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Rio de Janeiro

2008

ISSN 1982-2685

INTERSIGNOS – Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAAV. 1, N. 1, Mar/Ago 2008, Rio de Janeiro, CCAA Editora, 2008.pg. 116

Semestral

ISSN: 1982-26851. Literatura. 2. Lingüística.

CDD 800

FACULDADE CCCAADiretor Geral • Hércules Pereira

Diretora Superintendente • Eliane FaialDiretora Administrativa • Anna Maria Ernesto Ferreira Machado

Diretora Acadêmica • Marcia Moraes

Editores:Fred Girauta • Coord. do Curso de Letras da Faculdade CCAA ([email protected])

Marcos Fernandes ([email protected])

Conselho Consultivo:Peter McLaren • UCLA – EUA

Henry Giroux • McMaster University – CanadáLiliana Cabral Bastos • PUC-Rio

Maria do Carmo Leite de Oliveira • PUC-RioSonia Bittencourt Silveira • UFJF

Conselho Editorial da Faculdade CCAA:Maria Paz

Ricardo TeixeiraMarcia Moraes

Luís Carlos Morais Jr. Sérgio Carvalho

Antônio Francisco AndradeDenise BragaMarcelo Diniz

Roberto BozzettiMariana Quadros Pinheiro

Karen SampaioMaria Teresa Tedesco

Lúcia Monteiro

InterSignosInterSignosRevista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA

Catalogação na fonte pela Biblioteca Brian McComish da Faculdade CCAA.

Editoração e Impressão: CCAA Editora

Editora Gerencial: Andréa Lucas

Capa:Bruno Gomes

Projeto Gráfico: Juliana Andrade

Revisão de Língua Portuguesa e Formatação de Texto: Rita Cyntrão

Revisão Editorial: Denise Soares de CastroLuís Antônio Guimarães

Redação de Língua Inglesa:Ricardo Pinheiro

Redação de Língua Espanhola:Francisco Sales Junior

Apoio Técnico: Wanda Teixeira

Faculdade CCAACurso de LetrasINTERSIGNOS

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAAPeriodicidade:

SemestralAssinatura:

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Tel.: (21) 2156-5000www.faculdadeccaa.edu.br

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial.Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores/autoras.

A Revista INTERSIGNOS, publicação acadêmico-científica semestral da Faculdade CCAA,tem como objetivo publicar trabalhos acadêmico-científicos inéditos na área de Letras e afins, comuma abordagem inter, multi e transdisciplinar. A proposta é oferecer à comunidade acadêmica umespaço para a troca de conhecimentos, reflexões, experiências e informações.

INTERSIGNOS procura destacar os diversos temas que fazem parte do contexto da LínguaPortuguesa e das Línguas Estrangeiras e respectivas literaturas, dos estudos multiculturais, doscursos de licenciaturas, e a inserção das novas tecnologias no cenário lingüístico-educacional,trazendo reflexões que permitam oxigenar as discussões na área.

A Revista é uma publicação científica do Curso de Letras da Faculdade CCAA e publicadapela CCAA Editora.

Editorial

Canção e Poesia, Música e Sabedoria:Entrevista com Paulinho da ViolaRoberto Bozzetti • Faculdade CCAA

Um Breve Discurso acerca da Históriada Interpretação da Bhagavad GitaRubens Turci • NETCCON.ECO.UFRJ

O Mago Artificial Rubem FonsecaLuís Carlos de Morais Junior • Faculdade CCAA

Terminal: Cosmogonia e Evanescência em Ronald PolitoMarcelo Diniz • Faculdade CCAA

O Espaço Autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas FilhoMariana Quadros Pinheiro • Faculdade CCAA

“País Poema Homem”: Notas sobre País Possível, de Ruy BeloAntônio Andrade • UFF, CPII, Faculdade CCAA

Nasalização em Português: Dois Pontos de VistaGabriela de Campos Barbosa • Faculdade CCAA

As Possibilidades de uma Avaliação Dialógica no Fórum do AVASusan Kratochwill • CEDERJ/UERJ, UCB, Faculdade CCAA

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EDITORIAL

Este é o número de lançamento da Revista InterSignos, do Curso de Letras daFaculdade CCAA. São inúmeras as razões que justificam o lançamento de uma revistaacadêmica com esse nome. A principal, talvez, seja a consciência de estarmos nummundo cada vez mais submetido à velocidade vertiginosa das informações, pelointercâmbio incessante de linguagens que se superpõem e nos atravessam, fundandointermitentemente novas cosmogonias, realidades, identidades sociais. Arte e artifício,acaso e sentido, jogo de dados, signos que se entrecruzam e se recriam. Daí o carátermulti, inter e transdisciplinar dessa revista acadêmica e sua abertura às várias áreas dosaber ligadas à linguagem, ao comportamento e às práticas sociais desse “homem” maisque humano, sígnico.

Hoje, já não se pode conceber o homem como aquele ente dotado de um sujeito,em si e para si, indivisível e, para além de sua racionalidade, natural, fruto danatureza ou da criação divina. Tampouco se pode falar de um homem político isoladopelas fronteiras geográficas, lingüísticas ou étnicas. Também não se pode falar de umHomo Sapiens ou Homo faber desconectado, sem os ecos do ecossistema.

A sociedade contemporânea molda um novo homem, que se constitui naforma de se comunicar e se relacionar com o outro. Essa nova realidade, múltipla,configura-se como um desafio para pesquisadores e aqueles preocupados com aconstituição de uma sociedade mais justa, igualitária e voltada para a preservação emelhoria da qualidade de vida.

Uma publicação que tenha como meta a discussão e a difusão de estudos acercadesse personagem antigo e contemporâneo, ao mesmo tempo, e que abrigue várioscampos das ciências humanas, justifica-se nesse cenário de mundialização einformatização. Sendo esse cenário repleto de signos, justifica-se batizar essa revistade InterSignos.

O presente volume abre com Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista comPaulinho da Viola. Nessa entrevista, Paulo César Batista de Faria, o notável Paulinhoda Viola, fala sobre uma variedade de temas que vão desde suas práticas deaprendizagem, vida pessoal e profissional, passando por comentários acerca dePixinguinha, Luiz Gonzaga, Ary Barroso e João Cabral de Melo Neto, desvelando umpouco da história da MPB e do mercado musical, indo até arte e criação, teoriamusical, jazz, chorinho e, claro, samba.

Em direção à filosofia e à literatura, segue o trabalho de Rubens Turci acerca dasdificuldades que os pesquisadores ocidentais têm para interpretar a Bhagavad Gita.Em seguida, o trabalho intitulado O mago artificial Rubem Fonseca, de Luís Carlosde Morais Junior, que aborda questões como tempo, artificialismo, simulacro ecinema no processo de construção literária de Rubem Fonseca, questões essas cruciaispara os processos sígnicos da contemporaneidade.

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Editorial

A seguir, três trabalhos sobre poesia. Em primeiro lugar, o de Marcelo Diniz,Terminal: cosmogonia e evanescência em Ronald Polito, sobre a escrita poéticacomo uma possibilidade de desconstrução e construção da subjetividade, ou seja,evanescência e cosmogonia da subjetividade e suas relações com o corpo e o mundo.O segundo trabalho sobre poesia é o de Mariana Quadros Pinheiro, intitulado Oespaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho, em que a autora defendeum novo conceito do gênero autobiográfico, sendo esse o resultado deprocedimentos poéticos que efetuam a distensão/tensão entre os limites do corpo eo infinito da escrita poética, independentemente da indicação da primeira pessoa daenunciação, o “eu”. Fecha essa série sobre poesia o trabalho de Antônio Andrade,cujo título é País poema homem: notas sobre País possível, de Ruy Belo. Nessetrabalho, o autor aborda a relação entre poesia, paisagem e identidade nacional.

Por fim, estão trabalhos ligados aos estudos de linguagem e educação. O primeirodeles, Nasalização em português: dois pontos de vista, de Gabriela de Campos Barbosa,mais propriamente lingüístico, trata do processo fonológico de nasalização conformeduas vertentes teóricas: a fonologia gerativista clássica e a fonologia auto-segmental.O segundo se insere na área de estudos sobre educação, particularmente a educaçãoon-line, e busca mostrar a possibilidade de implementação de avaliação dialógica apartir de fóruns de discussão do ambiente virtual de aprendizagem (AVA), numaperspectiva teórica interacionista na linha de Bakhtin e Vygotsky, em interface comas teorias pedagógicas de Luckesi e Hoffmann.

Com tal leque e amplitude de trabalhos e temas tratados, a Revista InterSignosespera oferecer à comunidade acadêmica a sua contribuição para o enriquecimento,a difusão e o conseqüente avanço do saber teórico e aplicado nas chamadas ciênciashumanas.

Em nome de todo o corpo editorial, agradecemos, com especial destaque, a Paulinhoda Viola pela entrevista concedida. Também agradecemos a Peter McLaren, HenryGiroux, Liliana Cabral Bastos, Maria do Carmo Leite de Oliveira e Sonia BittencourtSilveira pela participação em nosso Conselho Consultivo. É importante lembrar eagradecer, ainda, a valiosa iniciativa e apoio da Direção da Faculdade CCAA, dosCoordenadores e Professores do curso de Letras e de toda a equipe responsável pelaelaboração editorial. Enfim, agradecemos a todos que, direta ou indiretamente,contribuíram para a realização desta InterSignos.

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CANÇÃO E POESIA, MÚSICAE SABEDORIA: ENTREVISTACOM PAULINHO DA VIOLA

Roberto BozzettiFaculdade CCAA

Universidade Estácio de SáDoutor em Literatura Comparada pela UFF

contato: [email protected]

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Em janeiro de 2006, defendi na UFF a tese de doutoramento em LiteraturaComparada, “Paulinho da Viola e as interfaces do moderno no Brasil”. Tiveoportunidade de entrevistar Paulinho, que generosamente me recebeu em sua casaem duas ocasiões, agradabilíssimos encontros dos quais resultaram quatro horas degravação, das quais publico aqui pequena parte.

Cultuado na mídia e nos meios intelectuais e musicais por sua elegância e nobreza– atributos sempre presentes quando se trata de descrever sua persona pública –, ocontato direto com Paulinho só faz reforçar tais impressões, que significam, ainda,recolhimento e fineza no falar e atenção dispensada a tudo o que ele percebe comosendo de interesse do estudioso, que dele se aproximou com respeito reverente. Oque não impediu, muito pelo contrário, momentos de bom humor e um à vontadeque incluiu cafés, canjicas, queijo-de-minas e marmelada. Paulinho da Viola é umapessoa que se revela encantadora a cada passo, e esse adjetivo de maneira algumapode ser empregado de forma corriqueira e/ou displicente.

Roberto Bozzetti

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É indispensável dizer, ainda, que a impressão de nobreza que dele emana tem,sobretudo, fundamento musical, uma vez que Paulinho traz em si, de sua formaçãofamiliar, o convívio desde cedo experimentado com o que de melhor a história dochoro legou ao Brasil: seu pai, César Faria, violonista que por si só é toda uma escola,integrou durante anos o grupo de Jacob do Bandolim, possivelmente o maior solistaque este país já conheceu. Ainda menino, aos 15 anos, conta Paulinho com orgulho,Jacob confiou-lhe a afinação de seu instrumento, dando crédito, portanto, aseu apuro (Jacob sempre foi conhecido por seu exacerbado nível de exigência).Familiarizou-se, assim, com a excelência musical, ao ver sua casa freqüentada poressa linhagem, que incluía, ainda, ninguém menos do que Pixinguinha. De suaformação no samba carioca, iniciada pra valer já na pós-adolescência, Paulinho contacom igual orgulho que o primeiro cachê que recebeu foi “apenas” de Cartola, depoisde passar um tempo acompanhando-o ao violão. São dois momentos simbólicosa que Paulinho presta enorme reverência.

Resta dizer, ainda, que Paulinho da Viola integra a brilhante geração de criadoresde canções que se firmou nos anos 60, dando forma definitiva ao que constituio cânone da MPB: seus companheiros geracionais são, nessa área, entre outros,Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Milton Nascimento.

Em tempo: a entrevista me foi concedida nos dias 8 de abril e 9 de maio de 2005.

Roberto Bozzetti

Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola

A ENTREVISTA

1 Roberto Bozzetti – Paulinho, há um ponto em que você já tocou várias vezes, e eununca vi isso desdobrado, que eu gostaria de lhe perguntar: mais de uma vez você disseque Pixinguinha e Luiz Gonzaga são os dois nomes basilares da música brasileira. Com asua formação de sambista e chorão, isso vindo de você, o nome de Pixinguinha não causanenhuma estranheza, mas Luiz Gonzaga sim. Você poderia falar um pouco disso?

PAULINHO – Se há uma coisa de que eu não esqueço nunca é que sempre quando ouço asmúsicas dessa fase, especialmente “Qui nem Jiló”... isso foi um sucesso nacional. As músicasde Luiz Gonzaga, por todo esse período, anos 40, 50, final dos anos 40... toda vez queeu ouço “Qui nem Jiló”... eu tenho tanta paixão por essa música que me vejo com aminha roupa daquela época, do primário. Foi uma coisa que marcou tanto, eu coma minha pastinha indo pra Escola Joaquim Nabuco, na Rua Sorocaba, aquelas divisas assimcom a bolinha embaixo. Eu tinha meus cinco anos. Pra você ver como foi forte essa coisa pramim, entendeu? Eu costumo dizer que, pra mim, as músicas do século, com todo o respeitoque o Ary Barroso merece como compositor, isso aí é indiscutível, mas eu não acho que“Aquarela do Brasil” seja a música do século não. Acho mesmo que o Ary tem umas 200músicas dez vezes melhores. Eu, quando ouço “Aquarela do Brasil”, parece um sambaexaltação, daquelas coisas assim... de fora. E ele fez cada samba mais bonito que o outro. Eeu acho que as duas músicas mais bonitas não são nem samba: são um choro, “Carinhoso”,e um baião, que é o “Asa Branca”. E essa foi, assim, um estouro nacional, e é uma coisacomovente, uma coisa muito forte. Principalmente “Asa Branca”. E “Assum Preto”. Mas“Qui nem Jiló”, aquilo foi um mega-sucesso, a toda hora tocava...

2 RB – E tem uma melodia absolutamente linda...

PAULINHO – [cantarola a melodia] Olha, você não imagina... e isso era, é a alma, aqui pranós, cariocas, do nordestino que veio aqui pra nós... quem afirmou a permanência dessaalma neles? Isso nunca foi superado, ninguém superou o Gonzaga. E olha que tinha gentemuito boa, o próprio Jackson, Carmélia Alves, depois Dominguinhos... uma porção de gentemuito boa.

3 RB – Na sua entrevista de 1989 à revista Bric-a-Brac, você diz que, mesmo depois de terse apaixonado pelo jazz, de ter ouvido bastante rock, você sempre teve uma coisa de dizerassim “desde menino que eu ouço que isso aí é coisa do pessoal do samba”, e que vocêsempre formulou assim “o samba versus alguma coisa”...

PAULINHO – É: “O samba versus alguma coisa”.

4 RB – E disse também, na mesma ocasião, que o samba sempre teve que aparar arestaspra se apresentar e tal. E eu acho, e aqui eu não tenho como deixar de falar da minhaadmiração por você, é que no seu trabalho isso nunca surge nem com a vestimenta da

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Roberto Bozzetti

xenofobia nem com a do discurso ressentido, da coisa rancorosa, que muitas vezes surgeno discurso do pessoal do samba. E é muito difícil isso de você ser tão identificado como samba e ao mesmo tempo esse discurso nunca aparecer! E isso me faz pensar em umacoisa que o Caetano Veloso disse. Ele disse várias vezes, daquele jeito dele: “Existempoucas pessoas capazes de compreender a integridade da obra do Paulinho como eu”. Ea gente pesquisando as coisas da época em que vocês surgiram, anos 60, eu vejo muitasafinidades entre vocês dois. Estou errado?

PAULINHO – Na verdade, eu não convivi tanto com o Caetano Veloso. Quando eleschegaram, eu convivi mais com o Capinam. Capinam, ali no Teatro Jovem, em Botafogo, naépoca do Rosa de Ouro... Eu estava mais próximo do Capinam, naquelas reuniões que agente participava lá, às vezes eu estava na mesa, às vezes na platéia. A gente ia pra lá proteatro na sexta-feira depois da peça, meia-noite, ia lá pra falar sobre música popular, osrumos da música popular, era na verdade um pretexto pra gente ir ali e discutir política, avida de uma forma geral, o que se estava fazendo naquele momento.

5 RB – Olha só, tem um texto do Sérgio Cabral, pai, no Pasquim, ali por volta do número 40,em que ele comenta, entre outras coisas, a onda da chegada daquele rock dos finsdos anos 60 no Brasil, com todo o potencial contestador, ao qual vinham se somar asagitações do Tropicalismo, uma coisa que era vista então – e de certa maneira era mesmo– como contestação a certa acomodação, a certa tradição de mesmice, de banalizaçãona música brasileira que se ouvia em discos, rádios e TV. E o Cabral dizia que a músicabrasileira não precisava recorrer ao rock (na época tinha também a onda da soul musicchegando) para essa transgressão à mesmice, pois os elementos pra isso já estavam nelamesma. E aí citava a hipótese de o Preto Rico da Mangueira se apresentar num festivaldaqueles em rede nacional e dizia mais ou menos o seguinte: “O choque vai ser tão grande ou maior do que o que se causa com o rock, com o soul, porque os milhões deespectadores pasteurizados não vão se reconhecer naquele artista anônimo, marginal e,ao mesmo tempo, tão representativo do povo”. Pois é, e a sua maneira de ver o samba,de se colocar essas coisas, não é muito afim a essa idéia do Sérgio Cabral?

PAULINHO – É, é um pouco assim. É... primeiro isso que você falou. Naturalmente, todo ouniverso do samba, todas as histórias, tudo o que o povo do samba já passou – e quandoa gente fala o povo do samba, fala o povo negro, embora não exclua o branco dosamba, claro, mas a grande maioria é o povo negro – o que os antigos contavamdo que eles tinham que enfrentar, eu mesmo peguei, quando era garoto, se tivesse umabatucada, em Botafogo mesmo... de repressão ao povo negro, ao povo do samba. Asassociações que se fazem, sempre vendo com reserva a religião negra, os “macumbeiros” e ossambistas, os batuqueiros... sempre houve isso, a gente sabe disso. E, de vez em quando, eu

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Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola

ouço o pessoal dizer: “Ah, esse negócio já acabou, isso é do passado”, e não é. E eu ouçotanto isso. Isso faz parte da vida da gente. E como é que essa coisa tão forte, as manifestaçõesculturais ligadas ao samba, como é que essa coisa não desaparece? Por que não morre?Não morre porque o nosso povo não deixa, o povo brasileiro não deixa, é ele que fez essaconquista. No começo dos anos 80, quando começou essa coisa de rock de garagem, LegiãoUrbana, Cazuza, eu me lembro, logo no comecinho, a gente conversava com o pessoal deprodução das gravadoras, ninguém sabia o que ia acontecer, e aquela música, a música danossa geração, que era de contestação, ainda dentro da ditadura, da repressão, com a forçacontrária da censura, se bem que já mais branda, começo daquele negócio de distensão lentae gradual... olha só: nesse momento, não sei se vocês perceberam isso, mas houve certoesvaziamento da música que se vinha fazendo. E teve um negócio que deu um brancoassim... eu me lembro que eu ligava as FMs por um tempo, e não se ouvia nada de MPB, desamba, de nada... só se ouvia... sei lá o tipo de música que se ouvia. O que era diferente dealguns anos antes, quando se ouvia o Chico, o Gil, o Caetano. Mesmo o Gil e o Caetano,na virada dos anos 70 pros 80, com “Refavela”, com “quanto mais purpurina melhor”, jáera outra coisa que não era mais a Tropicália. Eu me lembro que a gente ouvia isso, mas nãoera aquela coisa de antes. E me lembro que tinha aquela coisa, assim, de músicas sedestacando pela novela. Era muito importante ter uma música na novela... estou falandoque nesse momento eu sentia, eu conversava com as pessoas, com os homens de gravadora,produtores, pessoal de direção de gravadoras, e eles queriam correr atrás, e começaram aapostar nesse pessoal jovem que começou a aparecer, o chamado rock de garagem, quandocomeçou a se fazer certo investimento...

6 RB – É, produção barata...

PAULINHO – E aí uma coisa estranha que aconteceu, que provocou – eu não lembro se eujá discuti isso com alguém – espanto, foi que o Agepê apareceu, não sei se em 83, 84, ele nãotinha nem contrato com gravadora, com aquele samba “faz de conta que eu sou o primeiro”.Isso estourou. E, ao estourar, provocou um problema sério... foi inesperado. Ainda não setinha o domínio, como se tem hoje, do controle da mídia, hoje é tudo muito mais controlado.Naquela época, ainda podia acontecer isso, hoje... um pouco antes, tinha o programa doAdelzon Alves, de madrugada, na Rádio Globo, aonde você ia com o disco lá, como foi feitocom o Foi um Rio que Passou em minha Vida, que foi ele que começou a tocar. Ele começoua tocar a música e aí... era um negócio que ninguém controlava. Esse processo, hoje, éimpossível, não existe essa possibilidade, não tem mais hoje os caras que têm o seu programae botam o disco porque eles gostam. Isso não existe mais. Mas, nesse período, ainda era possível acontecer isso. E também o outro fenômeno, que eu já falei nisso várias vezes, mas ainda não vi ninguém fazer uma análise, que é o seguinte: o Zeca Pagodinho, o

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Roberto Bozzetti

Almir Guineto, a Jovelina Pérola Negra já enchendo os lugares, já lotando os ginásios, e amídia tocando outra coisa lá no rádio, na novela. E a mídia foi obrigada a reconhecer isso.O Zeca Pagodinho tem essa fase dele agora, mas as pessoas estão esquecendo aquela outra,faz vinte anos, que foi um sucesso estrondoso no Rio de Janeiro, e não se ouviam eles em rádionenhum, em televisão nenhuma, quando eles começaram... e a gente até via na beira dapraia, eles vinham, a gente via, o pessoal do pagode... e isso começou num crescendo tal quea mídia não conseguiu esconder mais e foi obrigada, os caras foram obrigados a colocarcomo tema de novela...

7 RB – Mas, nessa época, esse pessoal já tinha seus discos, né? Não tinha era os canais dedivulgação...

PAULINHO – Já tinha os seus discos. Mas, antes dos discos, eles já estavam fazendo sucesso.No Cacique de Ramos, onde isso apareceu, e daí começaram a tocar em ginásios e tal.E a mídia foi obrigada a reconhecer. Quando veio a Jovelina com a “Feirinha da Pavuna”,o Almir Guineto com o sucesso, eles já tinham deixado o rastro há muito... E essa coisa nãodeixa de ser de novo o fenômeno do samba. O povo do samba incomodando, porque não foilogo uma coisa de reconhecimento desses canais...

8 RB – O que acontece um pouco com o rap hoje.

PAULINHO – Também. Exatamente, é a mesma coisa, é isso aí. O que provoca certo temor,ainda mais agora, nessa situação que a gente tá vivendo...

9 RB – Paulinho, tem uma questão especificamente musical sobre o samba, que eu voupedir licença a você para ler um trecho bastante longo do maestro Carlos Almada, que éum texto de um estudo sobre harmonia, que vai sair ainda talvez este ano pela Unicamp,mas é que acho que ele aborda questões de uma forma que eu não seria competentepara tanto (sou praticamente um analfabeto em teoria musical), e eu gostaria que vocêtambém desse o seu depoimento sobre alguns aspectos do que está aqui, que é deum interesse enorme para todos os que, de alguma forma, se aproximam de questõesmusicais, musicológicas. Pode ser?

PAULINHO – Vamos lá.

10 RB – Bom, então lá vai.

“Uma das maiores dificuldades para um estudante de Harmonia Funcional certamentevem a ser como passar da teoria à prática. Este problema intensifica-se ainda mais quandoseu métier não é o jazz, do qual é deduzida – ao final das contas (embora este fato nãoseja abertamente admitido) – toda a teoria apresentada na segunda parte deste livro.E é exatamente o fato de a Harmonia Funcional não se assumir inteiramente como

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Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola

um estudo da harmonia do jazz que causa vários equívocos e problemas. Afinal, asistematização da teoria da Harmonia Funcional nasceu da adaptação dos fundamentosda Harmonia Tradicional à prática jazzística. Sendo o jazz, em comparação aos demaisestilos existentes, harmonicamente mais ‘sofisticado’ (entendendo-se o termo nãoesteticamente, como algo ‘melhor’, mas em sua acepção técnica: sua sofisticaçãoharmônica deve-se ao maior leque de opções de categorias de acordes, quase semprebem densos, com sextas, sétimas, nonas, décimas primeiras e/ou décimas terceiras). Aharmonia da bossa nova, influenciada fortemente pela jazzística, também possui taiscaracterísticas (o que corresponde à principal diferença entre ela e o estilo que a gerou, osamba). Tanto em relação ao jazz quanto à bossa, poderíamos considerar que o repertóriode suas possibilidades de harmonizações conteria – ao menos em tese – todas aquelasreferentes aos demais estilos (excetuando-se, é claro, aqueles caracteristicamente modais,como o rock, por exemplo). Alguns músicos, ao concluírem o curso, conseguem, graças,principalmente, aos seus próprios méritos, adaptar os conhecimentos adquiridos aosestilos musicais com os quais irão trabalhar. Mas, mesmo assim, por mais talentososque sejam tais músicos, por certo ainda irão se deparar com desvios de rota,incompatibilidades, incongruências – enfim, com obstáculos de toda ordem na busca damais adequada linguagem harmônica para um choro ou um tango, por exemplo. No casodo músico mediano, a situação pode tornar-se ainda pior, já que o seu menos apuradosenso formal (em relação ao profissional melhor dotado) pode não alertá-lo sobre ainadequação de certos procedimentos de harmonização: ou seja, ele simplesmente nãopercebe que os acordes cuidadosamente escolhidos para uma peça contrariam suas(da peça) características estilísticas. Mas, certamente mais graves são os casos em que apessoa procura intencionalmente ‘aperfeiçoar’ harmonizações julgadas – equivocadamente,que fique bem claro – como ‘simples demais’. Não são raros os que acham quetríades devam ser sempre rearmonizadas por tétrades (com tensões, de preferência),acrescentando-se uma boa quantidade de empréstimos, acordes SubV e outras alteraçõesa gosto. O maior problema que resulta de tal filosofia é a pasteurização, a descaracterizaçãoestilística no que se refere ao quesito harmonia.”

A questão aqui é que, segundo o Almada, a hharmonia éé, mmais ddo qque oo rritmo, oo ffatorcaracterizante ddo ssamba ccomo ggênero. Penso que, nesse sentido, a idéia de preservação– idéia a que você não é muito simpático – seria válida, nesse único sentido, que seria ode se institucionalizar uma escola de samba e de choro, não no sentido de um estudoformal para enrijecer essas características, não para enrijecê-las, mas para se trabalhar

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Roberto Bozzetti

uma linha de tradição. Você teve isso né, o Jacob olhando no seu olho, crescer ouvindoseu César tocar, já foi toda uma escola. Você acha que, nesse sentido, numa sistematizaçãodesse tipo de estudos, as bases seriam essas?

PAULINHO – Pelo que eu entendi, tem umas coisas que eu acho que se aproximam do que agente talvez esteja assistindo com esse tipo de discussão se dando no nível acadêmico agora.Antes não existia. Vocês imaginam que em toda arte, a arte musical incluída... vocêsimaginam que há um processo em que as pessoas, os artistas, os músicos vão descobrindonovas possibilidades, novas combinações, outra forma de escrita, certas leis numdeterminado nível médio para aquela linguagem que está se formando, para que as pessoaspossam apreender de certa maneira aquilo, para poder reproduzir, e também aprenderpara poder criar. Tem uma historinha, que é longa, complexa, e esse processo, nãonecessariamente, tem uma dinâmica, e em determinados momentos ele precisa “serdesconstruído”. Aparecem uns caras que o viram de cabeça pra baixo. Por exemplo, osistema tonal: aparece um cara que diz: “Não, pode haver um sistema que vai colocar esseem xeque”... então, a história é isso, né? Tem sempre alguém que quer reinventar a música,trazer uma idéia nova, inventar a pintura, o que, se é uma aspiração legítima sob umaspecto, não necessariamente acontece. Às vezes, uma idéia nova, mesmo sendo nova, nemsempre vai provocar uma revolução na linguagem. Na música, por exemplo, quando oAlmada aí fala na harmonia tradicional, existe uma harmonia, que foi construída a partirde determinados elementos identificáveis na música se formando assim... talvez desde obarroco... e depois disso. Aí existem umas regras que você não pode romper. Eu vejo assim:em alguns momentos, na própria música, existem outras harmonias, outras escolasharmônicas que também têm suas regras, e existe até o total esfacelamento dessas regras.Você tem, na música contemporânea, certas peças em que certos sons, certas combinaçõesrebentam com esse código... e, em determinado momento, criam um código, e às vezes nãoé nem isso, e também não é uma linguagem, porque isso pode ficar tão... não é esfacelado,mas o trabalho de destruir, de esfacelar o que vem já de décadas e que você está vendo muitagente trabalhando naquilo, e você coloca aquilo no chão... Pra reerguer novamente outroprédio, não é? Janelas e portas pra se entrar... Às vezes não tem porta, pô. A questão é essa.Eu acho, e principalmente na música contemporânea essa é uma das coisas mais discutidas,é que a abordagem da linguagem na música contemporânea é totalmente diferente damúsica que se conhece, tradicional, de todas as correntes que vêm até Wagner, Stravinsky,Escola de Viena, Schönberg... Até aí as pessoas estavam trabalhando com uma coisa que devez em quando se fechava em determinadas regras, a questão de estilo ficava mais ou menosdefinida. Mas chega a um ponto em que isso também cansa. Eu conheci um rapaz, uma vez,que era estudioso de música na Itália e a especialidade dele era essa música... e ele seapaixonou por música popular brasileira, e se apaixonou ouvindo bossa nova, Jobim, e ficoutão apaixonado, que ele foi pra embaixada brasileira na Itália e disse: “Quero aprender

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Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola

português, vocês me ensinem isso aí que eu preciso”. Ele veio algumas vezes aqui e mecontava que todo esse trabalho, que é uma coisa riquíssima que a gente não conhece, excetoalguns caras que trabalham com isso, mas que isso já está num processo em que aquantidade de informações já é muito grande, e nem sempre a grande maioria das pessoaspode estar acompanhando isso. Hoje, por exemplo, você tem computador, tem internet, temuma quantidade absurda de informações e ninguém tem condições de apreender aquilo e delidar com isso. Nem que você ficasse 24 horas num computador. Essa é uma questão bemnova, porque até determinado momento a gente tinha a ilusão de que conseguiria ler todosos livros que a gente quer ler, estudar todas as questões relacionadas ao que a gente faz, enão é possível isso. Eu vejo muita confusão por causa disso porque, dentro da música, nãosei nas outras artes, mas na música eu vi muita gente muito preconceituosa, principalmentequando surgia alguma coisa nova pela frente. Mas aí há, também, outra questão: uma coisanão necessariamente nova é uma coisa legal. Quando se começa a perder certas referências,você começa a perder a capacidade de apreensão, vai pelo sentido só... pelo que você sente,é como uma abstração. Existem toneladas de propostas relacionadas à linguagem abstrata,mas... você olha esse quadro aqui, faz uma série de considerações técnicas, é diferente deolhar isso aqui [aponta outro quadro também abstrato]... um especialista, um apaixonadopor essas coisas também faz uma série de considerações técnicas, vai ver coisas que eu possover ou não ver. Quando você tem uma obra, você gosta ou não gosta, mas não é só isso. Portrás daquilo tem uma quantidade absurda de elementos que um cara que acompanha vê,relacionando todas as questões ligadas à pintura. Tem até o pessoal que diz que a pinturajá era, tem uns caras que dizem assim, hoje: “Esse cara tá louco, como a pintura já era?Acabei de vir da Alemanha, está tudo lá, está todo mundo pintando, só aqui no Brasil é queestá se falando isso”, e tem gente que realmente diz: “Ah, isso aí já era”, e os caras estãofazendo outro tipo de trabalho e não querem saber... quando a gente sabe que não é assim,a vida não é assim. Quantas vezes a gente ouviu sobre o samba: “Ah, essa coisa já acabou,é sempre o mesmo acorde, aquela coisa quadrada” ... O que não era quadrado? Que cervejaera essa que não era quadrada? Ora, era a bossa nova, sabe, o uso de acordes com sextas,com nonas e tal, que já era de muito uso há muito... e as pessoas esquecem que já em 38,40 e poucos, tinha um cara chamado Valzinho, violonista da Rádio Nacional, que faziaumas composições e diziam “esse cara é maluco”, porque ele usava na harmonia deledeterminadas seqüências que não eram usadas por todos aqueles outros artistas. Sãoconstantes na linguagem popular, que é isso que faz com que determinada música sejapopular, é isso que faz com que as pessoas se aproximem, se sensibilizem. São estasconstantes. Não quer dizer, também, que algo inesperado – não precisa ser revolucionário –que está naquela linguagem, colocada como idéia por alguém, naquela forma, naqueleestilo, não possa também surpreender a pessoa, dependendo da sensibilidade dela, fazendocom que ela, diante de algo novo pra ela, ela se toque, se sensibilize. Porque, senão, tudoficava parado. Alguns mais sensíveis percebem certas coisas e vão puxando outras pessoas

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com suas idéias. Mas, muitas vezes, também não dá certo. A história mostra quanta genteque chegou... e não aconteceu nada. Em última análise, o que eu acho que faz mesmo umacoisa se tornar perene são certas construções que tocam as pessoas de uma maneira que eunão posso julgar. O Paolo Scanelli, esse italiano que eu falei há pouco, falava assim que nocomeço, na música contemporânea, as pessoas se interessaram, mas depois elas queriamouvir Bach de novo, queriam ouvir Mozart, queriam ouvir os caras lá de trás, que são coisasque você não pode derrogar, dizer que já era. Você não pode chegar diante de uma obra deBach e dizer que já era. É um negócio de tal magnitude, que toca de tal maneira as pessoas,toca gerações diferentes. Você pode dizer “isso aí a gente não usa” e tal, mas não apagaraquilo, isso não existe. É como um samba de Noel, foi feito em 1930 e poucos, e você diz:“Não vamos ouvir mais”... Como não vai ouvir?! Vai ouvir, cantar, tocar, gravar, porque émaravilhoso, te sensibiliza, te diz coisas, e não só por palavras, que ele era um letristafantástico, mas não é só isso não, é um conjunto de coisas que está ali, que ainda faz parteda vida de todo mundo. Eu, então, fico muito assim porque eu via... eu conversava com oXixa, que era o cavaquinista lá do pessoal de São Paulo, do Caçulinha. Um dia ele chegoupra mim com o cavaquinho, que o cavaquinho é um instrumento limitado, né? No violão,você faz um acorde com seis notas, no cavaquinho você faz com quatro, mas às vezes vocêtem notas dobradas, o ré e ré, na afinação tradicional, lá-sol-si-ré. Quando você vai fazer umacorde que tem uma sexta, uma nona, fica mais complicado, você tem que fazer umainversão, entendeu, e ele é complementado por outros instrumentos pra dar uma idéiadaquela nona dentro de um acorde, já que você só tem quatro notas. Aí ele aprendeu a fazeruma inversão com uma sexta no cavaquinho. Você tem o dó maior no cavaquinho, que éuma coisa bem simples. Tem o dó aqui [mostra no próprio braço], o mi aqui, tem o sol solto,tem o dó aqui e tem outro mi aqui embaixo. Aí você faz o dó: [imita o som] “pró”... Mas aíele fez uma inversão e conseguiu colocar uma sexta e aí soou. Aí ele chegou: “Paulinho, olhasó que legal” e... [imita] primm...e deu aquele som, sabe, moderninho... e aí [ri] qualqueracorde, lá vinha ele com o dó dele, não queria saber, tinha o dó dele, não queria saber se noacorde o dó tinha uma sexta, uma nona, ou o dó mesmo, tradicional, normal. Não, eletacava aquele dó, e aí eu fiquei rindo, mas entendi a cabeça dele: “Puxa, descobri uma coisanova”. E eu dizia: “Não, peraí, agora você não pode usar esse dó, tem que usar o outroporque a harmonia tá pedindo isso”. Ou não, porque, a essa altura do campeonato, a gente,às vezes, se depara com coisas que chocam harmonicamente e a gente não liga muito, maso pessoal mesmo, safo, mais moderninho, quer tudo certinho, você não pode fazer um acordequalquer, com a desculpa de que desmoronou tudo, então “eu faço um acorde qualquer”.Não é assim. Eu não sei se mais ou menos eu te respondi, peguei um assunto e fui embora...

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É a tal coisa... ouvir a Clementina de Jesus cantar... como eu ouvi muito novo... ô... aqueleencanto de voz... eu não estou preocupado se aquilo que ela canta tem um acorde ou se temdois acordes... isso são preocupações que revelam uma sensibilidade mais limitada. Porque,pra você apreciar, achar uma obra na sua grandeza... você precisa saber música? Vocêprecisa saber que acorde é aquele? Você ouve um choro de Pixinguinha ou umacantata de Bach, ou um samba do Chico... você precisa saber música pra saber que éuma maravilha, aquilo? Não, mas tem algumas pessoas, eu me lembro de músicospreconceituosos quanto ao pessoal que não sabia ler música, “esse aí é orelhudo”. E é umacoisa limitada, porque, pra esses caras, como eles sabiam ler música, que é apenas umaspecto da música, de técnica, identificar tríades e tal...

11 RB – Entra aí o prestígio da coisa escrita, né?

PAULINHO – É. É isso mesmo, né, o prestígio que dá o conhecimento da escrita, né? Masisso é uma questão também delicada, porque ... tem pessoas assim como o Tinhorão,que acabam achando que o cara que sabe música, que conhece música, acaba sendoprivilegiado, e provavelmente ele deve achar que é um burguês, que estuda, mas queprovavelmente é um cara que não faz nada, e quem faz é o Zé, ali da esquina, que pega opandeiro, e... “aquele é que é o verdadeiro”...

12 RB – Acaba-se num beco sem saída.

PAULINHO – Claro. E não é isso, não é isso. Pode haver uma pessoa que tem talento, queestuda, como outro que não estuda e é capaz de uma obra que sensibilize, toque todomundo... quer dizer, essa coisa eu vejo assim.

13 RB – Paulinho, eu gostaria de dar um rumo a esse nosso papo que trate mais de poética,não no sentido exatamente de poesia, letra, mas poética como uma concepção detrabalho. A questão inicial é a seguinte: há um lance muito interessante no mundo do LP,que em visão comparatista com a literatura dá o que pensar, que é o fato de que oLP, consagrando-se no mercado a partir da década de 60, com a geração de vocês (você,Chico, Caetano, Gil, Milton, Edu), passou a ser algo assim como já era há muito tempona cultura letrada o livro, já que ficou possível que num único LP se tivesse uma visãoautoral (como a autoria de um livro) e não mais de canções avulsas como antes, quandoos discos de 78 RPM traziam só duas músicas. Entre outras coisas, essa é uma das razõesda geração a que você pertence ter se firmado quase imediatamente como uma geraçãoautoral. Assim, em paralelo, um LP de Paulinho da Viola era o que trinta anos antes eraum livro de poemas do Manuel Bandeira. Mas, diferentemente do livro, num LP a assinaturaPaulinho da Viola incorpora outras assinaturas autorais. Você não tem nenhum LPexclusivamente autoral, só de canções suas – alguns são mais autorais, outros sãomenos. Você vê uma relação que se estabeleça – se é que você já pensou nisso – entre

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seus sambas num disco e os sambas de outros autores que você canta nesse mesmodisco? Você procura estabelecer uma unidade nessa conjunção da sua assinatura comoutras? Porque, no Memórias, de 1976, essa relação é muito evidente, no Nervos de Aço,de 73, também, mas seria uma coisa que te comanda a produzir um disco nesse sentido?

PAULINHO – Não necessariamente. No começo, isto é, bem no começo, ainda nosanos 60, eu tocava, era uma coisa, como eu falei, bem intuitiva, eu não tinha essapreocupação, e mais tarde eu mesmo é que produzia os meus discos, quase todos, era umadecisão minha mesmo. Mas eu me lembro que, quando comecei a gravar, eu quase nãocompunha, a composição não era uma coisa que me atraía.

14 RB – Nessa questão de aprendizado, essa tua convivência com a assinatura desses outroscompositores sempre te estimulou a compor?

PAULINHO – Ah, sim, a compor, sim. Inclusive com os festivais, havia uma questão dedesafio.

15 RB – E nisso havia também esse tipo de relação com a sua geração, não? Ou pra você issose colocava mais com relação ao samba? Do tipo: “Vou fazer uma música melhor do quea do Caetano”. Melhor, que eu digo, é naquele sentido de emulação.

PAULINHO – Não. Quanto a isso não. Era em relação ao samba. Engraçado é que agora euprecisava achar uma coisa, que eu acho que tá aí na obra completa do Torquato Neto, agorasaiu em dois volumes, eu já andei procurando e não achei. É uma crônica, uma matéria queele fez comigo pra Última Hora e a tônica era exatamente essa, ele mostrando que aqueleuniverso do qual eu procurava falar, mesmo não sendo um representante legítimo, já continhauma carga, não digo revolucionária, mas contestatória, porque fazia parte de uma realidadena qual as pessoas não se envolviam muito, os morros, os redutos do samba, e eu percebiaisso porque eu transitava nisso, com clareza, esses dois universos com valores diferentes. Eufalava isso com o Leon Hirszman, a gente convivia, eu falava isso e quando eu via os filmessobre esse universo, inclusive ele fez um, “Partido Alto”, do qual eu era o assistente que... eupercebia que ele via a coisa de uma maneira diferente de como eu via. Eu sentia as coisas deuma maneira diferente. Por ele ser um cineasta, de esquerda, cuja família era de subúrbio ouda Tijuca, mas era diferente... eu falava isso: por exemplo, nós não temos filmes dosapateado, da dança, ninguém fez um filme sobre a dança, e não é a dança em si, é o gesto,o gestual, que é uma coisa que eu percebo que tem uma beleza, tem uma força que você vê,que você percebe num Heitor dos Prazeres [aponta um quadro de Heitor que há na sala,aproxima-se e começa a exemplificar]. Aquilo tá ali, claro, esse movimento de cabeça, essegesto, que é uma coisa do samba, apesar das figuras estarem sempre de perfil, mas vocêpercebe que há uma preocupação não só com a coisa plástica, mas com a vida em

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movimento, com o significado, com os gestos que têm por exemplo na comunidade negra.Como tem em todas. Mas na comunidade negra isso tem um significado muito grande porquese você levar em conta que é uma comunidade que enfrenta a repressão, a discriminação...Isso ao longo da história foi-se tentando resolver, não acho que foi uma coisa assim de“tornar-se branco, embranquecer”, isso pode ter ocorrido num processo inconsciente, mas éuma forma de você tentar assimilar determinadas coisas e transformar essas coisas. Que é oque todo mundo faz, não é? Essa coisa antropofágica, que tá no Oswald e no personagemsíntese disso no Mário, com Macunaíma, é uma primeira aproximação dessa coisa, mas essacoisa no fundo até hoje eu sinto que ela não é compreendida. O gestual negro quando semanifesta através da sensualidade da dança, do movimento, é aceito... mas no cotidianoele não é compreendido. E a própria comunidade negra não tem muita consciência disso,manifesta isso naturalmente porque faz parte do seu universo, do seu tempo, da sua história.Isso se perde um pouco, claro, porque faz parte da dinâmica essa mistura, esta coisa de andar,do andar como uma afirmação de poder muitas vezes, porque tem a ver com seus ancestrais,tem a ver com os capoeiras antigos, com a malandragem, que em última análise é uma formade defesa. E essa coisa não é bem compreendida. Mesmo essas coisas as pessoas nãoassimilam, não compreendem. Eu fui ver, por exemplo, Bucy Moreira cantando, tocando pratoe faca, dançando, lá na Sala Sidney Miller, e eu dizia: “Alguém tem que filmar isso”, Bucymorreu e não teve nada. Os grandes dançarinos do samba... o Donga parece que tem assimuma filmagem, acho que na TV Excelsior, ele entrou dançando, uma coisa curtinha...

16 RB – Num trabalho analítico, interpretativo da obra alheia (que é afinal de contas o queeu estou fazendo com a sua obra), a gente pensa sempre em formalizar o conhecimentodo objeto que estamos estudando, com o cuidado de não cair em esquematismos quefalseiem a obra estudada em benefício da nossa própria formalização. De qualquermaneira, é um risco inerente ao próprio ofício. Uma tentação grande de formalizar oconjunto da sua obra, é de vê-la um pouco da seguinte forma: um primeiro momento, deaprendizado, de familiarização com a linguagem do samba que você recebeu da suaformação e dentro da qual você se exercita: seria o que Mário de Andrade chamaria, na suaprópria obra, de “obra imatura”, sem desqualificar o valor; a seguir, um segundo momento,a partir de Coisas do Mundo, minha Nega, você se abre se não para uma experimentação,para uma inquietação maior, onde muitas vezes aquele momento anterior é submetido auma espécie de tensão crítica – isso iria até Nervos de Aço de maneira bem realçada. A seguir, um terceiro, em Amor à Natureza, de 75, e Memórias, você meio queempreenderia um movimento de retorno, enriquecido daquela própria inquietação, masconvencido de que o samba (e o choro, que você passa a executar cada vez com maisfreqüência) é de fato o seu universo. E, então, a partir daí parece que aquela tensão, aquela

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visão crítico-amorosa do samba, aquele distanciamento diminui um pouco e você não émais o aprendiz, mas assume o papel de mestre, exerce o seu domínio...

PAULINHO – Meio-oficial, né... [começa a rir]

17 RB – Como é?

PAULINHO – [rindo] Meio-oficial. É. Na qualificação dos artesãos historicamente era assim.Primeiro você era aprendiz e, depois, meio-oficial, até chegar a oficial, marceneiro-oficial,pedreiro-oficial, porque parece que o sujeito tinha que deixar o ofício, correr as várias oficinase aí, depois de certo tempo, ele se tornava oficial. O mestre já era uma coisa bem maisavançada mesmo.

18 RB – E você se vê como meio-oficial?

PAULINHO – Eu me vejo como meio-oficial. É, o mestre já é alguma coisa bem superior...

19 RB – Essa sua ligação aí, com essa coisa das corporações de artesãos, já tem todo umsignificado...

PAULINHO – De aprendizado, de disciplina. É engraçado, isso é uma coisa mais pessoal,mas eu procurei a minha vida toda pelo mestre. Porque eu sempre acreditei que você tem queaprender com o outro. E eu sempre procurei saber. Desde muito tempo eu não gostava queninguém fizesse nada pra mim. Igual em casa. Eu sempre aprendi tudo dentro de casa, seipassar, por exemplo, uma roupa muito bem, sempre foi uma coisa que eu dei muito valor,minha avó, minha madrinha era costureira. Eu dou valor a uma pessoa que usa a roupa quefaz, que sabe dar valor a uma roupa. Eu sei apreciar, eu vejo desfile de moda. Uma vezdescobriram isso, e a Marília Gabriela, muito irreverente, fez uma entrevista comigo,preparou uma surpresa pra mim lá em São Paulo e fez lá um desfile de moda pra mim, bicho,eu fiquei tão envergonhado... Por isso que às vezes eu não gosto de falar certas coisas. Maseu sempre fui uma pessoa muito curiosa, não aprendi a cozinhar, porque pra isso eu achoque é preciso um dom, e a pessoa tem que ter prazer para saber e tem que ter talento praaquilo. Mas as coisas de casa, a mão-de-obra aqui é minha... eu sei, 110, 220, trifásico e tal.E de certa forma isso, pra mim, desde menino, sempre foi uma necessidade. De pegar umacoisa pesada, de sentir com a mão, eu toco violão. Eu gosto de pegar a mão e dar trabalho.

20 RB – Essa curiosidade tem a ver com o seu percurso. Você deixa um pouco o universo dosamba, vai percorrer, vai se exercitar em outros “ofícios” musicais, não é... outras oficinas.Isso teria a ver de alguma forma com aquele certo distanciamento crítico de que falei,a que você submeteu um pouco a linguagem do samba?

PAULINHO – Eu aprendi, sim, pela convivência com outro pessoal nos festivais, outrouniverso...

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Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola

21 RB – A sua curiosidade o levou também, não é?

PAULINHO – É, também. O festival tinha uma aura e aparecia – nem sempre – muita idéianova. De certa maneira eu procurava fazer uma coisa influenciado pela própria discussãodos festivais e daquele contexto todo.

22 RB – A gente conversou uma vez por telefone sobre João Cabral. O contato com a suapoesia é bem recente, segundo você me disse. E a poética do Cabral tem o lance da secura,de tensionar a linguagem pelo questionamento da poesia sentimental, dessa linha datradição bem luso-brasileira, que ele busca transgredir. A sua poesia, de certa maneira,nessa fase que eu chamei de distanciamento, de busca de uma contundência, se afasta dalinhagem mais sentimental, mais “poética” do samba. Você procura dentro do própriosamba obras com maior contundência, caso de “Depois da Vida”, do próprio “Meu Mundoé Hoje”, pela própria secura extraordinária do “Acontece”, cortante. Penso que se podepensar um paralelo cabralino aí em termos de postura. A poesia do Cabral lhe impressionou?

PAULINHO – Muito. Ela me surpreendeu porque quando o José Castello fez o trabalho dele,de entrevista, ele desmistificava um pouco a impressão que o próprio Cabral tentava criar.Pra ele, essa imagem que você falou aí, do seco, da transgressão da tradição sonora, musical.E o Castello tentava de certa maneira mostrar que não era bem assim, que o João Cabraltinha ainda essa musicalidade. Cabral me impressionou porque com aquela visão que elemesmo construía, eu fui esperando encontrar um poeta diferente do que eu imaginava, muitomais árido... e não é. Mesmo a tradição da poesia, que é diferente da poética musical, daletra... isso pra mim sempre foi bem claro...

23 RB – Até porque poesia é um fenômeno bem mais amplo do que literatura. Poesia é algobem mais antigo, existem povos que não têm literatura, mas têm poesia. Vincular poesiaà letra, littera, ao livro, é uma coisa que tem uma existência recente na história...

PAULINHO – Pois é, e aí eu li a poesia completa da Editora Nova Aguilar e a começar pelotexto de apresentação, que eu achei tão... insuficiente. E me pegou que a poética dele não eraaquilo que eu esperava, não tinha a agressividade que está no olhar dele, no própriocomportamento... na imagem do mal-humorado. É uma poética muito forte, tem uma coisade um discurso que ele encontrou... que é único, né?

24 RB – Você lembra do poema “O Ferrageiro de Carmona”?

PAULINHO – Não. Mas eu vou lá depois conferir.

25 RB – Pois é, ele diz que o trabalho bom é aquele com o ferro mais duro, que exige otrabalho mais árduo, porque ali fica a marca do ferrageiro...

PAULINHO – O que é uma metáfora do que ele vem fazendo. A poética dele é a de reafirmaro caminho dele. Mas tem uma doçura, de que talvez ele não se conformasse, né? Como é

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que ele via essa doçura, essas coisas assim que meio que escapam? Estou falando isso porquevocê sabe que eu fiz uma prova no Villa-Lobos, de composição, sobre o sistema serial e tirei10. Eu fiz uma composição exatamente com os intervalos, respeitando o sistema, porqueaquilo é terrível, né? E não pode lembrar tonalidade no encadeamento, é outra coisa, umacoisa mais árida. Você sabe que eu fiz, a professora não gostou da minha composição. Sabepor quê? Do ponto de vista técnico estava correta, mas ela não gostou porque achou queestava assim um pouco... brejeiro. Anos depois, falando com Arrigo Barnabé...

26 RB – Eu ia te perguntar se você mostrou pro Arrigo.

PAULINHO – Não, nem comentei isso com ele. Mas da primeira vez que eu fui ver o ArrigoBarnabé, num negócio chamado... Circo Azul, no Planetário da Gávea... ele se apresentou lá,entrava com uma capa, tocou Pixinguinha, as pessoas se olhavam assim... eu achei elesurpreendente e me lembrei logo da Esther Scliar. Se ela ouvisse isso não ia entender nada,porque esse cara consegue de um troço tão árido, inclusive abandonado pelos próprios cultores,é uma coisa meio fracassada, e ele consegue dar uma brejeirice a isso, ele consegue uma espéciede serialismo caboclo. E a minha professora não gostou porque disse que estava brejeiro.

27 RB – O termo que ela usou foi esse?

PAULINHO – Foi esse [rindo]: “Ah, essa música tá muito brejeira”... ela queria que eu fizesseum serialismo como... o dos caras lá da Escola de Viena.

28 RB – Paulinho, quando as pessoas dizem que o choro é o jazz brasileiro, é uma coisa quenão se sustenta, né? São muito diferentes, não? O sentido do improviso num e noutro sãocoisas diversas, né?

PAULINHO – São diferentes. O jazz tem uma coisa por princípio que é o seguinte:formalmente ele é baseado em temas, sobretudo em temas em que os músicos revezam a suacapacidade de variar, fazer variações. Isso exige muito conhecimento do instrumento, demúsica... e de talento. Porque não basta só ter aquele conhecimento. E esse talento e essacapacidade você tem em músicos do nível de um Miles Davis, Gillespie, Thelonious Monk,o próprio Chet Baker... mas muitos que são ótimos tecnicamente, têm um conhecimentoenorme, são limitados porque não têm a criatividade desses caras, essa capacidade deriqueza no sentido de improviso... eles falam “idéias”. Eles falam em “idéia”, “olha que idéialegal”. Então, o fraseado que sai é uma coisa de momento, que nunca é a mesma coisa.A capacidade de realização dessas “idéias” é variada e se dá em níveis diferentes, temidéias que permitem uma coisa mais sofisticada... Agora, isso foi num crescendo, de váriosmomentos, do bebop ao free jazz. Então em vários momentos nessa coisa jazzística os carasficam procurando alguma coisa que ainda não... você ouve o Bitches Brew, do Miles Davis,e é uma loucura... que chega a um ponto em que ele chega a quase ter só uma célula... seria

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Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola

um João Cabral. Não tem mais a busca de uma melodia, como foi até uma determinadaépoca, antes do bebop. Os jazzistas mais tradicionais primavam pela melodia, por umacoisa mais lírica, no bebop a coisa vem mais frenética, mostrando mais a técnica, só caramuito bom é que pode. E as “idéias” vêm a partir daí, dessa postura. E aí tudo começa, tudotem importância, tudo tem importância nessa estrutura harmônico-melódico-rítmica, que éa “idéia”. E aí os caras improvisam em cima daquilo. O improviso são variações que omúsico que conhece bastante harmonia faz no encadeamento harmônico. Só que aharmonia, que é uma coisa baseada numa tríade, já que você pra ter um acorde precisa deno mínimo três notas... se, nessas três, duas forem repetidas já não é um acorde. Agora, vocêpode ter mais de três e tal. Mas a tríade define um acorde. Só que nesse acorde você pode tertambém outras notas. Por exemplo: o tom de dó maior, que não tem acidente. Você tem o dó,o mi, que é a terceira, o sol, que é a quinta, e o outro dó. Isso é o tom de dó maior. Masacontece que não é só isso. Desde que a música foi temperada, que essa coisa ficou todasofisticada, vamos dizer assim, você tinha as regras, que na harmonia tradicional você nãopodia romper. E era isso que tradicionalmente dava a dimensão do músico que tinhaconhecimento harmônico, era o mestre e tal. Certas dissonâncias não eram permitidas. Noavanço disso tudo, neguinho foi transgredindo essas regras, a ponto de de repente... não temmais acorde. A música passa a atonal, entra o sistema serial... antes tem o Wagner, temDebussy que usava muito a sexta, e cria uma coisa completamente nova que influencia atéos jazzistas. Eu particularmente nunca fiz uma análise propriamente musical disso, mas aprópria dona Esther falava isso, e a área dela era a de análise. Então, observe que são essasregrinhas que vão sendo transgredidas. Então você pode ter um dó com a quarta, não só aprimeira, a terceira e a quinta. Se você bota uma quarta, você tem um fá, que é um meiotom, logo pode ser aumentada, a quarta com sustenido até chegar ao sol. Isso no sistematemperado. Você pode ter a quinta também aumentada, um acorde de dó com a quintaaumentada. Se for a terceira menor, o acorde fica menor. Você pode ter a quinta diminuta, oque já é uma outra formação. São essas mesmas notas, mas com acidentes. Pode ter a sexta,que seria o lá, ou a quinta aumentada. Tem a sétima, bemol... E aí foi-se descobrindo queneguinho podia fazer isso, e isso sustenta todas as tonalidades, todos os outros acordes. Sevocê fizer isso de forma simultânea é acorde, mas se você fizer isso em seqüência, se, em vezde escrever verticalmente, você dispuser essa frase, com divisão ou não, você já tem umamelodia. E essa melodia, se você juntar ela toda verticalmente, ela pressupõe esse acorde.Logo, o acorde que vai sustentar essa melodia está baseado nessas notas. Compreende? Sóque neguinho também transgride isso. De repente, entra com um acorde superposto, que nãotem nada a ver. Essa abertura, esse desregramento é que permitiu uma porrada de coisas queleva ao esfacelamento do sistema. Então não se quer obedecer ao acorde pra inventar umamúsica nova. No choro não tem isso. Agora, o choro mais novo se aproxima muito do jazz,porque se começa a utilizar acordes que não são do choro tradicional.

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Roberto Bozzetti

29 RB – E como é que você vê isso?

PAULINHO – Ah, eu vejo com a maior naturalidade, até porque isso já é feito há muitotempo. No próprio Pixinguinha. Dentro de outro universo, mas ele também faz isso. Já vi atécomposição do mestre dele, o Irineu Batina, que morreu cedo, e já tava lá. Daí você imaginao que é que não tinha mais pra trás. Porque o legal é que o músico quer conhecer cada vezmais, ele quer o universo todo da música. Então é isso que faz com que neguinho fiqueexperimentando coisas. Por exemplo, tinha músicos que faziam isso pra testar a capacidadede quem tá tocando com eles, como também pra mostrar que tá acima do comum. Tinhapor exemplo o trombonista Candinho, que fazia o “nó de Candinho” – olha o nome, nó – queele dava um nó em quem ia acompanhar. Então, pode ser impossível mesmo pro sujeito queconhece muito, muita música, pegar. Lembro que o Jacob dizia: “Ninguém pode adivinhar”.Eu não posso adivinhar o que o cara vai tocar depois. As coisas que eu conheço eu possoacompanhar. Mesmo um choro que eu não conheça, ele pode ter um encadeamentoharmônico com uma estrutura já tradicional. Mas, de repente, ele pode ter uma pequenamodulação que derruba, que era “música pra derrubar” que os caras faziam de sacanagem.E aí todo mundo ria, quá quá quá. Lembro que eu e o Rafael, eu no cavaquinho, ele no violãoe o Canhoto da Paraíba... e o Canhoto: “Agora eu vou tocar o ‘Salve-se quem puder’”... Pelonome, você já viu o que era. A primeira parte era uma delícia de tocar, mas quando entravaa segunda tinha uma cadência toda em sétimas, previsível, só que pra acertar as casas erauma dificuldade terrível... Aí Rafael: “Pára, pára, pára!”, e aí o Canhoto ria, se divertia,ficava olhando, curtindo com a cara da gente. E a gente ia de novo, e pegava e tal, só quena velocidade que o Canhoto tocava não dava pra gente pegar. E ele se divertia com isso,de gozar a gente. Isso acontecia muito em roda de choro. Aí uma vez eu falei: “Olha, eu andeifazendo choro que o pessoal andou gravando, o Nó em Pingo d’Água gravou, o Cristóvão,eu vou fazer um choro pra todo mundo tocar, pô”, senão... não tem roda de choro. Se cadachoro que eu for tocar é tão difícil que ou você já vem treinado de casa ou... se não faz aqui,qual é a graça, qual é a graça que tem no choro?

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UM BREVE DISCURSO ACERCA DAHISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO

DA BHAGAVAD GITA

Rubens TurciUniversidade Federal do Rio de Janeiro / UFRJ

Pesquisador Associado do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência – NETCCON.ECO.UFRJ

contato: [email protected]

Resumo: Este artigo discute a razão pela qual os pesquisadores ocidentais têmdificuldades para identificar a teologia da Bhagavad Gita e que problemas deinterpretação surgiram da insistência em ignorar as características transcendentais dotexto, ressaltadas nos comentários clássicos, bem como nos artigos orientaiscontemporâneos.

Palavras-chave: Gita; estilos acadêmicos; interpretação.

Abstract: This essay discusses the reason why Western scholars face difficulties inidentifying the theology of Bhagavad Gita, and what sort of problems in interpretation havearisen from the insistence on ignoring the text’s transcendental characteristics, which werepointed out both the classical comments, and in contemporary Eastern texts as well.

Keywords: Gita; styles of scholarship; interpretation.

Resumen: Este artículo discute la razón por la que los investigadores occidentalestienen dificultades para identificar la teología de Bhagavad Gita y que problemas deinterpretación surgieron de la insistencia en ignorar las características trascendentales detexto, resaltadas en los comentarios clásicos, así como en textos orientales contemporáneos.

Palabras clave: Gita; estilos académicos; interpretación.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 29

Rubens Turci

INTRODUÇÃO

O tópico que me proponho investigar pode ser colocado na forma da seguintequestão: por que os pesquisadores ocidentais têm dificuldades em identificar ateologia da Bhagavad Gita1, e quais os problemas de interpretação que decorrem emfunção da insistência desses pesquisadores em ignorar as característicastranscendentais2 do texto, exaustivamente discutidas em diversos comentáriosclássicos, bem como em artigos orientais contemporâneos?

A primeira parte desta investigação, portanto, reflete sobre a forma como as diferentestraduções em língua inglesa aprimoraram o nosso entendimento sobre o texto. Asegunda parte discute alguns estudos orientais sobre a Gita, considerando, por exemplo,os comentários de Tilak (1971)3, Gandhi (1930) e Aurobindo (1950). A terceira partecompara o método exegético usado no Ocidente com aquele do Oriente e discute as suasvantagens e desvantagens. A parte final reúne os principais resultados deste estudo einforma sobre o estado atual das pesquisas acadêmicas em torno da teologia da Gita.

UM HISTÓRICO DOS ESTUDOS ACADÊMICOS E TRADUÇÕES DA GITA

Conforme Kapoor (1983), há no mundo mais de 3.000 traduções da Gita, em maisde 50 diferentes idiomas. A primeira tradução para uma língua ocidental, publicada emLondres, em 17854, deve-se a Charles Wilkins. Hoje, só em inglês temos cerca de1.000. Algumas se tornaram clássicas e contribuíram significativamente para oaprimoramento da compreensão da teologia subjacente ao texto. Por exemplo, háaquela de Zaehner (1969), considerada a mais “filosófica”, que foi muito discutida nopassado. Anteriormente, Edgerton (1944) e A. Besant (1905), dentre outros, jáhaviam oferecido traduções, hoje consideradas clássicas. Mais recentemente, pode-secitar as traduções de W. Sargeant (1979), van Buitenen’s (1981) e Nicolás (1990).

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1 Apesar do termo sânscrito Gita ser feminino e traduzir-se por “a canção”, em Português é comum referir-se à Gita no masculino,que se traduziria, então, como “o canto”. Ou seja, em Português, encontra-se tanto a expressão “o Gita”, conforme preferem osseguidores do movimento Hare Krishna, quanto “a Gita”, conforme a tradução do tropicalista Rogério Duarte (Bhagavad Gita –canção do divino mestre. São Paulo: Companhia das Letras, 1998). Considerada por muitos uma Escritura Sagrada, a Bhagavad Gita(Canção sublime) consiste de 700 versos e representa o momento do épico Mahabharata (constituído de aproximadamente100.000 versos) em que a batalha decisiva está para se iniciar. Na Gita, Arjuna surge como o principal herói do exército dosPândavas, o lado mais virtuoso da família real. A visão do exército dos Kauravas, composto por inúmeros parentes e ex-aliados,deprime Arjuna e o faz considerar a possibilidade de desertar da guerra. Por fim, em função do seu diálogo com Krishna, compostopor uma série de argumentos teológicos cordialmente tecidos, Arjuna consegue renunciar ao seu apego àquele conveniente estadode apatia e inação, decidindo-se pelo cumprimento de sua missão no campo de batalha.

2 Em função das críticas ácidas dos missionários cristãos aos teosofistas presentes na Índia e ao seu método transcendental, o“transcendentalismo” passou a representar evidência de falta de rigor e critério acadêmico.

3 O comentário Srimad-Bhagavadgitaä-Rahasya de Tilak apareceu em muitas línguas e em diferentes edições. Foi publicado emmarathi em 1915, em híndi em 1917 e em inglês em 1936. A edição inglesa mais acessível e referida, entretanto, é a de 1971.

4 Em 1787, o texto é traduzido para o francês e, em 1801, para o alemão.

Um breve discurso acerca da história da interpretação da Bhagavad Gita

Para se compreender as diferentes motivações desses scholars pode-se recorrer, porexemplo, ao estudo realizado por Sharpe (1991). De acordo com a sua análise, haveriatrês grandes padrões de interpretação da Gita, que poderiam ser classificados, em ordemcrescente de importância, como (1) sociopolítico, (2) transcendental e (3) orientalista.Sharpe sugere que na esfera sociopolítica a Gita obteve mais atenção do que, de fato,mereceria. O padrão transcendental, ele argumenta, viria exemplificado por intelectuaisinfluenciados pela geração de Emerson e Thoreau, pela Sociedade Teosófica, bem comopelos autores ligados à contracultura dos anos 60. O padrão orientalista, de acordo coma análise de Sharpe, estaria representado por aqueles acadêmicos que se basearam,principalmente, nos comentários medievais de Sankara e Ramanuja para produzirtraduções “acadêmicas”. Hill, Edgerton e Zaehner representariam essa corrente,enquanto os transcendentalistas estariam representados por intérpretes populares, emgeral, indianos – por exemplo, Gandhi (1930), Tilak (1971) e Aurobindo (1950).

Sharpe exemplifica o modo como os primeiros orientalistas costumavam resumir aGita: “Havia um Ksatriya [casta militar e política] chamado Krishna. Ele chamava seu deusBhagavad e seus seguidores auto-intitulavam-se Bhagavatas. Gradualmente, Krishnapassou a ser compreendido como o deus Bhagavad, e sua ‘religião’, bhakti [devoção, fé]”(SHARPE, 1991, p. 50). Conclusões precipitadas como esta, citada por Sharpe, sãobastante comuns entre os orientalistas, que, via de regra, entretanto, costumam sermuito cuidadosos ao evitarem quaisquer considerações transcendentais. Em geral, taisconclusões resultam do emprego, no campo de estudos da Índia, da mesma metodologiaempregada para os estudos Bíblicos. Vale dizer, os orientalistas buscam distinguir, notexto atual da Gita, um núcleo “original” de outras partes, que eles identificam comoacréscimos posteriores, devido à influência de diferentes correntes teológicas. Umexemplo dessa estratégia etnocêntrica de desconstrução da idéia de unidade dos textossagrados de outras tradições, ainda muito em voga entre os missionários cristãos, podeser visto, em especial, no trabalho de Hauer (1934). Diametralmente oposta é aperspectiva da corrente dos transcendentalistas ocidentais, que procuraram, bem à modade pensadores indianos modernos como Gandhi e Aurobindo, compreender a forma atualda Gita como constituindo um texto teologicamente coerente e consistente.

Uma classificação um pouco distinta da apresentada por Sharpe, para se compreenderas diferentes motivações dos diferentes intérpretes da Gita, pode ser encontrada nogigantesco estudo realizado por Malinar (1996). Ela classifica as escolas ocidentais deinvestigação sobre a Gita em dois grandes grupos: o primeiro, denominado historicista;o segundo, romântico. Em termos da teologia a que os membros de ambos os grupossubscreve, pode-se argumentar que os historicistas, oriundos, em geral, da tradiçãojudaico-cristã, fazem uma leitura dualista da epistemologia da Gita. Eles apresentam a

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Gita como um texto que se aproxima, embora apenas de forma caricata, dos Evangelhos.Krishna seria uma manifestação primitiva e rudimentar do divino, representando assimuma espécie de “teísmo” ingênuo e caricato do “mono-teísmo” fundado em Cristo.

De acordo com os historicistas, o “teísmo” sugerido na Gita em torno da pessoa deKrishna, embora simplório e rudimentar, estaria já sugerindo, de forma embrionária, ogérmen do monoteísmo, que iria encontrar no seio da tradição judaico-cristã a suaexpressão mais perfeita e bem acabada. Muitos missionários cristãos, valendo-se dessahermenêutica, consideram que os devotos da Gita, por estarem mais próximos da verdadedo monoteísmo, são os que estão mais propensos a se converterem ao Cristianismo.

Curiosamente, entretanto, são os românticos que, decepcionados com a teologiamonoteísta e a sua conseqüente separação, em termos absolutos, de criador e criatura,irão se fascinar com o texto da Gita. Os românticos rompem com a visão de mundodualista do ocidente judaico-cristão e se identificam fortemente com a epistemologianão-dualista, monista, sugerida na Gita. Desse modo, rechaçam as críticas doshistoricistas de que o texto da Gita não apresentaria consistência semântica.

Nota-se do apanhado histórico de Malinar (1996) que as divergências entre essasduas correntes de interpretação remontam ao tempo da primeira tradução da Gitapara o inglês, uma vez que ela fora realizada por Charles Wilkins a pedido dogovernador-geral e representante do Império Britânico na Índia, Warren Hastings,para quem a Gita apresentava uma “moralidade pervertida” (MALINAR, 1996, p. 24).Daí que, pouco depois, em 1823, Schlegel traduziu o texto para o latim. ConformeMalinar (1996), sua motivação maior resulta da sua percepção de que, de acordo coma agenda dos missionários que financiaram a primeira tradução, o único interesse pordetrás daquela edição era conseguir uma formulação que permitisse aos críticosrefutar a Gita (MALINAR, 1996, n.10, p. 24). A perspectiva romântica e não-teísta deSchlegel agrada a muitos intelectuais, inclusive W. von Humboldt. Entretanto, essatradução despertou também a ira de G. W. F. Hegel (1826)5 e Langlois, dentre outros.

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5 G. W. F. Hegel (1826) escreve uma crítica à Gita, que já se encontra traduzida para o inglês, sob o título: On the Episode of theMahàbhàrata known by the name Bhagavad-Gità by Wilhelm von Humboldt – Berlin 1826 (New Delhi: Indian Council ofPhilosophical Research, 1995). O tradutor, Herbert Herring, em sua introdução ao texto, denuncia o preconceito e etnocentrismode Hegel, que se mostra incompetente para apreender o pensamento da Índia como filosófico. Hegel já lecionava contra oHinduísmo na universidade desde 1805. Curiosamente, ele escreve em 1807 a sua famosa Fenomenologia do espírito, texto ondemuitos sanskritistas contemporâneos identificam os elementos essenciais do monismo indiano, conforme explicitado, por exemplo,em Sankara. Mais curioso ainda que a Gita que Hegel procura desqualificar funda-se, exatamente, na idéia de “síntese” [yoga] dedistintas teses contrárias, obtidas do diálogo. O diálogo da Gita pretende ser a síntese dialética da tese védica fundada naimportância da ação, dos negócios e da vida em sociedade e a antítese upanishádica, fundada na não-ação, no ócio, na renúnciaaos valores do mundo e à busca da realização final. Daí que cada capítulo da Gita seja denominado a partir do termo yoga, comouma síntese dialética particular. Para mais detalhes, sugiro a leitura de Wilhelm Halbfass em “Hegel on the Philosophy of theHindus”, (in German scholars on India. Embassy of FRG, vol. I, Varanasi, 1973, p. 116), e de Hegel’s Lectures on the History ofPhilosophy vol. XV (ed. Lasson/Hoffmeister).

Um breve discurso acerca da história da interpretação da Bhagavad Gita

Estabelece-se, desse modo, desde o início dos estudos sobre a Gita no Ocidente,essa divisão radical entre os historicistas representantes da tradição judaico-cristã eseus ferrenhos adversários românticos6. Se os românticos estavam dispostos adefender o modo conforme eles sentiam as verdades da Gita, os historicistas semostravam igualmente dispostos a perseguir os mesmos ideais financiados peloImpério Britânico e seu representante na Índia, Warren Hastings.

Fica claro que o financiamento massivo da perspectiva dos historicistas, hojetambém conhecida como a “tradição analítica”, fez com que o ponto de vista quedefendiam se tornasse hegemônico. Conforme discutido por Turci (2007), Holtzmanndá início a essa trajetória vitoriosa em 1891 ao propor uma teoria segundo a qual osPândavas (ou seja, Krishna, Arjuna e seus aliados) representavam não o bem, mas omal. Daí, argumento, vários estudiosos privilegiaram abordagens que procuravamdesqualificar o texto. E. W. Hopkins defende, por volta de 1895, que a Gita não passade uma paráfrase upanishádica, produzida no seio de uma seita formada porseguidores de Krishna. Por volta de 1905, Richard Garbe afirma que a Gita éessencialmente teísta e que o texto teria sofrido modificações posteriores paraexpressar algumas formas de panteísmo. Paul Deussen, o velho amigo de Nietzsche,defende, por volta de 1906, que a Gita não apresenta nenhum valor filosófico e seriaapenas o registro da doutrina panteísta do atman, mas já com as sementes do teísmoembutidas. Um pouco mais tarde, por volta de 1918, H. Jacobi afirma que a Gita seriaapenas o manual dos Bhagavatas e que somente bem mais recentemente o textoteria sido “enxertado” no Mahabharata (TURCI, 2007, p. 185-195).

Conforme Turci (2007) descreve, apenas por volta de 1920, com HermannOldenberg, tem início nas universidades a tentativa de se revalorizar a importânciados aspectos transcendentais do texto. Oldenberg procura refutar a tese de Garbe deque a Gita é teísta e enfatiza a importância das visões e experiências místicas que otexto descreve. Por volta de 1925, Franklin Edgerton insere-se dentro desse mesmomovimento e valoriza a Gita como um poema devocional e místico, cujo valor estános estados de exaltação e inspiração que consegue promover. Ou seja, a Gita nãodeveria ser vista como um manual normativo, com instruções precisas e detalhadassobre como instruir e treinar o intelecto. Pelo contrário, a Gita falaria, antes, aocoração7. Desse modo, defende Turci (2007), Hill, em 1928, e Lamotte, em 1929,

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6 Schelling, por exemplo, afirma que a Gita representa uma das maiores realizações da mente humana. Hegel, por outro lado,encontra na Gita a oportunidade ideal para atacar o que ele mais temia – os românticos, juntamente com o seu entusiasmoespiritualista e simpatia pelo Oriente (MALINAR, 1996, p. 26-27).

7 Edgerton é considerado ainda um historicista, mas, há que se ressaltar, ele reconhece, à moda dos românticos, que a Gita possuiunidade de sentido: “We must think of the Gita primarily as a unit, complete in itself, without reference to its surroundings”(EDGERTON, 1925, p. 2 apud MALINAR, 1996, p. 35).

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terminam por reconhecer a tese de Edgerton de que a Gita possui uma unidade depensamento. Entretanto, ambos procuram minimizar esse fato, argumentando que aGita representa um esforço dos Bhagavatas para dar certa unidade às diferentesescolas que já identificavam Krishna com Vishnu.

Com especialistas como Charpentier, o historicismo, com a sua tese central deque a Gita seria uma colagem de proposições contraditórias, ganham, a partir de1930, novo impulso. A confusão aumenta quando Schrader (1930), com base nareferência existente em algumas das recensões do Mahabharata de que a Gita teria745 versos8 (não apenas 700), lança a tese de que a Gita teria sido transmitida aolongo dos séculos em mais de uma versão. Desse modo, nos anos seguintes, com a ascensão do nazismo, a Gita seria associada à agenda política nazista. Hauer (1934) e Otto (1939) afirmam que a Gita representa a herança da religiosidadeindo-germânica.

Belvalkar (1937), entretanto, refuta as teses nazistas e defende a Gita como umtexto consistente e como parte integrante do épico Mahabharata. Desse modo, avisão romântica ganha ainda mais força a partir de 1941, com a ênfase nacentralidade das discussões de natureza ética da Gita. Conforme Turci (2007)descreve, Roy, Zimmer, das Gupta e outros passam a criticar os scholars “teístas”que, em função de seus compromissos ideológicos, mostravam-se sempre ávidos em:(1) encontrar contradições no texto e (2) apresentar a Gita como um texto sectáriode teísmo.

Mais recentemente, uma gama bastante variada de estratégias tem sido utilizadapara elucidar aqueles problemas do texto que parecem resistir aos esforços dosespecialistas. As traduções mais recentes da Gita para o inglês, desde Zaehner, em1969, até Nicolas, em 1990, são apenas alguns desses esforços mais contemporâneosde compreensão da Gita.

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8 Sem entrar nos detalhes da desconfiança de Schrader com relação à origem dos manuscritos dessa Gita de 745 versos publicadapela Suddha Dharma Mandalam Series, só tenho a dizer que considero essa Gita, bem como o comentário de Hamsa Yogue bastanteinteressante e fonte de inspiração para o estudo da Gita tradicional. Como esse texto está arranjado em 26 capítulos e com osversos aparecendo numa ordem completamente distinta, a comparação entre as duas recensões não é de todo simples. Entretanto,os sete versos, que considero a espinha dorsal do texto, são idênticos na Gita tradicional (BhG 2.2, 2.3, 2.11, 18.61, 18.62, 18.64e 18.66) e na Gita recém-descoberta (BhG 2.3, 2.4, 2.2, 25.23, 25.24, 24.1 e 25.25), embora, de acordo com metodologiasdistintas, o texto em sânscrito de ambas apresente, essencialmente, a mesma mensagem.

Um breve discurso acerca da história da interpretação da Bhagavad Gita

A GITA NA VISÃO DE TRÊS INDIANOS DO SÉCULO XX

Uma vez que os debates sobre a Gita que ocorriam na Índia até o início do séculoXX costumam ser ignorados pelos acadêmicos ocidentais, costuma-se acreditar quea Gita foi “redescoberta” pela Grã-Bretanha e “reintroduzida” pelos ingleses na Índia.A verdade é que os pesquisadores indianos têm um lugar e importância próprios.Segundo Sharma (1987), eles deixam claro que a Gita não representa o pensamentode um grupo religioso, mas, pelo contrário, a Gita procura validar e reconhecer aimportância das diferentes manifestações religiosas. Isso porque a Gita é, antes quenormativa, um tratado especulativo, envolvendo tanto elementos de filosofia quantode religião. Esse entendimento “romântico” da Gita aparece, por exemplo, nostrabalhos de Tilak (1971), Gandhi (1930) e Aurobindo (1950), considerados osprincipais representantes do pensamento da Índia do século XX9.

Em comum, esses três estudiosos defendem a tese de que o altruísmo, definido,em termos éticos, em torno do conceito de lokasangraha (bem-estar social),desempenha uma função central no texto. Com Tilak, essa tese privilegia oentendimento sociopolítico do texto10; com Aurobindo, a discussão centra-se nanatureza mesma da ação altruísta, capaz de conduzir à salvação; e, com Gandhi,talvez representando um ponto médio entre Tilak e Aurobindo, reforça-se a idéia delokasangraha como conseqüência do caminho de salvação.

O comentário de Tilak (1971) aparece pela primeira vez em inglês apenas por voltade 1930. O texto procura avaliar as razões que se tem para se decidir por uma dadalinha de ação, ou seja, discute a Gita como um manual para a tomada de decisãosobre como melhor agir. Em outras palavras, a Gita seria um manual sobre a teoriada ação (karmayoga). Na Gita, Arjuna busca compreender o processo que o levaria aexecutar todas as ações, não como simples deveres de ordem material, mas comorituais sagrados, em nome do bem-estar social. O movimento que nos entusiasma enos retira da omissão, fazendo-nos entender que toda ação é política, representaria,portanto, a essência mesma da disciplina verdadeiramente espiritual. Essemovimento ritualístico, do ser e para o ser, seria experimentado como niskama-karmayoga (ou a ação altruísta, desinteressada e fundada no ideal da orthopraxis).Karmayoga seria, portanto, a filosofia social e prática política que nasce da

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9 Obviamente, há muitos pensadores indianos que representam esta visão, mas não precisamos recorrer ou nos referirmos a todos.Apenas a título de exemplo, destacamos alguns desses expoentes: D. D. Vadekar, S. K. Belvalkar, C. Rajagopalachari, Vinoba Bhave,Swami Chidbhavananda, K. Kalelkar, V. R. Kalyanasundara Sastri, K. M. Munshi, Swami Sivananda, G. V. Ketkar, D. S. Sarma, K. M.Panikkar, Mahadev Desai, Jitendriya Bonnerjee, M. Rangacharya, K. Damodaran, G. W. Kaveeshwar, P. N. Srinivasachari, RohitMehta, P. Nagaraja Rao, P. M. Modi, S. H. Jhabwala, T. M. P. Mahadevan, R. D. Ranade, Swami Vivekananda, Haridas Chauduri,Paramahansa Yogananda, Bhagavan Das e M. N. Roy.

10 Tilak afirma que a Gita sintetiza o ativismo védico com o quietismo upanishádico.

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capacidade individual de se entusiasmar e aprender com cada ação, que deveriasempre ser orientada para o ideal social de lokasangraha. Os adversários de Tilak oacusam de ter feito da Gita um mero manual de ativismo político, destinado alegitimar o poder da religião instituída. Entretanto, Tilak apenas deixa claro quequalquer ação política expressa um certo conteúdo ético, desnudando o modoconforme cada um vive a sua própria religiosidade.

Embora de forma um pouco distinta, também em Gandhi (1930, 1959, 1962 e1971) a ação altruísta e desinteressada é sagrada e religiosa, independentemente deser, ou não, de natureza “política”. O entendimento de Gandhi sobre o conceito dereligiosidade presente na Gita permite que ele se utilize de termos religiosos numsentido mais abrangente que Tilak. Em seu comentário à tradução da Gita, intituladoAnasaktiyoga (tratado sobre a ação altruísta), ele apresenta a Gita a partir da suaexperiência social e se vale de termos tais como satyagraha (a força do espírito, opoder da verdade), sarvodaya (o bem de todos) e ahimsa (não-violência) em sentidoquase que estritamente político.

A leitura da Gita como uma alegoria permite a Gandhi ir além da historicidade dotexto, trazendo metáforas e símbolos para o centro da discussão filosófica: a Gitateria por objeto a descrição de uma via de realização através de ações altruístas, ondeo sujeito se faria de canal e instrumento para a manifestação de uma vontadesuperior e holística. Gandhi encontra legitimidade para esta interpretaçãotranscendental ou romântica a partir da sua própria experiência pessoal com o texto,que ele não entende como um tratado dogmático, conforme pretendem osorientalistas ocidentais. De acordo com Gandhi, o poema da Gita pretende falar aocoração, de modo a despertar em nós aquela intuição capaz de nos levar, na medidado possível, a tomar, em cada situação que a vida nos apresenta, as decisões maisapropriadas e justas.

Conforme entendo, Gandhi estaria justificado em sua interpretação do poema daGita em função de dois fatos principais: (1) o poder evocativo de um poema extrapolaaté mesmo os limites imaginados pelo autor, e (2) a confirmação das suas ilações sedava na prática, tanto em termos da sua capacitação individual, como das eventuaistransformações sociais, conforme testemunharia a própria Inglaterra. De fato, a Índia,como um todo, sente a energia renovada de Gandhi, em função da sua disciplinabaseada na Gita. Ao representar para a Índia aquilo que Arjuna representava na Gita,Gandhi desnudou o modo como os ingleses e seus missionários representavam osmesmos interesses mesquinhos vistos nos pervertidos Kauravas – sempre dispostosa conquistar, converter e impor seus valores e visão religiosa a qualquer preço. Ao ser

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Um breve discurso acerca da história da interpretação da Bhagavad Gita

forçado a olhar para Gandhi, o Império Britânico desperta para a ética multiculturalque aquele vive e se descobre selvagem, preso a imagens dogmáticas e belicosas.

Aurobindo (1950) também se deixa inspirar pela Gita, onde o termo sânscritoshraddhá funcionaria, conforme entendido por Turci (2007), como uma espécie debússola a indicar o norte para o navegante dos mares da vida. As traduções ocidentais daGita, geralmente, traduzem shraddhá como “fé”, mas “fé”, diferentemente de shraddhá,é sempre fé em algo que é exterior ao sujeito. Shraddhá, de acordo com definição da Gita,representaria aquilo que Gandhi designa por satyagraha, ou aquela convicção e força doespírito que se manifesta como entusiasmo para agir de forma altruísta. Shraddháresultaria, portanto, de um sentimento da verdade e se expressaria, politicamente, comoa capacidade humana de criar seu próprio destino e ideal de justiça social.

Aurobindo critica Tilak de forma velada, por este colocar a devoção religiosa comomera subsidiária do ativismo político. Critica também Gandhi, pois este entende aGita como mera alegoria. Para Aurobindo, até mesmo a situação de guerra descrita naGita deve ser entendida como oportunidade para o exercício da devoção eaproximação da esfera verdadeiramente religiosa. Apesar dessas pequenasdivergências, entretanto, os três concordam que a Gita apresenta consistênciasemântica e discute um método holístico, pragmático e não-sectário de se aproximardo divino. O fato é que a Gita funciona para esses três interlocutores como o elementocatalisador de ações quase universalmente reconhecidas como legítimas. Em comum,une-os a visão de que o texto trata do mundo como um teatro, onde os atores domundo interior ganham papéis e se tornam personagens do mundo exterior.

A QUESTÃO DO MÉTODO: O ORIENTE E O OCIDENTE

Para se poder avaliar os problemas de interpretação enfrentados nesses duzentosanos de estudos acadêmicos sobre a Gita, é preciso, antes, compreender asdiferenças de metodologia que orientam os estudos sobre a Gita na Índia e noOcidente. Essas diferenças ficam evidentes quando se observa o modo como osespecialistas consideram o método alegórico, cuja utilização depende de uma certacompreensão sobre a forma de relação entre a esfera da filosofia e a esfera da religião.

De acordo com Sharma (1987), entretanto, a incapacidade de estudiosos comoOtto11 para perceber aquilo que, para Huxley, parece óbvio, estaria relacionada com

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11 Apenas para lembrar o modo como os críticos mais ferrenhos do método alegórico trabalham, basta citar The original Gita, deOtto (1939), que defende a idéia de que a Gita “original” deveria constituir-se de pouco mais de cem versos.

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dois princípios que o Ocidente costuma aceitar quase como dogmas: (1) a crençanuma radical separação entre o domínio religioso e o filosófico e (2) a associação domonoteísmo como a idéia de uma experiência religiosa superior e mais civilizada.Esses dois princípios operariam em conjunto para impedir que a Gita pudesse seravaliada pelos especialistas ocidentais também em termos da sua alegoria.

Entende-se daí, por um lado, que o Ocidente tivesse se curvado à personalidadealtruísta e desapegada de Gandhi – prova viva de que uma vida baseada na ética da Gitaé possível. Por outro lado, compreende-se também que a interpretação da Gita feita porGandhi nunca tivesse sido levada a sério na academia ocidental, pois Gandhi argumentafazendo uso do método “alegórico”, não reconhecido como válido pelos estudiososocidentais12. Entretanto, considerando-se que Krishna simboliza o divino e Arjuna ohumano, reconhece-se já na Gita um sentido alegórico. A Gita faz uso de alegorias emetáforas no capítulo 11, por exemplo, para relacionar o domínio do absoluto com asformas concretas do divino. A experiência de Arjuna do “Um” no “Muitos” (BhG 11.13) parece ser uma metáfora para a relação do humano com o divino.

Então, a pergunta que se deve legitimamente fazer, antes de se desconsiderar osresultados de Gandhi, seria: em que sentido faria Gandhi uso do sensus allegoricus?13E a resposta, talvez, esteja com os românticos alemães e transcendentalistasamericanos14, pois, assim como Gandhi, eles também aceitam a Gita como umtratado coerente de metafísica, onde elementos de religião e filosofia aparecemunificados e harmonizados de tal forma que conseguem evocar os mais elevadossentimentos do espírito. Em geral, quem faz uso de interpretações alegóricas nãoestá preocupado com “verdades históricas”, nem com o modo segundo o qual otexto pretenderia manipular os demais. No caso da Gita, a alegoria permite ao leitorcompartilhar do simbolismo do sagrado e do anseio ardoroso de Arjuna de alcançara transcendência.

O fato de se acessar o texto como alegoria, entretanto, não significa que se estejacaindo nas armadilhas da “retórica romântica”, pois a maneira como “sentimos” o

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12 Conforme mencionamos, o método alegórico de interpretação foi especialmente atacado pelos missionários protestantes inglesesna Índia, uma vez que esse método constituía a espinha dorsal da metodologia empregada na Sociedade Teosófica, abominadapelos missionários. Para os membros da Sociedade Teosófica, a Gita seria a alegoria mais bem acabada da luta interior que se passaem todo o ser humano. Besant (1905), por exemplo, trabalha com dois níveis distintos de interpretação: um exterior e outrointerior – o primeiro, histórico; o segundo, alegórico.

13 Ao longo de sua obra, Gandhi evita aquilo que possa justificar a violência, daí a sua insistência em se referir ao nível alegórico daGita, mais interessante que a representação de um estado de guerra.

14 Na Introdução a Kapoor (1983), Hendrick aponta que a Gita tem especial apelo para Thoreau e Emerson. Para Thoreau, até a obrade Shakespeare parece juvenil, quando comparada ao Mahabharata – texto que estudou, chegando mesmo a publicar a sua própriatradução do apêndice do Mahabharata, denominado Harivamsa. Emerson descobriu a Gita quando atendia às aulas de Filosofiade Victor Cousin. Em carta, apresenta a Gita para Emma Lazarus, afirmando que, após ler a Gita, esta deveria refletir por unsmomentos, para então escrever um poema.

Um breve discurso acerca da história da interpretação da Bhagavad Gita

texto continua dentro de uma certa regulação lógica. É inegável que a alegoria apontapara a importância que o sentimento e a intuição têm na Gita, mas a medida em queisso se dá não é diferente daquela que ocorre quando ouvimos uma canção qualquerque nos fala ao coração, por exemplo. Quando ouvimos uma canção, não nosimportamos tanto com as proposições lógicas verdadeiras que a letra possa conter,pois o que conta realmente é como sentimos a canção – como ela nos fala ao coração.E, quando escutamos com o coração, os sentimentos que a música e a poesiaprovocam têm mais valor que as “verdades racionais” que se queira defender. Nocaso da Gita, esses sentimentos parecem nos ensinar como, quando e porquepodemos, progressivamente, confiar mais em nossas próprias reflexões e insights.

Aldous Huxley (1944), por exemplo, considera a Gita um tratado sofisticado,consistente e muito atual sobre a práxis. Huxley lê a Gita como um tratadoespeculativo, centrado nas idéias de altruísmo e da socialização da espiritualidade.Chega mesmo a afirmar em sua introdução à tradução da Gita feita por Isherwood(1954) que a Gita representa uma das mais claras e compreensivas descrições dissoque ele chama de “filosofia perene”. Eliade (1987) também é de opinião que Huxleyopõe-se fortemente à interpretação, corrente entre os scholars ocidentais, de que aGita nada mais seria que uma colagem de muitos textos contraditórios, escritos emdiferentes períodos.

Os comentários orientais sobre a Gita sempre fizeram uso da alegoria como formade lidar com questões metafísicas, onde a esfera da filosofia não se distinguecompletamente da esfera religiosa. Assim como os transcendentalistas americanos, osespecialistas orientais também perceberam claramente que o texto lida comespeculações filosóficas, ao mesmo tempo em que coloca a experiência e a atividadehumana para além dos limites da experiência ordinária. Daí Gandhi, por exemplo,admitir fazer uso do método alegórico. Cabe ressaltar, Gandhi é fiel às condiçõesexegéticas definidas pelo próprio texto, em BhG 18.71 – a Gita, enquanto dialética doser, para se deixar revelar, deve ser considerada a partir do coração. Aliás, conformerecomenda a própria Gita, assim deve ser com toda ação que se queira perfeita.

Em outras palavras, o entusiasmo, conforme presente em Gandhi, Tilak, ouAurobindo, bem como a quase obsessão com que procuravam a aproximação da verdade(satyam), estão de acordo com uma longa tradição indiana de interpretação – tradiçãoesta que a academia ocidental sempre procurou ridicularizar. Entretanto, aqueles, comoHuxley, que não seguem a orientação hegemônica das universidades ocidentais dedesqualificar qualquer iniciativa fundada no método alegórico, conseguiram superar asaparentes contradições do texto e retratar mais fielmente as suas verdades.

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CONCLUSÃO

Não se pode desconsiderar o fato de que a Gita representa um tratado demetafísica, contendo elementos de filosofia, ética e práticas espirituais. Asimplicações da Gita não podem ser reduzidas, exclusivamente, à esfera da filosofia ouda teologia. Por ser parte integrante do épico Mahabharata, a Gita precisa serentendida nesse contexto, conforme demonstrado por vários especialistas orientais,bem como por românticos e transcendentalistas ocidentais. Os estudiososocidentais filiados à tradição historicista, ou orientalista, ao insistirem em trabalharcom a idéia etnocêntrica de que a Gita seja uma colagem de textos contraditórios,não conseguem reconhecer o valor, nem a consistência semântica revelada pelo textoquando se abandona a idéia dogmática de que a Gita não pode representar mais queuma caricatura primitiva das Escrituras ocidentais.

Se os especialistas ocidentais sequer conseguiram consenso em torno de comointerpretar a Gita, isso se deve, principalmente, à rejeição ao método alegórico,conforme utilizado por Gandhi, que reconheceu como o tópico central da Gita opróprio método prático que ele estava começando a formular e aplicar. De igualmodo, no Ocidente, foram os românticos e os transcendentalistas que perceberamque as alegorias atualizam a questão central da Gita – “como devo agir nesta dadasituação concreta?” – uma vez que essa questão não parece ter um a priori comoresposta, como crêem os seguidores da moral ocidental, fundada nos imperativos datradição judaico-cristã em dez mandamentos.

Surge daí a percepção da Gita como um tratado consistente sobre a ação. Aquestão “como devo agir?” aparece na Gita vinculada às motivações que se tem paraagir desse ou daquele modo. Daí Gandhi (1957) referir-se, em sua autobiografia, aosseus experimentos com as verdades relativas que já dominava e que funcionavamcomo uma bússola a sinalizar em direção às verdades supremas, absolutas, às quaisnão temos pleno acesso.

Em suma, aquilo que os indianos, românticos e transcendentalistas ocidentaiscompartilham é essa compreensão de que a experiência de Arjuna não éessencialmente diferente daquela a que é submetido, por exemplo, o Jó da Escrituraocidental. Em ambos os textos, a questão “como devo agir face ao mal e aosofrimento?” aparece em contraposição com a existência de um princípiotranscendente, para além do bem e do mal – princípio este que os seguidores datradição historicista de estudos sobre a Gita, infelizmente, ainda insistem emdesconsiderar.

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Um breve discurso acerca da história da interpretação da Bhagavad Gita

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 43

O MAGO ARTIFICIALRUBEM FONSECA

Luís Carlos de Morais JuniorFaculdade CCAA

Doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ

contato: [email protected]

Resumo: Breve análise do romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos,como uma amostra do procedimento literário artificialista pós-moderno de RubemFonseca.

Palavras-chave: Rubem Fonseca; literatura brasileira; simulacro.

Abstract: Brief analysis of the novel Vastas emoções e pensamentos imperfeitos,as an example of Rubem Fonseca’s artificialist postmodern literary process.

Keywords: Rubem Fonseca; Brazilian literature; simulacrum.

Resumen: Breve análisis de la novela Vastas emoções e pensamentos imperfeitos,como un ejemplo del procedimiento literario artificialista posmoderno de Rubem Fonseca.

Palabras clave: Rubem Fonseca; literatura brasileña; simulacro.

Luís Carlos de Morais Junior

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Rubem Fonseca produz contos, romances e roteiros violentos, que tratam detemas caros aos romances negros, do tipo best-seller, livros que alguns chamamde paraliteratura1, e que às vezes se vendem em bancas de jornal. Aparentemente, aum leitor menos avisado, suas obras poderiam também apelar para as fórmulas fáceisdos “mais vendidos”: sexo, mistério, violência, armas, suspense, finais inesperados,frases rápidas, parágrafos ágeis, ação quase sem descrição, uma dicção atlética, semadiposidades, impecável.

À parte serem seus livros best-sellers efetivos, pois vendem bem, não podemospensar que sejam apenas isto. São romances e contos que trabalham o tempo, eo tempo todo, com simulacros, inovando ainda, pelo que apresentam algo comosimulacros de simulacros (DELEUZE, 1974)2.

Neste artigo enfatizo o tema dos simulacros, por sua conexão com o que consideroessencial na obra de Rubem Fonseca, o seu artificialismo. Recusando totalmentequalquer naturalismo filosófico ou literário, apesar de não partir para radicalismos delinguagem literária, a obra de Rubem Fonseca se desenvolve na ambiência de umartificialismo radical, algo que poderia ser conceituado, por exemplo, a partir da leiturade A anti-natureza, de Clément Rosset (1989)3.

Há uma espécie de ilusionismo, de magia de circo, nas histórias do mago artificial,tão aparentemente naturais e, no entanto, realçando justamente a sua impossívelnaturalidade, tão agradáveis/desagradáveis, que irritam, ou fazem rir, e às vezes fazemrir e irritam ao mesmo tempo.

Desde os primeiros contos até os romances mais recentes, Fonseca manifesta umaescritura com estrutura cinematográfica. A mistura de gêneros no interior de umamesma obra é também uma característica bem contemporânea de sua produçãoliterária. Por exemplo, seus poemas-contos, e o fato de que, a par de escrever reaisroteiros para o cinema, O selvagem da ópera é um romance-roteiro, um texto híbridoque já vale ao mesmo tempo pelos dois. Fonseca se exercita ainda em metalinguagem,produzindo teoria da arte, idéias sobre artes plásticas ou teatro. Sua produção mostrauma multiplicidade surpreendente de meios e recursos.

Mas, o que mais “irrita” em Rubem Fonseca – “irritar” sendo aqui uma palavraesotérica (a palavra-valise que cruza duas séries de significado, como nos mostraDeleuze em Lógica do sentido), misto de provocar, fascinar e fazer rir com um certo

1 Não concordo com tal classificação, ou ainda a de subliteratura, pois obras de arte podem ter qualidades variáveis, sem que comisso sejam geralmente consideradas subobras; por exemplo, um filme ruim é um filme ruim, e não paracinema ou subcinema.

2 Deleuze utiliza o conceito de “simulacro”, e depois o abandona, nas suas obras posteriores, em favor do “virtual”; para estudarRubem Fonseca, porém, aquele nos parece indispensável.

3 Ver também, do mesmo autor: Lógica do pior. Trad. Fernando J. F. Ribeiro e Ivana Bentes. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

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terror – é o que relança o nosso tema. Não podemos mais antever, ali, naturalismoou ficção artificiosa, que se caracteriza apenas por se furtar à percepção comum. Háapenas um duro e cristalino artificialismo, que produz romances que se poderiamapresentar como um decalque da “vida” e do cotidiano, onde quer que ocorram, masde certo modo paradoxal, sem que, por isso, possam ser considerados mais naturaisou menos artificiais.

O livro de estréia de José Rubem, como o chamam seus amigos, foiOs prisioneiros4, um volume de contos, gênero no qual se firmou, tornando-se, apartir daí, um dos grandes contistas pós-modernos, que ombreia, no gênero, com oMachado realista e o modernista Mário de Andrade.

Em 2004, foi publicada, pela Companhia das Letras, a reunião 64 contos de Rubem Fonseca5. Algo a se destacar quanto a essa antologia é a alteração na disposiçãodo texto, pois os contos haviam sido publicados, originalmente, em coletâneasindependentes, que os reuniam parcialmente, de modo variado, a cada vez. Assim, cada forma de reunião, cada “montagem” dos contos, lhes comunicou um outroaspecto, agenciando relações inéditas entre eles. A leitura dessas publicações sucessivastorna-se interessante, pois fornece novos recursos de recuperação semântica.

Ao mesmo tempo em que cada obra se afirma na sua autonomia, como estruturaindependente, um sistema gerador do seu próprio sentido, a projeção dos contosem séries de publicações renovadas manifesta uma tendência característica da artecontemporânea, como a serialização de imagens em Volpi e Andy Warholl.

4 Os prisioneiros (GRD, 1963; Cia. das Letras, 4. ed., 3. reimpressão, 2001), ao qual se seguiram: A coleira do cão (GRD, 1965; Cia.das Letras, 4. ed., 1. reimpressão, 2001); Lúcia McCartney (Olivé, 1967; Cia. das Letras, 6. ed., 4. reimpressão, 2001); O caso Morel(Artenova, 1973; Cia. das Letras, 3. reimpressão, 1999; Record/Altaya, coleção Mestres da Literatura Contemporânea, 1998); Felizano novo (Artenova, 1975; Cia. das Letras, 2. ed., 15. reimpressão, 2001); O cobrador (Nova Fronteira, 1979; Cia. das Letras,3. ed., 6. reimpressão, 2001); A grande arte (Francisco Alves, 1983; Cia. das Letras, 12. ed., 17. reimpressão, 2001; Record/Altaya,coleção Mestres da Literatura Contemporânea, 1998); Bufo & Spallanzani (Francisco Alves, 1986; Cia. das Letras, 24. ed.,12. reimpressão, 2002); Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (Cia. das Letras, 1988; 15. reimpressão, 2001. Planeta/DeAgostini, coleção Grandes Escritores da Atualidade, 2003); Agosto (Cia. das Letras, 1990; 2. ed., 23. reimpressão; Record/Altaya,coleção Mestres da Literatura Contemporânea, 1995); Romance negro e outras histórias (Cia. das Letras, 1992; 2. ed.,6. reimpressão, 2001); O selvagem da ópera (Cia. das Letras, 1994; 4. reimpressão, 1999); O buraco na parede (Cia. das Letras,1995; 4. reimpressão, 2001); Histórias de amor (Cia. das Letras, 1997; 2. reimpressão, 2001); E do meio do mundo prostituto sóamores guardei ao meu charuto (Cia. das Letras, 1997; 1. reimpressão, 1997); Confraria dos espadas (Cia. das Letras, 1998;4. reimpressão, 2002); O doente Molière (Cia. das Letras, 2000; 1. reimpressão, 2000); Secreções, excreções e desatinos (Cia. dasLetras, 2001; 4. reimpressão, 2002); Pequenas criaturas (Cia. das Letras, 2002; 2. reimpressão, 2002); Diário de um fescenino (Cia.das Letras, 2003); Mandrake: a Bíblia e a bengala (Cia. das Letras, 2005); Ela e outras mulheres (Cia. das Letras, 2006).

5 Antologias: O homem de fevereiro ou março (Artenova, 1973); Romance negro, Feliz ano novo e outros contos (Ediouro, 1996); Contosreunidos (Cia. das Letras, 1994; 6. reimpressão, 2000); 64 contos de Rubem Fonseca (Cia. das Letras, 2004). Participações emcoletâneas: “Abril no Rio, em 1970”, in Onze em campo e um banco de primeira (Relume-Dumará, 1998); “O agente”, inTrabalhadores do Brasil (Geração Editorial, 1998); “A força humana”, “Passeio noturno I”, “Passeio noturno II”, “Feliz ano novo” e“A confraria dos espadas”, in Os cem melhores contos brasileiros do século, org. de Ítalo Moriconi (Objetiva, 2000); “O caso de F.A.”e “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, in Lapa do desterro e do desvario (Casa da Palavra, 2001); “Família é uma merda”, inVinte ficções breves, (Unesco, 2002); “O cobrador” e “O exterminador”, in Os 100 melhores contos de crime e mistério (Ediouro, 2002).

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Significados saltam à vista. O volume que reúne os 64 contos parece apresentá-loscomo se fossem novos, mesmo quando já havíamos lido as coletâneas anteriormentepublicadas. Podemos reparar que eles se ligam de muitas maneiras, os personagensretornam, mas com marcas individuais e/ou narrativas que os identificam. A cadavez que os personagens reaparecem, ao longo das obras, apresentam diferentescaracterísticas físicas e psicológicas.

A teoria do pós-modernismo é muito controvertida; no entanto, penso que nãopodemos considerar as produções sociais e culturais do Ocidente posteriores àSegunda Grande Guerra, à bomba, à robótica, à cibernética, à informática, ao inícioda conquista espacial, à contracultura e à queda do Muro de Berlim como aindaconsistentes com o mesmo solo epistemológico modernista da primeira metade doséculo XX.

Leitores de As palavras e as coisas, de Michel Foucault (1987), entendem, àsvezes, com rigidez acadêmica, que sempre será modernidade enquanto ainda houverCiências Humanas e a forma homem. Mas podemos observar que, dentro daspróprias Ciências Humanas, a forma homem está sendo ultrapassada. Foucaultmesmo manifestou, em algumas de suas entrevistas, ter registrado a transição deuma longa era, a que teria pertencido a sociedade disciplinar do século XIX, à eraatual. Iniciando-se na segunda metade do século XX, nela se desenvolve já outro tipode formação social, designada também por Deleuze como sociedade de controle.

Isso, no contexto foucaultiano, que lida com o conceito de a priori históricoenquanto estrutura da episteme de uma época, irredutível a qualquer outra, significaa necessidade de repensar as formas culturais da atualidade, pois elas não sãomais adequadamente conceituadas pelos parâmetros de definição daquilo que vinhase apresentando até aqui. As noções do fazer artístico, científico e político setransformaram, de modo que uma metalinguagem precisa ser configurada para quese recupere conceitualmente aquilo que já está em marcha na efetividade histórica.

As teorias que se preocupam com os fenômenos enfeixados no rótulopós-modernismo se engajam na via dessa tarefa. Nesse sentido, a compreensão daobra de Fonseca no Brasil pode fornecer importantes aportes na abrangência do quese revela efetivamente atual no campo da literatura.

Rubem Fonseca é o escritor que mais faz a comunicação das mídias entre nós, nãosó entre cinema e literatura, mas entre todas as artes, como realizador e pensador.

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Rubem Fonseca é transdutor, o que significa que faz a transdução, a “tradução” deuma mensagem constituída em certo código para outro código.

A relação entre cinema e literatura é importante, talvez um dos traços maiscaracterísticos de sua obra; o que também é um tópico da produção pós-moderna,como nos exemplos de Robbes-Grillet e Almodóvar.

Na infância, Rubem Fonseca foi muito influenciado por sua babá, que namoravaum bilheteiro, e levava o futuro escritor, desde os dois anos de idade, diariamente, aocinema, onde ele assistia às sessões.

Conforme observa Sérgio Augusto:[...] Em seus contos, a influência do cinema quase que só transparecena linguagem ágil e elíptica do autor. Há um médico que se parececom Carlitos em “Os Prisioneiros”, uma frustrada ida ao cinema em“Madona”, um cartaz do filme “Bom-Dia Tristeza” em “Relatório deCarlos”, e uma acusação ao escritor de “Corações Solitários” de queteria plagiado um filme italiano – o que é pouco se comparado com asreferências acumuladas em seus romances. Em “O Caso Morel”, umpersonagem roda filmes em super-8 e uma mulher sonha com a carreiracinematográfica. Wexler, o sócio de Mandrake em “A Grande Arte”,herdou seu nome do diretor de fotografia Haskell Wexler. Fala-se, em“Bufo & Spallanzani”, de Clara Bow e Jean Harlow, de filmes dublados,e um encontro é marcado na porta do cine Art-Palácio, em Copacabana.(AUGUSTO, 1988)

Mas é somente no livro Vastas emoções e pensamentos imperfeitos que se apresentao cinema como assunto principal. Há uma verdadeira obsessão do narrador: compararos fatos que vão acontecendo a cenas de filmes, utilizando-os como fonte deinformação sobre a realidade e fonte de inspiração para suas ações.

O romance mistura gêneros, pois encena relatórios de pesquisa sobre assuntosdisparatados, como pedras preciosas e a política soviética, da revolução à Perestroika.Já o tema de uma possível esquerda brasileira está entrelaçado com a culpa dopersonagem, estabelecida por outros, por não ser de esquerda, o que repõe o que háde problemático e contraditório no papel do intelectual.

Outro motivo de culpa, constante nos seus contos e romances: o narrador sesente responsável pelo suicídio da mulher que amava, pois dirigia o automóvel nomomento do acidente que a tornou paraplégica. Sendo bailarina, ela se suicidou.Desde O caso Morel, o personagem traz a dubiedade de ser violento e cruel com amulher, e no entanto se dizer inocente, como se sempre fosse obrigado a agir assim,ou tudo fosse um mal-entendido.

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A ambigüidade da situação do intelectual se comunica àquela do homem numasociedade machista e instável, ao mesmo tempo em que a pessoa não pode se desfazerde seus próprios sentimentos, ainda que se descubra impotente para transformá-losem ação num espaço social que torna impessoais e burocratizadas as relações e asinstituições, banalizando o que pudesse haver de mais estranho ou inquietante.“Agarrei-a pelo cabelo, delicadamente, e levei-a para o quarto. ‘Se você quiser, podeme bater’, disse Liliana.” (FONSECA, 1988, p. 83)

E, ainda, o romance é sobre o grande pequeno contista judeu soviético, IsaakBábel. O narrador é um personagem sem nome, cineasta que não sonha imagens,só palavras. Revela-se a graça da situação, pois o personagem, que é um cineasta, eque devia lidar com imagens, é agora personagem de livro, onde não há imagensreais, e o cinema que a prosa fabrica para o leitor é todo imaginário. Ou, ainda, abrincadeira meio escondida ou com pessoas de seu conhecimento, pois, invertendo oprocedimento, o autor declara que sua inspiração é sempre de imagens, nunca deidéias ou palavras. E o humor de parecer que o personagem está fazendo uma críticaimplícita ao próprio livro onde ele vive, ao mundo que o torna possível: “Vou resumir:meu sonho é como se estivesse lendo um livro mal escrito” (FONSECA, 1988, p. 153).

Referindo-se a esse personagem, Sérgio Augusto observa muito bem: como “amaioria dos narradores e protagonistas de Rubem Fonseca, ele é um retrato sublimadode Zé Rubem”. Augusto fornece, também, um informado inventário de algumas dasmuitas citações e situações cinematográficas do romance e do:

[...] herói que parece uma bricolagem dos que Hitchcock manipulou em“Janela Indiscreta”, “Intriga Internacional” e “Cortina Rasgada”, o novo eexcitante thriller de Rubem Fonseca resolve algumas de suas passagens àmaneira do mestre. Nenhuma de forma tão explícita como a tumultuadafuga do narrador e sua namorada de um restaurante da Zona Sul do Rio,no final do oitavo capítulo. Encurralado por um bandido, o casal provocauma confusão no restaurante para atrair – e ser salvo – pela polícia. Nãofoi assim que Cary Grant livrou-se de dois bandidos durante um leilão em“Intriga Internacional”? [...] Curiosamente, não há qualquer referênciadireta a Hitchcock em todo o livro. O autor compara alguns de seuspersonagens aos atores Sidney Greenstreet, Alexander Knox, BurtLancaster, Richard Widmark e Charles Laughton, tira o chapéu para umadúzia de cineastas (John Huston, Orson Welles, Max Ophuls, StanleyKubrick, Henry Hathaway, Ingmar Bergman, Istvan Szabo, Abel Gance,Eric Rohmer, Wim Wenders, Allan Dwan, Roberto Rosselini, RainerFassbinder), deixando Hitchcock oculto por elipse. A homenagem a AkiraKurosawa (p. 115) vale apenas pela intenção, pois quem dirigiu o filme(“Harakiri”) em que o ator Tatsuya Nakadai “abre a barriga com um pedaçode bambu” não foi Kurosawa, mas Masaki Kobayashi. (AUGUSTO, 1988)

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Pela reversão da piada, pelo sonho sem imagens e só com palavras, por ser umescritor que parece tanto com o autor, pelo autor ter declarado que sua biografia estánas suas obras, e por outras coisas mais, o romance parece um jogo de espelhos. Ospersonagens querem ganhar vida e invadir o real, conscientizar-se da sua presençano mundo, como se o artifício fosse ou lutasse para ser a realidade mais efetiva.

Assim, eles não são cópias do que deveriam ser pessoas reais, mas simulacros quedesejam reverter seus modelos, roubar a realidade que se esvaziou, ela própria, deseus caracteres modelares. Simulacros de simulacros, pois tampouco se relacionama si mesmos, mas evocam outros personagens em outras obras, destacados de seuscontextos.

Ocorre o mesmo na cena em que o personagem cineasta vê no restaurante umsujeito que parecia seu pai doente, com face esquálida e envelhecida. Ele quase lhedirige palavras ríspidas, pois o homem o encara, mas então percebe que era a suaprópria face que via, no espelho. Como Boris Schnaiderman (SCHNAIDERMAN, 1980)observa sobre os contos de O cobrador, temos aí mais uma referência importante aMachado, neste caso, ao conto “O espelho”.

Quase ao final do romance, quando ele precisa desesperadamente entrar nohospital para conversar com Gurian − e justamente aí seus blefes não funcionamcomo costumam −, ele se vê de novo no espelho, porém não se reconhece.

Havia um espelho no vestíbulo do hospital. Olhei minha imagem e aimagem de Paulino. Paulino parecia um médico de filme americano,limpo, bonito, confiável. Eu parecia mesmo um maluco, de filme francês,em que o limite entre excentricidade e loucura não está bem definido.(FONSECA, 1988, p. 28)

Essa autoconsciência atravessando vida e obra pode bem ser a causa dessaespécie de defesa expressa pelo personagem Boris Gurian (FONSECA, 1988, p. 76).Pois o livro é uma declaração de amor a um escritor de várias formas injustiçado: ohomem fraco diante da gigantesca estrutura estatal que o engoliu e que se revela parao narrador como o maior contista de todos os tempos. É também um pensamentosobre a revolução soviética, dos primórdios até o fim, com a perestroika.

Os personagens discutem a política russa e soviética, desde Lênin, passando porStalin, Kruschev e Brejniev, até chegar a Gorbachev. Há mesmo o carismático ex-padrecurandeiro Corcunda, que nos faz lembrar Rasputin, assim como o frágil Alcobaçatraz algo do filho doentio do último czar, Alexandre.

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Outra referência é uma verdadeira homenagem a Guimarães Rosa, nascido nacidade pela qual passa o ônibus do personagem, “[...] um lugar onde nascem pessoasimportantes [...] Cordisburgo só poderia me alegrar” (FONSECA, 1988, p. 276).

A recepção dessa literatura pós-moderna, pois feita de referências e reminiscênciasdo já lido, equivale à experiência virtual de assimilar vários livros muito compactadose rápidos, aglomerados num só.

Um deles é sobre a literatura. Fonseca não fala de cinema, fala sobre a escrita e aficção, a qual, para ser bem compreendida hoje em dia, precisa ser comparada com,iluminada por e diferenciada do cinema. Ver sobre isso, por exemplo, as discussõescom Gurian, em que este representa a literatura, enquanto o narrador fala pelo cinema:

Puchkin dizia que precisão e brevidade são as principais qualidadesda prosa. [...] O cinema não tem os mesmos recursos metafóricos epolissêmicos da literatura. O cinema é reducionista, simplificador, raso.O cinema não é nada.[...]

Gurian achava impossível o cinema criar na mente do espectador umainteração complexa, profunda e permanente de signos e símbolos,conceitos e emoções como a que a literatura estabelecia com o leitor.(FONSECA, 1988, p. 56 e 77)

Há a inquietante questão dos religiosos que exploram a fé do povo, mostrada porJosé, o irmão do protagonista, que vai ficando cada vez mais rico com sua pregação. José compra um canal de TV e quer ser político, talvez até presidente(FONSECA, 1988, p. 17). O próprio narrador vai relativizar o conceito que tem doirmão (FONSECA, 1988, p. 22).

Todos são cruéis, como se sob a camada falsa da aparência se ocultasse o brilhodo diamante verdadeiro; como o médico, que quer obrigar o personagem a urinarna frente da enfermeira, e mostra sua impaciência e brutalidade, com seu olharrancoroso, ameaçando colocar uma sonda (FONSECA, 1988, p. 229).

O “irmão” José traz a dupla ironia de seu nome (o mesmo do autor), pois érealmente irmão do narrador (todos o chamam “irmão”, pela convenção religiosa).O nome remete ainda ao personagem bíblico, que foi traído pelos irmãos e se salvoupor saber interpretar sonhos. Ora, sabemos que o problema do protagonista estátodo entremeado com seus sonhos surrealistas, e o segredo do roubo do diamante érevelado pelo sonho do amigo, que ele não perdoa por roubar, assim como nãoperdoa ao irmão; no entanto, com a maior facilidade do mundo, justifica o seupróprio roubo das pedras preciosas e do suposto manuscrito de Isaak Bábel.

O mago artificial Rubem Fonseca

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 51

Os dólares jorram na vida dos dois personagens, sem que eles dêem muitaimportância para isso, tal é a sua fartura. O narrador chega a rasgar dólares numrestaurante, para convencer a namorada a viajar – e Rubem Fonseca mostra queele mesmo o fez, quando nos conta que as cédulas estadunidenses são muitoresistentes e difíceis de rasgar, o que ele só pode ter averiguado tendo-o feito elemesmo, brincando de mesclar ficção e realidade, razão e loucura, glosando o moteque diz que só um louco é que rasga dinheiro.

O único valor do personagem, que é aceito, ou pelo menos noticiado, por todos,é ter filmado A guerra santa, baseado em Os sertões, de Euclides da Cunha. E aí, maisuma vez, o personagem aparece como um ladrão, um aproveitador. Sua quase-namoradaLiliana acusa-o de “ter sido salvo pela própria ignorância” (FONSECA, 1988, p. 32),quer dizer, por não conhecer as convenções técnicas e de linguagem que todocineasta conhece, ele pareceu inovar, quando o que na verdade ocorria, segundo ela,é que ele errava, e brabo; como se não pudesse ver, ou visse tudo de uma formacaótica, confundindo narrativa e documentário, realidade e ficção. “[...] Mas a rigornão existe essa coisa chamada documentário, tudo é montagem, tudo, no cinema, éfictício, de uma forma ou de outra.” (FONSECA, 1988, p. 208)

O balé dos mendigos, que vai ser o filme que o leva a conhecer Ruth, a bailarina ecoreógrafa por quem se apaixona, é outra idéia de transdução, da arte intersemióticade Rubem Fonseca, uma sugestão que pode ser balé, filme, happening etc., além de serengraçada, de participar desse humor fino que permeia sua obra.

O nome de seu contista preferido, pelo qual vive tantas aventuras, é também umsigno da contemporaneidade, pois nos faz lembrar a torre de Babel, quando a diversidadedas línguas foi criada e os homens passaram a não conseguir mais se entender uns aosoutros. Os personagens de Rubem Fonseca vivem o tempo todo num mundo babélico,no qual a impossibilidade de autêntica comunicação intersubjetiva se torna patente pelopróprio fato de haver uma saturação de fontes, de mídias, de linguagens.

Em 1989, quando da queda do muro de Berlim, a rede Manchete de televisão, doRio de Janeiro, mandou um repórter entrevistar transeuntes que comemoravam nasruas da capital alemã, para o programa “Documento Especial”. Entre eles havia umbrasileiro, que deu ao repórter o nome de Zé Rubem, ao lado de uma linda loura, quefalava português com perfeição e mentiu ser brasileira também. Os dois comentaramalguma coisa sobre o acontecimento histórico, e o repórter foi adiante, sem perceberque entrevistara Rubem Fonseca. Quem seria aquela mulher ao seu lado? O modeloreal da personagem Veronika? Artificialista, cruza vida e obra, sem representações,tudo apresentações.

Luís Carlos de Morais Junior

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Outra camada desse livro, além dos saberes que agencia sobre Bábel, a política,as pedras preciosas e o cinema, é aquela que fala da artificialidade das coisas narealidade e sociedade atuais. O livro começa assim, com tudo girando, se desfazendo,o protagonista caindo num abismo por causa da pseudo-síndrome de Menière, maisuma aula que nos dá. Note-se que nem a sua doença é verdadeira, é uma síndromefalsa, como o pseudônimo de Bábel.

O livro fecha com o personagem confundindo e misturando as jóias verdadeiras,causa de tantas atrocidades, com os vidros coloridos do costureiro que se fantasiavacom temas megalomaníacos, como sói acontecer, e que nesse ano teria uma fortunaoculta em sua pretensamente falsa fantasia de luxo.

Depois, o personagem se agarra a um poste de ferro como se fosse uma árvore.Reitera a frase título, que citara no início, atribuída por Shakespeare ao sonho e peloherói do livro a tudo: ao mundo dos sonhos, ao mundo do livro, e ao livro do mundo.

Referências

• AUGUSTO, Sérgio. Novo livro de Rubem Fonseca traz as ‘vastas emoções’cinematográficas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 nov. 1988.

• DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. SãoPaulo: Perspectiva, 1974.

• FONSECA, Rubem. Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. São Paulo: Cia.das Letras, 1988; 2001. Reimpressão.

• ________. Os prisioneiros. São Paulo: GRD; 4. ed., Cia. das Letras, 2001.Reimpressão.

• ________. 64 contos de Rubem Fonseca. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

• FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail.4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

• ROSSET, Clément. A anti-natureza. Trad. Getulio Puell. Rio de Janeiro:Espaço e Tempo, 1989.

• SCHNAIDERMAN, Boris. Rubem Fonseca, precioso. Num pequeno livro(O Cobrador). Jornal da Tarde, São Paulo, 27 set. 1980.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 53

TERMINAL: COSMOGONIA EEVANESCÊNCIA EMRONALD POLITO

Marcelo DinizFaculdade CCAA

Doutor em Ciências da Literatura-Semiologia pela UFRJ

contato: [email protected]

Resumo: O livro Terminal, de Ronald Polito, lançado em 2006 pela Editora 7 Letras, apresenta uma poética que compreende a poesia como cosmogonia eevanescência, configurando uma estética em que a subjetividade permanece na tensãoentre o desejo de integração e a desintegração no mundo.

Palavras-chave: poesia brasileira; êxtase; subjetividade; estética.

Abstract: Terminal, a book by Ronald Polito, published in 2006 by Editora 7 Letras,presents a poetry which understands poetry as cosmogony and evanescence, representing anaesthetic judgement in which subjectivity is found in the tension between the desire forintegration and the actual disintegration that exists in the world.

Keywords: Brazilian poetry; ecstasy; subjectivity; aesthetic.

Resumen: El libro Terminal, de Ronald Polito, que fue lanzado en 2006 por laeditorial “7 Letras”, presenta una poética que comprende la poesía como cosmogoníay evanescencia, constituyendo una estética en que la subjetividad sigue en la tensión entreel deseo de integración y la desintegración en el mundo.

Palabras clave: poesía brasileña; ecstasy; subjetividad; estética.

Marcelo Diniz

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Lançado pela 7 Letras, na Coleção Guizos, em 2006, Terminal poderia ser o títulonão só do livro mais recente de Ronald Polito1, bem como uma chave de leiturade sua poética2. O livro atualiza um dos sentidos de seu título com o termo“Encruzilhada”, título da série ou poema de abertura, em paralelo com “Muralha”,título da série ou poema de fechamento. O termo “Encruzilhada” renova a polissemia:cruzamento, junção de várias vias. A seção ou poema “Muralha”, idem: limiteintransponível ou demarcação de domínio. Esse paralelismo entre a primeira seção ea última sugere certo roteiro de leitura em meio à relativa autonomia das seções deque é composto o livro. Os primeiro e último poemas demarcam, em seus primeirosversos, esse paralelismo segundo uma poética cosmogônica (“Pode haver/ um pontode partida” – do primeiro poema) em que o cosmo poético se descreve pela suaprópria evanescência (“quando tudo desapareceu” – do último poema).

O primeiro poema-seção, “Encruzilhada”, apresenta-se com uma abertura introdutóriados mais freqüentes procedimentos poéticos presentes em todo o livro: a economiasintática, o enjambement como decupagem brusca não só da sintaxe, bem como daprópria figura insinuada pelos textos, a tensão entre o metafísico e o prosaico, bemcomo entre o figurativo e o abstrato. Sua matéria é a própria possibilidade da escrita:descrita pela primeira estrofe segundo a topologia aguda do mot juste (“Um epicentrode onde / soe / alguma palavra exata.”); desdobrada pela segunda estrofe como viade passagem, descrevendo mais uma das polissemias do título do livro (“Se via depassagem / ou gozo de fuga / por derrocadas, desertos, que / acolha e multiplique /saídas, estiagens / emergências.”), e pela terceira e última, como o aqui e agora daprópria escrita e sua implicação com o corpo (“um corpo / que empurra o vento, /que ilumina a luz, / amarrota o mar, coberto de / pó. Que / possa dobrar, / passo apasso, / o risco do caminho.”).

Da referência a “Um corpo / que empurra o vento, / que ilumina a luz, / amarrotao mar, coberto de / pó”, pode-se deduzir certo teor de um lirismo reduzido aomaterial e ao elementar, predominante em todos os poemas do livro. Este corpo

1 Para o leitor que, porventura, desconheça Ronald Polito, recomendo a visita à Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ronald_Polito.Reproduzo, aqui, a apresentação do autor, feita pela própria editora na orelha do livro: “Ronald Polito nasceu em Juiz de Fora, em1961. Mestre em História, poeta e tradutor, dedica-se à edição de autores de literatura brasileira (Gonzaga, Durão, Silva Alvarenga,Joaquim Manuel de Macedo) e à tradução de escritores de língua catalã (como Salvador Esporiu, Narcís Comadira, Quim Monzó,Maria-Mercè Marçal e Charles Camps Mundo) e castelhana (como José Juan Tablada e Jaime Gil de Biedma). Entre seus trabalhospoéticos publicados, destacam-se Solo (7 Letras, 1996), Vaga (edição do autor, 1997), Intervalos (7 Letras, 1998) e De passagem(Nanquim Editorial, 2001)”.

2 Fábio Weintraub, em texto de apresentação deste livro, lançado em 2006, propõe a interessante leitura de um duplo aspectosegundo a ambigüidade entre “as idéias de morte (paciente terminal) e movimento (terminal de linhas, ponto de conexão,transmissão)”. O texto de F.W. encontra-se no endereço:http://www.weblivros.com.br/k-jornal-de-cr-tica/k7-dezembro-2006-2.html#tentacao

Terminal: cosmogonia e evanescência em Ronald Polito

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 55

ambíguo (o corpo do indivíduo ou o corpo do próprio poema) cultiva com o seu meiouma relação oscilante entre a resistência e a redundância, entre a diferenciação e aindiferenciação, ilustram certo jogo entre a individuação e a integração, entreobstáculo e desejo de fusão, como descrevem as palavras de Fábio Weintraub. Umpasseio no centro urbano, animais, o próprio mundo oscilante entre o conceitofilosófico e a criação da escrita. Observa-se a predominância da descrição metonímicacomo modo de fragmentação da figura. Esse modo de construção metonímica efragmentária faz do desejo de integração e dessubjetivação um desejo dedesintegração extática que parece desdobrar o aspecto patológico do título do livro:Terminal.

O livro é composto por seis seções: além da primeira, “Encruzilhada”, e da última,“Muralha”, encontram-se, em seqüência, “City lights”, “Gabinete”, “Respiraçõesartificiais”, “Minizôo” e “No desterro”. Destaque-se o poema “Centro de um feixequalquer”, da segunda seção (“City lights”) do livro, que encontra a experiênciaextática na composição descritiva de uma impressão de suspensão derivada das voltasda fumaça de um cigarro. Suspensão em que o tempo é abolido e os objetos dacena, sob um flagrante em que o extático se manifesta como estático, dão-se a umadescrição poética que extrai do enjambement e das aliterações uma carga expressivade desaceleração da sintaxe e da figura descrita. Da fumaça, passando pelos móveis,à janela, aos elementos da paisagem, até a imagem da terra sob certa hipnose lunar,o extático representa a apercepção do macro e do micro coordenados, justamenteno instante fora do tempo em que os elos sintáticos da história se interrompem.Pela forma e pelo conteúdo entre o metafísico e o prosaico, o poema é marcado pelapossibilidade cosmogônica da escrita, apresentada na abertura do livro. No entanto,este poema também é marcado pelo teor evanescente do poema “Muralha”. Afinal,toda a percepção estética/extática que o poema constrói possui a duração de umavolta de fumaça, retornando todos os objetos à alienação de autômatos movimentosintegrais. De novo, a dupla face integração/desintegração assume a configuraçãoextática da duração de um instante, o que quer dizer, de um poema.

A seção “Gabinete” é a que mais concentra a reflexão cosmológica no livro.Composta por 12 poemas, oito deles reiteram esse tema de modo explicitamenteanafórico através da repetição do termo mundo (“Um mundo”, “Outro mundo”,“Ainda mais um mundo”, “O último mundo”: expressões que iniciam esses oitopoemas). Essa repetição remete à reflexão do mundo segundo uma perspectivaparodicamente filosófica, desdobrando o tema dos mundos possíveis, sendo opróprio poema o exercício dessas possibilidades. A redução elementar das descriçõesde mundo nesses poemas não só atende à impessoalidade quase utópica da própria

Marcelo Diniz

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poesia, bem como sua própria ironia, a consciência de sua impossibilidade, que fazdo desejo de dissolução extático uma “idéia obsedante/ de um inalcançável/ zero/qualquer” ou “Um atrativo zero absoluto”. De novo, o binômio entre a possibilidadeda escrita e a sua evanescência elabora a ambigüidade dramática da integração edesintegração, e o poema se resolve como experiência epifânica de um movimentoque parte da cosmogonia em direção à sua evanescência. É como se a poesia deRonald Polito se revelasse como terminal no sentido de evidenciar a impossibilidadeextática existencial, sendo, no entanto, um registro epifânico de sua possibilidadepoemática ou estética.

Se a seção “Gabinete” é a mais impessoal, a seção “No desterro”, a última antesdo poema-seção “Muralha”, é o seu oposto. Talvez seja a seção cujos poemas maisevidenciem a enunciação lírica que perpassa todo o livro e que mais expressam atensão subjetiva implicada em sua poética. Encontra-se nessa seção uma chavemuito sutil que parece remeter a um momento anterior à primeira seção do livro: adedicatória “À memória de minha mãe”. Fábio Weintraub aponta ser essa seçãoaquela em que se reconhece certo abrandamento das tensões que constituem todoo livro. Pode-se dizer que tudo o que nas demais seções é lido como desejo deintegração/desintegração, percepção estética/extática do mundo como linguagem,aqui se resolve como nostalgia, quimera e, a tirar pelo último poema da seção,aceitação mórbida, que enfatiza mais uma vez o título Terminal.

Há de se destacar a seção “Minizôo”. O humor e a brusca referencialidade dospoemas dessa seção dão-lhe o aspecto singular de uma pausa para distensão oudistração de todo o livro. Pode-se dizer que essa seção encerra o momento demaravilhamento descritivo da poesia de Ronald Polito. Poemas estanques, como seemoldurados, sem metalinguagem, exceto pelo último, inspiram-se na imagem deanimais: “Um texugo autodidata”, “Urso polar”, “Um papagaio”, “Gorila”, “O gnuacidental” e “O tigre branco”. Conforme a leitura de Fábio Weiuntraub, representa-secerta apropriação simbólica dos animais. Pode-se acrescentar que esse simbolismotambém se expressa, não raro, através do tema de certa nostalgia do animal. Umanostalgia que recorre à idéia da evocação ancestral, como em “Gorila”, ou mesmoa que recorre à metalinguagem presente no discurso de “O tigre branco”. Emum, a inveja do eu em relação ao pré-humano visto como um super-humano; em outro,a fala do tigre como o domínio da própria poesia. “O gorila” e “O tigre” emprestam àcosmogonia de Terminal o teor da enunciação fabulesca.

Terminal: cosmogonia e evanescência em Ronald Polito

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 57

E, no último terminal de seções, chegamos ao poema-seção “Muralha”, limiteda narrativa poética que se esboça no livro. Se no primeiro poema-seção,“Encruzilhada”, encontra-se a possibilidade da escrita como cosmogonia da relaçãoentre o corpo e o mundo em seu jogo de pertencimento e não pertencimento,integração e fragmentação, com o poema-seção “Muralha” a idéia de equivalênciaentre opostos (sim e não, exterior/interior) lamenta, ainda, a impossibilidade doesquecimento, o zero total. Certo lamento que se intensifica com os versos finais,que fazem com que o apocalipse equivalha à amnésia absoluta. O que ficou faltando,o resto, os riscos metonímicos, epifânicos, extáticos e estéticos de um corpo deescrita parece a evidência do inviável, o registro possível do volátil, a impossibilidadede “nunca mais nem se lembrar/ que esqueceu.” A muralha seria o limite desseesquecimento impossível, irregistrável. De certo modo, parece restar o sabor daironia, um tanto melancólica, não sem um clin d’oeil de um humor ácido e sutildestinado à inteligência do leitor do livro Terminal. Algo que pareça dizer que omundo e toda a experiência intelectual e afetiva nele implicados destinam-se a umesquecimento aniquilador fora desse domínio paradoxal e poético que é a linguagem,ao mesmo tempo possibilidade e evanescência.

Como ilustração dessa interpretação, selecionei os seguintes poemas a que esseartigo faz referência:

ENCRUZILHADA

Pode haverum ponto de partida.Um epicentro de ondesoealguma palavra exata.Como o encaixe de duas bocas.

Se via de passagemou gozo de fugapor derrocadas, desertos, queacolha e multipliquesaídas, estiagens,emergências.

Marcelo Diniz

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Hora de partir. Purafantasia. Um corpoque empurra o vento,que ilumina a luz,amarrota o mar, coberto depó. Quepossa dobrar,passo a passo,o risco do caminho.

CENTRO DE UM FEIXE QUALQUER

Por um instante a fumaça docigarro parece que sedetém no ar. E os quadros,a mesa, ficam ainda maisfixos. A moldura dajanela figura umretângulo azul fora dotempo. E nenhumvento vem violaro fugaz antedesejo decada coisa, pedra ou plantapermanecer em seulugar. Pássarospousam, pontespênseis, o marsusta o arremessode sua massatotal, e a terra jazmomentaneamentehipnotizada pela luz azulda lua. Então, no coração dequalquer Chinatown, umamosca pára deesfregar suas patas, e ascascatas numéricasda seqüência digital decada bolsa, cada

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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 59

bolso, seinterrompem. Maslogo a fumaça revolutano ar e todos osautômatos movimentosintegrais.

GORILA

Nunca terei teu pulso, aexatidão do instante dosoco, da força dosdedos quando premem,estrangulam, teusbraços, tuacintura.

Quando esmurro os músculos dos própriospeitos, o que faço sóse vencer, éa ti que vivificopalidamente,é tua glória aindaa causa única pelopeso de tudo.

Mesmo treinando muitonão posso alcançara solenidadeque você transpirasentado.

O TIGRE BRANCO

Uma clareirasemprese abre àminha passagem.

Marcelo Diniz

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Um grande ectoplasma.Os meus estojos carrego comigo,para quando me pintode vermelhoe tudo em tornodesfalece.

Sou feliz.

Nada (esqueçamoso invejoso tempo) me devora.

Repetir-me émeu único elocom a necessidadeda eloqüência.Mas rápido retorno àminha solidão extática e inexpugnável.

O verdadeiro rei sou eu.

MURALHA

Quando tudo desapareceu,a luz e sua ausência seequivaleram, sim e nãofundidos ao silênciointerior, exterior,definitivos, maiores,ainda assim ficoufaltando esquecertudo. Mas,sobretudo,nunca mais nem se lembrarque esqueceu.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 61

O ESPAÇO AUTOBIOGRÁFICOEM NUMERAL,

DE ARMANDO FREITAS FILHO1

Mariana Quadros PinheiroFaculdade CCAABolsista do CNPq

contato: [email protected]

Resumo: Este ensaio analisa a série de poemas Numeral, escrita por ArmandoFreitas Filho até o momento de sua morte. Nesse trabalho de Freitas Filho, observam-secomo autobiográficos os procedimentos que iluminam a tensão entre a finitude docorpo e o infinito da escrita. Desse modo, este trabalho pretende defender umaconcepção de autobiografia que supera os limites do gênero textual.

Palavras-chave: autobiografia; poesia; série.

Abstract: This essay analyzes Numeral, a series of poems written by ArmandoFreitas Filho until the moment of his death. On this Freitas Filho’s work, the procedures thathighlight the tension between the finitude of the body and the infinitude of the writing aredeemed as autobiographical. This essay defends a conception of autobiography thatsurpasses the limits of the genre.

Keywords: autobiography; poetry; series.

Resumen: Este ensayo analiza Numeral, una serie de poemas escritos por ArmandoFreitas Filho hasta el momento de su muerte. En esta obra de Freitas Filho, se observan comoautobiográficos los procedimientos que destacan la tensión entre la finitud del cuerpo y elinfinito de la escritura. Así, este trabajo pretende defender un concepto de autobiografíaque sobrepasa los límites del género textual.

Palabras clave: autobiografía; poesía; serie.

1 Este trabalho foi realizado com o apoio do CNPq.

Mariana Quadros Pinheiro

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INTRODUÇÃO

O verso “Numerando até a morte”, do poema 20 de Numeral, parece resumir oprojeto lançado por Armando Freitas Filho com a série inaugurada em Máquina deescrever, obra reunida do poeta. Nesse volume, em espécie de anexo ou suplementoao inédito Nominal, foram publicados os primeiros poemas numerados. A cada novolivro escrito pelo poeta a partir de então, a série se expandirá, em suplementos comoaquele encontrado na edição da obra reunida. A deriva da numeração é potencialmenteinfinita, salvo pela interrupção sempre iminente da escrita devido à morte do poeta.Seriam os primeiros números, publicados na obra de 2003, também os últimos?A ameaça do fim não se confirma, porém, e na coletânea Raro mar surgem novosnumerais.

Uma vez que o limite da série é a finitude do corpo, escrita e vida se imbricam.O procedimento de numeração aponta justamente para a criação de novos poemasenquanto a vida durar. De tal fusão, decorre a instabilidade do espaço poético:“ainda” e “enquanto” são as expressões que, indissociáveis, desenham os contornossempre móveis da criação poética dos numerais. Porque é singular, o corpo convivecom sua condição finita (ainda não morto) sem que se possa definir sua potência deantemão. De fato, é impossível determinar quando ou como o corpo esbarrará como evento que o fará interromper sua produção. Porque indeterminado, o corpo podereverter suas múltiplas (e talvez infinitas) potencialidades em novos atos (enquantovivo, o corpo pode ampliar sempre mais um pouco suas possibilidades).

Se a escrita se desdobra em íntima relação com a finitude do corpo, poder-se-iapensar em um vínculo entre vida e linguagem baseado exclusivamente na limitação.A morte como termo inevitável da atividade do eu, escrever e numerar a duraçãoda vida seria uma forma de marcar a insuficiência de nossa condição. O término dadispersão da linguagem, porém, se dará sempre no futuro: a escrita esbarrará com afinitude do corpo. Esse fim anunciado, enquanto não chega, faz o corpo produzir,inscrever-se na escrita. O limite, reafirmado a cada novo número, não é apenaslimitação, mas forma de fazer avançar a série, seu corpo não delimitável, em facedessa linha que se move mais um pouco a cada número – vida se inscrevendona escrita a partir dessa fronteira inapreensível, a morte. A singularidade e aindeterminação do corpo deixam, assim, marcas na linguagem, ao mesmo tempoadensando seu potencial infinito e anunciando seu silenciamento.

A partir desse desequilíbrio entre o infinito da linguagem e a finitude da vida,o corpo grafa-se. Constrói-se, desse modo, um espaço autobiográfico em Numeral.Não que se defenda a leitura dessa série como parte do que se convencionou chamar

O espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 63

de autobiografia como um gênero com espaço reservado nas prateleiras de livrarias.Não que surja daquele espaço autobiográfico um teor expressional, de revelaçãotransparente de acontecimentos determinados da vida e dos sentimentos do sujeito.Ao contrário, o espaço autobiográfico que se quer analisar aqui é aquele marcadopela tensão, pelos contornos ainda não definidos, uma vez que redesenhados a cadanova numeração.

Entendido como grafia do corpo na linguagem, o autobiográfico se torna esseespaço de modulações em que os índices do eu na escrita tornam-na um lugar deabertura e indeterminação próprias do “por enquanto” do corpo. A partir dospoemas já publicados da série Numeral, em Máquina de escrever e Raro mar,procuraremos seguir esses índices do corpo que nos fazem observar a série comoautobiográfica.

ALÉM DO PACTO

Buscamos em Numeral o caráter autobiográfico presente na serialidade dospoemas numerados até a morte. Pode parecer inapropriado o termo “autobiográfico”para referir-se a poemas que tematizam freqüentemente a incapacidade do sujeito deexpressar-se por meio da linguagem. Certamente, essa expressão se torna apropriadaou imprópria de acordo com a definição apresentada de autobiografia.

A autobiografia tem sido observada como um gênero textual com característicaspróprias. Assim, são freqüentes as prateleiras reservadas aos livros que responderiamà caracterização desse suposto gênero. Aqueles que buscam volumes entre essasprateleiras esperam encontrar, em especial, um discurso feito por alguém que narrae interpreta sua própria vida. Recontar fatos corriqueiros e extraordinários queimportaram para a construção de uma história individual é, pois, parte fundamentaldas características associadas, comumente, à autobiografia. Apesar de poucorefinada em muitos aspectos, essa caracterização parece embasar o senso comumsobre esse tipo de texto e atua no sentido de apaziguar as gradações e as tensõesque permeiam os escritos autobiográficos.

Não muito distante dessas características pouco precisas que o pensamentonão-especializado tributa à autobiografia, estão as reflexões de Philippe Lejeune emLe pacte autobiographique. A partir da consideração da autobiografia como umtexto literário com características próprias, esse pesquisador propõe esclarecer ofuncionamento do gênero. Sua definição aproxima-se daquela que faz figurarem entreas prateleiras dedicadas à autobiografia os discursos que contam, retrospectivamente,

Mariana Quadros Pinheiro

64 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1

uma história pessoal. Em seu esforço de precisão, Lejeune restringe ainda mais ogênero (e também as possibilidades de pensar a autobiografia para além do gênero)1.A definição proposta por esse autor servirá como importante contraponto à concepçãode escrita autobiográfica que ensaiamos nesse texto: “Récit retrospéctif en prosequ’une personne réelle fait de sa propre existence, lorsqu’elle met l’accent sur sa vieindividuelle, en particulier sur l’histoire de sa personnalité” (LEJEUNE, 1996, p. 14).

Uma vez restrita a autobiografia à narrativa em prosa, as considerações de Lejeuneparecem excluir a possibilidade de pensar Numeral como uma série autobiográfica. Defato, não se trata de um texto em prosa, tampouco de poemas que narram a históriada construção da personalidade de um personagem2. Esses elementos da definiçãosão, porém, segundo o mesmo autor, uma questão de proporção ou de hierarquia.Poderíamos ainda pensar, portanto, a série Numeral de acordo com o pensamentodesenvolvido em Le pacte autobiographique.

Em especial, a delimitação do objeto dos textos autobiográficos à história dapersonalidade do autor afasta nossas reflexões sobre Numeral do espaço aberto pelopensamento de Lejeune. Com efeito, para garantir que a narrativa desenvolvida emum texto seja a da vida de quem escreve, é preciso que haja identidade entre autor enarrador e entre este e a personagem principal. Tal identidade é, porém, problemática,visto que se apóia quase sempre nos elementos lingüísticos que denotam as pessoasdiscursivas. Dêiticos e pronomes pessoais, termos que não podem ter seu significadodefinido senão em discurso, vêm justamente contrariar o caráter peremptório observadopor Lejeune no gênero textual que tenta definir.

Para se manter coerente com sua hipótese, o autor precisa buscar um termo quepossa definir a referência dos pronomes pessoais, em especial do “eu”, e dos dêiticos aele relacionados. Para tanto, tenta se contrapor a algumas reflexões feitas por Benvenisteem Da subjetividade na linguagem, especialmente à consideração do lingüista de que ospronomes pessoais não remetem a um indivíduo. Nas palavras de Benveniste: “Ora,esses pronomes [pessoais] se distinguem de todas as designações que a línguaarticula, no seguinte: não remetem nem a um conceito nem a um indivíduo”(BENVENISTE, 2005, p. 288).

1 Lejeune, com efeito, não admite gradações entre escritas marcadamente autobiográficas e aquelas em que, embora de forma menosevidente, corpo e escrita se relacionam de forma tensa. Em suas palavras: “L’autobiographie, elle, ne comporte pas degrés: c’esttout ou rien” (LEJEUNE, 1996, p. 25).

2 Embora a série possa ser pensada como narrativa (os números narrando a história de um corpo desde 1999 até o momento futurode sua morte), preferimos entender os numerais como dramatização da finitude do corpo em tensão com o poder expansivo dalinguagem.

O espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho

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Com efeito, “eu” não remete a um conceito, visto que não há um significado queenglobe todos os usos individuais de “eu” (ao contrário do que acontece em outrossignos, como “árvore”, “casa”, etc.); tampouco remete a um ser específico: se “eu”identificasse um indivíduo em sua particularidade, ele não poderia remeter a todo equalquer enunciador, como faz.

Para Lejeune, no registro oral da linguagem, a referência do pronome é facilmenteobservada devido à presença física de que enuncia: “eu” remeteria, assim, ao indivíduoque fala3. No caso dos textos autobiográficos, escritos, é preciso buscar outroelemento que possa garantir o fundamento da concepção da autobiografia comogênero: a identidade entre autor, narrador e personagem, baseada quase sempre naprimeira pessoa do discurso.

É no nome próprio que Lejeune encontra o termo que fixaria essa identidade: o euenvia ao enunciador e este envia ao nome próprio. O nome estampado na capa deum volume atuaria, assim, de modo a fechar o sentido do pronome e aprisioná-lona referência a um indivíduo cuja existência é comprovada pelos documentos queatestam o caráter verídico de sua identidade. O nome próprio, assim como a explicitaçãopor editores de que o texto publicado é uma autobiografia, garante, pois, um pactoque fará com que o leitor situe os termos de primeira pessoa como formas cambiáveispelo nome, e este como confirmação da identidade entre uma “pessoa real” e ospronomes pessoais e dêiticos usados.

O pacto autobiográfico, que dá título ao livro de Lejeune, relaciona, dessa forma, asreflexões sobre a autobiografia a um contrato de leitura firmado pelo nome próprio epelas informações estampadas na capa do volume impresso4. A autobiografia seriadefinida, desse modo, mais pelo pacto de leitura do que pelos elementos formais que odefinem. Esse pacto é o que levaria à separação freqüentemente simples (ou simplista)entre os textos que podem participar do gênero da autobiografia e os que não podem.

Numeral certamente figuraria entre os últimos. Não só os números em ordemcrescente não retomam a sucessão cronológica de fatos que explicariam a existênciado autor, como o nome próprio a figurar na capa não parece apaziguar o problemacriado pelos termos que remetem à enunciação. Ao contrário, a referência dessestermos é sempre tensionada, de tal modo que o espaço autobiográfico em Numeralnão admite que se procure a identidade postulada por Lejeune entre autor e eu lírico.

3 Parece-nos que, mesmo no registro oral, a referência dos pronomes pessoais não se define facilmente devido à presença física dequem fala. Em um enunciado como: “Eu insistia para que parasse de gritar: eu quero”, mesmo no discurso oral, a referência do “eu”na segunda ocorrência não se identifica àquele que, em presença dos interlocutores, enuncia a frase.

4 Assim Lejeune define esse pacto: “Le pacte autobiographique, c’est l’affirmation dans le texte de cette identité, renvoyant endernier ressort au nom de l’auteur sur la couverture” (LEJEUNE, 1996, p. 26).

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De fato, em Numeral, há poemas em que não há qualquer referência às pessoasdo discurso: há o uso quase exclusivo de verbos no infinitivo, como no numeral 325,ou da não-pessoa, como no numeral 356. Além disso, o uso da primeira pessoa nãoremete de forma simples a um enunciador cuja existência se identifique ao indivíduoportador do nome estampado na capa.

Já no primeiro numeral, dois versos indicam que o eu não pode ter seu significadoatestado facilmente: “Pulo de dois pés juntos/ para dentro de mim, de você” (FREITASFILHO, 2003, p. 35). Além de não podermos garantir que a primeira pessoa implícitano verbo “pular” identifique-se com Armando Freitas Filho, a ambigüidade sintáticano segundo verso intensifica o problema lançado pelos pronomes pessoais. Comefeito, “de você” e “de mim” podem ser observados como termos coordenados devalor aditivo. Nessa leitura, há ainda as dificuldades para definir a referência dospronomes. Essa dificuldade se adensa ainda mais se entendemos que “de você”funciona como espécie de retificação do termo anterior, ou mesmo como aposto de“de mim”. Nesse caso, os pronomes pessoais têm o mesmo referente e marcam acisão do sujeito enunciativo.

O pacto autobiográfico, proposto por Lejeune principalmente a partir do recursoao nome próprio explicitado na capa, pouco ajuda a entender a complexidadeda questão em Numeral. Precisamos, portanto, analisar o problema nessa série apartir de outro registro, que não restrinja a autobiografia a um gênero. O espaçoautobiográfico que gostaríamos de pensar afasta-se, assim, daquele surgido a partirde um suposto pacto de leitura e se dirige à reflexão das formas com que o corpotenta se inscrever na linguagem.

UM OUTRO REGISTRO

Não raro um caráter autobiográfico é buscado mesmo em livros que não têm oobjetivo explícito de narrar a história pessoal de seus autores. É comum que seobserve o teor autobiográfico nesses textos a partir de índices de uma possívelsemelhança entre o autor e um personagem (ou entre aquele e o eu lírico). O leitor

5 “Ginasticar-se/ no centro da casa estéril./ Criar corpo fora da linha da família/ ferir-se de dentro das paredes da cabeça/ onde opensamento é peso, sangue parado./ Vazar, sair da fila/ e entrar no perfil fugitivo e fluido/ do desequilíbrio, do exercício contínuo/e fazer um puxado, a partir da planta/ da árvore insuportável, com o vento ausente.” (FREITAS FILHO, 2006, p. 65)

6 “Na entrelinha, o silêncio de estátua/ da sereia pesa e prende mais que o canto./ É a ameaça, a iminência da sirene/ o revólver natêmpora, um segundo/ atrás do tiro, a janela aberta/ para o salto ainda não articulado/ o ser incerto se formando, a invisível/ leoade pedra, um instante antes do cervo.” (FREITAS FILHO, 2006, p. 66)

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se torna, então, uma espécie de detetive, à procura de semelhanças e de pistas parasaciar sua visada própria de um voyeur. Nessa tentativa, a autobiografia é pensadafora do pacto autobiográfico, definido por Lejeune como explicitação da identidadeentre autor, narrador e personagem principal. Porém, continua-se a entender essetipo de escrita como a narrativa dos fatos que marcaram a existência de um sujeitopara além da linguagem. Não é esse, pois, o outro registro a partir do qual analisaremosa escrita autobiográfica.

Se não lemos Numeral como membro de um suposto gênero chamado“autobiografia”, tampouco acreditamos encontrar o espaço autobiográfico nessasérie a partir da investigação de dados do dia-a-dia de Armando Freitas Filho queporventura surjam nos poemas. De fato, fazê-lo seria corroborar a crença de quea autobiografia se restringe à revelação de dados ocorridos durante a sucessãocronológica da vida do escritor. Seria, portanto, conceber que é possível a existênciade um espaço autobiográfico sem a inscrição do corpo de quem fala na escrita. É essainscrição, independente mesmo do uso da primeira pessoa discursiva, que gostaríamosde observar em Numeral.

Todo texto seria então autobiográfico? Não, em especial se a autobiografia forentendida como gênero ou como revelação de dados pessoais nos textos. Noentanto, podemos refletir sobre a forma como se estabelecem, nos diversos gestosenunciativos, relações complexas entre o corpo e a linguagem. Precisamos, então,avançar um pouco mais na compreensão das relações entre aquele e esta.

Está claro que não buscamos esse vínculo na representação do corpo por meioda língua. Tal busca é possível e fértil em especial nos textos em que se tentadesenhar a história de um sujeito (naqueles que se enquadrariam, portanto, nopacto autobiográfico proposto por Philippe Lejeune). Ainda nesses, fica patente,no entanto, que o corpo escapa à representação: um autor que tente escrever suavida terá de lidar com o fato de que seu próprio corpo não pode ser totalmenterepresentado porque só terá sua história completada no momento de sua morte7.

7 Tal defasagem da representação em relação ao corpo indica a importância de pensarmos as aporias da figurativização do corpo.Embora tal discussão não seja o centro de nossas reflexões, é cara ao nosso ponto de vista. Resumimos, então, dois importantesargumentos sobre essa questão, desenvolvidos por Marcelo Diniz (2006) em Elogio da Instabilidade. Esses argumentosacompanham nossas considerações sobre a autobiografia entendida como força não representativa – ou não apenas.Diniz aponta a defasagem existente entre o acabamento que a figura do corpo parece prometer e o corpo, que transborda sempreos limites da representação. A precariedade de qualquer figura do corpo se deve ao inacabamento deste. Um primeiro aspectoenvolvido em tal inacabamento diz respeito ao caráter temporal do corpo que o torna sempre parcial em relação à sua duraçãototal. Um outro aspecto diz respeito às relações entre o corpo individual e o corpo social: ao mesmo tempo em que a culturaindividualiza o corpo individual, dá a consciência de que ele é parcial, pois é uma peça substituível e anônima na sociedade. A partirdessa dupla finitude, poder-se-ia pensar o drama do corpo como fundado exclusivamente na limitação. O autor propõe, ao invés,que pensemos para além da limitação de nossa condição e observemos o corpo como processo e como potência.

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Mesmo nos textos que tentam retratar as transformações de um indivíduo,podemos, pois, pensar a autobiografia para além da representação do corpo. Tambémnos livros entendidos como parte de um gênero autobiográfico (como quer Lejeunee, talvez, o senso comum), as relações de corpo e escrita podem se estabelecerpor meio das modulações impressas por aquele na linguagem. Essas marcas sãoobservadas quando o corpo deixa de ter seu espaço restrito ao processo final daprodução do sentido. O corpo já não é mais figura entre as outras, que se diferenciariadas demais apenas por ter um papel principal nas narrativas autobiográficas.Ao invés, se entendemos a autobiografia como a relação complexa entre o corpoe a escrita, é preciso fazer ver o corpo atravessar todo o percurso de produção dosentido.

A enunciação é a primeira instância a partir da qual podemos restabelecer opapel do corpo na produção da linguagem. Com efeito, é impossível pensar gestoenunciativo de que não participe um corpo: as cordas vocais, o ar que arranha a boca(no texto oral) e as mãos, os olhos (no texto escrito) concorrem inevitavelmente emtoda criação lingüística. A mão de quem escreve e o suor do corpo durante o esforçoenunciativo podem ser, porém, facilmente abandonados uma vez esteja a obra pronta.Novamente, o corpo parece ter seu papel restrito à periferia dos textos: instânciaanterior a todo discurso e que poderia a ele retornar como figura nas obras quetentam retratar o sujeito que fala.

Tal marginalização não se confirma, contudo, se começamos a atentar para ostextos poéticos. Nos usos cotidianos da linguagem8, apaga-se não só a presença docorpo de quem enuncia. Até mesmo a materialidade dos sons e das letras é preteridaem prol do significado abstrato do que se diz: cada palavra particular utilizada paraque fosse escrito este texto deve ter sua singularidade e o modo como se combinacom as demais esquecidos, de forma que prevaleça o conteúdo transmitido. Desdeque se tenha cumprido esse objetivo, pode-se ignorar o caráter particular de cada atode enunciar: não importam o eu que fala ou escreve em um tempo presente (agora)e em um espaço específico (aqui). Em especial, não interessa a forma como asingularidade desse eu, aqui e agora se inscreve por meio de uma arquitetura singulardo discurso.

8 Guiamo-nos, em grande medida, pela oposição entre prosa e poesia proposta por Paul Valéry em Poesia e Pensamento Abstrato(VALÉRY, 1999, p. 193-210). Para o autor, a prosa é caracterizada pelo teor dissolutivo. Tal tendência se deve ao fato de que umavez se tenha transmitido o conteúdo, “a linguagem desvanece-se”. Terminada a enunciação, a linguagem perece e é substituídapor seu sentido (p. 204-205). A poesia, ao contrário, tem a força de recomposição dos significantes. O poético não se restringe,dessa forma, à escrita em versos. Poesia é entendida como todo texto em que o jogo dos significantes supere a veiculação dossignificados.

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Na poesia, tampouco importam as idiossincrasias daquele que criou um textoe quando e onde construiu a mensagem. Aqui, porém, diferentemente da prosa,a singularidade da enunciação é grafada na língua por meio de uma construçãoparticular do plano da expressão. Há uma força de recomposição dos significantes,cujo esquecimento compromete radicalmente os jogos realizados9.

Assim, diferentemente da prosa, cada som, cada morfema e cada subversão dascombinações sintáticas devem ecoar e renascer em toda nova leitura. Na poesia,não há espaço para a generalidade e a abstração da prosa, mas para a singularidadede um jogo único reconstruído toda vez que o texto é (re)enunciado. Não por acaso,decoramos poemas ou trechos de textos literários: recontá-los sem que se respeitemos jogos de linguagem seria destituí-los de seu caráter poético. Atualizar aparticularidade desses jogos a cada leitura é fazer o eu, aqui e agora da enunciaçãotender ao sempre, em todo lugar e por não importa quem, próprios da obra. Supera-se,assim, o caráter efêmero e pontual que caracteriza a enunciação10.

Sob essa perspectiva, os poemas de Numeral, por sua força poética, adensam ocaráter biográfico presente talvez em maior ou menor medida em todo texto11. Talcaráter não é vislumbrado com maior intensidade quando se representa o corpo dopoeta, mas quando o escritor torna o esforço enunciativo de seu corpo um produtoque se deve repetir, tal qual, devido às qualidades materiais do discurso. Um poemaem que nem mesmo aparece a primeira pessoa não é menos autobiográfico, nessesentido, do que um trecho confessional em que facilmente possamos ignorar osjogos dos significantes. Podemos observar, assim, um espaço autobiográfico em umnumeral como o 16: “Escrever é arriscar tigres/ ou algo que arranhe, ralando/ o peitona borda do limite/ com a mão estendida/ até a cerca impossível e farpada/ até o erro– é rezar com raiva” (FREITAS FILHO, 2003, p. 42).

9 Não à toa, Valéry (1999, p. 205) tributa ao texto poético a característica de se reconstituir infinitamente a cada nova leitura: “Opoema, ao contrário, não morre por ter vivido: ele é feito expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamenteo que acabou de ser. A poesia reconhece-se por esta propriedade: ela tende a se fazer reproduzir em sua forma, ela nos excita areconstituí-la identicamente”.

10 Tatit, em Musicando a Semiótica (1997, p. 50), reforça a espessura enunciativa na linguagem poética: “A apreensão estéticadepende dessa espessura enunciativa ocasionada pela extensão do sujeito artístico, e de seu presente, no significante da obra,pois que isso representa uma interrupção das trocas instantâneas que caracterizam nosso cotidiano intelectivo e pragmático e,simultaneamente, a criação de um tempo de convivência tanto com o objeto criado como com o ato criador (a enunciação quedura o tempo da obra)”.

11 Não podemos esquecer que, mesmo naqueles textos em que se minimiza a participação do corpo, essa ausência é ainda dosadapor um corpo que enuncia. Represente ou não o enunciador, todo enunciado é testemunha, assim, da onipresença do corpo. Tatit(1997, p. 43) confirma tal presença incontornável: “Dentro dessa concepção, corpo é um tempo presente extenso que acompanhao enunciado como que lembrando que este jamais se liberta da enunciação. Por trás da produção está sempre o agente sensívelque o produziu”.

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O poema não nos parece autorizar uma leitura representativa do corpo. Para alémda representação, a inscrição do corpo da linguagem na escrita tem como ecoa inscrição do corpo de quem escreve na linguagem. A homologia dos planos daexpressão e do conteúdo adensa o caráter único do texto – e, conseqüentemente, daenunciação. É impossível a paráfrase do conteúdo do poema, visto que o significadoda violência da escrita se constrói, indissociavelmente, por meio da repetição dossons velares nos dois primeiros versos (em um eco dos arranhões figurativizados), doenjambement entre o quarto e o quinto versos (o transbordamento sintático de umverso em outro a reforçar a distância entre o que se quer alcançar e a impossibilidadede atingir o alvo). Além disso, o tema do limite é mais bem observado quando emrelação com o procedimento poético de escrita até a morte – a “cerca impossível” dopenúltimo verso como espécie de metáfora da interrupção abrupta da série graçasa uma morte inapreensível. Nesse, como em outros poemas de Numeral, é o usopoético da língua que nos faz observar as modulações do corpo por meio dalinguagem.

A poesia é, assim, o lugar privilegiado para pensarmos o espaço autobiográfico,ao menos quando entendido como grafia do corpo. Na linguagem cotidiana ouprosaica, em que Lejeune quer ver o registro privilegiado da autobiografia, apaga-seo significante em prol do significado. Nesse apagamento, o esquecimento da voz dequem pronuncia um texto, dos dedos que digitaram um trecho e, em especial, dasletras, dos sons, das palavras e da sintaxe ajuda a minimizar a inscrição do corpona linguagem. No texto poético, ao contrário, o corpo se grafa na escrita de formaindireta: ainda que, de fato, a mão que escreveu seja alijada da obra, o instante daenunciação prolonga-se, tornando-se duração (linguagem presente e reatualizadanas diversas leituras que recompõem o texto). A singularidade e a finitude domomento em que se fala ou se escreve se pereniza dessa forma – linguagem marcadapela particularidade dessa mão, que, se não pode se eternizar, logra tornar a escritaum índice permanente de sua existência única.

“NUMERANDO ATÉ A MORTE”

Desde a epígrafe, Numeral anuncia o procedimento da escrita a partir da finitudedo corpo: “Enumero. A convidada enumera como num matadouro”. O trecho, deAna Cristina César, funciona como espécie de resumo da ordem serial dos poemas,multiplicados até que a morte chegue. Diante desse limite inapreensível – nuncase sabe qual número será o último –, poder-se-ia esperar um texto confessional, àmaneira dos tantos volumes de memórias redigidos por aqueles que sentem a iminência

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da própria morte. Não é esse o tom em Numeral, porém. A enumeração, como nummatadouro, é gesto de violência. Menos que forma de organizar e categorizar fatosexteriores à linguagem, os números são meios de intensificar a indeterminaçãoprópria a uma escrita dirigida pela temporalidade do corpo – o infinito é o limiteutópico da numeração iniciada em 1999.

A epígrafe explicita, assim, a confusão entre a finitude de quem escreve e opotencial infinito da escrita. A finitude anunciada é reafirmada ao longo dos poemas:não só o corpo é finito como a própria escrita é flagrada na impossibilidade de retrataro sujeito. Já no primeiro número, caracteriza-se a falência da representação: “Opensamento à mão/ mas não engrena”. A escrita é figurativizada como espécie demáquina falha. Paralisada, lenta, grosseira, desistente, a escrita maquínica reapareceem tantos outros números. Em sua incapacidade de dizer, esse mecanismo é captadono momento da busca do real, porém sempre em defasagem em relação a este. Opoema 26 é esclarecedor desse desejo abortado pelo equívoco e pela finitude:

[...] O que faltou foi velocidade/ na datilografia, acurácia, para/ captar oque sub-reptício se afastava/ e mesmo se gritante, os dedos gagos/ nãoconseguiam, nas teclas, articular/ as palavras, o que se exprimia, próximo/mas sempre além de todo mecanismo/ que embora igual aos outros,desistia. (FREITAS FILHO, 2003, p. 47)

A máquina de escrever, gaga, falha em representar o que está sempre além de todomecanismo – o que, veloz, pode ser vislumbrado apenas em fuga. Tal mobilidade, doreal e do sujeito, aparece como tema em Numeral: tematizam-se a incompletudedo retrato possível – “não há espelho/ que me fixe por inteiro”, lemos em 34 – e afalta de nitidez devido ao excesso de velocidade, como no numeral 13: “[...] O queesvoaça, talvez, não tem cor, mas lugar:/ está atrás. Camuflado pela intrínseca/velocidade – feito por ela – não deixa que uma/ definição, mesmo que sumária, seestabeleça” (FREITAS FILHO, 2003, p. 41).

A indefinição aparece não apenas como tema. Diante da mobilidade do real edo sentido, a serialidade dos poemas torna a escrita uma engrenagem movida pelaurgência ante a transformação. A fluidez e a indeterminação se desdobram no própriomecanismo de numeração até a morte – os poemas acrescentados até um fimdesconhecido atestando a constante mudança do corpo. Se este é flagrado emprocesso – enquanto vivo –, a escrita, em íntima relação com a finitude do escritor,se dispersa na tentativa de lidar com a duração própria ao movente.

Essa dispersão faz com que observemos a escrita não mais em sua impossibilidade(tema constante), mas em seu poder. Não se pode ignorar a presença marcanteda temática da incapacidade: aquele que escreve retrata sua sensação de que a

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linguagem não pode dar conta de representar seu corpo e o real, ambos em constantetransformação. Quando, porém, chamamos atenção para a serialidade de Numeral,fazemos ver como motor da expansão da série justamente aquilo que era observado,do ponto de vista do sujeito enunciativo, como falência. Em relação à linguagem,não há, com efeito, falência, há potência dispersiva e produtora – escrita construídaà maneira dos puxados acrescidos às casas expandidas12.

O efeito de sentido de falha e falta, associado à temática constante da falência darepresentação, é tensionado, assim, pelo procedimento de enumeração. A linguagemse dispersa para além da limitação ou justamente devido à sua defasagem em relaçãoà fluidez do real que quer captar. Em um exercício contínuo, a escrita se expandegraças ao desequilíbrio, como vemos em um trecho do poema 32: “[...] Vazar, sairda fila/ e entrar no perfil fugitivo e fluido/ do desequilíbrio, do exercício contínuo/ efazer um puxado, a partir da planta/ da árvore insuportável, com o vento ausente”(FREITAS FILHO, 2006, p. 65).

Além disso, a própria caracterização do sujeito por meio da angústia ante aincapacidade de dizer tem como revés o desejo de escrever, surgido talvez daquelaincapacidade. A limitação move, assim, sua própria transgressão: “[...] Coisa alguma.Nunca será possível/ dizer alguma coisa. Mas existe o ensaio/ o anseio de dizê-la,mesmo assim. [...]” (FREITAS FILHO, 2006, p. 80).

Nessa tensão entre o tema da falência e o procedimento de dispersão, o percursotemático do erro se imbrica ao percurso da expansão. Corrigir, emendar, errar. O erroé tomado em suas duas acepções: ao mesmo tempo, engano e dispersão. Equívoca,a escrita se torna uma máquina falha que deve continuar seu trabalho compulsivo,uma vez que o sentido exato foge sempre. Mais profundamente, o sentido apenas seconstrói quando equívoco, cabendo à escrita adensar o erro, multiplicá-lo. A série seexpande, dessa maneira, como sucessão de erratas, tal qual explicitado no numeral 13:

[...] Admite, apenas, sucessivas erratas/ que superpondo-se assim, nãochegam/ a corrigir, a acrescentar fôlego/ no comprimento e sentido daslinhas/ e nada sopra o espaço entrelinhado/ não dando tempo e tetopara que o vôo levante. (FREITAS FILHO, 2003, p. 41)

O tema do erro intensifica, desse modo, as temáticas da fluidez, da incompletudee da falta de nitidez: uma vez que a escrita é uma sucessão de erros e de correções,nunca nos é dado a ver um retrato nítido e completo do sujeito. Já que esse tema

12 Blanchot, em O Espaço Literário, enfatiza o afeto do escritor diante do que escreve: apartado da obra, o autor sente o livro comovazio. Acreditando não ter realizado ainda a obra que deve redigir, o escritor recomeça seu trabalho e escrever torna-se, dessaforma, o interminável (cada novo texto só fará renovar a certeza de que a obra não está terminada). Do ponto de vista da obra,ao invés, não há falência: seu poder reside em ser, em afirmar seu poder como linguagem. Nas palavras de Blanchot (1987, p. 12),“a obra – a obra de arte, a obra literária – não é acabada nem inacabada: ela é. O que ela nos diz é exclusivamente isso: que é –e nada mais”.

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ecoa na dispersão da série, a escrita errática de Numeral flagra o corpo em processo,inacabado – não representável. Que a série não constrói uma figura acabada e orgânicado corpo é explicitado no poema 52:

[...] Esses filtros não dão cabo/ das mil fontes em que/ a imaginação seirriga –/ ri, se irrita da canhestra/ captação que não define/ de onde veio,por que veia/ a figura que ainda/ não se firmou aqui:/ flor, fagulha, cisne,clarim? (FREITAS FILHO, 2006, p. 75)

Entendida como erro, a escrita problematiza a possibilidade de representação deum corpo em transformação ininterrupta. Vemos, assim, o quão distante estamos daconcepção de autobiografia como a construção das sucessivas figuras do sujeito aolongo de sua história. Vemos também como, mesmo que infigurável, o corpo seinscreve na escrita: seu inacabamento homologa-se ao inacabamento da linguageme o corpo se deixa impregnar pela caracterização da escrita como errante13. O poema37 é esclarecedor do cruzamento das qualidades atribuídas à linguagem e ao corpo,ambos entendidos como rascunho a ser alterado, em processo constante:

Dia adverso, desde o dado mais íntimo/ do corpo, que se corrige, e cadavez mais/ é rascunho, sob os riscos de tantas emendas/ até o que passalongínquo, público e impresso/ também sujeito a alterações, a erratas/iguais a esses superpostos pensamentos. (FREITAS FILHO, 2006, p. 67)

Afirma-se, dessa forma, a potencialidade indefinível do corpo por meio dos poemasem série aberta. Não só a linguagem pode indefinidamente se expandir, como o corpotem seu poder de transformação enfatizado pela escrita. Se a escrita se impregna dafinitude do escritor (por meio do tema da incapacidade de representar um corpo aindaem processo), este também se contagia pelo poder dispersivo da linguagem por meioda serialidade de Numeral.

Há, assim, uma grafia do corpo em Numeral estabelecida a partir do contágio pelaescrita das características do corpo e vice-versa. A própria caracterização da escritae do corpo como gestos de correção e errata é um interessante modo de observarmosas marcas deixadas pelo corpo na escrita. Entre o retorno próprio ao ato de corrigire o avanço oriundo da errata, estabelece-se uma oposição temática que reproduz oritmo do corpo, movido pela contenção e pela expansão quando respiramos.

13 No ensaio Descrever a Máquina, Marcelo Diniz (2006) chama atenção para o poder do erro na escrita de Armando Freitas Filho:“Longe da eliminação do corpóreo, passar a limpo é sujar o inorgânico maquínico com o que o corpo secreta como uma espéciede emanação, fantasma, figura que é convocada menos pelo seu aspecto icônico que pelo indicial, contíguo, sudorese, mancha,corpo extensivo impresso na máquina e através dela” (p. 133). Ou: “Passar a limpo é transferir, imprimir o corpo, desdobramentode extensão. É sob essa perspectiva que se nos oferece a figura do corpo menos como fisiologia, organicidade definida pelasfunções constitutivas, que como potência, experiência de seus extremos, monstro” (p. 114).Essas citações são preciosas ao situar a relação do corpo e da escrita no espaço de tensão entre a figura e o infigurável. Confirmam,assim, nossa hipótese de que podemos pensar a autobiografia em Numeral menos pela construção de ícones do sujeito, masprincipalmente pelos índices do seu corpo único presente na série de poemas.

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Essa oposição de temas se desdobra em um procedimento de repetição e avançoque também recoloca o ritmo respiratório como mecanismo de escrita em Numeral.De um lado, o acréscimo de novos poemas leva à expansão e ao desenvolvimento dodiscurso. De outro, a repetição, o retorno constante (freqüentemente tematizadosnos poemas) fazem-no concentrar-se sobre si mesmo:

Escrever o pensamento à mão./ Reescrever passando a limpo/passando o pente grosso, riscar/ rabiscar na entrelinha, copiar/segurando a cabeça, pelos cabelos/ batendo à máquina, passandoo pente/ fino furioso, corrigindo, suando/ e ouvindo o tempo darespiração./ Depois, digitar sem dor, apagando/ absolutamente o erro,errar. (FREITAS FILHO, 2003, p. 43)

O poema 19 evidencia tal homologia entre o ritmo da escrita e o ritmorespiratório. Próxima ao tempo da respiração, a escrita é caracterizada como retorno,correção furiosa. Tal qual no corpo, o movimento não se faz apenas de contenção –as sucessivas retomadas fazendo surgir novas versões, em um movimento expansivo,errante. No poema, a própria repetição de “passar o pente” ilumina as relaçõescomplexas entre o procedimento de conter e o de expandir o discurso: o avanço seestabelece a partir do retorno e da sutil transformação advinda dessa retomada, talqual na respiração, em que o movimento expansivo do corpo só se pode estabelecera partir da retenção.

A extensão da escrita e a dobra da linguagem sobre si mesma configuram-se comoíndices, portanto, do contágio do corpo e da escrita. A partir das marcas deixadaspelo corpo por meio do ritmo, a autobiografia em Numeral pode ter seu movimentoprecisado. Anunciado como tensão entre a finitude do corpo e a dispersão da escrita,o espaço autobiográfico nessa série se desenha como luta contra a contenção e aparalisia (retenção em um texto final que não mais se corrige) por meio do poderexpansivo da série:

Em vez de ver, vencer a paisagem/ articulando a mão com o esforço/ detorquês, para abrir os registros/ agarrados pela ferrugem, os nexos/os canos que já perderam a luz/ para recuperar, além ou aquém/ dasuperfície, a circulação/ de todo o sistema de ramais/ esquecidos pormedo, corrosão/ e amparado em imagem mais branda/ abrir, então, oleque, inteiro e devagar. (FREITAS FILHO, 2006, p. 73)

O poema 48 estabelece uma interessante oposição entre paralisia e circulação. Omovimento do poema, de um máximo de contenção (paralisia caracterizada comoescuridão e ferrugem) até um máximo de circulação (todos os ramais livres), ajuda-nosa compreender o sobrepujar da força dispersiva da série sobre o poder retensivo das

O espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho

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retomadas. Após a luta, nos diz o poema, a abertura branda do leque. A grafia dafinitude do corpo não se apresenta, portanto, como narrativa da perda, disforia.Ao contrário, contra a finitude, dramatiza-se um confronto vitorioso que permitea expansão.

Uma vez que se enumera até a morte, a vitória dispersiva da série é sempreprovisória. Por isso, o limite da morte faz o corpo e a escrita se empenharem em umesforço constante:

[...] Agora, a corda encurta na mão/ de quem a segura, no pulso docorpo/ sem o calço do desejo expresso/ na contagem da estrofe inicial./Mas que continua, puro impulso/ cabo-de-guerra, vida e morte/ quevai puxar até partir, em cima/ do que pode ser mina ou fonte. (FREITASFILHO, 2006, p. 81)

A enumeração, retroativa, parece indicar uma escrita pautada pela falta. De fato,a primeira estrofe do trecho do poema 62 reproduzido acima enfatiza a ausência –“sem” o calço do desejo, “a corda encurta”: há menos um dia de vida. Em oposiçãoà falta antes caracterizada, a conjunção adversativa na estrofe seguinte instauraum efeito de sentido afirmativo. Ante a iminência da morte, o corpo se empenhaviolentamente (em “cabo-de-guerra”) por perseverar. A dispersão das marcas docorpo pela série se caracterizam, assim, como dispersão explosiva, violência produtora.Enquanto não houver vencedores na disputa entre vida e morte, o impulso da escritacontinua a se fazer.

Fluxo contínuo, inacabados, escrita e corpo são flagrados no intervalo do confrontoentre a manutenção da vida (e da escrita) e a finitude do corpo (e da série). Comoesse intervalo não tem um termo definido, o por enquanto do corpo lança a escritano esforço infindável de manter a linguagem se produzindo. Dessa forma, a iminênciada morte impõe ao escritor um esforço que tende ao infinito:

Escrever é riscar o fósforo/ e sob seu pequeno clarão/ dar asas ao ar –distância, destino/ segurando a chama contra/ a desatenção do vento,mantendo/ a luz acesa, mesmo que o pensamento/ pisque, até que osdedos se queimem. (FREITAS FILHO, 2006, p. 45)

O procedimento da série explicita-se como tema no numeral 23. O método daexpansão reverte-se em figura: clarão que dá asas ao ar. Essa dispersão é, além disso,observada sob o prisma do desejo de prolongar a chama. Escrever tem como metáfora,portanto, a manutenção da distância e da duração sob o afeto do cuidado. Inacabada,a escrita sem um fim definível tem como correlato um corpo que se grafa no limite ecuja duração se tenta também prolongar por meio da escrita: “parar de escrever podeser morrer”, afirma o poema 44.

Mariana Quadros Pinheiro

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A autobiografia não é, pois, espaço estável. Ao contrário do apaziguamento quese poderia esperar de um texto autobiográfico que tente mascarar o inacabamentode quem escreve, Numeral deixa índices de um corpo e de uma escrita em construçãopermanente. Flagrados em processo, corpo e escrita não são representáveis.A problematização das representações do sujeito não torna a autobiografia emNumeral menor, tampouco a levam a ser caracterizada pela melancolia. Para alémda negatividade subjacente à temática da falência da representação, vemos como odesequilíbrio entre poesia e vida pode mover um mecanismo sem freios – corpo eescrita resvalando para o infinito.

ENTRE A FINITUDE DO CORPO E O INFINITO DA LINGUAGEM –CONSIDERAÇÕES FINAISUm texto, quando caracterizado como autobiográfico, instaura comumente a

expectativa de uma narrativa das transformações de uma vida. Tanto mais interessantesseriam as autobiografias quanto mais marcantes fossem essas transformações e maiseminente a personalidade narrada. O que dizer de uma série que tem como temainsistente a incompletude do retrato do sujeito? Como pensar a autobiografia empoemas que, mais que narrar uma história pessoal, dramatizam a finitude do corpoem relação com o infinito da linguagem?

É provável que a observação de um espaço autobiográfico em Numeral causasseespanto entre aqueles que entendem a autobiografia como gênero fundado naidentidade entre o autor, o narrador e o eu. Também aqueles que buscam um teorexpressional mesmo nos textos não classificados como parte do gênero poderiamter sua expectativa frustrada. Diferentemente, quando compreendemos o espaçoautobiográfico como as marcas das qualidades do corpo na escrita, começa-se acompreender a autobiografia para além da representação dos fatos da vida do sujeito.

Em Numeral, o corpo grafa sua singularidade e sua indeterminação. A singularidadedo corpo é inscrita por meio do gesto poético que recoloca na linguagem o caráterúnico da enunciação. Ao tornar o enunciado aquilo que não se pode parafrasear,a escrita faz ecoar na linguagem o gesto singular da mão que escreve. Também aindeterminação do corpo se inscreve na linguagem: a escrita, produzida até a morte,se deixa marcar pelo caráter inacabado do corpo e se torna fluxo, processo.

A escrita se impregna, além disso, do ritmo do corpo. O corpo, com efeito, éflagrado na luta entre a paralisia a ser trazida pela morte (contenção) e a produção

O espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 77

ininterrupta (expansão). Também a linguagem é movida pela tensão entre osmovimentos retensivos, decorrentes das repetições que ameaçam interromper odiscurso, e os gestos expansivos, oriundos dos sucessivos acréscimos.

O espaço autobiográfico se abre, dessa forma, menos pela revelação da identidadedo sujeito do que pela relação de contágio entre a escrita e o corpo. Um e outro sãofluidos, em processo. A proximidade de qualidades não funciona, porém, no sentidode minimizar a tensão do espaço autobiográfico. A escrita, embora móvel, não dáconta de retratar o corpo e suas transformações.

Esse desequilíbrio poderia ser observado como perda, se pensássemos aautobiografia como um texto que teria por fim representar o sujeito. Tentamosdefender, ao contrário, que o caráter infigurável do corpo é um tema que se desdobrana serialidade dos poemas – escrita tornada mecanismo compulsivo a partir daimpossibilidade de observar um corpo acabado. É o caráter não representativo –ou não apenas – que favorece, portanto, a grafia da abertura e do inacabamento docorpo em Numeral.

Enumerar até a morte se torna, dessa maneira, uma forma de transformar o limiteda vida em possibilidade de produção. Instável, o espaço autobiográfico faz ver,assim, a impossibilidade de superar definitivamente a morte como o motor denovos poemas – o “por enquanto” do corpo adiando o “até” da escrita e a fazendoexpandir-se.

Mariana Quadros Pinheiro

78 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1

Referências

• BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I. Campinas: Pontes,1995.

• BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

• DINIZ, Marcelo. O elogio da instabilidade. Tese de doutorado apresentada noPrograma de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

• FREITAS FILHO, Armando. Máquina de escrever. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 2003.

• ________. Raro mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

• LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Editions du Seuil,1996.

• TATIT, L. Musicando a Semiótica. São Paulo: Annablume, 1997.

• VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999.

“PAÍS POEMA HOMEM”:NOTAS SOBRE PAÍS POSSÍVEL,

DE RUY BELO1

Antônio AndradeFaculdade CCAA

Universidade Federal FluminenseColégio Pedro II

contato: [email protected]

Resumo: Este trabalho é uma leitura do livro País possível, do poeta portuguêsRuy Belo. Nele, tentamos demonstrar a produtividade de se pensar a relação entrepoesia, paisagem e identidade nacional à luz dos estudos de fenomenologia hermenêutica,desenvolvidos pelo crítico francês Michel Collot.

Palavras-chave: poesia; paisagem; identidade.

Abstract: This essay is a reading of the Portuguese poet Ruy Belo’s book, Paíspossível, and it highlights the advantage of regarding the relationship between poetry,landscape and national identity to the light of the hermeneutic phenomenological studiesdeveloped by the French critic Michel Collot.

Keywords: poetry; landscape; identity.

Resumen: Este trabajo es una lectura del libro País possível, del poeta portuguésRuy Belo. En él, tratamos de señalar la productividad de pensarse la relación entre poesía,paisaje e identidad nacional bajo la óptica de los estudios de fenomenología hermenéutica,desarrollados por el crítico francés Michel Collot.

Palabras clave: poesía; paisaje; identidad.

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1 Este trabalho contou com o apoio do CNPq.

Antônio Andrade

En poésie comme ailleurs, le paysage est à la fois un lieu commun quinous concerne tous et un espace de liberté offert à la sensibilité et à

la créativité de chacun. (Michel Collot)

Nas décadas de 1980 e 1990, o debate em torno das questões ecológicas,da necessidade de preservação do meio ambiente, do crescimento caótico einsustentável da urbanização, sobretudo em países periféricos, trouxe para o cenáriode diversas ciências humanas e da natureza a questão da paisagem, maisespecificamente a de sua modificação acelerada e agravante, como um tema deestudos fundamental. Mas, para alguns autores, esse modo de perspectivar apaisagem parece, muitas vezes, reduzi-la a uma preocupação ambientalista, deinegável importância, é claro, sem considerar a sua abrangência não apenas comomeio natural, mas como um bem cultural, com múltiplos valores e significações. ParaAugustin Berque, geógrafo francês que iniciou os estudos da paisagem sob um pontode vista cultural, tais valores e significações articulam a relação entre sujeitos eespaço de um modo dúplice: a paisagem é ao mesmo tempo entendida por ele comomarca, “pois expressa uma civilização”, e matriz, “porque participa dos esquemas depercepção, de concepção e de ação – ou seja, da cultura” (BERQUE, 2004, p. 84-85).A relação inextricável entre a configuração paisagística e o processo de subjetivação– individual e coletivo – é a razão que nos impede de separar qualquer reflexão sobrea paisagem da dialética entre natureza e cultura, a qual se complexifica ainda maisatravés da tensão entre marca e matriz.

Na poesia, a questão da paisagem como bem cultural também pode ser percebidae perseguida simultaneamente como tema e forma estrutural num viés de reflexão ounum eixo de relações que se desenvolve em múltiplos aspectos desde o Romantismo,atravessando o Modernismo, as vanguardas, até chegar à contemporaneidade. Esse éo trabalho que o crítico Michel Collot empreende, em seu livro Paysage et poésie (2005),em relação à poesia francesa. Neste estudo, meramente inicial, tentamos solicitare/ou incorporar, então, algumas questões levantadas por este crítico para fazermos,assim, uma leitura do modo de configuração da paisagem no livro País possível(1. ed., 1973), do poeta português Ruy Belo.

Em País possível, há uma nítida problematização da idéia de paisagem como lugarde convívio e como identificação imediata à noção de nacionalidade. E já da “Notado autor” que abre o livro, poderíamos tomar de empréstimo uma questão de ordemmetalingüística apresentada pelo poeta para justificar nossa afirmação. Nela, RuyBelo diz que “a poesia é, afinal, um lugar de convívio, um local onde os poemasreagem uns aos outros, se criticam mutuamente, se transformam uns nos outros”.Ou seja, parece, aí, que a sua reflexão sobre a própria poesia, assim como a paisagem,

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“País Poema Homem”: Notas sobre País possível, de Ruy Belo

é perpassada pelo questionamento das idéias de harmonia e imutabilidade, pois,através do conflito e da desterritorialização, os sujeitos/poemas das paisagens/livrosse re-significam num processo de questionamento perene da própria noção deidentidade poética/nacional. Nesse sentido, ainda que se trate de um livro atento aoengajamento social que caracterizava as letras portuguesas do período neo-realista,podemos dizer que País possível ultrapassa qualquer ranço de militância afirmativa epatriótica. Pelo contrário, nele, o que há é uma profunda desestabilização do sujeitoe da imagem arquetípica de país imposta pelo regime salazarista.

Note-se, por exemplo, que o poeta considera como unidade temática desse livroo “mal-estar de um homem que, ao longo da vida, tem pagado caro o preço de havernascido em Portugal”. Esse mal-estar que o afeta e que faz do “ser português” umproblema – questão latente na obra de vários outros escritores portugueses doséculo XX – surge relacionado à censura ditatorial do governo que não só impedea produção, mas se incorpora como um trauma que a experiência poética traz àtona: “a censura se instala na sua própria consciência”. E se aqui falamos emproblematização e profunda desestabilização da idéia de sujeito é porque, a reboquedessa internalização do silenciamento da censura como experiência que liga arealidade subjetiva à realidade social, vêm as idéias de morte e de autodestruição,muitas vezes encenadas nos poemas de Ruy Belo: “um homem que [...] intensamentese autodestrói; que vai se suicidando lentamente porque essa sociedade o destrói eassassina”.

Não à toa, o poema que abre o livro chama-se “Morte ao meio-dia”, no qual ficanítida a relação entre as noções de temporalidade, morte e abandono, que permeiama ambientação de uma vida decrépita num país em que “não acontece nada” (frisa osujeito), em que o tempo é também uma paralisia das instituições sociais. De modoque a imagem de Portugal, nele, fica restrita àquilo que é rechaçado pelo “mar”,símbolo de crescimento e expansão para o imaginário lusitano: “O meu país é oque o mar não quer”. Já em outros poemas, como “Odeio este tempo detergente”,aparece, ainda, a questão da fixação ideológica do tempo que forjou uma idéia denação purificada, e portanto falsa, provocando a repulsa do sujeito: “Odeio estetempo detergente/ [...] / um tempo que parou e só mudou/ o nome que puseram nummundo que muda”. Nesse poema, a interrogação do sujeito quanto à sua própriapassividade diante de um tempo paralisado desliza em direção à retomada de umtema fundamental para toda a poesia em língua portuguesa, o da “saudade”, comomeio de convulsão temporal da própria lírica: “E eu que faço eu aqui em todo estetempo detergente quando/ sinto subitamente cem saudades tuas”.

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Antônio Andrade

Retomando a própria etimologia do termo “paysage” em francês, vemos que elesurgiu no séc. XVI e foi, inicialmente, usado pelos pintores. Mas logo passou a ter osentido que hoje tem: “Extensão de país que o olho consegue abarcar” (Larousse).Desse modo, a noção de paisagem está associada a certa “configuração de país”. ParaMichel Collot,

Le paysage n’est pas le pays, mais une certaine façon de le voir ou de lepeindre comme ‘ensemble’ perceptivement et/ou esthétiquement organisé:il ne réside jamais seulement in situ mais toujours déjà aussi in visuet/ou in arte. (COLLOT, 2005, p. 12)

Tal configuração, pois, implica para ele não apenas uma percepção visual, mastambém estética, de um sujeito que, ao mesmo tempo, se define e define a paisagema partir de um ponto de vista.

Em País possível, contudo, o ponto de vista nunca se detém, tampouco se enraízanuma relação de correspondência com a pátria portuguesa. Por isso, nele, ora arepresentação poética da paisagem opta pelo descentramento, deslocando-se parapaíses estrangeiros, tal como nos poemas “Primeiro poema em Madrid”, “Do sono dadesperta Grécia”, “No aniversário da libertação de Paris”, “No aeroporto de Barajas”etc., ora, em lugar de apresentar uma imagem de país como um todo, preferefragmentar-se através de um olhar que percorre campos e cidades, formando, assim,um mosaico. No poema “Lugar onde”, por exemplo, tais idéias de movimento efragmentação aparecem associadas à imagem do “comboio”: “Os comboios são mansostêm dorsos alvos/ engolem povoados limpamente/ tiram gente de aqui e põem-na ali/retalham os campos congregam-se”. Seguindo a mesma lógica desta fragmentação,ocorre ainda aí uma inversão do estatuto natural da paisagem como lugar deconvivência (“Neste país sem olhos e sem boca”), corroborando assim a tensaconfiguração do ponto de vista de um eu solitário, embora in visu, silenciado pelaimpossibilidade de um dizer coletivo (“Neste país do espaço raso do silêncio esolidão/ solidão da vidraça solidão da chuva”).

Desvela-se, com isso, uma intrincada relação entre poesia e experiência, qualseja, a tensão entre a necessidade latente de ver e dizer para a constituição do poemapor um lado e a imposição do silêncio que cega e cala por outro. Tudo isso apareceimbricado, ainda, à consciência de que tanto o espaço quanto a subjetividade sãoperpassados por uma linguagem poética potencialmente ambivalente. Talambivalência se reflete logo na duplicidade que, segundo o poeta, é inerente à palavra“país”: “Neste país [...]/ hábito de rios castanheiros costumados/ país palavra húmidae translúcida/ palavra tensa e densa com certa espessura”. É importante percebernestes versos a passagem sub-reptícia que se processa entre a figuração da paisagem

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“País Poema Homem”: Notas sobre País possível, de Ruy Belo

portuguesa dominada por rios, a palavra “país” – que, por sua vez, adquire o caráterúmido e translúcido das águas – e o seu desdobramento numa imagem antitéticade solidez e espessura. Essas três etapas, digamos, de um processo na verdadesimultâneo, que reúne paisagem, linguagem e subjetividade (“País poema homem” –como na fórmula poética ruybeliana), constituem as bases do pensamento queCollot desenvolve em diversos de seus textos, tais como La poésie moderne et lastructure d’horizon (1989) e “L’espacement du sujet” (capítulo 2 do livro Paysageet poésie). Neste último, como em outros, onde o desenvolvimento de tal relaçãoé perceptivelmente tributário do estudo da fenomenologia, Collot argumenta quea consciência se constitui como “ser-no-mundo” e o mundo não existe senão pormeio de um sujeito que “s’espace”, enquanto o mundo se interioriza como paisagem(COLLOT, op. cit., p. 44).

Entretanto, essa correlação entre sujeito e mundo jamais se reduz a umaidentidade absoluta. Pelo contrário, sempre mantém vivo o paradoxo entreintimidade e alteridade, ou seja, o espaçamento do sujeito no mundo – toposromântico re-atualizado na poesia moderna e contemporânea –, nunca deixa demanifestar a irredutível exterioridade da paisagem. Segundo Collot, “le paysageexprime le sujet, mais il le déborde, et l’ouvre ainsi à une dimension inconnue de lui-même et du monde” (COLLOT, op. cit., p. 45, grifos nossos). Tendo em vistaessa exterioridade irredutível e ininteligível – vínculo tenso e problemático entrevisível/invisível (também desenvolvido por Merleau-Ponty), dentro/ fora,concreto/abstrato – em “Peregrino e hóspede sobre terra”, Ruy Belo reflete sobre aimpossibilidade de a poesia dar conta da paisagem e/ou representar plenamente oque se impõe como externo ao sujeito e à língua: “A vida começa e o sol brilha/ atudo isto chamam primavera/ mas nada disto cabe numa só palavra/ abstractaquando tudo é tão concreto e vário”. Por isso, podemos dizer que a experiênciapaisagística requerida aí por Ruy Belo não se contém na paralisia que a atmosferaportuguesa tenta imprimir à dinâmica espaço-temporal, como já vimosanteriormente, visto que o eu lírico entroniza simultaneamente uma fortenecessidade de locomover-se pela paisagem (“reextravagare”) – presente na líricadesde o Romantismo –, além da sensação de não-pertencimento a qualquer terra(seja ela estrangeira ou nativa), nem mesmo à sua própria instância de sujeito (aoseus locus de enunciação): “tenho de abandonar porque me vou embora/ pois eununca estou bem aonde estou/ nem mesmo estou sequer aonde estou/ [...]/ Soudonde estou e só sou português/ por ter em Portugal olhado a luz pela primeira vez”.

Ser, ao mesmo tempo, hóspede e peregrino – esta condição do sujeito, em RuyBelo, enceta duas formas associadas de aproximação com o mundo: indivisibilidade

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 83

Antônio Andrade

e perda. Em “Oh as casas as casas as casas”, por exemplo, o poeta retoma a imagemtradicional da “casa portuguesa”, a partir da qual se revela uma relação profundae indivisível entre homens, casas e ruas. E, em lugar de apenas promover odesdobramento metonímico do espaço como reflexo da subjetividade, institui aío atravessamento e/ou a imbricação entre o mesmo e o outro, entre o externo e ointerno: “Sem casas não haveria ruas/ as ruas onde passamos pelos outros/ maspassamos principalmente por nós”. Na esteira desta colocação, dadas as váriasfusões que tornam os liames entre sujeitos, paisagens e linguagem muito maisintrínsecos e imperceptíveis, diríamos que a aproximação extrema com o mundo – ograu máximo de intimidade – resulta na dissolução das fronteiras, o que significaconseqüentemente uma perda. De outro modo, poderíamos assinalar que esta perdanão se produz pela ótica positiva de uma comunhão entre o ser e as coisas, masjustamente por uma ligação tão íntima quanto confusa, que faz o sujeito perder-se(“sair de si”), ao passo que desfaz a representação paisagística.

Collot também ratifica essa noção de perda em seu texto “O sujeito lírico forade si”, em que afirma: “Fazendo a experiência de seu pertencimento ao outro – aotempo, ao mundo ou à linguagem –, o sujeito lírico cessa de pertencer a si” (COLLOT,s/d., p. 1). É interessante perceber como essa perda de si, em Ruy Belo, passade maneira complexa pela perda equivalente de duas grandes potencialidadesdiscursivas da cultura portuguesa, a saber, a fé católica e o orgulho da pátria. Emrelação à religiosidade, notemos no poema “Nós, os vencidos do catolicismo”, porexemplo, o questionamento da fé como lugar de saber e fonte de esperança em meioa uma sociedade empobrecida e abandonada: “Nós os vencidos do catolicismo/ quenão sabemos já donde a luz mana/ haurimos o perdido misticismo/ nos acordes doscarmina burana”. Bem como no poema “Corpo de Deus”, a clara associação entre aperda da religião e a descrença na poesia como lugar de acolhimento ou de afirmaçãosubjetiva: “A minha poesia é por vezes mínima e mesquinha/ Aqui estou eu perdidona contemplação da unha/ a unha pequenina a que regresso sempre”.

Já quanto à questão do patriotismo, Collot também demonstra no capítulo“Défigurations”, do seu Paysage et poésie, a associação histórica entre oenfraquecimento das ideologias, decorrente de um contexto de guerras mundiais,coloniais e queda das utopias, e a dissolução de certa identidade essencial entre terrae pátria, país e paisagem. Ou seja, em outras palavras, a fragilidade das ideologiasencena-se, fundamentalmente, na poesia através da desfiguração da paisagem. Eem País possível, já desde o título, há ainda um esforço de se pôr em questão odeslizamento semântico-ideológico da palavra país à palavra pátria – vejamos maisum verso de “Lugar onde”: “Pátria, de palavra apenas tem a superfície”. De forma

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“País Poema Homem”: Notas sobre País possível, de Ruy Belo

até mais radical, em “Aos homens do cais”, o poeta chega a desvincular ambas asnoções, negando a Portugal o estatuto de pátria: “– Portugal não é pátria mas país”.Tal negação institui, por vezes, a desorientação do olhar, fruto da falta de identificaçãodesse sujeito com o lugar-comum que define a sua noção de pátria (vide o poema“Sexta-feira sol dourado”: “Que alegria ser poeta português/ Portugal fica em frente”).

Em outros textos, como “Pequena história trágico-terrestre”, esse sentimento deproscrição desdobra-se numa busca sem fim da origem dentro do próprio poema,forma capaz, como vimos, de conectar arte e vida, emoção e metalinguagem: “À artedou o que devia à vida/ Vida que vai por mim contaminada/ vida do largo da areia edo vento/ que as minhas palavras firam fundo/ A emoção seca tudo quanto a cerca e/procuro como Livingstone as origens de um rio”. Decerto aí, bem como em todo olivro de Ruy Belo, a bela e difícil mistura entre lirismo, narratividade e composiçãopaisagística, que encontra ecos nas obras de Fernando Pessoa e Cesário Verde,desestabiliza qualquer noção de identidade, provocando a diluição simultânea tantoda idéia de país quanto de sujeito, um e outro perdidos em meio à memória nebulosaque envolve toda a representação do espaço lírico: “Ergo nas mãos inconsistentescasas como/ quando nos bailes do taborda aos doze anos/ dançava ao som damelodia das Ilhas Canárias”; “[...] Portugal/ país que só existe em pensamento/ paísmorto no mar ou na memória”.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 85

Antônio Andrade

Referências

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• ________. O sujeito lírico fora de si. Trad. Alberto Pucheu. Revista TerceiraMargem, Rio de Janeiro, 7 Letras, ano VIII, n. 11, p. 165-177, 2004.

86 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1

NASALIZAÇÃO EM PORTUGUÊS:DOIS PONTOS DE VISTA

Gabriela de Campos BarbosaFaculdade CCAA

Mestre em Lingüística pela UFRJ

contato: [email protected]

Resumo: Este trabalho demonstra como o processo fonológico de nasalizaçãoé concebido por duas correntes teóricas: a fonologia gerativa clássica e a fonologiaauto-segmental. Definem-se e comparam-se essas duas vertentes de estudo e seusprincípios básicos.

Palavras-chave: nasalização; fonologia clássica; fonologia auto-segmental.

Abstract: This paper demonstrates how the nasal phonological process is conceivedby two current theoretical trends in Phonology: the classic generative Phonology and theautosegmental phonology. The two trends and their main principles are defined andcompared.

Keywords: nasal phonological process; classic generative phonology; autosegmentalphonology.

Resumen: Este trabajo demuestra como se concibe el proceso fonológico de lanasalización por dos corrientes teóricas: la fonología generativa clásica y la fonologíaautosegmental. Se definen y se comparan las dos vertientes de estudio y sus principiosbásicos.

Palabras clave: nasalización; fonología generativa clásica; fonología autosegmental.

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Gabriela de Campos Barbosa

INTRODUÇÃO

A fonética interessa-se pelos sons da fala partindo de um ângulofisiológico-acústico, e a fonologia estuda os sons do ponto de vista funcional, comoelementos que integram um sistema lingüístico (LEITE; CALLOU, 2000).A primeira é mais antiga, já a segunda surge a partir dos ensinamentos de Ferdinandde Saussure (NETTO, 2001). Para ele, a distinção entre as duas disciplinasdeu-se em função da diferença entre as noções de língua (langue) e fala (parole), doisaspectos fundamentais da língua humana.

Embora sejam interdependentes, a fonologia dedica-se ao estudo dos sons dentrode um sistema lingüístico, e a fonética, à sua emissão concreta. Enquanto esta ébasicamente descritiva, a fonologia é “uma ciência que explica, interpreta o valor dossons numa língua” (BENTES; MUSSALIM, 2000, p. 106).

Com a evolução dos estudos fonológicos, os fonemas começaram a ser encaradosconforme os princípios básicos das correntes que surgiam. Basicamente, os modelosteóricos se dividem em lineares e não-lineares. Segundo Bisol (1999), os primeiros,também chamados segmentais, compreendem que a fala está organizada em umacombinação linear de segmentos ou conjuntos de traços distintivos. Já os modelosnão-lineares entendem que a língua é uma organização de traços dispostoshierarquicamente em camadas, podendo estender-se aquém ou além do segmentoou funcionar isoladamente em conjuntos solidários. Segundo essas correntes, háum espaço maior para entender que a análise fonológica está vinculada aos camposfonológico, morfológico e sintático de uma língua.

Os processos fonológicos também são compreendidos de maneira particularpor cada modelo teórico. Para o entendimento da nasalização, neste trabalho,comparamos as contribuições de duas correntes, uma de cunho linear e outra decaráter não-linear. No primeiro caso, escolheu-se a fonologia gerativa clássica, e, nosegundo, a fonologia auto-segmental.

I. FONOLOGIA GERATIVA CLÁSSICA

Firmados os estudos fonológicos a partir do século XX, mais precisamente nadécada de 1930, tem-se o fonema como unidade mínima indivisível, linear eopositiva, capaz de, assim, distinguir significados em unidades lingüísticas maiscomplexas, como as palavras.

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Nasalização em português: dois pontos de vista

A partir do pensamento lingüístico dominante, surgem duas vertentesestruturalistas, uma norte-americana e outra européia. A primeira baseava-se napsicologia comportamental, behaviorista, e considerava o fonema como a soma detodas as suas realizações concretas, ou seja, o conjunto de seus alofones. Além daprimazia do fonema, essa corrente tinha como princípios a biunivocidade entre fonee fonema, a determinância local (que evitava a quebra da linearidade) e a separaçãoestrita de níveis. Suas técnicas de análise eram mecanicistas, pois se moldavam nasegmentação da fala, na distribuição dos alofones e na comutação de fonemas combase nas cadeias sintagmática e paradigmática.

A corrente européia, representada, sobretudo, pela Escola de Praga, via o fonemaa partir de uma base abstrata, mentalista. De uma maneira geral, os autorescompreendiam a importância dessa unidade não exatamente na realização dos sons,porém na contribuição que davam ao funcionamento lingüístico.

Deve-se acrescentar, entretanto, que alguns autores da época já davam indíciosde que a unidade mínima da fonologia não era tão indivisível assim. Começa aaparecer, então, uma nova concepção do elemento fonológico. Este pode ser divisívelem partes menores, que refletem características fonológicas importantes. É oprimeiro indício de que a indivisibilidade e a linearidade do fonema eram premissasque não davam conta do que se passava na realidade fonológica das línguas.

Na segunda metade do século XX, o pensamento lingüístico gerativista ganhaterreno e desenvolve a idéia de fonema como unidade fonológica divisível em traçosdistintivos. A base dessa concepção é mentalista e abstrata. A linguagem passa aser vista como capacidade humana e a língua como um sistema de regras, ou seja, jánão é um sistema de representação ou conjunto de segmentos. O falante internalizaessas regras e os traços que configuram um fonema.

Em 1968, Chomsky e Halle publicam The sound pattern of English (SPE), no qualregistram as características básicas sobre o modelo gerativista padrão, aplicado aocampo fonológico. Segundo os autores,

Todo falante possui uma informação fonológica que congrega duasformas diferentes das unidades lexicais de sua língua: uma representaçãofonológica, mais abstrata e subjacente ao nível fonético [...] e umarepresentação fonética, que indica como a palavra é realizada [...](CHOMSKY; HALLE, 1968 apud BISOL, 1999, p. 17)

No SPE, Chomsky e Halle definem os traços distintivos com base nos doisníveis citados acima. No caso do nível fonético, os traços “são escalas físicas quedescrevem aspectos do evento de fala e podem ser tomados independentemente”

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Gabriela de Campos Barbosa

(CHOMSKY; HALLE, 1968 apud BISOL, 1999, p. 17). Do ponto de vista fonológico,os traços “são marcadores classificatórios abstratos, que identificam os itens lexicaisda língua” (CHOMSKY; HALLE, 1968 apud BISOL, 1999, p. 17). Esses marcadorestêm caráter binário, ou seja, são definidos por dois pontos na escala física. Cadaponto indica a presença ou a ausência da propriedade.

Tais traços se dividem, segundo o modelo em questão, em traços de classesprincipais (silábico, consonântico e soante), de cavidade (coronal, anterior), decorpo de língua (alto, baixo, posterior, arredondado), de aberturas secundárias (nasal,lateral), de modo de articulação (contínuo, tenso, metástase retardada), de fonte(sonoro, estridente) e prosódicos (duração, acento, tom). Esses traços, segundoChomsky, são de base profundamente articulatória, controláveis independentemente,e não se restringem às variáveis funcionalmente distintivas.

A divisão dos segmentos em traços distintivos foi um avanço na teoriafonológica, pois, pela sua delimitação, podem-se perceber melhor as motivaçõesfonéticas ou a naturalidade dos processos fonológicos. Além disso, a fonologiagerativa conseguiu reunir, em classes, segmentos relacionados. Os traços distintivosservem como instrumento que caracteriza esses elementos, aos quais se aplicamregras fonológicas. Chama-se “classe natural” ao grupo de fonemas que, em suarepresentação, “requer menos especificações do que aquelas que necessitam cada umdos fonemas do grupo” (LINARES; VARÓ, 1997, p. 112). Essas classes são relevantespara a fonologia gerativa, pois proporcionam mais economia à descrição dos segmentose podem, mais facilmente, explicar determinados processos fonológicos.

Os elementos de uma classe natural podem sofrer em conjunto as mesmas regrasfonológicas, o que pode prever e explicar que os processos fonológicos que ocorremcom um, ocorrem também com outro. Por exemplo, os elementos [s, z, , 3] quepossuem os traços semelhantes – [-soante], [+contínuo], [+coronais] – neutralizam-seem determinados contextos.

A fonologia gerativa clássica defende os seguintes critérios de análise:

a) Exaustividade: prevê um maior grau de generalização, para dar conta do maiornúmero possível de casos. As exceções seriam “cristalizações do léxico”.

b) Economia: diz que, quanto mais econômica a descrição, mais simples, e, portanto,se refletiria nela a gramática internalizada.

c) Simplicidade: indica que a escolha mais simples seria a melhor.

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Nasalização em português: dois pontos de vista

I. I. A NASALIZAÇÃO: MUDANÇA ESTRUTURAL APLICADA ÀESTRUTURA SUBJACENTE EM DETERMINADO CONTEXTOSINTAGMÁTICO

Segundo Azeredo (2000, p. 65), os processos fonológicos são o resultado dealterações fonéticas que sofrem os fonemas por aparecerem combinados nas línguas.Com a nasalização na língua portuguesa não é diferente.

A partir dos pares opositivos ‘minto X mito’ ou ‘junta X juta’, Mattoso Câmara dizque, para considerar-se a vogal nasal em português, deve-se tomá-la como “vogal eelemento nasal” (CÂMARA, 1984, p. 47). A interpretação a que chega o autor ébaseada na organização silábica do português e reflete o caráter estruturalista de sualeitura. Considerando que os segmentos fonológicos se agrupam linearmente nacadeia sintagmática, Mattoso diz que esse tipo de vogal é travado por um arquifonema|N|, que constitui uma forma de base de onde se originam as regras morfo-fonológicas. “|N| pode realizar-se como |m| diante de consoante labial na sílabaseguinte; como |n|, diante de consoante anterior nas mesmas condições, e como umalofone [ñ] posterior, diante da vogal posterior.” (CÂMARA, 1984, p. 58). Mattosoainda justifica a existência de uma vogal nasal em português, uma vez que, partindodo arquifonema |N| como fato estrutural básico, uma sílaba que possua vogal nasalnão permite crase desta com vogal oral em sílaba seguinte, depois de pausa.

As explicações dadas por Mattoso para a vogal nasal se referem à combinação desegmentos e à influência de um elemento sobre o outro na cadeia sintagmática. Anasalização seria, então, um processo pelo qual um fonema como unidade indivisívelinfluencia outro.

Mattoso distingue, ainda, a nasalização opositiva da não-opositiva. A primeira,resultado da combinação desta com o arquifonema |N|, tem resultados fonológicosdistintivos. A segunda acontece quando uma vogal sofre influência de um segmentonasal presente em sílaba seguinte. É o caso de “cama”, onde o primeiro |a| poderealizar-se como [a] ou [ã]. A interpretação é estrutural e linear.

Na fonologia gerativa clássica linear, os processos fonológicos são modificaçõesque acontecem com os segmentos da representação subjacente, quando seconvertem na cadeia de fala. A formalização desses processos exige umarepresentação que inclua os segmentos alterados, a forma de alteração e oscontextos de ocorrência. Diferentemente da visão estruturalista, a fonologia gerativa

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 91

Gabriela de Campos Barbosa

clássica compreende que há uma influência não de um segmento como um todosobre outro, mas de traços ou traço de um fonema sobre outros da seqüência.Aqui, as regras fonológicas são representadas por símbolos, o que caracteriza aformalização, abstração e generalização presentes nessa corrente teórica. No casodeste artigo, interessa-nos a regra de nasalização, que pode ser expressa assim:

|’kaNta| – [‘kãnta]

C

V � [+nasal] / [ _ ] [+nasal]

(MIRA MATEUS, 1975, p. 47 apud BISOL, 1999, p. 36)

A vogal (DE – descrição estrutural) se transforma em nasal (ME – mudançaestrutural) em contexto onde seja seguida de consoante nasal. Essa regra detransformação dá-se na estrutura subjacente e aparece derivada na representaçãofonética. Acontece da direita para a esquerda em português (direcionalidade), aocontrário de línguas como o Malay (DURAND, 1987 apud DURAND, 1990), em queo processo é dito progressivo e ocorre da esquerda para a direita. Neste caso, umaou mais vogais à direita da consoante nasal são nasalizadas.

2. A FONOLOGIA AUTO-SEGMENTAL

A fonologia de base estruturalista e a fonologia gerativa clássica têm comosemelhança o fato de que ambas consideram a combinação linear de elementossonoros para a formação de unidades lingüísticas mais complexas. No caso daprimeira teoria, os elementos considerados são os fonemas, unidades indivisíveisdistintivas de significado. A fonologia de Praga, também estruturalista, abre portaspara a compreensão do fonema como elemento que possui determinadas característicasinternas, ou seja, traços que fornecem pistas para a diferenciação de significados.

A fonologia gerativa clássica, aproveitando essa concepção, entende que o quediferencia sentidos não é o fonema em si, mas seus traços, ou “unidades mínimasnão-segmentáveis” (BISOL, 1999, p. 43). Nesse caso, são essas propriedades queserão combinadas para formar os sons das línguas humanas. Cada fonema é“o resultado da co-ocorrência, sem ordem definida, dos traços que o compõem”(BISOL, 1999, p. 44). Desaparecendo um fonema, toda a matriz de traços bináriosque o forma poderá apagar-se.

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Nasalização em português: dois pontos de vista

A vertente gerativa padrão propôs avanços em relação ao pensamento fonológicoestruturalista, pois foi capaz de tecer generalizações sobre classes de sons. Processosfonológicos que ocorrem com determinado tipo de fonema poderão acontecer comoutro semelhante. De qualquer maneira, estruturalismo e gerativismo, em fonologia,trabalham com a combinação de suas unidades mínimas (estas sem hierarquiadefinida), como se os fonemas estivessem alinhados sucessivamente. As duas linhasenquadram-se nos chamados modelos fonológicos lineares.

A interpretação do fonema como unidade composta por traços deu margemao surgimento de uma série de correntes chamadas “não-lineares”. A fonologiaauto-segmental está entre elas. Aqui, os segmentos não estão mais dispostosem sucessão, mas em camadas, por isso, esta vertente também é conhecida como“multilinear”. Os traços que compõem o fonema também formam uma matriz, masganham autonomia (auto-segmentos).

Não há mais uma relação de um-para-um (bijetiva) entre um fonema e sua matriz.Por isso se entende que um segmento pode desaparecer durante um processofonológico e algum de seus traços pode permanecer em outro segmento da cadeia.Isso significa que é comum o espraiamento de traços de um fonema a seus vizinhos.

Outro ponto importante definido na fonologia auto-segmental é que, ao contrárioda vertente gerativa clássica, que não considerava hierarquia entre os traçosconstituintes de um segmento, as características fonológicas de um elementoestão organizadas hierarquicamente. Existe uma estrutura interna entre os traçoscomponentes de um som. Estes podem funcionar isoladamente ou em conjunto.

Outra diferença em relação aos traços é que, neste caso, podem ser expressosem termos de presença ou ausência (traços binários) de propriedades ou apenas depresença (monovalência) das mesmas.

A análise dos segmentos dá-se em camadas ou tiers, capazes de dividir ossons em partes e considerá-las de maneira independente. Uma regra fonológica podeocorrer em uma das camadas, isoladamente. Conforme esse modelo, “os segmentossão representados com uma organização interna, a qual se mostra através deconfiguração de nós hierarquicamente ordenados, em que os nós terminais sãotraços fonológicos e os nós intermediários, classes de traços” (CLEMENTS; HUME,1995 apud BISOL, 1999, p. 47). Essa geometria pode ser expressa em formalizaçõesarbóreas, tipicamente não-lineares e capazes de demonstrar a hierarquia entreos traços fonológicos, bem como explicar as características que têm em comum.A estrutura não é, então, aleatória:

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 93

Gabriela de Campos Barbosa

As regras fonológicas são constituídas por uma única operação (de desligamentode uma linha de associação ou de espraiamento de um traço), ao contrário dacorrente gerativa clássica, onde podia haver um conjunto de regras aplicadasàs formas subjacentes e as operações apareciam ordenadas. No caso da correnteauto-segmental, uma regra pode afetar um nó de classe ou traços individuais(regra natural). Se influenciar um traço não individual, a regra é considerada nãonatural.

No caso das regras naturais que envolvem um nó de classe, fica caracterizada aeconomia de operações, já que não é necessária mais de uma operação para cadacaracterística interna ao nó. O funcionamento dos traços é solidário.

A teoria estabelece, por um lado, os seguintes tipos de nó: de raiz, laríngeo,cavidade oral, pontos de consoante, vocálico, abertura e, por outro lado, tipos desegmentos: simples (um nó de raiz e, no máximo, um traço de articulação oral),complexo (um nó de raiz e, no mínimo, dois traços diferentes de articulação oral) ede contorno (com efeito de borda, opondo-se uma a outra em termos de +-).

Vale dizer, ainda, que o modelo auto-segmental resgata a sílaba e reserva a elauma camada chamada silábica ou tier silábico. Aí se forma um esqueleto constituídode posições na escala de tempo. Esta estrutura representa uma interface entre asdemais camadas representativas. No tier silábico há posições vazias que podem serpreenchidas, dependendo do processo fonológico que ocorra na palavra. Sempre quehaja um ‘V’, este será associado a uma sílaba. O modelo admite que determinadaconsoante possa pertencer a mais de uma posição silábica (ambi-silabidade). Asposições não preenchidas nesse tier são chamadas “extra-silábicas”.

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X

p (r)

A

a cb

B

C D

d e f g

X: unidade abstrata de tempo

p: segmento, nó de raiz

A, B, C, D: nós de classe

a, b, c, d, e, f, g: traços fonológicos

Nasalização em português: dois pontos de vista

Pode-se resumir os princípios básicos da fonologia auto-segmental da seguintemaneira:

1. Princípio de Não-Cruzamento de Linhas de Associação.

Como Princípio de Boa-Formação, bloqueia qualquer regra que o viole. Oespraiamento torna-se impossível se há elementos que interferem na relação deoutros dois, ao fazer com que se cruzem as linhas de relação.

2. Princípio do Contorno Obrigatório.

Elementos adjacentes idênticos são proibidos, bem como traços ou nós adjacentesidênticos em determinada camada. Em muitas línguas, para que isto não aconteça,ocorre a chamada dissimilação.

3. Restrição de Ligação.

As linhas de associação em descrições estruturais são interpretadasexaustivamente. “Toda regra se aplicará somente a configurações que contenham onúmero de linhas de associação que a sua descrição estrutural especifica.” (BISOL,1999, p. 66)

3. NASALIZAÇÃO EM PORTUGUÊS: ESPRAIAMENTO DA NASALIDADE

A fonologia auto-segmental inova em relação à gerativa padrão, pois, como jáfoi dito, os traços distintivos ganham independência para organizar-se em camadase podem funcionar isoladamente ou em conjunto. Os elementos de cada camadaligam-se à camada superior por linhas de associação e podem espraiar-se paraposições vizinhas. O mecanismo básico desse funcionamento é representado pelaspróprias linhas de associação, que irão refletir as relações estabelecidas entre ostraços individuais ou entre os nós a que pertencem. Se há espraiamento de um traçoa outra posição, ele pode transferir-se isoladamente ou levar com ele todas aspropriedades vinculadas ao nó a que pertence.

Paralelamente ao espraiamento do traço, há que considerar a arrumação dotier silábico ou linha esqueletal antes e depois do processo fonológico observado.Tomemos, então, a nasalização opositiva em português como exemplo. No tiersilábico da palavra campo – |’kaNpu| – há cinco posições de tempo reservadas. Acada uma estaria vinculado um nó de raiz, ou segmento sonoro antes da nasalizaçãoda vogal |a|.

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 95

Gabriela de Campos Barbosa

Observemos somente a sílaba cujos segmentos estão envolvidos no processo.Originalmente são três elementos vinculados, cada um, a uma unidade de tempo.

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X

r

C

k

X

r

V

ã

X

r

C

N

α

A sílaba é travada. O traço de nasalidade de |N| se espraia para a vogal anteriorde maneira independente, já que não está vinculado a outro nó de classe a não ser opróprio nó de raiz, ou seja, o segmento em si (BISOL, 1999, p. 49). O espraiamentoda nasalidade é recebido pela vogal |a| que o assimila em sua estrutura,transformando-se em vogal nasal. A nasalização resume-se a um processo deassimilação. O elemento |N| não tem ponto de articulação marcado, entretantoocupa uma posição no tier silábico e trava a sílaba.

O modelo auto-segmental dá conta melhor do fato de que existem vogais nasaisem português, já que demonstra como um traço independente pode ser transferidoa outro adjacente, sem que se apague toda a matriz do elemento doador. A posiçãosilábica deste último continua preenchida, o que faz da sílaba uma unidade travada.

A fonologia auto-segmental abre campo para a compreensão dos processosfonológicos em termos de assimilação e dissimilação. Em vez de considerar taisalterações como uma série de processos específicos relacionados à operação que ocorrena palavra, como fazia a fonologia clássica padrão, o pensamento auto-segmentalentende que as relações entre os elementos sonoros da língua podem ocasionar aassimilação ou dissimilação. No primeiro caso, o espraiamento de um segmentorecebe a(s) propriedade(s) de outro. Já no segundo, há o apagamento da matriz dosegmento, pois se obedece ao Princípio do Contorno Obrigatório, segundo o qualestão proibidos elementos e traços adjacentes idênticos. Resumindo os processosfonológicos em dois tipos, a abordagem analítica torna-se mais econômica que nomodelo gerativo clássico, que concebia a possibilidade para mais de uma regra a seraplicada às camadas subjacentes e a ordenação das mesmas.

Nasalização em português: dois pontos de vista

CONCLUSÃO

Observando o processo de nasalização em português, segundo a fonologiagerativa clássica e a fonologia auto-segmental, foi possível constatar diferenças esemelhanças entre essas duas vertentes do pensamento fonológico.

Há algumas semelhanças. Ambas entendem que os fonemas são unidades divisíveisem elementos menores e que se relacionam com outros segmentos para formar unidadesmais complexas. Acreditam que, se aplicadas determinadas regras às estruturasfonológicas subjacentes, têm-se as representações fonéticas de determinado enunciado.

As duas também consideram que os elementos, por terem determinados traçosem comum, podem ser agrupados em classes, e isso facilita a descrição dos mesmose a interpretação dos processos fonológicos. Uma alteração que acontece com umfonema de determinada classe é passível de ocorrer com outro do mesmo conjunto.

As diferenças entre as duas correntes aparecem em maior número. A fonologiagerativa clássica compreende que os segmentos sonoros estão organizadossucessivamente na cadeia lingüística, entretanto, não prevê ordem específica para adistribuição dos traços distintivos em uma matriz fonológica. Se um traço se apaga, todamatriz pode desaparecer. Esta corrente é dita não-linear. A fonologia auto-segmental,por sua vez, acredita que as propriedades dos sons estão organizadas em camadas outiers e que existe uma hierarquia entre os traços. Por isso, a representação de uma matrizfonológica estabelece uma estrutura arbórea que especifica a relação e a dependênciaentre seus elementos. Visualizam-se nós e classes de elementos. As linhas queconstituem tal ‘geometria’ especificam a relação entre os traços fonológicos esuas classes. Se há o apagamento de um traço da matriz, esta pode não desaparecertotalmente. Este modelo pertence aos chamados multilineares ou não-lineares.

Também quanto aos traços distintivos, a primeira corrente propõe uma representaçãobinária (presença X ausência) de propriedades. A segunda pode expressá-los dessamaneira ou em termos de monovalência (presença ou ausência) de determinadacaracterística.

Os processos fonológicos, segundo a fonologia gerativa clássica, são compreendidoscomo alterações estruturais que acontecem com os elementos sonoros quando, àscamadas fonológicas subjacentes, são impostas regras próprias de uma língua. Umprocesso fonológico pode incluir mais de uma regra e, neste caso, deve haver umordenamento e direcionalidade (esquerda-direita X direita-esquerda) entre elas. Hávários tipos de mudanças segundo o caráter da operação e dos elementos envolvidos.Cada alteração recebe um título apropriado. No caso da vertente auto-segmental,os processos fonológicos se resumem em uma única operação, que pode ser deassimilação ou dissimilação.

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Gabriela de Campos Barbosa

A fonologia gerativa clássica entende que a nasalização na língua portuguesa éum processo fonológico resultado da influência de segmento nasal em outro oral,precedente. Este se torna nasal, pois sofre mudança em sua estrutura subjacente,desde que em determinado contexto. Este ambiente nada mais é do que aorganização específica da cadeia sintagmática. Ocorrendo organização de elementos(sucessivamente) na cadeia, o processo acontecerá.

O modelo auto-segmental crê que a nasalização em português é um processoassimilatório. A vogal recebe o traço de nasalidade que se espraiou do elemento nasalposterior, tornando-se nasal. A matriz fonológica deste último não se apaga porcompleto, o que reserva a ele uma posição em final de sílaba.

Referências

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• DURAND, J. Generative and non-linear phonology. London: Longman, 1990.

• NETTO, W. F. Introdução à fonologia da Língua Portuguesa. São Paulo: Hedra,2001.

• VARÓ, E. A.; LINARES, M. A. M. Diccionario de lingüística moderna.Barcelona: Ariel, 1997.

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AS POSSIBILIDADES DEUMA AVALIAÇÃO DIALÓGICA

NO FÓRUM DO AVA

Susan KratochwillFaculdade CCAA

Universidade Castelo Branco Consórcio CEDERJ/UERJ

Mestre em Educação

contato: [email protected]

Resumo: O objetivo deste trabalho é mostrar que uma interface digital, o fórumde discussão do ambiente virtual de aprendizagem (AVA), pode possibilitar aimplementação da avaliação na perspectiva dialógica. O referencial teórico consistiu naconcepção dialógica da teoria enunciativa de Bakhtin, da perspectiva do desenvolvimentode Vygotsky e dos conceitos da avaliação da aprendizagem de Luckesi e de Hoffmann.

Palavras-chave: avaliação da aprendizagem; dialógica; fórum de discussão.

Abstract: The objective of this paper is to show that a digital interface – the discussionforum on the virtual learning environment (VLE) – can make it possible the implementationof the evaluation in the dialogical perspective. The theoretical approach consisted in thedialogical conception of Bakhtin’s enunciatively theory, Vygotsky’s development perspective,and Luckesi’s and Hoffman’s learning evaluation concepts.

Keywords: learning evaluation; dialogical; discussion forum.

Resumen: El objetivo de este trabajo es revelar que una interfaz digital, el forum dediscusión del ambiente virtual de aprendizaje (A.V.A.), puede posibilitar laimplementación de la evaluación en la perspectiva dialógica. El referencial teórico consistióen la concepción dialógica de la teoría enunciativa de Bakhtin, en la perspectiva del desarrollode Vygosky y en los conceptos de la evaluación del aprendizaje de Luckesi y de Hoffmann.

Palabras cclave: evolución del aprendizaje; dialógica; forum de discusión.

Susan Kratochwill

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INTRODUÇÃO

Desde o final do século XX o avanço das tecnologias digitais tem invadido as maisvariadas áreas, provocando inegáveis e irreversíveis mudanças no comportamentosocial, político e econômico daqueles que, hoje, participam da nova onda de“reconexão da humanidade consigo mesma” (LÉVY, 2000, p. 198-9). Tais mudançasalteram cenários e vêm colocando cada vez mais em evidência a educação on-lineenquanto modalidade de ensino conectada à rede mundial de computadores.

Assim, a educação, tanto presencial quanto a distância e on-line, precisaacompanhar essa re-evolução social e tecnológica. Entendemos a integração daeducação com o avanço das tecnologias digitais não como uma imposição que vematender às urgências mercadológicas, mas como resultado das mudanças que seapresentam ao homem. Como lembra Moraes (2004, p. 8), “devemos ter em menteque as imposições ou as resistências ou a vontade de alterar as formas de ensinofrente às tecnologias da informação e da comunicação são resultados, exclusivamente,da grande capacidade humana de criar”. É a criatividade humana que temproporcionado cada vez mais avanços tecnológicos e, concomitantemente, novasnecessidades sociais e educacionais.

Ao cidadão do século XXI não cabe mais um modelo de reprodução/repetição.Esse novo sujeito busca posicionar-se como co-autor e transformador do contextohistórico-social no qual se insere. Para atender a esse novo personagem, a educaçãobancária e o modelo analógico de emissão-recepção, que àquela servia, não bastammais. O sistema digital proporciona um modelo bidirecional, híbrido, polifônico, abertoe co-participativo entre emissão e recepção, diminuindo a polaridade e aumentandoa interação e a interatividade. “A EAD, em especial pela internet, propõe o currículosem limites. Saberes até então excluídos do ensino invadem a cabeça dos estudantese de forma transgressora convidam os mesmos a fazer links e a ousar abrir janelas.”(RAMAL, 2001, p. 13)

Neste cenário de mudanças, assumem relevância muitas das contribuições dePaulo Freire (2005, p. 79), por trazerem em si a base epistemológica da sociedadeda informação, onde “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educaa si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. Asmudanças que estão atingindo a educação anunciam que os contextos de aprendizagemnão comportam mais a figura do professor-transmissor e do estudante-receptor.

As possibilidades de uma avaliação dialógica no fórum do AVA

Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1 101

A informação se transmite, mas a aprendizagem se constrói a partir das interaçõesdialógicas que (re)significam o conteúdo e sugerem a participação interativa.

O objetivo deste texto é mostrar as possibilidades de implementação da avaliaçãointerativa-dialógica a partir da interface fórum de discussão na educação on-line.

INTERATIVIDADE

O termo “interatividade” apareceu na década de 1970 entre críticos da mídiaunidirecional de massa, e ganhou destaque quando adotado na informática, nabusca de um termo específico para exprimir a novidade do computador que substituias herméticas linguagens alfanuméricas pelos ícones e janelas conversacionais,que permitem interferências e modificações na tela. Portanto, interatividade não émeramente um produto da tecnicidade informática. O conceito tem raízes na arteparticipacionista da década de 1960 e no século XXI se apresenta como tendênciageral, como novo ambiente comunicacional que se expande pela mídia de massa,baseada na transmissão caracterizada pela separação entre emissão e recepção.

Partimos de uma formulação mais ampla do conceito de interatividade, que diz:Interatividade é a disponibilização consciente de um maiscomunicacional de modo expressivamente complexo, ao mesmo tempoatentando para as interações existentes e promovendo mais e melhoresinterações – seja entre usuário e tecnologias, digitais ou analógicas, sejanas relações “presenciais” ou “virtuais” entre os seres humanos. (SILVA,2002, p. 20)

Mais especificamente, o conceito de interatividade pressupõe um tripéfundamental (SILVA, 2002): participação-intervenção, bidirecionalidade-hibridação,permutabilidade-potencialidade.

No equilíbrio desse tripé fundamental do conceito está a dinâmicacomunicacional que conta com o sujeito ativo, não mais como espectador silenciadoque reproduz o conhecimento. Ele participa, compartilha e co-cria de formaincessante, num continuum que possibilita uma teia relacional um-todos etodos-todos, proporcionando indefinidas possibilidades de comunicação aberta.

Em situação de interatividade, emissor, mensagem e receptor mudamrespectivamente de papel, de natureza e de status. De acordo com Marchand (1987),o emissor não emite mais no sentido que se entende habitualmente. Ele não propõemais uma mensagem fechada, ao contrário, oferece um leque de possibilidades que,

Susan Kratochwill

102 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1

colocadas no mesmo nível, confere a elas um mesmo valor e um mesmo estatuto.O receptor não está mais em posição de recepção clássica. A mensagem só tomatodo o seu significado sob a sua intervenção. Ele se torna, de certa maneira, criador.Enfim, a mensagem que agora pode ser recomposta, reorganizada, modificadapermanentemente sob o impacto cruzado das intervenções do receptor e dosditames do sistema, perde seu estatuto de mensagem “emitida”. Assim, parececlaramente que o esquema clássico da informação que se baseava numa ligaçãounilateral emissor-mensagem-receptor se acha mal colocado em situação deinteratividade.

DIALÓGICA

Segundo Bakhtin (2004), a compreensão é uma forma de diálogo. Compreender éopor à palavra do locutor uma “contrapalavra” como forma de significação. Isto é:

A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim comotambém não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação dolocutor e do receptor produzido através do material de um determinadocomplexo sonoro. É como uma faísca elétrica que só se produz quandohá contato dos dois pólos opostos. (BAKHTIN, 2004, p. 132)

Bakhtin não faz restrições ao diálogo, não impõe condições às partes nem aoresultado. Sua crença está no fato de que tudo que o indivíduo produz estáimpregnado de outras vozes, que toda produção oral ou escrita é resultado de umdiálogo, ou seja, a consciência individual forma-se coletivamente. O autônomo, oindividual, seria na verdade o social, o coletivo. Como ele mesmo diz (2004, p. 123),“o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológicaem grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas eobjeções potenciais, procura apoio etc.”. Depara-se, então, com o pressuposto de que,se a humanidade existe, se os sujeitos relacionam-se socialmente, conseqüentementea dialógica é inerente a essas relações, sem que, para isso, necessite de predisposiçãopara o diálogo.

No diálogo encontra-se a troca, a conversação, a influência de um no outro. Daía concepção de que as relações sociais são dialógicas, estruturadas pelo diálogo. ParaLukianchuki (2001, p. 1), “as palavras de um falante estão sempre e inevitavelmenteatravessadas pelas palavras do outro [...] em linguagem bakhtiniana, a noção do eununca é individual, mas social”.

Buber confirma esta visão ao afirmar que:

As possibilidades de uma avaliação dialógica no fórum do AVA

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Relação é reciprocidade. Meu Tu atua sobre mim assim como eu atuosobre ele. Nossos alunos nos formam, nossas obras nos edificam [...]Quanto aprendemos com as crianças e com os animais! Nós vivemosno fluxo torrencial da reciprocidade universal, irremediavelmenteencerrados nela (BUBER, 2004, p. 62).

Compartilhando desta visão do “eu” com o “outro”, Vygotsky (1998) acreditavana necessidade das mediações para o desenvolvimento do aprendizado, inclusiveauxiliadas por instrumentos e pela própria linguagem. Segundo Oliveira (1993,p. 27), “Vygotsky trabalha, então, com a noção de que a relação do homem com omundo não é uma relação direta, mas, fundamentalmente, uma relação mediada”,o que caracteriza a base do sociointeracionismo. Para melhor caracterizar esseprocesso, pode-se determinar mediação como “processo de intervenção de umelemento intermediário numa relação: a relação deixa, então, de ser direta e passa aser mediada por esse elemento” (OLIVEIRA, 1993, p. 26).

No entrecruzar das falas de Bakhtin e Vygotsky pode-se vislumbrar uma educaçãocom base nas interações, na coletividade, na dialógica e na colaboração, respeitandoo princípio de alteridade e de autonomia do sujeito. Suas teorias evidenciam alinguagem enquanto mediadora do processo social, de ensino e de aprendizagem,estando o processo avaliativo imbricado nestes e pautado na dialógica.

De acordo com Bakhtin (2004, p. 124), “a comunicação verbal entrelaça-seinextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terrenocomum da situação de produção”. Os processos de ensinar e de aprender não seconsolidam sem a comunicação verbal, seja ela oral, escrita ou reflexiva, e junto a eladesencadeiam-se situações de produção necessárias à construção do conhecimento.A partir da informação transmitida ou adquirida, o sujeito estará propenso àconstrução/produção do conhecimento. Para tanto, ele necessita de espaço, detempo e de diálogo para consolidar o conhecimento produzido e, assim, caracterizar-sea aprendizagem.

As práticas pedagógicas, evidenciando aqui as referentes ao processo avaliativo,na perspectiva dialógica apresentada por Bakhtin, preocupam-se com o percurso dastrocas, isto é, aquilo que é dado como real, que é o conhecimento já dominado,sofrerá mediações e, ao atingir o potencial, o conhecimento que o sujeito estavapronto para alcançar, consolidará a autonomia desejada. Sob esse aspecto, Vygotsky(1998) esclarece que entre o desenvolvimento real e o desenvolvimento potencialdo sujeito há um longo caminho de trocas a ser construído, um percurso que ele

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denominou zona de desenvolvimento proximal (ZDP). Sendo assim, a comunicação éfator crucial nos processos de ensinar e aprender e está além do próprio processo,pois desse diálogo surgirão a compreensão e a significação.

AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM

Os caminhos trilhados pelo sujeito/aprendiz na construção/produção do próprioconhecimento caracterizam o processo de avaliação dialógica, visto sob o ângulo detrocas, diálogos e mediações:

A perspectiva da ação avaliativa é percebida como uma das mediaçõespela qual se encorajaria a reorganização do saber. Ação, movimento,provocação, na tentativa de reciprocidade intelectual entre os elementosda ação educativa. Professor e aluno buscando coordenar seus pontosde vista, trocando idéias, reorganizando-as [...] a ação avaliativa,enquanto mediação, se faria presente, justamente, no interstícioentre uma etapa de construção do conhecimento do aluno e a etapade produção, por ele, de um saber enriquecido, complementado.(HOFFMANN, 2001, p. 63-64)

Para analisar as possibilidades de implementação de uma avaliação dialógica,dirigida especialmente às atividades do fórum, faz-se necessário buscar nos teóricosconsagrados em estudos sobre a avaliação o referencial adequado ao embasamentodesta perspectiva. Romão (2005, p. 133) traz sua contribuição ao afirmar que “aavaliação pode funcionar como diagnóstico ou como exame; como pesquisa ou comoclassificação; como instrumento de inclusão ou de exclusão; como canal de ascensãoou como critério de discriminação”.

Uma das primeiras barreiras que se deseja transpor aqui é a de avaliação comoato de punição, ou seja, eliminar a “visão culposa”1 da avaliação e inserir a visãode avaliação enquanto processo mediador do processo de aprendizagem e comodiagnóstico contínuo dos processos de ensino e de aprendizagem.

Considera-se, neste estudo, que os conceitos e os fundamentos da avaliaçãoindependem do ambiente no qual se desenvolve a aprendizagem, e que os recursostecnológicos oferecidos no AVA podem potencializar novas práticas de avaliação,

1 Segundo Romão (2005), essa visão da avaliação tem raízes na civilização ocidental cristã, que tinha o pecado como referencial(ideologia do pecado), na qual todos se puniam e puniam aos outros pelos erros, e também na ideologia burguesa alimentada peloEstado burguês, que tem a escola como um aparelho ideológico dos mais eficientes. Na concepção burguesa, a avaliação significaresultado de produção, ou seja, deseja como resultado o produto daquilo que foi investido e, como em todo sistema capitalista, oprincipal é o produto, e que seja positivo.

As possibilidades de uma avaliação dialógica no fórum do AVA

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posto que os dispositivos e interfaces digitais propiciam a interação, a interatividadee a dialogia necessárias para fazer da avaliação uma subsidiária do planejamento e daexecução, um instrumento que auxilia na melhoria dos resultados, conseqüentementeauxiliando na construção do conhecimento (LUCKESI, 2005).

Segundo Hoffmann (2001, 1994) e Luckesi (2005), enquanto teóricos daavaliação da aprendizagem, a avaliação deve se consolidar em um processo deacompanhamento, de mediações e de intervenções, tornando-se, então, umprocesso dialógico:

A avaliação, enquanto relação dialógica, vai conceber o conhecimentocomo apropriação do saber pelo aluno e também pelo professor, comoação-reflexão-ação que se passa na sala de aula em direção a um saberaprimorado, enriquecido, carregado de significados, de compreensão.Dessa forma, a avaliação passa a exigir do professor uma relaçãoepistemológica com o aluno – uma conexão entendida como reflexãoaprofundada a respeito das formas como se dá a compreensão doeducando sobre o objeto de conhecimento. (HOFFMANN, 1994, p. 56)

Evidenciando-se a avaliação no AVA, com todas as possibilidades digitais queo ambiente propicia, estas características da avaliação podem ser concretizadasconsiderando que “a interação mútua deve ser valorizada e o trabalho autoral ecooperativo dos alunos fomentado” (PRIMO, 2006, p. 48). A educação on-line nadamais exigirá da avaliação além daquilo que o processo avaliativo verdadeiramentecomprometido, seja na educação presencial ou a distância, já exijam, mas que aspráticas constatadas nem sempre concretizam.

AS POSSIBILIDADES AVALIATIVAS DO FÓRUM

Vygotsky (1998) afirma que o desenvolvimento pode ocorrer de fora para dentro,pois todas as situações vividas e observadas por meio da fala do outro e do confrontocom o outro são internalizadas e vão ganhando significados distintos conforme alinguagem e o pensamento vão se desenvolvendo, e, dessa forma, o sujeito estásempre aprendendo em seu cotidiano. Foi sob esta perspectiva que se considerouo fórum como um ambiente propício ao desenvolvimento daquilo que exprimeo conceito de internalização (VYGOTSKY, 1998) e, em decorrência disto, umfavorecedor das práticas avaliativas dialógicas.

Fóruns de discussão são salas virtuais de interação muito utilizadas nos AVAse abordam os mais diferentes assuntos. São interfaces de comunicação assíncrona,pois a comunicação não é feita em tempo real: as mensagens são armazenadas em

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um servidor e podem ser consultadas a qualquer tempo, acessando-se os servidoresde news integrados à internet. Esse sistema funciona quase como uma bibliotecapermanente, que se complementa a cada instante com as novas participações.Existem fóruns que estão abertos há mais de vinte anos e, assim, “alguns especialistasconsideram que os arquivos desses grupos de discussão formam hoje a mais vastaexperiência de participação coletiva de troca de idéias jamais vista no mundo”(ZOTTO, 2001, p. 4).

A partir dessa concepção do fórum on-line, os AVAs incorporaram didaticamenteessa interface a mais uma possibilidade interativa de aproximação das distâncias, decolaboração, de diálogo, de socialização e de trocas de informação e reflexão. Sendoambientes próprios para o processo de educação formal, cumpre esclarecer como sedimensiona o fórum disponibilizado no ambiente de ensino e de aprendizagemon-line como mais uma possibilidade de avaliação de concepção dialógica. O fórumcom finalidades educacionais no ambiente on-line pode ser definido como:

Um espaço de comunicação formado por quadros de diálogo nosquais se vão incluindo mensagens que podem ser classificadastematicamente. Nestes espaços, os usuários, e no caso que nosreferimos, fóruns educativos, os alunos podem realizar novascontribuições, esclarecer outras, refutar as dos demais participantesetc., de uma forma assíncrona, sendo possível que as contribuiçõese mensagens permaneçam todo o tempo a disposição dos demaisparticipantes. (SÁNCHEZ, 2005, p. 3, tradução nossa)

Sem desconsiderar a relevância dos momentos síncronos nos processos deensino, de aprendizagem e de avaliação, pode-se considerar a característicaassíncrona do fórum como uma de suas vantagens. A participação assíncronapossibilita maior empenho na pesquisa e nas leituras para o aprofundamento dostemas, além de aprimorar a própria capacidade de desenvolver o raciocínio por meioda escrita necessária para a participação.

Quando se vislumbra uma avaliação dialógica, em sua perspectiva diagnóstica eformativa, a dinâmica do fórum de discussão acaba por ser mais um elemento quevem complementar o fazer docente, mais um instrumento avaliativo que, por suascaracterísticas, possibilita a dialogia na construção do conhecimento, da mesmaforma que propicia ao estudante/aprendiz a possibilidade de se auto-avaliar, gerando,assim, a “aprendizagem individual como resultado de um processo grupal” (ARIZA,2000 apud BRITO, 2004, p. 5, tradução nossa). Seguindo esta característica,ao mesmo tempo em que o docente acompanha e participa das contribuições

As possibilidades de uma avaliação dialógica no fórum do AVA

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individuais, desenrola-se uma teia textual coletiva que acaba por caracterizar aaprendizagem de forma colaborativa.

A efetiva possibilidade do fórum de discussão on-line, com fins educativos, podeser uma excelente ferramenta de avaliação:

O fórum pode chegar a constituir-se como uma grande ferramenta deavaliação, através do qual o moderador ou docente terá em conta onúmero e a qualidade das contribuições dos participantes. Além domais, poderá considerar questões como as colaborações complementaresdos alunos para apoiar o trabalho do outro, para complementar ainformação, ajudar a resolver dúvidas de outros companheiros, etc.(SÁNCHEZ, 2005, p. 7, tradução nossa)

Torna-se interessante a dinâmica desenvolvida no fórum justamente pela suaperspectiva dialógica. Dentro desse processo dialógico, a autonomia e a autoriase constituem em respeito à alteridade, à individualidade e, ao mesmo tempo, àcoletividade. Assim, forma-se um campo rico de possibilidades, além de sedesenvolver um texto dinâmico e interativo por sua fluência de idéias, alternâncias,descobertas e construções. “Discussão on-line é de fato uma nova forma de escritacolaborativa. Sob esse ponto de vista, uma discussão on-line forma um único textocom vários autores em vez de uma coleção de textos únicos.” (FEENBERG; XIN, semdata, p. 5, tradução nossa)

O FÓRUM EM PRÁTICA

Por experiência própria, em ambientes virtuais de aprendizagem, deu-se a imensanecessidade de procurar melhor compreender como se dão os processos avaliativosdialógicos a partir de uma das interfaces disponibilizadas no AVA: o fórum de discussãoon-line.

Com base em uma abordagem qualitativa de perspectiva sociohistórica (FREITAS,2002, 2003a, 2003b), foi realizado um estudo investigativo, evidenciando-se oprocesso dialógico de acordo com a teoria enunciativa da linguagem de Bakhtin(2000, 2004). Uma investigação sob esta perspectiva:

[...] enfatiza [...] a compreensão dos fenômenos a partir de seu acontecerhistórico, no qual o particular é considerado uma instância datotalidade social. A pesquisa é vista como uma relação entre sujeitos,portanto dialógica, na qual o pesquisador é uma parte integrante doprocesso investigativo. (FREITAS, 2002, p. 21)

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Partindo do princípio de que a “avaliação da aprendizagem determina uma sériede diferenciados caminhos a percorrer na avaliação e no trabalho pedagógicocomo um todo” (DILIGENTI, 2003, p. 39), considera-se como uma das possibilidadesou um dos caminhos deste processo avaliativo no AVA a utilização do fórum dediscussão enquanto dinâmica do diálogo ou enquanto espaço dialógico.

Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e não há limitespara o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e numfuturo ilimitado). Mesmo os sentidos passados, aqueles que nasceramdo diálogo com os séculos passados, nunca estão estabilizados(encerrados, acabados de uma vez por todas). Sempre se modificarão(renovando-se) no desenrolar do diálogo subseqüente, futuro. Em cadaum dos pontos do diálogo que se desenrola, existe uma multiplicidadeinumerável, ilimitada de sentidos esquecidos, porém, num determinadoponto, no desenrolar do diálogo, ao saber de sua evolução, eles serãorememorados e renascerão numa forma renovada (num contexto novo).Não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um diaseu renascimento. (BAKHTIN, 2000, p. 413-4)

A partir do diálogo dinamizado no fórum do AVA pode-se observar odesenvolvimento de novas perspectivas acerca dos conteúdos estudados. O própriomaterial impresso disponibilizado ao estudante/aprendiz perde a característica demera transmissão de conteúdos, de forma fechada e unilateral, como se fosse a últimapalavra, e desenrola-se numa espiral de multiplicidades, renovando-se no contextodialógico. Esta interface assíncrona rompe com o falar-ditar-do-mestre e potencializa,a partir de suas características digitais, polifônicas e plásticas, a concretização de umaavaliação dialógica, contínua (formativa/diagnóstica) e interativa.

Para que se atinja este contexto, é de fundamental importância que o educadoresteja consciente de seu papel nesse processo e saiba que:

[...] sua competência deve deslocar-se no sentido de incentivar aaprendizagem e o pensamento. O professor torna-se um animador dainteligência coletiva dos grupos que estão a seu encargo. Sua atividadeserá centrada no acompanhamento e na gestão das aprendizagens: oincitamento à troca dos saberes, a mediação relacional e simbólica,a pilotagem personalizada dos percursos de aprendizagem etc. (LÉVY,2005, p. 171, grifo do autor)

Se o educador consegue se colocar na posição de mediador dos processos deaprendizagem, conseqüentemente estará apto a acompanhar dialogicamente ospercursos destas aprendizagens, tornando a avaliação um processo dialógico.Aproveitando-se do fórum de discussão do AVA, cabe ao educador-mediador incentivar,

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As possibilidades de uma avaliação dialógica no fórum do AVA

provocar os diálogos que caracterizarão a oportunidade de uma avaliação mediadora quepressupõe o contexto dialógico e, enfim, primar pela ação-reflexão-ação, o que no fórumse concretiza como interação-reflexão-interação (HOFFMANN, 1994, 2006).

A forma como o fórum é mediado acaba por interferir diretamente na forma comoos participantes interagem com e nele. De acordo com as falas e interferênciasdo educador-mediador, os estudantes/participantes se sentirão motivados ou nãoa participar dialogicamente da discussão proposta.

Outra possibilidade é que o fórum de discussão on-line, dinamizado numaperspectiva dialógica e colaborativa, acabe por atender aos seguintes objetivos:

[...] (a) promover a negociação entre avaliadores e avaliados; (b) viabilizaruma agenda de negociação; (c) obter informações que subsidiem anegociação e (d) utilizar as informações obtidas via avaliação de formaresponsiva, isto é, para promover a discussão de questões significativasdo processo com vistas à melhor aprendizagem de todos os envolvidos.(NUNES; VILARINHO, 2006, p. 114-5)

Sob a visão de Sánchez (2005), o fórum pode ser mais um recurso de avaliaçãoonde se pode observar, além da quantidade, a qualidade das participações e a formacomo um complementa e apóia a participação do outro. Complementar, refutar,interferir na participação do outro retrata o caráter dialógico da dinâmica e aomesmo tempo revela como cada sujeito está construindo e reconstruindo o seuconhecimento acerca dos assuntos (conteúdos) em debate. Tal dinâmica propiciaao docente/mediador a possibilidade avaliativa dialógica, pois permite não sóacompanhar como também interferir no processo em que, conforme afirma Vygotsky(1998), qualquer situação de aprendizado tem sempre uma história prévia. Ao entrarno fórum para começar a debater um tema, o estudante traz consigo um determinadoconhecimento sobre o assunto (nível de desenvolvimento real). Mas, ao dar inícioàs interações e prosseguir com os debates, deseja-se que os estudantes atinjamoutro nível de conhecimento sobre o assunto (nível de desenvolvimento potencial).Observando, interagindo e permitindo a interação no ambiente favorável que setorna o fórum, propicia-se uma zona de desenvolvimento (zona de desenvolvimentoproximal) que:

[...] é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costumadeterminar através da solução independente de problemas, e o nívelde desenvolvimento potencial, determinado através da solução deproblemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração comcompanheiros mais capazes. (VYGOTSKY, 1998, p. 112)

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A partir dos estudos de Vygotsky (1998), pode-se propor como analogia:

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NÍVEL DE

DESENVOLVIMENTO

REAL

O primeiro contatodo estudante com o fórumde discussão, onde eletrará para o debate aquiloque já tem construído econhecido sobre o tema.

Avaliação diagnóstica

(conhecendo o queo estudante sabe).

ZONA DE

DESENVOLVIMENTO

PROXIMAL

O fórum em si, quepermite as intervençõesdo educador assim comodos demais estudantescolaborativamente.

Avaliação formativa,mediadora, DIALÓGICA

(acompanhando oprocesso construtivo

do estudante).

NÍVEL DE

DESENVOLVIMENTO

POTENCIAL

O conhecimento queo estudante será capazde atingir após terinteragido dialogicamente,influenciando e recebendoinfluências durante seudebate no fórum.

Avaliação somativa

(momento deapresentação

de resultados construídosno processo).

Dinamizando um processo avaliativo dialógico no fórum de discussão do AVAo docente não pode se esquecer que:

[...] a visão do educador/avaliador ultrapassa a concepção de alguémque simplesmente “observa” se o aluno acompanhou o processo ealcançou resultados esperados, na direção de um educador que propõeações diversificadas e investiga, justamente, o inesperado, o inusitado.Alguém que provoca, questiona, confronta, exige novas e melhoressoluções a cada momento. (HOFFMANN, 2004, p. 77)

O fórum de discussão dinamizado no ambiente virtual de aprendizagem pode seruma das possibilidades de se concretizar uma avaliação dialógica da aprendizagem naeducação on-line, ou, ainda, também pode ser utilizado com mais uma possibilidade de

As possibilidades de uma avaliação dialógica no fórum do AVA

apoio, com o mesmo propósito, na sala de aula presencial. E, sob esta visão,concorda-se que “é no movimento dessa rede de conexões que a avaliação daaprendizagem deve ser gestada. Avaliar é diagnosticar e tomar decisões acerca dessediagnóstico” (SANTOS, 2006, p. 316).

CONCLUSÃO

A utilização do fórum de discussão em ambientes virtuais de aprendizagem temsido uma prática docente cada vez mais constante. Os dinamizadores dessa atividadetêm descoberto, juntamente com seus aprendizes, que a utilização dessa interfacedigital tem trazido muito mais interatividade e interação aos processos de ensino ede aprendizagem. Tem proporcionado maior tempo para a participação dos aprendizes;tem exigido deles maior necessidade de leituras e pesquisas; tem feito com queapresentem melhor desempenho na produção escrita; tem oferecido maior liberdadena quantidade de participações, assim como na extensão da participação; tempropiciado possibilidades de avaliação diagnóstica/formativa individual e em grupo,auto-avaliação e interação, aprendizagem colaborativa, além de representar umqualificado arquivo das manifestações pessoais.

O fórum on-line propicia a interatividade por ser uma interface digital que possuicomo características a participação-intervenção, a bidirecionalidade-hibridação e apermutabilidade-potencialidade. Tais características, apontadas como fundamentosda interatividade, são potencializadoras da aprendizagem colaborativa, considerando-sea aprendizagem enquanto processo construtivo, sociointeracionista e mediado.

Esta interface on-line tornou-se, sem dúvida, mais um recurso didático quetem auxiliado docentes e estudantes, de forma colaborativa, em seus processoseducacionais, sejam estes de ensino, de aprendizagem ou de avaliação. As modalidadesde ensino não presenciais têm se valido desta prática em seus ambientes virtuaisde aprendizagem, mas docentes do ensino presencial também têm aproveitado estainterface digital como uma extensão da sala de aula, beneficiando-se da dialógicae de todas as possibilidades proporcionadas por este recurso, colocando-se emevidência as inúmeras possibilidades avaliativas proporcionadas.

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b) Espaçamento: 1,5 (um e meio) entre linhas e parágrafos, duplo entre partes dotexto (citações diretas longas, tabelas, ilustrações, etc.);

c) Citações:

i) citação indireta (paráfrase): no corpo do texto, indicando-se o ano depublicação da obra, entre parênteses, após a menção do nome do autor;

ii) citação direta: no corpo do texto, até 3 linhas, entre aspas. Acima de 3 linhas,fora do corpo do texto, em parágrafo separado, com um recuo de 4cm a partirda margem esquerda, espaço entre linhas simples e em corpo 10. Após ascitações, indicam-se, entre parênteses, nome do autor em caixa-alta, ano depublicação da obra e número da página onde se encontra a citação.

3. Elementos pós-textuais:

a) Referências: somente aquelas efetivamente mencionadas no texto, e conformenormas da ABNT.