de abrir veredas na linguagem

sob a qual todo o nosso entendimento se baseia. É, por fim, remeter-se ao próprio fim que

toda a linguagem encerra, remontada a seu início, tornada possível pelo que a faz impossível.

Escrever o silêncio para tatear o conhecer. Talvez haja, exatamente na distância entre

o livro-objeto Entre8, de Elida Tessler, e a videoinstalação abc9 de Ann Hamilton, uma trilha

que nos permita continuar, daqui para frente. Entre, composto de intervenções de Elida sobre

poemas de Régis Bonvicino, se trata de um desvanecimento. Aplicando pigmento branco

sobre as letras que compõem o título (“e”, “n”, “t”, “r”, “e”), ao longo de todo o livro, Entre

parece querer compor o silêncio, sobre toda taxonomia, abrindo na própria imagem da letra

um espaço para a escuta, “como se quisesse deixar fugir infinitamente a própria cavidade que

ela encerra, uma espécie de pequena cova do vazio” (Blanchot, 1997, p. 76). E abc refere-se a

um apagamento, a uma escrita feita do apagar. As letras do alfabeto, que compõem todas as

nossas possibilidades de construção, aparecem invertidas sobre a superfície de um vidro. Aos

poucos, um dedo indicador umedecido apaga a escritura, deixando uma espessa camada de

tinta, disforme, por sobre a tela. É necessário escrever, escrever e apagar, e deixar os rastros,

os vestígios do desastre. E uma linguagem feita de sua própria destruição.

Não mais folhas em branco. O silêncio escrito.

Escrever sem “escrita”, levar a literatura ao ponto de ausência em que ela

desaparece, em que não precisamos mais temer seus segredos que são

mentiras (...)

(Blanchot, 2005, p. 303)

Referências bibliográficas

BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro : Rocco, 1997.

8 Entre (2010) constitui-se de 12 exemplares numerados e assinados, tanto pela artista quanto pelo autor.

Informações disponíveis no site da autora: http://elidatessler.com/pag_nova_obras.htm, acesso em 24 de outubro

de 2011, às 21h38. 9 Um excerto deste trabalho está disponível em http://www.youtube.com/watch?v=D2gT5_ZcBe0, acesso em

19 de novembro de 2011, às 24h17. Ao final, o filme passa a ser invertido, e a camada de tinta, que apagara as

letras, agora reconstrói o alfabeto, de Z a A.

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Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São Paulo, Brasil. 9 , 10, 11 de outubro de 2012 – ISBN: 978-85-62309-06-9

______. O livro por vir . Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

______. A conversa infini ta 3: a ausência do livro, o neutro, o fragmentário. Trad. João Moura Jr. São

Paulo: Escuta, 2010.

DERRIDA, Jacques . Paixões . Trad. Lóris Z. Machado. Campinas: Papirus, 1995.

GIUNTA, Andrea (ed.). León Ferrari: Restrospectiva. Obras 1954 – 2006. São Paulo: Cosac Naify/Imprensa

Oficial, 2006.

Lista de sites consultados

http://elidatessler.com/pag_nova_obras.htm

http://www.revistazunai.com/traducoes/andre_breton.htm

http://www.youtube.com/watch?v=D2gT5_ZcBe0