Fábrica de Braço de Prata

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Juntaram-se os dois à es- quina – na mítica Rua de S.Boaventura,ao Bairro Alto,onde tinham as suas livrarias – e transforma- ram uma antiga fábrica de armas numa casa de cul- tura como não há outra em Lisboa. ¬ Irrepetível,in- franchisável,a Fábrica de Braço de Prata,ao Poço doBispo,em Lisboa,é mui- to mais do que duas livra- rias de fundos reunidas num mesmo espaço. ¬ Es- tá quase a fazer um ano. TEXTO Sarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIA Clément Darrasse U m lugar onde «nunca ninguém tem ex- periências de enfado», assegura Nuno Nabais, da livraria Eterno Retorno. «Um lugar onde as pessoas podem vir sem ter consultado o programa, porque sabem que há sempre qualquer coisa para elas», afirma José Pinho, o livreiro da Ler Devagar. Qualquer coisa que excede em muito a oferta dos cerca de qua- renta mil títulos actualmente disponíveis na livraria de Braço de Prata, e que tanto pode ser um concerto de jazz como uma ses- são de fados, um espectáculo de teatro, uma exposição de foto- grafia, uma conferência, um lançamento de um livro, um bule de chá entre amigos, um recital de poesia, um concerto de música electrónica, um filme na Sala Visconti, etc. Um lugar pós-moder- no, vocacionado para a experimentação e para a poesia, pare- cendo a casa aristocrática da fantasia burguesa de cada um, a «ca- sa do pai enquanto ele está de férias», aberta a todos e perma- nentemente em ebulição. Como é devido a uma fábrica. Porém, Braço de Prata poderá não passar de uma aparição, já que o edifício e terreno circundante se destinam a um negó- cio imobiliário privado, temporariamente embargado. Uma aparição com 12 salões, uma livraria especializada, cinco salas de exposições, três salas de concertos, uma sala-estúdio de tea- tro, uma sala de cinema, um restaurante, dois bares, 300 luga- res de estacionamento e uma tenda de circo com capacidade para dois mil lugares. Open house ESPAÇO

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Reportagem sobre a casa de cultura alternativa situada na antiga Fábrica de armas de Braço de Prata em Lisboa

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Juntaram-se os dois à es-quina – na mítica Rua de S.Boaventura,ao BairroAlto,onde tinham as suaslivrarias – e transforma-ram uma antiga fábrica dearmas numa casa de cul-tura como não háoutra emLisboa.¬ Irrepetível,in-franchisável,a Fábrica deBraço de Prata, ao PoçodoBispo,em Lisboa,é mui-to mais do que duas livra-rias de fundos reunidasnum mesmo espaço.¬Es-tá quase a fazer um ano.TEXTOSarah Adamopoulos ¬ FOTOGRAFIAClément Darrasse

Um lugar onde «nunca ninguém tem ex-periências de enfado», assegura NunoNabais, da livraria Eterno Retorno. «Umlugar onde as pessoas podem vir sem ter

consultado o programa, porque sabem que há sempre qualquercoisa para elas», afirma José Pinho, o livreiro da Ler Devagar.

Qualquer coisa que excede em muito a oferta dos cerca de qua-renta mil títulos actualmente disponíveis na livraria de Braço dePrata, e que tanto pode ser um concerto de jazz como uma ses-são de fados, um espectáculo de teatro, uma exposição de foto-grafia, uma conferência, um lançamento de um livro, um bule dechá entre amigos, um recital de poesia, um concerto de músicaelectrónica, um filme na Sala Visconti, etc. Um lugar pós-moder-no, vocacionado para a experimentação e para a poesia, pare-cendo a casa aristocrática da fantasia burguesa de cada um, a «ca-sa do pai enquanto ele está de férias», aberta a todos e perma-nentemente em ebulição. Como é devido a uma fábrica.

Porém, Braço de Prata poderá não passar de uma aparição,já que o edifício e terreno circundante se destinam a um negó-cio imobiliário privado, temporariamente embargado. Umaaparição com 12 salões, uma livraria especializada, cinco salasde exposições, três salas de concertos, uma sala-estúdio de tea-tro, uma sala de cinema, um restaurante, dois bares, 300 luga-res de estacionamento e uma tenda de circo com capacidadepara dois mil lugares.

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Península Ibérica, já que a outra grande li-vraria de teatro, que ficava em Madrid, faliu. Quando se tornou a Fábrica de Braço de Pratao espaço evidente para as vossas livrarias?N.N. – Conheço a Fábrica desde 1998, que foiquando o meu irmão João veio montar aquio escritório dele. Em 2001 o meu irmão Pe-dro criou a agora chamada Sala Prado Coe-lho, que foi restaurada para albergar umagaleria de arte, a Galeria de Braço de Prata.Eu vinha às vernissages e sabia que havia es-tes salões todos, abandonados. Mas nãoachava boa ideia trazer para aqui a minha li-vraria, porque isto me parecia longe de tudo.J.P. – Isto era um deserto, nem periferia era.Quando o Nuno me telefonou para vir vereste espaço, pensei que era um disparate, oPoço do Bispo era demasiado longe, pare-ceu-me um absurdo. Até porque quando an-dávamos à procura de um espaço eu não medispus a ir procurar fora da zona do BairroAlto. Num segundo momento, alargámos azona de procura até ao Cais do Sodré e SãoBento, mas enfim, sempre naquela área.Uma livraria que ia estar aberta à noite, ti-nha de ser (pensava eu) numa zona frequen-tada pela maioria das pessoas que saem ànoite em Lisboa. Era essa a minha experiên-cia, com a Ler Devagar no Bairro Alto. Masaqui está a prova de que não era tanto assim. N.N. – Falta dizer que entretanto criámosduas outras livrarias, antes de virmos paraBraço de Prata: a livraria na Galeria Zé dos

Bois, que inaugurámos em Março de 2007, ea livraria na Rua da Rosa, 145, que tínhamosinaugurado em Janeiro de 2007. Viemos pa-ra aqui em Junho de 2007. Decorrido um ano desde a abertura aqui emBraço de Prata, qual é o balanço que fazem?J.P. – Faço o balanço de quem estava absolu-tamente céptico no início. Depois de deci-dirmos avançar com uma série de investi-mentos, ficámos na posição de esperar paraver. No dia da inauguração, em 14 de Junhode 2007, tivemos a visita de muita, muitagente, sem que tivéssemos feito grande di-vulgação. Foi tudo muito viral, como se dizagora. Nos dias a seguir à festa de inaugura-ção, não tivemos nada que se parecesse comessa quantidade de pessoas, mas encarámosa coisa com tranquilidade. Tínhamos algu-mas dezenas de pessoas, que vinham regu-larmente, e eu estava satisfeito, na expecta-tiva de que esse público aumentasse. Até

porque havia alguns eventos que organizá-vamos que perdiam muito se as pessoas fos-sem poucas, porque ficava tudo muito frio,salas enormes com pouca gente. Lembro--me dos primeiros concertos do ManuelJoão Vieira, dos Irmãos Catita, que tinhamtrinta pessoas, quarenta pessoas, o que nãoera mau, mas que a mim me parecia um bo-cado desconfortável. Essas pessoas, que público era? O que fre-quentava as vossas anteriores livrarias?J.P. – Algumas eram, mas havia muitos curiosos, gente que tinha vindo no dia dainauguração, e que passaram a cá vir, espaça-damente, uns hoje, amanhã outros, e assimestivemos cerca de três meses. A minha ex-pectativa era que esse público fosse aumen-tando, de semana para semana. Mas nuncapensei que fosse ser assim como está agora,com esta constante quantidade impressio-nante de pessoas [frequentemente mais demil, por vezes mais de duas mil]. As minhasmelhores expectativas teriam ficado satisfei-tas com bastante menos gente. O que está aacontecer fica muito além daquela que euconsiderava ser uma boa base de funciona-mento para este espaço.N.N. – Nós falhámos redondamente nas nos-sas expectativas. Estou a pensar numa enco-menda enorme que fiz à Unicer, cujos barris,passados três meses, estavam fora de prazo.Pensava que íamos ter imenso público, e en-comendei onze mil euros de bebidas!

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A vossa ligação começou no Bairro Alto, ondeiniciaram os projectos livreiros Ler Devagar eEterno Retorno.Nuno Nabais (N.N.) – Conhecia a livraria LerDevagar desde 1999, e fiquei muito conten-te quando percebi que o espaço que haviadisponível para a minha livraria de filosofia(Eterno Retorno) ficava na mesma rua daLer Devagar. Inaugurei a Eterno Retornoem 2001, e dois meses depois o Zé Pinho foià minha livraria com um amigo comum quenos apresentou. A partir desse momento,muitas vezes, ao fim da noite, depois de fe-char a Ler Devagar, o Zé Pinho ia beber umacerveja à Eterno Retorno. E eu ia muitas ve-zes à Ler Devagar assistir a coisas que láaconteciam, debates, conferências, ou en-tão ia só comprar livros. Entretanto perderam os espaços das vossaslivrarias no Bairro Alto.José Pinho (J.P.) – Sim, a Eterno Retornoprimeiro, embora nós soubéssemos já queteríamos também de sair do Bairro Alto.N.N. – Nós só fechámos porque o Zé propôsque nos juntássemos. Embora a Eterno Re-torno no Bairro Alto fosse um projecto queme arruinava e todos os anos eu prometessea mim próprio que fecharia. A verdade é queo espaço ia sobrevivendo, e fiz daquilo umatrincheira vital, e nem que me matassem eu

não saía dali. Um dia fiquei a saber que a LerDevagar teria de abandonar o seu espaço,fuiter com o Zé, e ele perguntou-me se eu esta-va na disposição de fechar a minha livraria,juntar-me com a dele e irmos à procura deum espaço comum – cuja área fosse igual ousuperior à soma das nossas áreas, e cuja ren-da fosse semelhante à soma das nossas duasrendas. Aceitei. Fizemos a festa de encerra-mento a 31 de Julho de 2005. Em Outubro de 2005 já tinham identificado umespaço para albergar a fusão?N.N. – A ideia era irmos para o antigo BBA[Bar Bairro Alto], na Rua de São Boaventura,junto ao Conservatório. Mas não se concre-tizou, e trouxe as coisas da Eterno Retornoaqui para a Fábrica, que na altura funcionouapenas como armazém.Conheci os anteriores espaços das vossas li-vrarias, que sempre me pareceram projectoslivreiros distintos.J.P. –Diria que são complementares. O quese pretende é que haja uma boa oferta de li-vros, e aquilo que a Ler Devagar sempre fezfoi procurar ter os livros de referência paracada um de nós, esperando que fossem tam-bém os de muito mais gente. A Eterno Re-torno tinha o mesmo objectivo, construiruma livraria, que dentro daquela área tinhauma assinatura que não deixava dúvidas: erauma livraria de filosofia, de livros em segun-da mão, que também tinha novidades, masque pretendia essencialmente oferecer os

chamados fundos. Tal como a Ler Devagar:oferecer os livros que não se podia encon-trar nas livrarias comuns, que se limitam ater as novidades dos últimos dois meses e osbest-sellers.É claro que os stocks imensos queos fundos envolvem comprometem por ve-zes a rendibilidade, mas nunca abrimos mãodo objectivo inicial: oferecer o que não se en-contra nas livrarias tradicionais. Cada malu-co com a sua mania, e esta nossa maluquei-ra nasceu talvez naquela rua...N.N. – Para mim, o modelo de livraria era aLer Devagar. Era a livraria perfeita. A Eter-no Retorno era mais pequena, e o que fize-mos foi especializar o nosso território, e du-rante dois anos só vendemos livros de filoso-fia em segunda mão. Depois disso, graças aum protocolo que assinei com o Carlos Fra-gateiro, na altura director do Teatro da Trin-dade, tive durante um ano um subsídio de500 euros mensais que permitiram que eupudesse comprar livros de teatro, e fazeruma livraria de teatro, que na altura não ha-via em Lisboa. Entretanto, fui à Feira do Li-vro de Teatro de Madrid, e descobri que to-dos os editores de teatro de Madrid queriamter o seu acervo disponível em Lisboa, epouco tempo depois recebi três mil títulosde teatro em língua espanhola. Consegui de-pois o mesmo com as duas grandes editorasde teatro francesas, caso das Editions Théâ-trales, e de repente a Eterno Retorno trans-formou-se na grande livraria de teatro da

Quem são José Pinhoe Nuno Nabais

José Pinho [n. 1953] é odinamizador do projecto LerDevagar, uma rede privada delivrarias especializadas emfundos livreiros, vocacionadapara os livros de arte, filosofia,história contemporânea,literatura, pensamento divergen-te, ciências sociais, entre outrasáreas da edição tradicionalmentemenosprezadas pelas livrariascomuns. A sua vida tem cruzadoa da língua e cultura francesas eé dirigente da Associação Portu-guesa de Editores e Livreiros.Nuno Nabais [n. 1957], doutoradoem Filosofia Contemporânea.Professor, tem-se interessadosobretudo pela fenomenologia eepistemologia das ciências hu-manas e teoria do teatro. Funda-dor da Eterno Retorno, livrariaespecializada em filosofia e teatro, tem livros publicadosnas suas áreas de estudo.

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J.P. –Nós tínhamos pensado fazer coisas du-rante os santos populares, tínhamos 150 lu-gares de esplanada, fazia todo o sentido umarraial, com sardinhas assadas... Mas depoischoveu durante todos esses fins-de-semana,e a coisa gorou-se. E ficámos com cerveja esardinhas que foram para o lixo. Queríamosestar preparados para receber muitas pes-soas, mas o mau tempo não nos foi favorável.Fora esse episódio dos santos populares, es-távamos bem, confiantes, quase tranquilos,e apenas esperávamos que a afluência subis-se ligeiramente, até às 150, 200 pessoas, pa-ra ficarmos completamente satisfeitos.N.N. – Eu confesso que tinha visões de mul-tidões como as que agora por vezes temosaqui às sextas e aos sábados. J.P. – Eu pensava que isso ia acontecer, sim,mas esporadicamente. Nunca permanente-mente, como agora acontece!Ouvi o Nuno Nabais referir-se à comunidade deartistas, quase secreta, que estava antes deBraço de Prata quase impedida de se mostrar.Como é possível, atendendo ao elevado níveltécnico e artístico da generalidade dos artistasque agora podemos encontrar na Fábrica – eaté à consagração de alguns?N.N. – No plano das artes plásticas, são pes-soas que vêm mostrar os seus portfólios, eque depois programamos para as salas deexposição, com base nos nossos critérios. Al-gumas com percursos interessantes, e atécom provas dadas, porém pouco mediatiza-das. Com os músicos foi diferente, porque jáhavia um núcleo que ia tocar à Eterno Re-torno no Bairro Alto, pessoas do Hot Clube,que depois sugeriram outros nomes.

agora temos uma sala-estúdio, preparadapara receber teatro. J.P. – Talvez o teatro precise de mais silên-cio, e isto é uma porta aberta, com genteconstantemente a entrar e a sair.N.N. – Em contrapartida, há dias metemosduas mil pessoas na tenda que temos lá fora,para o concerto da Kumpania Algazarra. E temos tido concertos de quartetos da Or-questra Metropolitana de Lisboa. As pes-soas sabem que à sexta e ao sábado encon-tram muita coisa na Fábrica.J.P. – Mesmo que não tenham visto o pro-grama, as pessoas vêm, porque já percebe-ram que há sempre qualquer coisa para elas.Se não gostam disto, gostam daquilo, que es-tá a acontecer na sala ao lado. Encontro na Fábrica uma faceta aristocrática,de cultura de salão, mas ao mesmo tempo nãodeixa de ser uma casa aberta. Se por um ladohá aqui semelhanças com lugares como a Ca-sa de Fronteira – nomeadamente os eventos li-terários e musicais –, por outro, a Fábrica nãotem uma política de admissão restritiva. J.P. – O Marquês de Fronteira só tem um sa-lão, nós temos vários [risos]. Ele não faz mais

do que uma coisa num mesmo dia à mesmahora. Nós temos várias coisas, a decorrer emsimultâneo a todas as horas.N.N. – Nas casas de Fronteira ou de Cadavalas pessoas têm de chegar a uma certa ho-ra, dar-se a ver, ao passo que aqui temostrês ou quatro salas onde estão a acontecercoisas, as pessoas podem circular livre-mente e por vezes nem se cruzam. Há ami-gos que vêm aqui numa mesma noite e quenão se encontram. Aqui, ninguém tem ex-periências de enfado, se as pessoas nãogostam do que está a acontecer numa sala,não têm de ir embora, porque podem ir pa-ra outra sala, e por isso a noite nunca estácomprometida.Apesar de nas redondezas não haver mais na-da.N.N. – Há o Lux, relativamente perto, e hámuitas pessoas que saem daqui e vão ao Lux. Em suma, um lugar para onde convergem vá-rias imensas minorias interessadas em ter umavida cultural diversificada. O que representaisto no contexto cultural da cidade?J.P. – É único. Para muita gente.

J.P. –Houve outras pessoas, que não tinhama ver com esse núcleo duro, que vieram pa-ra fazer outro tipo de concertos, e agora te-mos músicos muito diferentes, de diversasáreas e com projectos distintos entre si. N.N. – No domínio do jazz acho que só não ti-vemos ainda o Mário Laginha e o BernardoSassetti. De resto já cá vieram todos os gran-des nomes: Carlos Bica, Carlos Barreto, JoãoPaulo Esteves da Silva, Filipe Melo, Júlio Re-sende... No Blues temos os Soaked Lamb [li-teralmente: ensopado de borrego], no fadotemos o Hélder Moutinho, o dinamizadordo fado, e os seus convidados. Na pop/rock jácá tivemos o Flak e a Xana [Rádio Macau] aacompanhar um filme mudo, o Tim dos Xu-tos & Pontapés…J.P. – Recebemos também a última ediçãoda VSP (Visual Street Performance), umgrande evento dedicado ao graffito, organi-zado pelos melhores nessa área, em Novem-bro, que trouxe muita, muita gente. N.N. – Ainda não tivemos sorte com a gentedo teatro, quisemos trazer um festival deteatro, acabou por não se concretizar. Mas

Liberdade «As pessoaspodem fazer uma experiênciaadolescente,estar longe do olhar do pai,do Estado,da ASAE»

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N.N. – E em muitos planos. É raro haver ba-res e concertos no meio de livros, como aqui.Mesmo que a pessoa não pegue num livro,faz a experiência da livraria. Como o biblio-tecário do Musil [Robert Musil, Um Homemsem Qualidades] que explicava como é queconseguia falar de todos os livros da biblio-teca. E fazia-o nunca cedendo à tentação deler um só livro. Tinha uma visão panorâmi-ca dos livros na biblioteca, que lhe era dadapela localização dos livros nas estantes. Aquina Fábrica, na Sala Nietzsche, a mais bemorganizada em termos temáticos, as pessoaspodem encontrar títulos nas várias áreas dafilosofia, e mesmo que não lhes peguem,aprendem coisas e sentem que estão numlugar do conhecimento, um lugar de produ-ção e de transmissão de informação. Há de-pois outra dimensão, que é a da tomada deconsciência de que isto é uma experiêncialibertária e de certa forma anárquica. Nin-guém pede recibos, por exemplo. As pessoaspodem fazer uma experiência adolescente,estar longe do olhar do pai, do Estado, daASAE. É como estar na casa do pai enquan-to ele está de férias [risos].Há quem pense na Fábrica como uma espéciede aparição. N.N. – Bruscamente, estamos fora da Histó-ria, e do Tempo, voltámos à época de antesda queda do Muro de Berlim [risos].J.P. –E os representantes do Estado, quandovêm cá, têm o mesmo comportamento detodos os outros cidadãos.N.N. – Assumem que isto é uma coisa à parte,acham natural que se fume em todo o ladomenos no restaurante, não perguntam on-

de estão os exaustores e as autorizações,percebem que isto se rege por uma outra lei.N.N. – Quando um instrumentista ou umcantor pede para as pessoas não fumarem,elas não fumam, e pronto. Apesar da singularidade e do sucesso do lu-gar, a situação é precária, já que os proprietá-rios têm a prerrogativa de vos poder pedir aqualquer momento para abandonarem o localcom um mês de antecedência.N.N. – O acordo é esse. A nossa esperança éque o proprietário, o senhor Eduardo Rodri-gues, da empresa Obriverca, seja vítima des-te rumor que invadiu a cidade, e que nosmostra que há muita gente que é sensível aoque está a acontecer aqui.Alguma entidade mostrou interesse em asso-ciar-se, a Câmara de Lisboa, por exemplo? Quereconhecimentos teve o serviço público queestão a prestar à cidade e à cultura?J.P. – A Câmara de Lisboa nada pode, istonão lhe pertence. Poderá ajudar-nos caso is-to sobreviva aos planos do proprietário, quepretende construir nos terrenos da Fábrica. N.N. – Se for reconhecido como de interessepúblico talvez venhamos a ter parceiros ins-titucionais. Mas não devemos menosprezaros interesses imobiliários que aqui estão. E o Ministério da Cultura?J.P. – Não tivemos contactos nesse sentido.Mas não negligenciaríamos um apoio...N.N. –Seria a primeira vez que um espaço ce-dido pelo Ministério da Cultura ou pela Câ-mara Municipal de Lisboa se tornava auto-suficiente. Todos os espaços subsidiados poressas entidades consomem imenso dinheiroe vivem dependentes de subsídios. A Casa

Fernando Pessoa, por exemplo, é uma casagrátis e tem aquele passivo incompreensí-vel – para além de não acontecer quase na-da lá. Nós, na Fábrica, temos mais funcioná-rios do que a Casa Pessoa. Nós pagamos aquimensalmente 14 salários.Resolveram recentemente a questão dos ca-chets dos músicos, com a entrada paga de cin-co euros por pessoa – montante que se desti-na unicamente a remunerar os artistas. Comotem reagido o público ?N.N. – Há quem se queixe, porque diz quevem só beber um café ou comprar um livro,mas há quem entre sem pagar e seja vistonos concertos, criando uma atmosfera pou-co clara, porque sabem que são penetras, e amá consciência tolda o ambiente. Achámosque era melhor que toda a gente pagasse.Quem não quer pagar vem antes das 22h00ou ao sábado ou ao domingo à tarde. E os livros? As pessoas compram?J.P. – Os livros saem, menos do que no Bair-ro Alto, mas mais do que nas livrarias que te-mos na ZDB e na Cinemateca. Há dias delançamentos ou de conferências, em quevendemos muito bem. Gostava que conse-

guíssemos vender mais, mas mesmo assim afunção livreira vai-se cumprindo. Têm aqui cerca de quarenta mil títulos. Pareceenorme, para um espaço precário.N.N. – Não investimos mais porque estamosnesta indefinição em relação a este espaço. J.P. – Se os sinais de que poderemos ficaraqui durante mais uns tempos forem inequí-vocos, teremos de reforçar a livraria.N.N. –Precisamos por exemplo de ter aqui li-vros ingleses e americanos, temos a certezade que se transformarmos esta sala onde es-tamos numa livraria de livros em inglês, se-rá um sucesso imediato. Mas para já não fazsentido fazer essas encomendas e aumentaro stock, se for para sair daqui a um mês…«

Um ano de fábricaNo dia 14 de Junho de 2008 a Fábricade Braço de Prata comemora um anode vida. Quem por lá passar entre as00h00 do dia 14 e as 00h00 do dia 15encontrará a Fábricapermanentemente aberta ao público.Nuno Nabais encomendou para essedia uma sinfonia (!) ao compositorDaniel Schvetz, cuja primeira parteserá interpretada pelo conjunto dosmúsicos que passaram pelo espaçoda Fábrica durante o seu primeiro anode existência. O grandiosoespectáculo, de que se programaramquatro récitas, terá lugar na tenda decirco montada no exterior, com capa-cidade para duas mil pessoas.