Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - CORE · sua pesquisa sobre a obra do cineasta. A Liz...

204

Transcript of Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - CORE · sua pesquisa sobre a obra do cineasta. A Liz...

FaculdadedeArquiteturaeUrbanismoProgramadePós-GraduaçãoTeoria,HistóriaeCrítica

CORPO FEMININO E MODERNIDADE

NA CONSTRUÇÃO DE BRASÍLIA

Uma leitura a partir do cinema

Denise Sales Vieira

Orientação:

Profa. Dra. Ana Elisabete

de Almeida Medeiros

DissertaçãoapresentadaaoProgramade

Pós-graduaçãoemArquiteturaeUrbanismo

daUniversidadedeBrasíliacomorequisito

paraobtençãodotítulodeMestre.

PesquisadesenvolvidacomsuportefinanceirodaFundaçãodeApoioàPesquisadoDistritoFederal(FAP/DF)

Brasília,30dejunhode2017.

CORPO FEMININO E MODERNIDADE

NA CONSTRUÇÃO DE BRASÍLIA

Uma leitura a partir do cinema

Denise Sales Vieira

Bancaexaminadora:Presidente:

Profa.Dra.AnaElisabetedeAlmeidaMedeiros(FAU/UnB)

Membros:

Profa.Dra.MariaFernandaDerntl(FAU/UnB)

Profa.Dra.DáciaIbiapinadaSilva(FAC/UnB)

Brasília,30dejunhode2017.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

V658cVieira, Denise Sales Corpo feminino e modernidade na construção deBrasília: uma leitura a partir do cinema / DeniseSales Vieira; orientador Medeiros Ana Elisabete deAlmeida. -- Brasília, 2017. 191 p.

Disserta??o (Mestrado - Mestrado em Arquitetura eUrbanismo) -- Universidade de Brasília, 2017.

1. Brasília. 2. Corpo feminino. 3. Modernidade. 4.Cinema. I. Ana Elisabete de Almeida, Medeiros,orient. II. Título.

Dedico este trabalho

ÀfamíliadasRosálias,aforçafemininaquemeimpulsiona.

ÀfamíliaAlmeidaVieira,inspiraçãodehumoresensocrítico.

AEstela,afilhadaamada,quetantoaindatempordescobrir.

ADilmarDurães,provocadorconstante,queestásempre

adesestabilizarqualquercertezaqueeupenseter.

Aomeupai,ChicoVieira,emeuirmão,LeonardoVieira,

oshomensqueamo.

Àminhamãe,LíviaSales,melhoramiga,maiorinspiração,

companheiradetodososmomentos,aforçaeajuventude

quememantématentaeviva.

ÀmemóriademinhaavóInêsVieira.Seusorriso,suafée

seusbordadospermanecemcomigo.

ÀminhaavóRosáliaSales,amulhermaisextraordináriaqueeujávi.

Agradecimentos

Agradeçoimensamenteaosprofessoresquefizerampartedessepercursode

pesquisa,emespecial:àProfa.MariaFernandapelasaulasediscussõesacercada

modernidadeemBrasília;àProfa.DáciaIbiapina,pelaslongasconversassobre

cinema,mulher,Brasília,epelaparceriaincansávelnofazercinematográfico;àProfa.

ElaneRibeiro,pelograndeestímulodesdeoprimeiroartigo,portrazerumolhartão

especialatudoquetocaessevastocampoqueéahistória;eaoProf.DanielFaria,por

todasasimportantescontribuiçõesqueasuapresençatrouxenabancade

qualificação.

ÀProfa.eorientadoradestetrabalho,AnaElisabeteMedeiros,quemeacolheude

voltaàacademia,agradeçoimensamentepelacuidadosaatençãoaostextos,pelo

respeitoàsescolhasdepesquisa,peloestímuloàescritaepelapresençainstigantee

constante.

Aoscompanheirosdepós-graduaçãoVâniaLoureiro,MarlysseRocha,MarinaLimade

Fontes,IsadoraBanducci,VerônicaNeto,SuedFerreira,AnaFláviaRêgoMota,Lucas

Brasil,LeandroCruzePauloVictorBorgespelastrocasqueajudaramessapesquisaa

caminhar.

APaolaCaliarieGiselleChaim,quetornarampossíveloacessoàobradeGerson

Tavares.ARafaeldeLunaFreire,quegentilmenteencaminhouàFAUoDVDfrutode

suapesquisasobreaobradocineasta.ALizSandoval,peladisponibilizaçãodos

filmessobreBrasíliaquereuniuemsuapesquisademestrado.

ÀamigaAnaClaraJabur,pelasleituras,comentáriosetraduçõesnostextos.

AosamigosCarolinaPescatori,PriscilaErthal,RicardoTheodoro,CarlosHenriquede

Lima,LucianaVecchi,CarolinaBaima,ManuelaDantas,RayssaCoe,StellaLeipnitz,

GabrielSchvarsberg,BeatrizCintra,ReinaldoNavarro,MateusPorto,CecíliaPenna,

StepanKrawstchuk,ThiagodeAndrade,BrunoTerra,ClaraMoreira,LigiaPinheiroe

LailaLoddiquedesdeagraduaçãofazempartedaminhavida,eestãotodos,de

algumaforma,nosmeuspensamentossobreacidadeenasentrelinhasdessa

dissertação.

AgradeçoaosparceirosnofazercinematográficoPaulaSantos,AlannaAmorim,Dani

Azul,FláviaAndrade,CássioP.dosSantos,ErikaPersan,MarinaSandim,Déborade

Oliveira,SandroVilanova,CássioOliveira,LeandroPezão,FranciscoCraesmeyer,

AdirleyQueirós,SimoneQueiroz,AndréiaQueirós,JoanaPimenta,PedroMaiade

Brito,GuileMartins,MariaTerezaUrias,RenanRovida,CristinaAmaral,IrisJungese

FrancisVogner,pelasconversassobrecinema,pelosfilmesquepudemosfazerjuntos

epelosmuitosqueaindavamosfazer.

Amulhernãoéumarealidadeimóvel,esimumvir-a-ser;énoseuvir-a-serquesedeveriaconfrontá-lacomohomem,istoé,quesedeveriadefinirsuaspossibilidades.Oquefalseiatantasdiscussõeséquererreduzí-laaoqueelafoi,aoqueéhoje,quandoseaventaa

questãodesuascapacidades;ofatoéqueascapacidadessósemanifestamcomevidênciaquandorealizadas;masofatoé

tambémque,quandoseconsideraumserqueétranscendênciaesuperação,nãosepodenuncaencerrarascontas.

SimonedeBeauvoir,emOSegundoSexoI

Comotodaartequeparticipadadescrição,ocinemasedesgastaparafazercrerqueeleolhaparaomundo–quandoeleémuitomaisumpedaçodomundoquenosolha.Nãoolhar

paraomundo,masmundocomoolhar.

Jean-LouisComolli,emVerePoder

Sumário

Resumo 1

Abstract 3

Introdução 5Por que modernidade? 11Brasília: mito, modernismo e modernização 13Uma cidade construída por homens: onde estavam as mulheres na construção de Brasília? 18

1. Cinema, o olho da modernidade 291.1.História como ficção, ficção como história 341.2.A ficcionalidade do cinema documentário 371.3.Modernidade no cinema brasileiro 431.4.Cinema de cavação 501.5.O cinema no canteiro de obras de Brasília 52

2.Modernidade,progressoecorpo-máquina 672.1. Filme: As primeiras imagens de Brasília (1957) 672.2. Modernidade: um caminho inequívoco ao progresso? 802.3. O corpo-máquina 86

3.Modernidade,contradiçãoecorpoprovisório 953.1. Filme: Brasília, capital do século (1959) 953.2. Modernidade e contradição 1093.3. O corpo provisório 122

4. Modernidade e corpo feminino 1314.1. Filme 1: Poeira e batom no Planalto Central (2010) 1314.2. Filme 2: A saga das candangas invisíveis (2008) 1534.3. O corpo feminino: entre santa e puta 164

Existeumamodernidadeparaocorpofeminino? 179

Bibliografia 185

Filmografia 189

1

Resumo

Estetrabalho,desenvolvidonoâmbitodaHistóriaeTeoriadaCidadeedoUrbanismo,

procuraentrelaçardiversasáreasdeconhecimento–aarquitetura,ocinema,a

históriaeasciênciassociais–paradesafiarahistóriadaconstruçãodeBrasíliapor

meiodabuscapelorastrodeumcorpofemininopossivelmentepresente.

Possivelmente,porqueessecorpoébuscadoatravésdosvestígiosqueocinema

deixou,etambémdamemóriadaquelasquehojerevisitamessasimagens.Opanode

fundoparaessaobservaçãoéamodernidade,umcampoquevaialémdaconstatação

domodernismoimpressonoprojetodacidadeedamodernizaçãodopaíspretendida

pelogovernodeJuscelinoKubitschek.Destrincharossentidosdesseespírito

modernotemaquioobjetivodecontestaranoçãodeprogressonahistória,buscando

ascontradiçõesquemovemasmudançasmodernas,natentativadelocalizarocorpo

femininonessecampoderenovação.

Brasíliaéacidadequenascefilmada.Ocinema,artemodernaporexcelência,vai

comporcomimagensahistóriadonascimentodacidade.Nelaspoderiamestaros

vestígiosdeumahistóriapoucocontada,dasmulheresqueestiverampresentesno

canteirodeobrasdacapital:umcampotomadopelaforçamasculina,forçaeintelecto

necessárioàconstruçãodaempreitadamodernista.Comoessesfilmesvão

corporificaressasmulheres?Comoessecorposerelacionacomoespaçode

construçãodamodernidadeencampadaporBrasília?Eainda,épossível,apartir

dessasimagens,aferirumamodernidadeaocorpofeminino?Essassãoalgumas

perguntasqueguiamessetrabalhoe,maisquerespondê-las,procuraencará-lasde

frente,assumindoquecompõemapenasmaisumanarrativa,quenãosesobrepõeou

reescreveahistória,masprocuraacrescentarumaoutraperspectivaàconstruçãoda

cidadeeaoseupretensoprojetodemodernidade.

Palavras-chave:Brasília,corpofeminino,modernidade,cinema.

2

3

Abstract

Thiswork,developedinthecontextofHistoryandTheoryofCityandUrbanism,

seekstointerweaveseveralareasofknowledge-architecture,cinema,historyand

socialsciences-tochallengeBrasília’sconstructionhistorybysearchingforthetrail

ofapossiblypresentfemalebody.Possibly,becausethisbodyissoughtthroughthe

vestigesleftbycinema,andalsothroughthememoryofthosewhorevisitthese

imagestoday.Thebackgroundtothisobservationismodernity,afieldthatgoes

beyondtherealizationofmodernismimpressedonthecity’sprojectandthecountry’s

modernizationprocesssoughtbyJuscelinoKubitschek’sgovernment.Tounravelthe

sensesofthismodernspiritisawayofcontestingthenotionofprogressinhistory,

seekingthecontradictionsthatmovemodernchanges,intheattempttolocatethe

femalebodyinthisfieldofrenewal.

Brasíliaisacitythatisbornfilmed.Cinema,themodernartparexcellence,will

composethecity’sbirthwithimages.Theseimagescouldcontainthevestigesofan

untoldstory,ofthewomenwhowerepresentintheconstructionsiteofthecapital:a

fieldtakenbythemasculineforce,strengthandintellectnecessarytothemodernist

enterprise.Howwillthesefilmsembodythosewomen?Howdoesthisbodyrelateto

themodernityprojectembracedbyBrasília?Andyet,isitpossibletogauge,from

theseimages,amodernitytothefemalebody?Thesearesomequestionsthatguide

thisworkthat,ratherthananswerthem,triestofacethem,assumingthatthisisonly

onemorepossiblenarrative,whichdoesnotoverlaporrewritehistory,butseeksto

addanotherperspectivetothecity’sconstructionandtoitsso-calledmodernity

project.

Keywords:Brasília,femalebody,modernity,cinema.

4

5

Introdução

Enquantoestudantedearquiteturaeurbanismo,doispressupostosaparentemente

intrínsecosàáreadeconhecimentosempremeinquietaram.Oprimeirodeles:uma

abordagemextremamentetecnicistadadaaotratamentodoespaçoconstruído.Eaí

estoupropositalmentegeneralizando,poisqualquerescoladearquiteturaensina

seusestudantesalidarcomosdispositivosdecontroleedecomposiçãoespacial:é

precisosaberesquadrinhar,proporcionar,fazerfuncionaroespaço.Eumesmafui

umaestudantemuitohábilemtodasessastarefas,edefatoelasmedavamprazere

atéumacertaeuforiaacadaprojetofinalizado.

Emumdeterminadomomentodemeusestudos,medeicontadaabstraçãodetodas

aquelascomposições,plantas,maquetes,desenhos.Passeiameinquietarmuitocom

ofatodesaberquepoderiaproduziralgotãopoderoso–eaínãofalodegrandiosas

obras,apenasacreditoquequalquerespaçoplanejadoexerceumpodersobreaqueles

quedeleseapropriam–e,ainda,desaberquenãoteriacontrolesobreosefeitos

dessepoder.Defato,umpoucomaistardefuientenderquenãoeraexatamentea

necessidadedecontrolequemeinquietava–querertermaiscontrole–masapura

constataçãodequenãoexistecontrole.Essasreflexõesparecemdemasiadamente

simplistas,masfoimaisoumenosassimqueelasapareceramemminhacabeçade

estudantedegraduação.Eeuhesitoemguardá-lasnocompartimentodotempo

passadodainocência,porqueatéhojeconsideroqueelasforamimportantespara

tudooqueveiodepois–inclusiveessemestrado–etambémporqueacreditoque

continuamosinflamandoalgumasinocênciasaolongodavida,elasvãoapenas

ganhandooutrastonalidades.

Osegundopressuposto,eque,emcertamedida,éconsequênciadoprimeiro,seriao

estatutodeobradearteatribuídoàarquitetura–maisumageneralização.Nãoqueeu

estejaaquinegandoqualquerconceitorelativoàartisticidadedoobjeto

arquitetônico,masumaproblematizaçãoemtornodissomeparecianecessária,na

medidaemquepassamosadividiraquiloqueconstituioambienteconstruído–a

6

cidade–entreoquepodeounãoserchamadodearquitetura.Eusupunhaqueessa

divisãopoderiaofuscaronossoentendimentodessemesmoambiente.Nãoseriam

essesobjetos–aquiloqueseriaformalmentedefinido(aarquitetura),eaquiloque

constituiacidadeapartirdainformalidade(anãoarquitetura)–interdependentes

emumamesmadinâmica?Olharparaacidadeapartirdaóticadoarquitetoparecia

implicarqueestaríamossempreàprocuradeconverteroinformalemformal,numa

espéciedesalvaçãoquasequedoutrinária.

Lembro-mebemdedoisepisódiosnesseperíododegraduaçãoqueforammuito

marcanteseque,decertaforma,ofereciamalgumasrespostasàsinquietaçõesqueeu

jávinhaalimentando.Oprimeirodelesfoiem2003,quandotiveacessoaolivro

EstéticadaGinga:aarquiteturadasfavelasatravésdaobradeHélioOiticica,dePaola

BerensteinJacques.Haviaumagrandeeuforiaacercadaquelelivroentremimemeus

colegasdecurso,pareciaqueumnovomundohaviaseabertodiantedenós.Paola

noschamavaaolharparaacidade–maisespecificamenteafavela–apartirde

figurasdeleuzianas:ofragmento,olabirintoeorizoma.Movimentando-seapartirda

obradoartistaHélioOiticica,echamando-nosaolharparaumobjetoqueseria(de

acordocomospensamentosmaisortodoxos)umanãoarquitetura–afavela–,Paola

desconstróiqualquerlógicabináriaouestruturaarborescentequepossamosatribuir

àconstituiçãodoespaçoconstruído,cujapercepçãoeproduçãoaparecem

indiscerníveisemseulivro,assimcomoocorpoqueoconstrói,queopercorreeque

deleseapropria.Nesseuniverso,nãoeraimportanteelencarosatributostécnicose

artísticosnacomposiçãodosbarracos,ounaorganizaçãodasruasdafavela,ouem

suainserçãonoespaçourbano,massimobservaroqueesseorganismopoderia

evocaremtermosdedinâmicadeorganizaçãohumanaedevivênciaespacial,eque

sóalipoderiaexistir.

Umsegundomomento,em2004,naverdadeseresumeaumafraseproferidaporum

professor.Aindaestudantedegraduação,realizeiumintercâmbionumauniversidade

americana1.CursavaumadisciplinachamadaUrbanDesignSeminar,ministradapelo

1FacultyofLandscapeArchitecture,CollegeofEnvironmentalandScienceForestry,StateUniversityofNewYork(FLA-ESF-SUNY).Oconsórcioentreasduasuniversidades(UnBeSUNY)tinhacomoprincipalobjetivopromoverointercâmbioemtornodo“designcomunitário”(communitydesign,paraosamericanos).Àépoca,acabávamosdefundaroCASAS(escritóriomodelodaFAUUnB),eosalunos

7

professorEmanuelCarter,ediscutíamosalgunstrechosdolivrodeSpiroKostof,The

cityshaped:urbanpatternsandmeaningsthroughhistory.Nãovousaberreconstituir

exatamenteocontexto,maslembro-mebemdeumaafirmaçãofeitapeloprofessor:

“opoderdesenhaascidades”.Enãosomenteopodereconômico,ouopoderpolítico,

eleargumentava,mastambémopoderdeummoradordefavelaquetemacessoaum

materialeconstróiali,tomapossedaquelelugar.Nadisputaentreessesdiversos

podereséqueascidadessedesenham.

Jáconcluídaafaculdade,umjogodecoincidênciasacaboumelevandoatrabalhar

comrealizadoresdecinema.Em2007participeideumprimeirocurta-metragem

comoDiretoradeArte.Nuncahaviapensadoemsercineasta,masapossibilidadede

trabalharnessaáreacalhouparaquemandavainsatisfeitacomapráticados

escritóriosedeórgãospúblicos.Estive,portanto,nosúltimosanosfazendocinema,

masnuncadeixeideserarquiteta.Refugio-menasinfinitaspossibilidadesqueo

cinemaproporcionaemlidarcomoespaço,enelemevejosempredianteda

possibilidadedeinventarmundos,oureinventaroqueexiste.Nocinema,essacriação

sedádeumaformaemquesãoarticuladosnãosomenteasdimensõesespaciais,mas

tambémotempoeocorpo.Lidarcomocinemamefezenxergarcommaisclareza

essaintrínsecarelação,aimpossibilidadededissociaçãoentreespaço,corpoetempo.

Eéessanoçãoquevaipermeartodasaslinhasdessetrabalho.

Enquantocineasta,omeucampodeinteresseaopensarnashistóriasqueeuqueria

contarsempretransitounouniversodofeminino.Meuprimeirotrabalhocomo

diretoraeroteirista,ocurta-metragemMeiofio,faladarotinadeumamulherque

passaaviversozinhaemumrecémimplantadoloteamentodoprogramaMinhacasa,

MinhaVidaemÁguasLindasdeGoiás.Desenvolvoatualmentemaisdoisnovos

roteiros:umcurtametragemcomtítuloprovisórioAmulherdanoite,quefalasobre

asrelaçõesqueumamulherestabelececomoespaçonoturnodasruasdeCeilândia;e

umlongametragemintituladoAmulhernoquartoaolado,umaficção-científicasobre

umaprostitutaquetempremonições,ambientadaemumfuturohipotéticoondea

prostituiçãoésitiadaemumnovosetornaperiferiadeBrasília,entreCeilândiae

americanosquedelávinhamparticipavamdessasatividades.NósparticipávamosdeumadisciplinaintituladaCommunityDesignStudio,epodíamostambémcursaroutrasdisciplinasdoprograma.

8

ÁguasLindas.Todoselesperpassamarelaçãoentreamulhereacidade,assimcomo

asrelaçõesentrecentroeperiferia;nocaso,entreBrasíliaeaórbitadecidadesque

estãoaoseuredor.

Enfim,quandomepropusavoltarparaaacademia,sempresoubequeemum

mestradogostariadetransitarentretrêsquestões–ocinema,amulhereacidade.

Chegandoagoraaofinaldessatrajetória,parecequedesdesempreesteveevidente

quechegariaaesseponto,masaolongodopercurso,atéqueotal“objeto”estivesse

delineadoemminhacabeça,muitacoisaaconteceu.Aprimeiradelas,deinfluência

determinante,equemeapareceulogonaprimeiradisciplinaquecursei(Cidade

Contemporânea,comAnaElisabeteMedeiros,quemaistardeveioaserorientadora

destetrabalho),foiocontatocomaleituradeTudoqueésólidodesmanchanoar,de

MarshallBerman.Apartirdessaleitura,aquestãodamodernidadetornou-seuma

constanteemtudooqueeuescrevia.EntenderoprocessoqueBermandescrevia

comomodernidademeajudouaelaborarumaprimeirapergunta:nissoquechamam

demodernidade,ondeestáamulher?Épossívelfalardesseprocessoolhandoparaas

questõesfemininaserelacionando-acomacidade?

Maistarde,enquantocursavaasdisciplinasTeoriaeMetodologiadaHistória,como

professorDanielFaria(PPG/HIS),eBrasília:questõesdeurbanizaçãoehistória,com

osprofessoresMariaFernandaDerntleEduardoRossetti(PPG/FAU),foiquedefato

euconseguidefinirumobjeto:apresençademulheresemfilmesproduzidosacerca

daconstruçãodeBrasília.Assim,eutinhaumrecortetemporal–operíododa

construção,entre1957e1960–etambémumaquestãodegêneroaserrelacionada

comahistóriadacidade–algumasbibliografiasapontavamqueaausênciarelativa

demulheresduranteoperíododaconstruçãodeBrasíliagerouconflitose

desdobramentos,comoacriaçãodaZonadeBaixoMeretrícionaCidadeLivre.

UmagamadefilmesfoiproduzidaaolongodaconstruçãodeBrasília–umacidade

quejánasceufilmada.Cabiabuscarnessesfilmescomoessasmulheresapareciam,

querelaçõeseramestabelecidasentreelas,oprocessodeconstruçãodacidade

mostradonosfilmeseainda,comoessamulherserelacionacomamodernidadeque

Brasíliaeosfilmesproduzidossobreelaaventavam.Noentanto,falarsobreamulher

apartirdosfilmesseriademasiado,porqueoqueestáalídisponíveléuma

9

construçãoimagéticaesonoradeumuniverso.Oqueexistenumfilmeéumcorpo

filmado,esuaexistênciaestabelecerelaçõescomaquiloqueéinternoaofilme–o

espaçofilmadoeotempodanarrativa.Porissoaopçãodetrazernotítulodesse

trabalhoocorpofeminino,enãoamulher,comopartedoobjetodepesquisa.

Assimcomoocorpo,acidademostradapelocinemaexisteenquantonarrativa,ese

concretizanatelapelamise-en-scene2.Essaconstruçãodepende,fundamentalmente,

dasarticulaçõesentrecorpo,espaçoetempo.Aestóriaalicontadavainosoferecer

umaoutracidade,queépurarelação.Sendoumalinguagemquearticulamundo

objetivoesubjetivo,borrandooslimitesqueanaliticamenteimpomosaeles,ocinema

écapazdenosdefrontarcomaspectosdaditarealidade,oumelhor,comimpressões

derealidade,aretóricadebasedocinema.Osafetosdacidade,asuarelaçãosubjetiva

enãoporisso,menosmaterial,comaquiloqueaelapertenceequenelasereproduz

estãonessejogodeobservaçãoqueocinemapropõe.Tendocomoobjetoprincipal

nãoocorpo,nemacidade;nãoaarquitetura,nemanãoarquitetura;massimoque

estáentreeles,umtextoqueoscomunica,voubuscarnocinema,emseuesforço

narrativo,ospotenciaisexistentesnessarelação.Partotambémdopressupostoque

sãooscomponentestemporaisdofilme–omomentohistóricoaqueserefere,o

instanteemqueérealizado,aduraçãoquearticulaanarrativa–quepermitem

posicioná-loemumaperspectivahistórica.

OsfilmesacercadaconstruçãodeBrasíliaestãoaolharparaumepisódiodeseumito

deorigem.Brasília,enquantoinvençãomodernistaepartedeumprojetode

modernizaçãodopaís,somentepassaaserconsideradaformalmenteenquanto

cidadeapartirdodiadesuainauguração:21deabrilde1960.Oqueantecedeessa

dataseriacomouma“pré-história”,quenãocontemplaapenasoperíododesua

construção,mastambémtodoodesenrolardasintençõesdemudançadacapitaldo

Brasilparaoplanaltocentral.Portantoessemitodeorigemcondensatambémparte

dahistóriadanossamodernidade,queBrasíliafoicapazdematerializar.

2Éumtermofrancêsprovenientedoteatro,eaplicadoaocinemadesdeadécadade1950.Amise-en-scenedeumfilmeédefinidapelaconstruçãoquearticulaseuselementosdeimagemesom–enquadramento,entonaçãodevoz,movimentodoscorposnoespaço,luzecor,etc.–evãoformar,emúltimainstância,essaatmosferainternaaofilme.

10

Omomentodesuagestação–desdequeseiniciaocanteirodeobrasem1957atéa

suainauguraçãoem1960–éummomentoemqueháumaintensadiscussãoem

tornodomodernocinemabrasileiro.OCinemaNovojádavaosseusprimeirospassos

desde1954,ehaviaaliumabuscaporumaformadefazercinemaqueemmuito

dialogavacomasintençõesdanovacapital:olharparaopassadodonossopaíscomo

formadeselançarparaumnovofuturo,construindoumamodernidadedefato

brasileiracomomaneiradeafrontaraculturacolonialistadosubdesenvolvimento.O

CinemaNovobuscavaaexpressãodeumcinemamodernobrasileiro,assimcomoa

arquiteturaeourbanismobuscavasuaexpressãomodernistaemBrasília.

Àpartedoquefoiconsideradocomomovimentoartísticonahistóriadocinema,

cineastasbuscavamtambémmeiosdesobrevivênciafinanceira,fazendocomque,

desdeoiníciodoséculoXX,ummercadoespecíficodeproduçãocinematográficase

desenvolvesse.Muitosprofissionaiscinegrafistas,algunsprovenientesdojornalismo,

buscavamoseusustentonaproduçãodecinejornaisedefilmesencomendadospor

empresários:umtipodepráticaqueficouconhecidacomocinemadecavação.Hoje,

essematerial,apesardetersidoproduzidocomfinsdepropaganda,éconstituídopor

importantesdocumentosacercadasrealizaçõesgovernamentaisedasempreitadas

industriaiseagrícolasemumperíododeintensamodernizaçãodopaís.Brasíliafoi

umadessasempreitadas,fortementedocumentadapormeiodoscinejornais.

EaconstruçãodeBrasíliacontinuouasertemadefilmes,mesmoapósainauguração

dacidade.Materiaisdearquivoesquecidos–comoodeEugenneFeldmanedeDino

Cazzola–começaramaserreveladose,conformeveremosadiante,vãogerarnovos

documentáriosqueprocuramresgatarereinventaressasmemórias.Ocinemasobre

Brasíliapermaneceemconstantereinvenção,procurandomeandrosdahistóriada

cidadequenãocansamdesesobrepor.Algunsdocumentáriossãonotáveisnesse

sentido:Brasília,contradiçõesdeumacidadenova(1967),deJoaquimPedrode

Andrade,expõeasjálatentescontradiçõescentro/periferiananovacidade;

ConterrâneosVelhosdeGuerra(1990)deVladimirCarvalho,vaiprocuraramemória

dosoperáriosdaconstrução,comespecialatençãoaomisteriosomassacreda

PachecoFernandes;Acidadeéumasó?(2010)deAdirleyQueirósvairevisitaromito

damodernidadedeBrasíliaatravésdahistóriadeCeilândia.Nessabusca,doisfilmes

apenasserelacionamdiretamentecomaquestãofeminina.Apostandonachavedo

11

documentáriodeentrevista,PoeiraeBatomnoplanaltocentral(2010)deTânia

FonteneleeTâniaQuaresma,eAsagadascandangasinvisíveis(2008)deDenise

Caputo,sãopioneirosnessatentativadereconstruiraparticipaçãodamulherna

históriadaconstruçãodacidade.

Por que modernidade?

Sermodernopareceumapré-condiçãodadaàquelequenasceecresceemBrasília,

cidadeinventada,quecarregaamodernidadeemsuagênesedecriação.Nasce-seem

umambientecarregadodesímbolosmodernos,concretizadosemseusedifícios,no

desenhourbanodoplanodeLucioCostae,consequentemente,nomododevidaquea

cidadeabarca.

Imaginemosumapessoaquevivesuarotinanesseambiente.Elaacordacedoefaz

umalongacaminhadapelaáreaverdedassuperquadras,cruzandolivrementeos

pilotisdosedifícios.Segueatéacomercialpróxima,obarulhodotráfegoaolonge,

amortecidopelasárvores.Napadaria,comprapãoparaocafédamanhã,evoltapara

encontrarosseusaoredordamesa.Logo,pegaseucarroesegueatéaesplanadados

ministérios,ondetrabalha.Aofinaldeseuexpediente,percorreomesmocaminhode

volta,porlargaserápidasavenidas(hojenãotãorápidasassim).Estacionaseucarro,

mas,antesdeirparacasa,passarapidamentepelaescoladeseufilho,queficana

mesmaquadraemquereside.Jantamtodosnovamenteaoredordamesa,edormem

nosilêncioapaziguadorgarantidopelasárvoresqueosrodeiamepeladistânciade

qualqueroutrousoperturbador.Essaéumarotinamecânica,imaginadaemfluxo,de

maneiraquasequecaricata,masdescrevealgumasfacetasdesseambientemoderno

queBrasíliaproporciona,edecomoessecorpoimaginadoserelacionacomacidade.

MasoquesignificasermodernoemBrasília?Estáessamodernidadechanceladanos

traçosdesuacriação?Opteiporpercorrerdoiscaminhosnatentativaderespondera

essapergunta.Oprimeirocaminhoconsisteembuscarcomoéconstituídoesse

conceitohistóricochamadomodernidade,enquantocondiçãotransformadorada

sociedadeedeseusespaços.Essaperguntaconduzacaminhosmuitoamplose

contraditórios,maspartedeumaconstataçãomuitosimples:aindasomosmodernos,

12

enãoépossívelatribuirossentidosdessaconstataçãoapenasàconstruçãodacidade

modernista.Ouseja,apesardeBrasíliaserumacidademoderna,aprópria

modernidade,enquantoprocesso,vaicontradizerapossibilidadedeengessamento

desseconceitoemseusedifícios,espaçosurbanoseconstituiçãodeseuterritório.

Osegundocaminhoconsisteembuscarossentidosdessamodernidadenãosomente

noespaçoqueelaconstitui,mastambémnoscorposqueahabitam.Parte-sedo

pressupostoqueamodernidadeinstauratambémumatransformaçãonessemodode

percepçãoedeexistênciacorpórea,equeserelacionadiretamentecomosespaços

queessecorpohabita.Ouseja,háumespíritomodernoquecontamina,

materialmente,tantooespaçoquantoocorpo.

Osdoiscaminhostêmcomoobjetivocriaressepanodefundo,essecenáriomoderno;

cenárioqueé,caberessaltar,denaturezamaterial,semqueessapossaser

diferenciadadoqueéoseuespírito.Éimportantenãoperderdevistaque,ao

delinearessecenário,estoubuscandoenxergarcomoocorpofemininoaparecenessa

históriatoda.Cumpreaquibuscarumentendimentodemodernidadenumsentido

queésimultaneamenteamploesingular,equevaicriarumpanodefundopara

entenderosentrecruzamentosaqueessetrabalhosepropõe–entreamodernidade,

ocorpofemininoeocinema.

Asreflexõesquetragoaolongodetodootrabalhotransitamnessecampode

descoberta,umabuscanesselargoedifusoprocessohistóricoqueéamodernidade,e

dosmúltiplosdesdobramentosqueelaevoca.Entendidaenquantoprocesso,podenos

ajudarapercebercomoduasfacetasdamodernidadeatuavamsimultaneamentena

construçãodeBrasília:amodernizaçãodopaísenquantoprojetopolítico,eo

modernismoqueadesenhou.AoolharparaoespaçodeBrasíliaapartirdanarrativa

docinema,teremosexpostasdiversascamadasdesseespaçosocialehistórico,

admitindoqueomesmotambéméconstituídopelasimagensqueocinemaproduz.

13

Brasíl ia: mito, modernismo e modernização

Brasíliafoiinventadaeinaugurada:poucascidadesnahistórianasceramassim.Na

maioriadelasháumaorigem,quepodeseratomadadepossedeumterritório–

comoaconteceuemnossascidadeslitorâneas,ondeosportuguesesiniciaramsua

colonização.Demaneirageral,umacidadeseiniciaapartirdeumnúcleode

formação,quepodeserumapequenaruacomercial,ouumafeira,ummercado,um

portoouestaçãodetremqueatraiumoradoresparaosseusarredores,ouuma

fábrica,ouumpostodegasolinaàbeiradaestrada.Sãoatrativoscomerciais,

humanos,quefazemcomquepessoasdecidamdividirummesmoterritório.Feitaa

aglomeração,tratam-sedeinstituirasregras,asleis,éprecisogeriraqueleespaço.É

opoder–dequemconstrói,dequemocupa,edequemgoverna–quevaidesenhando

ocrescimentodessacidade.MasBrasílianascedeoutraforma:idealizadacomo

projetodeintegraçãonacional,éplanejadaedesenhadanopapel,construídaemmeio

aocerrado“inexplorado”,ecomumdiadeinauguraçãoagendado.Masqueideiase

movimentaçõeslevaramàconstruçãodacidade?Porque,paraquemeondeconstruí-

la?Aoolharmosparaessa“pré-história”deBrasília,percebemosqueháumpodera

desenharacidademesmoenquantoelaexistiasomentecomoideia.

AprimeirahistoriografiaproduzidaacercadeBrasíliacomeçouaserpublicadaa

partirde19573,ouseja,depoismesmodapossedeJuscelinoKubitschek(1956).O

concursoparaoprojetodacapitaljáhaviasidorealizadoeasobrasjáhaviamsido

iniciadas.Éumahistóriaquecomeçaasercontadajuntocomonascimentodacidade,

quandoelajárepresentavaumacriaçãoconcretadogovernoJK.Ocientistasocial

MárciodeOliveira,emseulivroBrasília:omitonatrajetóriadanação(2005),fazum

apanhadosistemáticodasprincipaisobrasproduzidasaté1980concernentesaoque

eledenominaideiasmudancistas:umconjuntocoerentededesejos,opiniõese

projetosqueafirmavamanecessidadedemudançadacapitaldolitoralparao

interiordopaís,equeculminariamnaconstruçãodeBrasília.

3Asexceçõessão:asmençõesfeitaspelojornalistabrasileiroefundadordoCorreioBraziliense,HipólitoJosédaCosta(1774-1823),emseuprópriojornal(1813);eolivroAquestãodacapital:Marítimaounointerior?(1877),dodiplomatabrasileiroFranciscoAdolfoVarnhagem(1816-1878),alémdosrelatóriosfeitosporcomissõesoficiaisqueestudaramoplanaltocentralaprocuradosítioadequadoparaaimplantaçãodacapital.

14

Nascidanoseiodeumprojetogovernamental,essabibliografiacomeçaacompilar

essecorpodeideiasconcomitantementeàconstruçãodaprópriacidade.Essa

sincronicidade–quenãoéacidental–tinhacomoobjetivocriarumlastrohistórico

paraaempreitadadogoverno.Afimdecomprovaressatese,MárciodeOliveiravai

procurarnessasfontesasmençõesaosprincipaisepisódiosquepontuaramo

históricodasideiasmudancistas,indicandocomoarecuperaçãodeunseocultaçãode

outroscontribuiuparaaconstruçãodeumanarrativafavorávelàconstruçãode

Brasília,muitasvezescolocando-acomoconsequênciainevitávelnahistóriadopaís

queaantecede.

Oliveiravaibasearsuaanáliseemdoistiposdefonte.AprimeiraconsistenaColeção

Brasília,umconjuntode5volumespublicadospeloServiçodeDocumentaçãoda

PresidênciadaRepública.4OobjetivodaColeçãoestáexplícitonacitaçãoqueé

reproduzidaemtodososvolumesdaedição:

(...)ofereceraosestudiosososelementosdocumentaisrelativosàinteriorizaçãodacapitaldoBrasil,tantodeseuaspectohistóricoquantodopolítico,socialeeconômico,desdeosantecedentesmaisrecuadosatéadatafixadaporleiparaatransferênciadoGovernoparaBrasília,21deabrilde1960.(ServiçodeDocumentaçãodaPresidênciadaRepública,apudOLIVEIRA,2005,p.78)

Osegundogrupodefontesconsisteempublicaçõesde“historiadores”5,

compreendidasentre1957e1980.Boapartedoslivros,principalmenteaquelescom

4AColeçãocontacomosseguintesvolumes:1.AntecedentesHistóricos,compostopor3tomos:1594-1896,1897-1945e1946-1956.Seuobjetivoeradescrevero“desenvolvimentodaideiadainteriorizaçãodacapitaldesdesuaorigematéodia31/01/56”,momentodapossedeJK,comumaabordagemfactualecronológica,masnãointerpretativa;2.DiáriodeBrasília,compostopor4tomos:1956-1957,1958,1959e1960.Seuobjetivoeraapresentaranualmenteodia-a-diadaconstrução,comumaabordagemessencialmentenarrativa;3.Coletâneadeopiniõesdepersonalidadesbrasileiraseestrangeirassobreanovacapitalduranteoprocessodeconstrução,compostopor9volumes,comumaabordagemfactualejornalística;4.CongressoNacionaldeBrasília,compostoporumvolume,contacomopiniõesdoscongressistassobreafuturacapital;5.Brasília,históriadeumaideia(acréscimoao1ovolume–Antecedentes...),incluídodeformaadarumaversãosintéticadapré-históriadeBrasília,compretensõeshistórico-sociológicas,informalmenteassinadopelodiplomataRauldeSáBarbosa.

5Oautoroscolocaassim,entreaspas,aolongodetodootexto,tendoemvistaquenemtodosostrabalhosporeleanalisadostinham,defato,pretensãohistórica.Sãoeles:JoséPeixotodaSilveira:Anovacapital.Porque,paraondeecomomudaranovacapitalfederal(1957);J.R.Vasconcelos:Brasília,peçadepolíticanacionalista(1957);RuyBloem:Mudançadacapital(1958);OsvaldoOrico:Brasil,capitalBrasília(1958);IsmaelPordeus:RaízeshistóricasdeBrasília.Datasedocumentos(1960);J.O.deMeiraPenna:Quandomudamascapitais(1958);MoisésGicovate:Brasília,umarealizaçãoemmarcha(1959);HorácioMendes:Brasíliaeseusantecedentes(1960);EduardoK.Mello:Brasília,

15

evidentepretensãohistóricaerealizadosduranteoperíododaconstrução,foram

escritospor“atoresengajadosedefensoresdatransferência”(OLIVEIRA,2005,p.

80).Apenasparacitaralgunsexemplos,ErnestoSilvateveatuaçãodestacadano

processodetransferênciacomosecretáriodaComissãodeLocalizaçãodaNova

Capital(1951-1953),presidentedaComissãodePlanejamentodaConstruçãoeda

MudançadaCapitalFederal(1956)ediretordaNovacap(1956-1961);MeiraPenna

eraembaixadoreteveseulivroapoiadoporIsraelPinheiro(presidentedaNovacap

duranteaconstrução,eprimeiroprefeitodeBrasília);EdgardVictorerafuncionário

daNovacap,admitidoem1959.Oliveiradestacaque

AanálisedessasobrasindicaquehaviasidonoseioeapartirdoprocessodetransferênciadacapitaldesencadeadopelogovernoJKquehistoriadores,jornalistas,eoutrosprofissionaiscomeçaramarecuperarestaimportantepartedahistóriabrasileira,imbuídosdomesmointuitopresentenogovernoJK:criarlastrohistóricoesocialparaanovacapital.Curiosamente,portanto,eranointeriordahistória–aindanãoescrita–deBrasíliaenãonointeriordahistóriadoBrasil,queseencontravaamaiorpartedostrabalhoshistóricossobreatransferênciadacapital,alémdofatodessestrabalhosteremsidoescritosporpersonagensdiretamenteenvolvidoscomaquestão.(OLIVEIRA,2005,p.80)

AobservaçãodeOliveiraédequeatônicageraldessestrabalhosémuitosemelhante:

validamoprojetodetransferênciadacapitalparaointeriordopaís,situandosua

origemnoBrasilColônia(maisprecisamentenaInconfidênciaMineiraenaideiade

transferênciadacapitalparaaviladeSãoJoãoDelRei6),orquestrandoosepisódios

deformaqueBrasíliaapareçacomoconsequênciadeuma“históricaaspiração

nacional”,eposicionandoJuscelinocomooseuprincipalrealizador,aqueleque

finalmentetevecoragemdeexecutá-la.Oliveirareforçaaindaqueasobrasdos

“historiadores”“nãoseesmeramnacitaçãodasfontesbibliográficasedocumentais;

caracterizam-semesmopeladescontextualizaçãodosfatos,provocandoum

emaranhadoentreopinião,fontehistóricaepropagandaafavordamudança”

(OLIVEIRA,2005,p.82).

história,urbanismo,arquitetura,construção(1960);OlímpioFerraz:Brasília(1961);JoséGeraldoVieira:Paralelo16:Brasília(1966);ErnestoSilva:HistóriadeBrasília(1970);RauldeASilva:OsidealizadoresdeBrasílianoséculoXIX(1975);GeraldoI.Joffily:Brasíliaesuaideologia(1977);AdirsonVasconcelos:Amudançadacapital(1978);EdgardD’AlmeidaVitor:HistóriadeBrasília(1980).

6Emboraodesejode transferência tenhasidocitado tantopelaColeçãocomopelos “historiadores”,outrosaspectosdomovimentoinconfidenteforamsimplesmenteignorados.

16

AcontribuiçãodesseapanhadofeitoporOliveiraestáemdemonstrarcomoa

primeirahistoriografiaacercadeBrasíliavaicontribuirparaaconstruçãodomitoem

tornodesuaconstrução.Juscelinoestavanãosomenteconstruindoumanovacapital,

mastambémempenhadoemconstruir“umnovoBrasil,comumnovopassado,um

novofuturo,eenfim,umnovosentido”(OLIVEIRA,2005,p.84).Muitoemborao

autornãoquestioneolastrohistóricoquealimentaessasfontes,ressaltaqueasideias

mudancistasnãoapontavamnecessariamenteparaBrasília.OpróprioJuscelino,

enquantodeputadofederal,porduasocasiões–duranteaConstituintede1946e,

novamente,navotaçãoparadelimitaçãodoslimitesdoDistritoFederalentre1948e

1953–defendeuveementementealocalizaçãodanovacapitalnotriângulomineiro,

informaçãoquefoicuidadosamenteomitidadasfontesanalisadasporOliveira.Foi

somenteem1955,jáemcampanhaparaapresidência,queJuscelinoteriasido

“convencido”amudardeideia.SegundocontaemseulivroPorqueconstruíBrasília

(1975),Juscelinoteriasidointerpeladoporumpopular(AntônioSoaresNeto,o

Toniquinho)duranteumdiscursonacidadedeJataí/GO,quelheindagouacercado

cumprimentododispositivoconstitucionalquedeterminavaamudançadacapital

federalparaoplanaltocentral.Naquelemomento,Juscelinoprometecumprira

constituição,e,jáempossado,vaiincluirBrasíliacomometa-síntesedeseuprograma

degoverno.

AcreditoqueoestudorealizadoporOliveirarevelaasmuitasfacetasdeeventosda

históriadacidadequetomamoscomofactuais,masque,naverdade,sãocontados

dentrodeumacertaorquestraçãonarrativaafavordoprogramagovernamental,

inflamadatambémpelagrandeeuforiaqueBrasíliaprovocounocenárionacionale

internacional.Asuaanálisevaiapenasaté1980,quandoentãocomeçamasurgir

outrosestudosacercadaconstruçãodacidadequepassamaquestionaranarrativa

historiográficaquehaviasidoproduzidaatéentão,assimcomopassamalidarnão

somentecomumprojetodecidade,mascomumacidadequecomeçaaserocupadae

aadquirirdinâmicaprópria.

Em1980oantropólogoJamesHolstoniniciaseutrabalhodecampoparapublicar,em

1989,TheModernistCity–anAntropologicalcritiqueofBrasilia,traduzidonoBrasil

em1993comoAcidademodernista:umacríticadeBrasíliaesuautopia.Oautorse

propõeaestudarantropologicamenteacidade,problematizandooprojeto

17

modernistadeBrasíliaapartirdesuascontradiçõesinternas,explorandoassuas

diferençascomascidadesbrasileirastradicionaisetambémcomaocupaçãoquese

deuporaquelesqueahabitaram.

OlivrodeHolstonéumdentretantosquepassamaserpublicadosapartirdadécada

de80quevãoquestionaraquelanarrativaqueposicionaBrasíliadentrodoâmbitoda

“históricaaspiraçãonacional”.SegundoHolston,Juscelinoadmitiaque,antesde

conheceroprojetodeLucioCosta,“nãotinhaumaideiaformadasobreogênerode

cidadequeiriaconstruir”.Poroutrolado,quandoHolstonquestionaNiemeyerse

Juscelinoestavacomprometidocomasinovaçõessociaisdoplanopilotoecomoutras

propostas,eleresponde:“nuncadiscutíamospolítica,nemadele,nemaminha.”

(apudHOLSTON,1993,p.101).Tudoindicaquehavia,decertaforma,um“acordode

cavalheiros”,sacramentadopelodesejodeumobjetivocomumentreambos–a

construçãodeBrasília–masque,politicamente,representavaideaisdiferentespara

cadaum:paraosarquitetos,aconcretizaçãodeideaisdaarquiteturamodernista,de

cunhosocialista,queaspiravamaumnovomodelodecidadeondeasdiferençasde

classepoderiamsereliminadas;jáparaJuscelino,aconcretizaçãodeBrasília

representava,simbolicamente,oprimeiropassoparaarealizaçãodeseuprojeto

nacional-desenvolvimentistaparaopaís.

ÉnessepontoqueHolstonlançamãodosconceitosdemodernismoemodernização

paraexplicardequeformaomesmosímboloarquitetônicopodeevocar

interpretaçõestotalmentedivergentes.Nessapolissemiadosímboloarquitetônico

teriamseapoiadoosdoispensamentos–odomodernismoeodamodernização.A

inovaçãoartísticaquepropunhaomodernismonaarquiteturasatisfaziaodesejo

políticodemodernizaçãodopaís,muitoemboraosdoisinteressesfossem

completamenteopostos.

MarshallBermanemseulivroAllthatissolidmeltsintoair,publicadopelaprimeira

veznosEstadosUnidosem1982,etraduzidonoBrasilparaTudoqueésólido

desmanchanoar:aaventuradamodernidade(1986),tambémseutilizadostermos

modernismoemodernização,convergenteàutilizaçãofeitaporHolston.Berman,em

suaabordagemmarxista,afirmaqueopensamentosobreavidamodernanoséculo

XXsebifurcouem“doiscompartimentoshermeticamentelacradosumemrelaçãoao

18

outro:modernizaçãoemeconomiaepolítica,modernismoemarte,culturae

sensibilidade”.(BERMAN,1986,p.101)

Nossavisãodavidamodernatendeasebifurcaremdoisníveis,omaterialeoespiritual:algumaspessoassededicamao“modernismo”,encaradocomoumaespéciedepuroespírito,quesedesenvolveemfunçãodeimperativosartísticoseintelectuaisautônomos;outrassesituamnaórbitada“modernização”,umcomplexodeestruturaseprocessosmateriais–políticos,econômicos,sociais–que,emprincípio,umavezencetados,sedesenvolvemporcontaprópria,compoucaounenhumainterferênciadosespíritosedaalmahumana.Essedualismo,generalizadonaculturacontemporânea,dificultanossaapreensãodeumdosfatosmaismarcantesdavidamoderna:afusãodesuasforçasmateriaiseespirituais,ainterdependênciaentreindivíduoeoambientemoderno.(BERMAN,1986,p.151)

NessatônicaéqueamodernidadequeBrasíliarepresentouapareceincorporadaa

essetrabalho.Asintençõesexplícitasnoprojetodecidadeambicionadopelogoverno

deJuscelino,partedeumprojetomaiordemodernizaçãodopaís,aliadasàsintenções

deumprojetoarquitetônicomodernista,criavamumaimagemdemodernidade

brasileiraqueocinemaprocuroumostraraolongodoperíododaconstruçãoda

cidade.Poderiaocinemaentãonosrestituiressainterdependênciaentreindivíduoe

ambientemoderno,refletidanoscorposecidadesqueconstróiemsuamise-èn-scene?

Uma cidade construída por homens: onde estavam as mulheres na construção de Brasíl ia?

Olhandoparaessemitodeorigemdanossamodernidade,coubeentãoumapergunta:

tendoosfilmessobreaconstruçãodeBrasíliacomopanodefundo,comoocorpo

femininoeravistoemrelaçãoaesseprojetodemodernidade?AhistoriadoraJoan

ScottemseulivroGeneroeHistoria(2008),argumentaque,parasebuscaruma

reinscriçãodasmulheresnahistória,éprecisofazerdelas“ofocodoquestionamento,

otemadahistória,umagentedanarrativa”7(SCOTT,2008,p.35).SegundoScott,

escreverahistóriadasmulheresconsistetambémemreunirevidênciaseutilizá-las

paradesafiarasideiasdeprogressoerecessão.

Aesserespeito,setemcompiladoumnúmerodeprovasparademonstrarqueoRenascimentonãorepresentouumautênticorenascimentoparaasmulheres;queatecnologianãopropicioualiberaçãodasmulheres,nemem

7Traduçãolivrede:“elfocodelcuestionamiento,eltemadelahistoria,unagentedelanarrativa”.

19

seulugardetrabalho,nemnoambientedoméstico;que“otempodasrevoluçõesdemocráticas”excluiuasmulheresdaparticipaçãopolítica;quea“afetuosafamílianuclear”limitouodesenvolvimentoemocionalepessoaldasmulheres;equeosurgimentodaciênciamédicaprivouasmulheresdaautonomiaedosentidodecomunidadefeminina.8(SCOTT,2008,p.38)

Sobqueviésentão,poderíamostrazerasmulherescomoagentesdanarrativaacerca

daconstruçãodeBrasília?Tendoemvistaqueaquestãodegênerofoipoucotratada

nahistoriografiaacercadacidade,comotrazeressaspersonagensdaconstruçãopara

daroseutomdahistória?

Osregistrosfotográficoseaudiovisuaisproduzidosnaépocadaconstruçãorevelama

grandedisparidadeentreaquantidadedemulheresehomensnocanteirodeobras:a

quantidadedehomensdemonstra-seinfinitamentemaior.Historicamente,a

construçãociviléumramodeproduçãoqueseutilizamajoritariamentedeforçade

trabalhomasculina,emboramuitorecentementeainserçãodamulherjácomecea

sernotada.Paraalémdessefato,aformaderecrutamentodetrabalhadoresem

Brasíliaseguiucritériosmuitoclaros:dadaaurgênciadaobra,eaexpectativadentre

osadministradoresdequeessaforçadetrabalhoretornariaaosseuslocaisdeorigem

apósconcluídaaobra,requeriam-setrabalhadoresquefossem

(...)homens,jovens,fortes,solteirosequetivessemdeixadosuasfamíliasnoslocaisdeorigem.Acombinaçãodestesfatores,emespecialosdoisúltimos,configuraumasituaçãoemqueaausênciademulherestorna-sefontedeconflitosdeterminadosbasicamentepeladificuldadedesemanterrelacionamentoscomosexooposto–namoros,casamentos,relaçõessexuais.(RIBEIRO,2008,p.97)

Osrelatosacercadaausênciarelativademulheressãoconstantesnosdepoimentos

dosoperários.Mas,comoasmulheresnãoeramdefatoproibidasdevir,orelato

daquelaspoucasquevieramcomosseusmaridosrevelapartedessepanorama.

Em57foiquecomeçouavirmuitagente.Cinquentaeseteagentenumpodianemsairnarua(ri).[-Porquê?]Ah,oshomepegavaagente(ri).É.NessaépocatinhatrêsmulhéaquiemBrasília,né?Entãonósajuntavaastrêsmulhéeiadenoiteprabeiradocórregodenoite,lavarroupa,mastinha

8Traduçãolivrede:“Aesterespecto,sehacompiladouncúmulodepruebasparademonstrarqueelRenacimientonorepresentounauténticorenacimientoparalasmujeres,quelatecnologíanocondujoalaliberacióndelasmujeres,nienellugardetrabajo,nienelhogar,que“eltempodelasrevolucionesdemocráticas”excluyóalasmujeresdelaparticipaciónpolítica,quela“afectuosafamilianuclear”limitoeldesarrolloemocionalypersonaldelasmujeres,yqueelsurgimientodelacienciamédicaprivoalasmujeresdeautonomíaydelsentidodecomunidadfeminina”.

20

queoshômeficarlápertoporque(ri)...invadia,sabe?Àsvezeseusaíaassimnaportadaruaquetinhaumrestaurante,erabemnaesquina,né,eusaíaassimnaportapraolharassim,né,pegarumarlivre.Aíoshômevinhaagarravanobraçodagentesaíapuxandopelaruaabaixo(ri).Nósgritavaaíoshomesaíacorrendopraacudir,euvoutefalarumacoisa(ri).Ôlugarterrível.(Depoimentodaesposadeumcarpinteiro,residentenaCidadeLivre,apudRIBEIRO,2008,p.107)

Portanto,asmulheresestãopresentesnanarrativaacercadaconstruçãodeBrasília

comoaquiloquefazfaltaaoshomens.SegundooantropólogoGustavoLinsRibeiro

emseulivroOcapitaldaesperança:aexperiênciadostrabalhadoresnaconstruçãode

Brasília(2008),“aproporçãodemulheressolteirasera,emalgumasáreas,de17para

cadagrupode100homenssolteiros”(RIBEIRO,2008,p.108).Ribeiroaponta

inclusivequeaausênciarelativademulheresserefletianaescassezdaprestaçãode

serviçosdomésticos,numaatribuiçãodessaatividadeaoâmbitoexclusivamente

feminino.

Pouquíssimostrabalhosforamrealizadosexclusivamenteacercadotema.Aquestão

dapresençafemininaduranteaconstruçãodeBrasíliaécitadademaneiraenpassant

emtrabalhosquetratamdoambientedaconstrução,ecomenfoquesemelhanteao

dadoporRibeiro:anarrativadafalta.LuizSérgioDuartedaSilva,emseulivroA

ConstruçãodeBrasília:modernidadeeperiferia(1997),mencionaadisparidadeentre

homensemulheres:

Oambientedaconstruçãoeraumlugarextraordinário.Suapopulaçãoeracaracterizadapelodesequilíbrionaquantidadedehomensemulheres(100/17em1959).(...)Umlugarisoladodetudo,compoucasmulheres,muitaexploraçãoeondeasociabilidadeerareconstituídanãosónosinterstíciosdosistema:naCidadeLivre,nosrestaurantescoletivos,nofutebol,nasmesasdejogodepife-pafe,mastambémnoambientedetrabalho(aobra).(DUARTE,2009,p.79)

ApublicaçãoMulheresPioneirasdeBrasília(2001)deElviraBarney,traz

depoimentosdemulheresquevieramparaBrasíliaantesdesuainauguraçãoouem

seusprimeirosanosdeexistência.Das91mulheresentrevistadas,apenas38

chegaramantesdainauguração.AautoraveioparaBrasíliaem1961,acompanhando

omarido,oarquitetocolombianoCésarBarney.OlivrodeElvirareúnepequenos

depoimentosdessaspioneiras,descritoscomaspalavrasdaautora.Osdepoimentos

sãoorganizadosemordemalfabética,echamaaatençãoofatodeessasmulheres

seremconstantementereferidascomoesposasdealguém:naintroduçãodecada

21

depoimento,abaixodonomedapioneira,constaadatadechegadaaBrasília,a

origem,easituaçãoconjugaldecadauma–viúvadefulano,casadacomcicrano.Em

suamaioria,tratam-sedecompanheirasdefuncionáriosdaNovacap,arquitetos,

empresários,médicos,etc.,dentreelas,CoracyUchôaPinheiro(viúvadeIsrael

Pinheiro)eLiaSayão(filhadeBernardoSayão).Algumaschegaramaindacriançasou

adolescentes.Descrevemasagrurasdosafazeresdomésticosnaépoca,afaltade

empregadas,aprecariedadedasinstalações,curiosidadesacercadavidacotidiana,

etc.Aabordageméclaramentedirecionadaamulheresdeumaclassesocialmais

favorecida,eécomumemtodososdepoimentosareferênciaàvidaconjugalcomo

determinantenahistóriadedeslocamentodessasmulheresparaanovacidade.Há

poucasreferênciasdiretasaofatodeseremminorianaépoca,assimcomoàscausase

consequênciasdisso.

ANovacapdavapassagemdeaviãoparaohomem.Esóparaohomem,semincluirafamília.MasAníbalcomprouaspassagensdoRioparaGoiâniaescondido,paraelaeosfilhos.(SobredepoimentodeAnaSantanaPereira,emBARNEY,2001,p.39)

Quasemorriademedo,poishaviamuitohomempelarua,equasenenhumamulher.Masoespíritodeaventuraprevaleceu...(SobredepoimentodeDalvadeLimaCatsiamakis,emBARNEY,2001,p.72)

Mulher,nempensardesairànoite,pois,comoeramescassas,seria“atiçarfogoondenãohaviaágua”.(SobredepoimentodeNormaFerreiradaCunhaMello,emBARNEY,2001,p.224)

Ainauguraçãodacidadefoimuitoemocionante.Atéosengenheirosdesfilaramemjipes,easmulheres,quenãotomarampartenisso,gritavampelonomedosmaridos,entusiasmadascomodesfile.(SobredepoimentodeMarildaCastrodeFigueiredo,emBARNEY,2001,p.188)

Fatoengraçadoaconteceu,quandofizeramumcinemademadeiranaCidadeLivre,econvidaramoscandangosparaaestreia,jáqueiriapassarumfilmecomaBrigiteBardot.Foiaquelaexpectativa,edesignaramumcoroneldapolíciaparacontrolaropúblico,tudoorganizado.Lápelastantas,Brigitecomeçaatirararoupa,efoiaquelaloucura!Oscandangos,nocinema,ficaramalvoroçadosdetalforma,quetiveramdeinterromperasessão.(SobredepoimentodeVeraLúciaMeirelesTamm,emBARNEY,2001,p.258)

Mulhereracoisarara,atéchamavaatenção.Contaelaquenosábado,asfirmaslotavamoscaminhõesdehomens,eoslevavamparaLuziânia,paraas“farras”.Eraumafestaparaeles.(SobredepoimentodeDorotéaAroucheNeves,emBARNEY,2001,p.81)

LisbethchegouemBrasíliacomapenasdozeanoserecém-saídadocolégiointerno.MoravanaCidadeLivre,ondeopaiconstruiuumpostodegasolina,aoladodacasaparamorar.Tudodemadeira.Maselaestavafeliz,poistinha

22

maisliberdadeparasairdecasa,andardebicicletaaliemvolta,tudoótimo.Umdia,viuquedooutroladodaruahaviaumacasacheiadegentebonita,arrumada,etinhamúsica.“Semandou”paralánasuabicicleta,eachouqueeramuitomaisanimadodoquedoladodecá.Aquinãohavianada,edoladodelá,erasófesta.Sóqueseupaideuordemparaelanuncamaisatravessar,poisláeraacasadeprostitutas,gentequenãoprestavaetc.etc.Pôsumempregadodopostoparavigiá-la.Elaficoutriste,mastevequeentender.Criançaainda,nãosabiabemdascoisas.(SobredepoimentodeElisabethCascãoFrança,emBARNEY,2001,p.97)

Nesteúltimodepoimento,adentramosmaisumaquestãoatreladaàdisparidadeentre

homensemulheres:avindadeprostitutasaoambientedaconstrução,assimcomoo

deslocamentodostrabalhadoresparacidadespróximas–Luziânia,Formosa–na

buscadessasprofissionais.Amençãoaessaatividadetambémaparecenolivrode

GustavoLinsRibeiro.

AquinofimdaAvenidaCentralaíhaviaumazona,ummeretrício.Entãohaviaessemeretrício.Emboraeraummal,masummalnecessário.Porqueagrandequantidadedeoperário,ecertosoperáriosespecializados,trabalhavamnascompanhia,numtrouxeramsuasfamília.Agrandemaioriadeoperárioerahomemsozinho.Entãoporissohouveanecessidade.Aíéqueàsvezesempredavaumasconfusãozinhaporquemulher,jogo,cachaça,nuncadeixavadedaralgumaconfusão.(DepoimentodecomerciantedaCidadeLivreapudRIBEIRO,2008,p.109)

Sobreaprostituiçãoduranteaconstruçãodacapital,éimportantedestacara

pesquisademestradodahistoriadoraJoelmaRodriguesdaSilva–Mulher:“pedra

preciosa”;prostituiçãoerelaçõesdegêneroemBrasília(1957–1961)(1995).A

pesquisadeJoelmaRodriguesconsistenoprimeirotrabalhoacadêmicoquesetem

conhecimentoacercadotemadaprostituiçãoduranteaconstruçãodacidade.Sua

investigaçãopartedealgumasperguntas:

(...)sehaviammulheresnaconstruçãodeBrasília,porquenãosefalavaarespeitodelas?Esehaviamprostitutas,porqueaomenoscomo‘delinquentes’elasnãohaviamsidoincluídasnas‘memórias’e‘diários’jápublicadossobreoperíodo?Qualosignificadodaprostituiçãonoespaço/tempodelimitadopornós?Afinal,oqueproduzafiguradaprostituta?(...)ComoteriasidoaaçãodoEstadofrenteàprostituiçãoe,quaisinstrumentosteriamsidousadosparacoibi-laouincentivá-la?(SILVA,1995,p.I–II)

E,apartirdessasperguntas,constróiumahipóteseinicial:

UmadashipóteseseradequeoEstado,atravésdaNovacapeempreiteiras,haviaatuadocomoproxenetaobjetivandogarantiraválvuladeescapeparaaspulsõesemocionaiselibidinaisdoshomensquetrabalhavamnaconstrução:garantindosatisfação,garantiriaoritmoaceleradoqueasobrasexigiam.(SILVA,1995,p.II)

23

AperspectivadeJoelmaéadaviolênciacontraamulherque,segundoela,estaria

implícitanessetipoderelação.Aprostituiçãoé,paraaautora,“umaviolênciasocial

quefazdamulherobjetoeinstrumentodelazer/prazer,práticaondeseconcretizam

asrepresentaçõessobreosgêneros,teatronoqualsereestabelecemasrelações

sociais”(SILVA,1995,p.II)Partindodeumapremissafoulcaultiana,posicionandoas

relaçõesdegêneroesexualidadedentrodaperspectivadopoder,aautoraexploraa

questãodaprostituiçãoatribuindohistoricamenteàmulher,umaposiçãosubalterna

emrelaçãoaohomem;dessasubordinação,nasceriaoespaçoparaaprostituição.Sua

análisepassaentãoporumarevisãododiscursomédicoereligioso,ressaltandoem

queaspectosessasinstânciasestiveramvigiandoecontrolandoasmulheres,

confiscando-lhesodesejoealiberdade,eainda,culpando-aspelaluxúriaepelas

doençassexualmentetransmissíveis.Finalmente,Joelmavaibuscarnasmemórias

daquelesqueparticiparamdaconstruçãodeBrasília,predominantementeatravés

dosdiscursosmasculinos,remontarocotidianodaépoca,analisandotambémo

silêncioimpostoàsprostitutas.Asocorrênciaspoliciaisdaépocaentramcomo

complementaresàtentativaderemontaressecotidiano.

OterceirocapítulodotrabalhodeJoelma–Asfalaseossilêncios:homensemulheres–

éconstruídoapartirdefontesprimárias:depoimentoscedidosaoProgramade

HistóriaOraldoArquivoPúblicodoDF.Emumaprimeiraparte,suaconstruçãoparte

dedepoimentosmasculinos,tantodaquelesqueseutilizavamdosserviçosdas

prostitutas,comodefuncionáriosdogovernoedeempreiteiras,querelatamsua

atuaçãonosentidodefacilitaraocorrênciadessasáreas–primeiramentelocalizadas

emLuziâniae,posteriormente,naprópriaCidadeLivre.

Noprincípio(1956),emnovembroassim,opessoalreclamavamuito.Tinhamuitagenteaísozinha,então,nãotinhamulher,nãotinhacoisanenhuma.Aíeudigo...bom,então,eufuiaLuziâniaecombineicomJucadaPonte.Etinha(...)umsubempreiteiro,chamadoFlausino,eudigo:"ÓFlausino,vocêsaicomteucaminhãoaí,eupago,vocêarrumatrêsmulheresaí.TemaquiaMetropolitana,temaCoengeetemaRabello,então,umamulherpracadacompanhia.EtrazelasaíevamosinstalarelasemLuziânia."AíeuarrumeiláumlocalemLuziânia,fiztrêscasinhasbemfeitinhas,cominstalaçãosanitáriaetudo,aquelenegóciotodo.Eumbelodomingonósestávamos...éporqueagentetrabalhava21horaspordiadireto,nóssóparamosnasexta-feirasantaporqueoIsraelmandouparar.Então,numbelodomingo,tavaatéumdomingobonito,demanhãcedoumas7epouco,apareceumcaminhãolánocampo,todomundotrabalhando(...)apareceumcaminhãocomoFlausino,umsujeitodirigindo,eraocaminhãodeleeelenoestribocomamãolevantadaassimecumprimentandoeemcimadocaminhão

24

vinhamtrêscamascomtrêsdonzelasládepenhoaretudo,emcimadocaminhãomandandobeijopropessoal.Atravessaram,mandandobeijopropessoal,atravessaramocampotodoeeufiqueiestarrecidoporqueparouaobratoda,ficoutodomundoolhando.Aíeugritava,eupegueiojipeesaíatrásládoFlausinoeemparelheicomele,eudigo:"ÓFlausinomandaessadroga,levatudolápraLuziâniarápidoporquesenãoninguémtrabalhamaishojeaqui."AíláfoielepraLuziânia,instalouláolupanarláemLuziânia(...)Trêsmulheressó,trêsmulheres.Porqueelasnãoqueriamvir.Elastinhammedo,longepraburro,umnegóciohorrível.ElefoiláproladodeUruaçu,seilá.(...)Edessastrêscasinhas,hojeemdiatemumbairroláemLuziânia,bairromovimentadoeasnoitesemLuziâniasãolánessetaldebairrolá,dizquenasceunaquelaépoca.(DepoimentodeAthualpaSchmitz,engenheiro,apudSILVA,1995,p.108)

Apósdiscorreracercadosdepoimentosmasculinos,Joelmaargumentaque,aoentrar

emcontatocomasmulheresquetrabalharamcomoprostitutasnoperíodo,nenhuma

delassedispôsalheconcederentrevistas.Omomentoqueseria,portanto,dedicadoa

ouvi-lasétransformadoemumaargumentaçãoacercadosilênciodessasmulheres.

Ocorreque,muitoemboraotrabalhodeJoelmatragaumaincrívelcontribuiçãono

sentidodereconstruiressesfatos,dereunirnarrativasdosatoreseinstituiçõesda

época,limita-seadescrevê-losapartirdaóticamasculina.Joelmademonstra,ao

longodetodooseutrabalho,umposicionamentomuitoclaroemrelaçãoà

prostituição:elaéumaviolênciacontraamulher.Dessaforma,condenaaspulsões

sexuaismasculinaseoshomensque,aonãoconseguiremcontê-las,obrigamessas

mulheresasujeitarem-seaessasituação.Pornãotermosacessoemseutrabalhoaos

depoimentosdaquelasquesão,defato,objetodeseuestudo,ficamosnovamente

apenascomanarrativamasculinaacercadahistória.

Nasduaspublicaçõesmencionadasacima,asúnicasaquetiveacessoatéentãoacerca

dapresençadasmulheresduranteaconstruçãodacidade,percebemosdois

estereótiposdemulheresmuitobemdelineados:odamulherpioneira,que

acompanhaomarido(tambémpioneiro),equeporventurapassaaintegrara

sociedadebrasilienseeagerarosseusprogenitores;ooutro,odaprostituta,figura

obscura,marginalizada,porémnecessáriaaofielandamentodasobras.Seriamentão

apartirdessasduaspersonagensquecomeçamosarecontaressahistória?

Mas,antesmesmodeapontaraspersonagens,éprecisoperguntaroporquêdeterem

sidosilenciadasoucolocadasàmargemdaquelaqueseriaahistóriaoficial.

Perguntar,comodizodepoimentodeMarildaCastro,porqueasmulheresnão

25

tomarampartedisso?Emquemedida,dentrodesselimitetemporal–oepisódio

delineadopelaconstruçãodeBrasília–podemosentenderalgoquedigamaisacerca

deduasquestõesamplas:primeiro,comoasmulheresserelacionamcomoprocesso

detransformaçãoentendidocomomodernidade;esegundo,comoocinema,arte

modernaporexcelência,poderevelaraspectosdessarelaçãopormeiodoscorpos

queconstróiemsuamise-èn-scene.

Portanto,aoobservarocorpofemininonosfilmesproduzidosacercadaconstrução

dacidade,procuroindíciosdapresençaouausênciadessecorpo,traçandoassimuma

novanarrativaacercadessarelaçãoentrecorpofemininoemodernidade.Observo-o

apartirdoselementosqueofilmemeoferece:Quemfilma?Quandofilma?Emque

contextohistóricoseinseremrealizadoresefilmes?Quetipoderelaçãonarrativaé

estabelecida–documentalouficcional?Apartirdequeóticaabordaaconstruçãoda

cidade?E,finalmente,comoocorpofemininoémostrado?Ouporquenãoé

mostrado?

***

Procureiestruturaressadissertaçãodeformaqueasquestõesteóricasqueforam

levantadasaparecessemladoaladocomosfilmesqueescolhitrabalhar.Noentanto,

antesdeadentrá-los,énecessáriofalardocinema,oveículopormeiodoqual

pretendoobservaressarelaçãoentrecorpofemininoemodernidadenaconstrução

deBrasília.Dessaforma,noprimeirocapítulo–Cinema,oolhodamodernidade–

procuroadentrarouniversodocinemacomoveículodeexpressãomodernopor

excelênciae,comotal,passíveldecontarasestóriasdenossamodernidade.Vou

transitarporquestõesquesãonecessáriasparaaabordagemquetragoaquie

cruciaisaocinema,comoadicotomiaentreficçãoerealidade,eapossibilidadedeas

construçõesaudiovisuaisseremencaradasnumaperspectivahistórica.Procuro

tambémfalardoscaminhosqueahistóriadodocumentáriopercorreunatênuelinha

quedivideocinemadocumentáriodocinemadeficção.Corpoecidadeaparecemaqui

tambémcomoelementosdessejogo,assumindoumaoutraexistêncianaconstrução

cinematográfica.Porfim,procurodelinear,rapidamente,dequeformaa

modernidadesemanifestounocinemabrasileiro,seuscaminhos,principaisatorese

26

característicadaprodução,quevaieclodirquasequesimultaneamenteàconstrução

deBrasília.

Osegundocapítulo–Modernidade,progressoecorpo-máquina–éconstruídoa

partirdofilmeAsprimeirasimagensdeBrasília(1957)deJeanManzon.Ofilmeevoca

amodernidadeemBrasíliacomoumcaminhoinequívocoaoprogresso,etambéma

relaçãoqueessepensamentoestabeleceucomocorpo-máquinae,porsuavez,como

corpofeminino.Oterceirocapítulo–Modernidade,contradiçãoecorpoprovisório

–éconstruídoapartirdofilmeBrasília,capitaldoséculo(1959)deGersonTavares.O

filmesurgecomoumaprovocaçãoàidéiademodernidadepropostanaprimeira

parte.Apesardotítuloprofético,ofilmeapontaparaascontradiçõesdoprojetode

modernidadedesdeocanteirodeobras,eabrecaminhosparaadiscussãodeum

processodifusoecontraditório,ondenovoearcaicoestãoemconstanteoposição.

Nessecontexto,ocorposurgecomoelementodesestabilizadordoidealmodernodo

corpo-máquina,umcorpoidentitário,vivo,arraigadoemsistemasdesignificação,

entreeles,ocorpofeminino,masqueviveemcondiçãoprovisória:apósconcluídaa

construção,aquelesqueofilmemostradeveriamsairdali.E,finalmente,oquarto

capítulo–Modernidadeecorpofeminino–éestruturadoapartirdedoisfilmes

contemporâneos:PoeiraeBatomnoPlanaltoCentral(2010),deTâniaFontenelee

TâniaQuaresma;eAsagadascandangasinvisíveis(2008),deDeniseCaputo.Osdois

filmesprocuramresgatar,pormeiodamemóriaoral,ahistóriadasmulheresdurante

aconstruçãodeBrasília.Aquipodemosenxergar,demaneiraretrospectiva,ostraços

dessecorpofemininodescritoporaquelasquedefatovivenciaramoprocessode

construçãodeBrasília.Epermitequefinalmentepossamosnosperguntar:comoo

projetodemodernidadequeBrasíliaevocadialogacomaimagemdocorpofeminino?

27

28

29

1. Cinema, o olho da modernidade

Omundodito“real”comoopercebemos,emnossarelaçãodiretaematerialcomele,

umavezmodificadopelacâmeraepeloolhardocineasta,ganhaumanovarealidadee

éassimpercebidopeloespectadornateladocinema.Essanova“realidade”

percebida,essenovomundoqueéofilme,apesardeencontrarsuportenesseespaço

“real”,aelesesobrepõe.Essaéaoperaçãobásicadocinema,queservecomopanode

fundoparaoseuentendimentocomomanifestaçãomoderna:umainteraçãoentre

homememáquinanaproduçãodesentido,transitandoconstantementena

ambiguidadeentrerealeficcional.

Essaafirmaçãodeautonomiadaimagemcinematográficaéprópriadoentendimento

doqueémodernonocinema.Asprimeirasmanifestaçõescinematográficas–aartede

captarimagenseprojetá-lasemgrandeformato–sãoconcomitantesàRevolução

Industrial.Portanto,ocinema–comoartequedependedamáquinaparaexistir–

nascecomoevoluçãotecnológicae,juntamentecomafotografia,sãomanifestações

artísticasdamodernidade.Poderiasedizerqueocinemajánascemoderno.

Noentanto,dentrodahistóriadocinema,écomumadivisãoentreocinemaclássicoe

ocinemamoderno.Opontoderupturahistóricaentreessesdoiscinemasseriaa

SegundaGuerraMundial,muitoemborajásepudessesentirmudançasaindano

períodoentre-guerras.Hánopós-guerradaEuropaumaeclosãodediversas

manifestaçõescinematográficasquepromovemimportantesrupturas,refletidas

tantonosfilmes,comonosmodosdeprodução:oneorrealismoitalianoreagecontraa

herançafascista,comumforteapelonacionalista,opondo-seàinvasãodocinema

americano,recusandoosestúdioselevandoseucinemaparaasruas,captadasem

planosabertosquebuscavammostrararealidadenaItáliadopós-guerra;anouvelle

vaguefrancesaafirmafortementeocinemadeautor,quebracomaclássicanarrativa

americana(início,meioefim)e,nasmãosdoscinegrafistas,câmeraspequenas

30

seguemosatorespelasruasdeParisemlongosplanos9sequência10.Essasduas

correntesserãodeterminantesparaoquesepassouaentendercomocinema

modernoemtodoomundo:afasta-sedaideiaclássicadocinemacomo

entretenimento,comodesvioparaummundodemagiaeilusão,ondeofinalfelizé

imperativo;paraafirmarumrealismocapazdeproduzirhistória,eatémesmode

reinventá-la.NaspalavrasdeItaloCalvino,

Nãoseiquantoocinemaitalianodopós-guerramudounossamaneiradeveromundo,mascomcertezamudounossavisãodocinema(dequalquerum,atémesmooamericano).Nãoexistiamaisummundonatelailuminadanasalaescurae,foradela,umoutro,heterogêneo,separadoporumaclaradescontinuidade,oceanoeabismo.Asalaescuradesaparecia,atelaeraumalentedeaumentoquefocalizavaocotidianodefora,obrigadaasefixarnaquilosobreoqueoolhonutendeapassarsemprestaratenção.(apudFABRIS,2012,p.217)

NessaafirmaçãodeÍtaloCalvinoestáoqueAndréBazin,umdosmaisimportantes

teóricosdocinemamoderno,consideravacomoessênciadessecinema:asua

capacidadede“revelarosentidoocultodosseresedascoisas,semquebrarsua

unidadenatural”(apudRANCIÈRE,2013,p.113).Portanto,oneorrealismoitaliano

estaria,naspalavrasdeRancière,completandoumaespéciedevocação“natural”do

cinemadesevoltarparaarealidade.

JacquesRancière,filósofofrancêsquevoltoupartedeseutrabalhoparaasquestões

docinema,constróiumcapítuloemseulivroAfábulacinematográfica(2013)em

tornodeumaperguntaprovocativa:existiriaumamodernidadecinematográfica?

TomandoDeleuzecomoumdosprincipaisteóricosdocinemamoderno,Rancièrevai

questionaradivisãoqueDeleuzepromoveentreaimagem-movimentoeaimagem-

tempo.ParaDeleuze,essasduasimagensestariamrelacionadas,respectivamente,ao

cinemaclássicoeaocinemamoderno,separadashistoricamentepelaSegundaGuerra

Mundial.

MasoqueseriamessasduasimagensdeDeleuze?Aimagem-movimento,segundoas

palavrasdeRancière,“seriaorganizadasegundoalógicadoesquemasensório-motor,

concebidacomoencadeamentonaturalcomoutrasimagens,numalógicadeconjunto

9Umplanoconsisteemumtrechodefilmerodadoiniterruptamente,limitadoporumenquadramento,equepodetantoserfixo–acâmeranãosemove–oumóvel–acâmerasemovimenta.10Planodemaiorduraçãoquecontemplaváriasações,semcortesentreelas.

31

análogaàqueladoencadeamentofinalizadodaspercepçõesedasações”.Jáaimagem-

tempo,“seriacaracterizadaporumarupturadessalógica,pelaaparição–exemplar

emRossellini11–desituaçõesóticasesonoraspurasquenãosetransformammais

emações”(RANCIÈRE,2013,p.113).Éimportanteressaltarque,paraDeleuze,não

háumahistóriageral,ouumahistóriadocinema:todooseupensamentogiraem

tornodeumahistórianatural.Portanto,eletrataasimagensapartirdesignos,desua

existênciaautônoma.ÉnessepontoqueRancièrebuscaasuacontradição:como,

dentrodalógicadeumahistórianaturalpoderiamdoiseventos,traduzidosem

imagens,seremseparadosporumcortehistórico–nocaso,aSegundaGuerra

Mundial?

SemapretensãodeadentrarouniversodeDeleuze,terrenoque,paraestetrabalho,

seriademasiadopantanoso,gostariadefocarnacríticadeRancière,mesmo

assumindooriscodeparecersimplista.ParaRancièrenãohádoistiposdeimagens

opostas,correspondendoaduaserasdocinema,massimdoispontosdevista

diferentessobreaimagemquetantopodemserpercebidasnocinemaconsiderado

clássicocomonocinemamoderno,equemanteriamumarelaçãoem“espiralinfinita”.

Oquediferenciaessesdoispontosdevistaseriaarelaçãoqueaimagem-movimento

estabelececomosacontecimentosdamatéria-imagem–aquiloqueéoperaçãoda

montagemcinematográfica,doencadeamentocausalentreumaimagemeoutra–ea

relaçãoqueaimagem-tempoestabelececomopensamento-imagem–aquiloque

percebemosdemaneiraautônomaemcadaimagem,comoexperiênciaquenão

dependedeumencadeamentocausal.

Noentanto,Rancièreadmitequehá,defato,umarupturahistóricapromovidapela

SegundaGuerra.

Hámesmoduaslógicasdaimagemquecorrespondemaduaserasdocinema.Entreasduas,háumacrise,identificável,daimagem-ação,umarupturadoelosensório-motor.EessacriseestáligadaàSegundaGuerraMundialeàapariçãoconcreta,nasruínasdaguerraenaafliçãodosvencidos,deespaçosdesconexosedepersonagensàsvoltascomsituaçõesdiantedasquaisrestamimpassíveis.(RANCIÈRE,2013,p.119)

11Cineastaitaliano.SeufilmeRoma,cidadeaberta(1947)étidocomoummarcoinicialdoneorrealismo.

32

Segundooautor,essarupturasedáemtermosdepassagemdeummodelo

representativoparaumamodernidadeartística,aqualelepreferesereferircomo

regimeestéticodaarte.Segundoomodelorepresentativo,“otrabalhodaarteé

pensadosegundoomodelodaformaativaqueseimpõeàmatériainertepara

submetê-loaosfinsderepresentação”.Jánoregimeestéticodaartea“imposição

voluntáriadeumaformaaumamatériaérecusada.Apotênciadaobraidentifica-se

comumaidentidadedoscontrários:identidadedoativoedopassivo,dopensamento

edonãopensamento,dointencionaledoinintencional”.

ParaRancière,ocinemaseriaaencarnaçãoliteraldessaunidadedoscontrários,a

uniãodoolhopassivoeautomáticodacâmeraedoolhoconscientedocineasta.

Éaartequerealizaaidentidadeprimeiradopensamentoedonãopensamentoquedefineaimagemmodernadaarteedopensamento.Mastambéméaartequeinverteosentidodessaidentidade,parareinstaurarocérebrohumanoemsuapretensãodesetornarocentrodomundoedecolocarascoisasàsuadisposição.Essadialéticafragiliza,deinício,qualquervontadededistinguir,portraçosdiscriminantes,doistiposdeimagens,edefixar,assim,umafronteiraqueseparaumcinemaclássicodeumcinemamoderno.(RANCIÈRE,2013,p.127)

Dessaforma,Rancièrereafirmaolugardocinemacomoartemodernaporexcelência,

emcontrapontoàrupturaestabelecidaporDeleuze.

Artemodernaporexcelência,ocinemaéaarteque,maisdoquequalqueroutra,sofreoconflitoouexperimentaacombinaçãodessasduaspoéticas.Combinaçãodeumolhardeartistaquedecideedeumolharmaquínicoqueregistra,combinaçãodeimagensconstruídasedeimagenssubmetidas,elefaz,geralmente,desseduplopoderummeroinstrumentodeilustraçãoaserviçodeumsucedâneodapoéticaclássica.Porém,tambéméaartequepodeelevaràsuamaisaltapotênciaoduplorecursodaimpressãomudaquefalaedamontagemquecalculaaspotênciasdesignificânciaeosvaloresdeverdade.(RANCIÈRE,2013,p.162)

***

Nestecapítuloprocurodeiníciolevantarquestõesteórico-metodológicas,situadas

nasinter-relaçõesentrerealeficcionalqueocinemaestabelece:Comoocinemapode

seruminstrumentodeproduçãodesentidosacercadomundo?Comoaconteceessa

construção,dopontodevistadequemrealizaofilmeetambémdequemovê?Como

admiti-loemsuaautonomia,emsuanovarealidade?Emseguida,partindoparauma

abordagemhistoriográfica,voubuscarcomosedesenhouessamodernidadeno

33

cinemabrasileiro,equeinter-relaçõeselapodeestabelecercomamodernidade

encampadaporBrasília.

Dessaforma,abroestecapítulocomquestõesquemotivaramaincorporaçãodo

cinemaaestetrabalho(Históriacomoficção,ficçãocomohistória).Emseguida,

adentroalgumasquestõesrelacionadasaocinemadocumentário,objetodeestudo

dessapesquisa,tendocomopanodefundoaambiguidadeentrerealeficcional(A

ficcionalidadedocinemadocumentário).Nasequência,procurolevantarbrevemente

episódiosdahistóriadocinemabrasileiro,quevãodelinearoentendimentodesua

própriamodernidade(ModernidadenocinemabrasileiroeCinemadecavação).E,por

fim,façoumbreveapanhadodosparalelosquesepodemestabelecerentreessa

produçãocinematográficaeaconstruçãodeBrasília(Ocinemanocanteirodeobras

deBrasília).

34

1.1. História como ficção, f icção como história

Aficção–sobsuasmodalidadesmíticas,literárias,científicasoumetafóricas–éumdiscursoquedáforma[“informe”]ao

real,semqualquerpretensãoderepresentá-loousercredenciadoporele.Destemodo,elaopõe-se,

fundamentalmente,aumahistoriografiaquesearticulasempreapartirdaambiçãodedizeroreal–e,portanto,a

partirdaimpossibilidadedeassumirplenamentesuaperda.

MicheldeCerteau,emHistóriaePsicanálise–entreciênciaeficção

Aprimeiraquestãoquesecolocaaopropormosoestudodeumanarrativa

audiovisual–ofilme–comoobjetivoderefletiracercadeumapretensarealidade

histórica–aconstruçãodeBrasília–éadecomosedáaintermediaçãoentreeles,

comoahistóriapodeserproblematizadaapartirdeumanarrativaque,mesmoque

seproponhadocumental,carregaemsiumaconstruçãoficcional.Portanto,antesde

maisnada,cabediscorrerumpoucoacercadessarelaçãoentrerealidadeeficção.Vou

buscaralgumastonalidadesdessadiscussãonotrabalhodohistoriador,tendocomo

impulsoasquestõeslevantadasporMicheldeCerteauemseulivroHistóriae

Psicanálise–entreciênciaeficção(2011).Conformepodesernotadonacitaçãono

iníciodestecapítulo,Certeauproblematizaarelaçãoentreciênciaeficçãonotrabalho

dohistoriador,e,porconseguinte,asrelaçõesdessascomaditarealidade.Cabe

ressaltarqueotrabalhodeCerteaunãoéaplicadodiretamenteàficção

cinematográfica,massimàconstruçãoficcionalcomoumaoperaçãocompositiva.

Aopercorreressecaminho,procuroaspossibilidadesdeseagregarocinemaaeste

trabalho,distanciando-medeumaabordagemsegundoaqualseriapossívelreduzi-lo

aunidadesestáveisaseremcombinadas–umprocedimentocientífico.Partodo

princípiodequeotrabalhohistoriográficoé,necessariamente,umaproduçãode

ficçõeseque,dessaforma,tomarumobjetodeestudoficcional–comoofilme–não

invalida,masreforçapráticasque,ameuver,sãoinerentesaoatodesecontaro

passado:aimaginação,ainterpretaçãoeafabulação.

OprimeirocapítulodolivrodeCerteau–Ahistória,ciênciaeficção–escrito

originalmenteem1983,seiniciacomaelucidaçãode“quatrofuncionamentos

possíveisdaficçãonodiscursodohistoriador”.Noprimeirodelesficçãoehistória,

35

Certeauexplicitaoembatedahistoriografiaocidentalcomaficção:estadeveriaser

negadanamedidaemqueahistóriasepretendeciênciaeerudita.Essanegação

provocaumdistanciamentodahistóriaemrelaçãoaoqueéfabular,eseocupaem

denunciaroserrospresentesnosmitos,naslendasdamemóriacoletivaouderivadas

dacirculaçãooral,parareafirmarseusacertoscientíficos.Osegundo,ficçãoe

realidade,é,emcertamedida,consequênciadoprimeiro:essaseparaçãoentre

científicoeficcionalconcedeàhistóriaumestatutoderealidade,enquantooseu

contrárioéposicionadosobosignodofalso,ouseja,onãofalsodeveseroreal,

fazendocrerassimqueháalgoverdadeiro.Enoterceiro,ficçãoeciência,constróia

hipótesedequeaciência,aorealizarcorrelaçõesentreunidadesdistintaseestáveis,

ouaofazerfuncionarhipótesesnoespaçodeumpassadoseutilizandoderegras

científicaspresentes,tambémestariaproduzindoficções.Eporfim,emaficçãoeo

limpo,Certeauretomaaacusaçãofeitacontraaficçãodequeestacareceriade

limpezacientífica.Eafirma:

Comefeito,ela(aficção)lidacomumaestratificaçãodesentido,relataumacoisaparaexprimiroutra,configura-seemumalinguagemdaqualextrai,indefinidamente,efeitosdesentidoquenãopodemsercircunscritos,nemcontrolados.Diferentementedoquesepassacomumalinguagemartificial–emprincípiounívoca–elanãotemespaçopróprio[propre].Elaé“metafórica”.Movimenta-se,imperceptível,nocampodooutro.(CERTEAU,2011,p.47–8)

Certeauvaiseguir“trêspistasdereflexão”afimdediscorreracercadessainter-

relaçãoentreciênciaeficção:asrelaçõesentrehistoriadoreasinstituiçõesque

determinamsuaprodução(oEstado,auniversidade,acorporação);asrelaçõesdo

mesmocomoaparatocientífico(ainformática,porexemplo);eaaglutinaçãodostrês

(historiador/instituição/aparato).Seguindoessaspistas,Certeauestáprocurando

mostrarque“épossívelconsiderarahistoriografiacomoumamisturadeciênciae

ficção,oucomoumlugaremquesereintroduzotempo”.

SementraremdetalhesdaexploraçãofeitaporCerteauenquantosegueessaspistas,

oquecaberessaltaréqueeleprocuradesconstruirqualquerpretensãodeexatidão,

nacorrespondênciacomarealidade,queahistoriografiapossater.Tantoas

instituiçõescomoosaparatostêmpapelativonaconstruçãohistoriográfica

impedindoqueessapossaseauto-afirmarisenta,verossímelecorrespondenteao

real.Asinstituiçõessãofiguraçõesdotempopresente,opoderatuantequeorganizao

36

trabalhohistoriográfico;oaparato(nocaso,ainformática)serve-sedeabstrações

matemáticaseestatísticasparaforjarumailusãodeconfiabilidadehistórica.A

exploraçãodeCerteaucirculanosentidodeevidenciaraimpossibilidadedeque

ciênciaeficçãopossamserdesvencilhadasnotrabalhohistoriográfico,e,por

conseguinte,qualquerpretensãodesesepararobjetoesujeito,razãoepaixão,

passadoepresente.

Paradevolveralegitimidadeàficçãoqueassombraocampodahistoriografia,convém“reconhecer”,emprimeirolugar,nodiscursolegitimadocomocientífico,orecalcadoqueassumiuaformade“literatura”.Asastúciasdodiscursocomopoder,afimdeutilizá-losemficaraseuserviço,asapariçõesdoobjetocomoatorfantásticonoprópriolugardo“sujeitodosaber”,asrepetiçõeseosretornosdotemposupostamentepassado,osdisfarcesdapaixãosobamáscaradeumarazão,etc.,tudoissodependedaficção,nosentido“literário”dotermo.Aficçãonemporissoéestranhaaoreal;pelocontrário,(...)odiscursofictitiousestámaispróximodorealqueodiscurso“objetivo”(OGDEN,1932).Mas,nestecaso,alógicaadotadaédiferentedaquelautilizadapelasciênciaspositivas.ElacomeçouafazeroretornocomFreud.Suaelucidaçãoseriaumadastarefasdahistoriografia.(CERTEAU,2011,p.68–9)

...odiscursohistoriográficoé,emsimesmo,comodiscurso,alutadeumarazãocomotempo,masumarazãoquenãorenunciaaoqueelaaindaéincapazderealizar,umarazãoemseumovimentoético;eleestaria,portanto,navanguardadasciênciascomoaficçãodoqueelasconseguemalcançardeformaparcial.Umaafirmaçãodecientificidadeorientaodiscursoque,emsimesmo,conjugaoexplicávelcomoqueaindapermaneceinexplicável;oqueserelataaíéumaficçãodaprópriaciência.(CERTEAU,2011,p.69–70)

EssainterfacesugeridaporCerteau,ameuver,abreosseguintesquestionamentos:

Emquemedidatemosproduzidotrabalhosacadêmicoscujapretensãodeveracidade

científicapodesercolapsadapelaficçãoimbuídaemsuaconstrução?Eassim,

assumindoaficçãoinerenteaoprocessodeconstruçãohistoriográfica,nãopoderiao

historiadorincorporaraoseutrabalhoobjetoslivresdaaparenteexatidãocientífica,

ouseja,objetosassumidamenteficcionais–comoaliteratura,ocinema?

37

1.2. A ficcionalidade do cinema documentário

Ocinemanascenaépocadagrandedesconfiançaemrelaçãoàshistórias,notempoemquesepensavaque

umaartenovaestavanascendoejánãocontavahistórias,nãodescreviaoespetáculodascoisas,não

apresentavaosestadosdealmadaspersonagens,masinscreviadiretamenteoprodutodopensamentono

movimentodasformas.Apareceuocinemaentãocomoaartemaisindicadapararealizartalsonho.“Ocinemaé

verdade;umahistóriaéumamentira”,disseJeanEpstein.

JacquesRanciére,emAsdistânciasdocinema

Areflexãoacercadasrelaçõesentrerealeficcionalacompanhaahistóriadopróprio

cinema.Aprópriadivisãoentrecinemadeficçãoecinemadocumentáriopassapor

diversasrevisões,provocandoumaconstantereavaliaçãoacercadopotencial

documentaldocinemadeficção,assimcomodaficcionalidadepresentenocinema

documentário.Osfilmesqueserãoincorporadosaestetrabalhosãoclassificados

comodocumentários,asuacâmeraobservadiretamenteobjetosemação,poisnãohá

umaconstruçãodramatúrgicacomatoresediálogosestabelecidosemumroteiro,

muitoemboranãosepossanegarqueháaliumaencenação.Portanto,apenaspara

efeitodecondução,adotoaabordagemhistóricamaisampladocinema

documentário,admitindoaficcionalidadepresentenestegênero.

Autordamaisantigafotografiaconhecida–datadade1826–,ofrancêsNicéphore

Niepce,denominavadepontodevistaasfotosquetirava.Nascidadavontadede

representaçãodarealidade,aliadaàsinvençõestecnológicas,afotografiaestática

logoevoluiparaafotografiaemmovimento,eem1895osIrmãosLumièreregistram

oprimeirocinematógrafo(inventado,naverdade,porLéonBouly,em1892).No

mesmoanoexibemAchegadadotremàestaçãodeCiotat,comumenteconhecido

comooprimeirofilmedahistóriadahumanidade,masquefoiexibidonamesma

sessãojuntamentecommais10filmescurtos,dentreeles,Asaídadosoperáriosda

fábricaLumière.Comapenascercade50segundos,ofilmeconsisteemapenasum

planofixoqueregistraachegadadeumtremàestação.Durantesuaexibição,conta-

seque,aoteraimpressãodequeotremavançavaemdireçãoàplateia,muitas

38

pessoasfugiramparaofundodasala.Ocinemanasce,portanto,documental;ea

ficçãoinerenteaelejápodeserpercebidapelareaçãodaplateia.

Aindaem1895,Felix-LouisRegnault,antropólogofrancês,registroupor

cronofotografia12“umamulherafricanafabricandoumpotedebarro,trêsafricanos

ajoelhadosemposiçãoderepousoeumafricanosubindoemumaárvore”(PEIXOTO,

1999,p.92).Essasforamasprimeirasexperiênciasdousodeimagensemtrabalhos

científicoseRegnaultestavaempenhadoemmostrarasuautilidadeparaa

etnografia.Comenfoquenafisiologiahumana,seutilizavadessasimagenspara

estudosteóricossobreastécnicasdemovimentodocorpo.

Sóocinemapoderáfornecer,emabundância,documentosobjetivos;graçasaele,oantropologista[termodoautor]pode,hoje,colecionaravidadetodosospovos,guardandoemsuagavetatodososatosespecíficosdasdiversasraças.(REGNAULTapudPEIXOTO,1999,p.92)

NoentendimentodeRegnault,naquelemomento,omaterialfilmadoeraumdado

objetivoparaapesquisaetnográfica.Muitosantropólogospassamaseutilizarda

imagem–tantoemmovimentocomoestática–empesquisasdecampo:eraoperíodo

dasgrandesexpediçõescientíficasetambémdaexpansãocolonialistaeuropeia.O

documentárioetnográficopassaaseruminstrumentofascinanteparaacaptaçãoda

imagemdooutro,efoimuitoutilizadocomoummeiodeglorificaressasexpedições.

Foiumperíododedisseminaçãododocumentário,principalmenteapartirdas

décadasde20e30doséculoXX.

Odebateacercadaobjetividadedodocumentárioetnográficosomentecomeçaase

intensificarapartirdasdécadasde50e60,estimulado,principalmente,pela

diversidadedeexperiênciasaudiovisuaisquecomeçavamaaparecer.Porexemplo,

em1966,WortheAdairensinaramtécnicasdefilmagemaumgrupodeNavajopara

queregistrassemseuprópriomododevida.Aoassistiremconjuntamenteomaterial,

eraperceptíveladiferençaentreomaterialcaptadopelospesquisadoresdaquele

captadoporelesmesmos.Daíareflexãodequenãoháobjetividadenaimagem

captada:elarepresentasempreumapercepçãoparticulardooperadordacâmera.

12Técnicapormeiodaqualsãotiradassucessivasfotografias,aintervalosdetempouniforme,equedãoailusãodemovimento.OfuzilcronofotográficofoiinventadopelofrancêsÉtienne-JulesMareyem1882,eeracapazdetirar12fotografiasporsegundo.

39

Étempodeconcluirque,deumamaneirageral,acâmaranãopodeserconsideradacomoumobservadorsociológicoobjetivo,imparcial.Éinútilcontinuaramultiplicarasexigênciasdenão-intervenção;évãosonharcomumacâmarainvisívelqueregistraráofatosocialemseuestadonu,nasuapurezaesuaespontaneidadeoriginal.(DeHeusch,1962,p.25;apudPEIXOTO,1999,p.102)

NocinemadaUniãoSoviética,DzigaVertovremexeuaspremissasdodocumentário,

personalizandoacâmeracomoobjetointegradoaocorpodocineastaeaopróprio

filme.EmThemanwiththemoviecamera(1929)sãomuitasasvezesemquevemoso

cineastaesuacâmerarefletidosemimagensdoprópriofilme.Éoolho-máquinaque

vêarealidade,e,aosecolocartambémcomomatériafilmante,negaarelação

distantecâmera/objeto,paratorná-losumacoisasó.SegundoJacquesRanciére,

EssaonipresençadacâmeraedocameramaneraapresençadoolhoqueregistraarealidadeparaDzigaVertov,cujocinemaefetivamenteafirmaumaposiçãofundamental:arecusadaficção,arecusadaartequecontahistórias.ParaDzigaVertov,comoparaJeanEpsteinemuitosdeseuscontemporâneos,ocinemaseopõeàshistóriascomoaverdadeàmentira.Paraeles,ovisíveljánãoéasededasilusõessensíveisqueaverdadedevedissipar;éolugardemanifestaçãodasenergiaseconstituemaverdadedeummundo.(RANCIÈRE,2012,p.39)

JeanRouch,cineastaeetnólogofrancês,vailevaraextremosadefiniçãodeVertovda

câmera-olho,ocinema-órgão,amáquinaqueseintegraaocorpoque,aoproduzir

umarelação,constróiumconhecimento.Rouchinstituioconceitodecine-transe,no

qualevocaaparticipaçãofísico-corporaldaquelequefilmanaproduçãodessarelação

comooutro,umatentativadedissolverarelaçãosujeito/objetonaconstruçãode

umaetnografiaoudeumfilme.E,principalmente,reforçaaalteridadeinerenteaoato

defilmar,ondeumfilme,assimcomoaprópriaetnografia,ésempreresultadodeuma

relaçãoentrequemfilmaequeméfilmado.“Oqueimportanãoétantoomundo

dado,arealidade,ouogestodocumental,massimarelaçãoqueengendra,porsua

vez,aprópriafilmagem”(GONÇALVES,2009,p.36).Sendoaimagemproduzidaa

partirdeumarelação,dissolve-seailusãodequeocinemaseriaumarepresentação

doreal.Aimagemproduzidaapartirdaíseriafalsa,secontrapostaaoquese

considerareal.Rouchvaiexploraroqueeleauto-intitulapotênciadofalsona

construçãodeumaetnografiaqueconsideraosváriospontosdevistaenvolvidos,

incorporandoaimaginaçãoeafabulaçãocomoevidências,einvertendoodiscurso

etnográficonaconstruçãodanarrativacinematográficadocumental.Paraele,o

importanteéseestarimbuídodeumespíritoinerenteàconstruçãodeumfilme,

40

assumindoqueimaginarasrelaçõescomosoutrosecomoespaçotambémfazparte

daconstruçãodoquechamamosrealidade.

EsseconceitolevadoaextremoporJeanRouchtestavaoslimitesentreobjetividadee

subjetividade,entredocumentárioeficção.AoolharparaRouchestamosolhando

tambémparaasquestõesdocinemacomoumtodo:oembateentrerealidadeeficção

éinerenteaoatodefilmar.Aonosutilizarmosdeimagensesons,dequalquer

natureza,pararefletiracercadomundo,estamoscolocandodeantemãoessaquestão.

QuandoRouchfalaemcine-transeelejáviveuaexperiênciadeOsmestresloucos13,e

osrituaisdepossessãosãofundamentaisparaessadefinição:umritodepossessãoé

umateatralizaçãodovivido.Equemhádedizerquenãoéreal?Nessesentido,seo

cinemapodeserumtranse,eleéumaficcionalizaçãodavidaque,assimcomooutras,

tambémcompõeoquechamamosderealidade.

Numadiscussãomaisrecente,odocumentaristaecríticodecinemaJeanLouis-

Comollipõeemquestãoodestinodocinemaemummundosaturadopor

representaçõesesimulaçõesdarealidade.EmseulivroVerePoder,ainocência

perdida:cinema,televisão,ficçãoedocumentário(2008),Comolliofereceumasíntese

interessanteacercadarealidade,nãosomenteimpressanocinema,mastambémpor

todamanifestaçãoqueparticipadadescriçãodomundo.

Umdepoimento,umapalavra,umdocumentoeapróprianarrativapodemremeterafatos,aelessereferirecomelesestabelecerrelações;contudo,delesseseparampormeiodaelaboraçãoque,aindaquedigarespeitoaofato,oreconfiguraemformasquenãosãomaisasdele.(...)Ocinemanasceudocumentárioedeleextraiuseusprimeirospoderes(Lumiére).Oqueoaproximadojornalismoéofatodequeeleserefereaomundodosacontecimentos,dosfatos,dasrelações,elaborando,apartirdelesoucomeles,asnarrativasfilmadas;eaquiloqueoseparadojornalismoéofatodequeelenãodissimula,nãonega,masaocontrário,afirmaoseugesto,queéodereescreverosacontecimentos,assituações,osfatos,asrelaçõesemformadenarrativas,portanto,odereescreveromundo,masdopontodevistadeumsujeito,escrituraaquieagora,narrativaprecáriaefragmentária,narrativaconfessaequefazdessaconfissãoseupróprioprincípio.(COMOLLI,2008,p.173–4)

13Osmestresloucos(Títulooriginal:LesMaîtresFous),éumdocumentáriodeJeanRouch,realizadoem1955,noqualocineastaregistraumritualhaouka,praticadoportrabalhadoresnigeriensesreunidosemAccra,naCostadoOuroafricana.OritodepossessãoporelespraticadoreproduzpersonificaçõesemblemáticasdadominaçãocolonialeuropeianaÁfrica.Oconceitodecine-transefoiinstituídoporJeanRouchapartirdessaexperiência,emalusãoaoritodepossessão:acâmeraparticipadoqueéfilmado,étransformadapeloqueobserva.Observadoreobservadoparticipamdeummesmotranse.

41

Comolliconsideraquetododocumentárioérealizadosoboriscodoreal,assumindo,

portanto,suafragilidadediantedaditarealidade,assimcomodesuabarreiracoma

ficção:“todofilmedeficçãocomportaumviésdocumentário:oscorposdosatores

sãosemprefilmadossoboregimedeinscriçãoverdadeira14”.

Segundoele,ocorpofilmadoatingeumapotênciadeconvicção,umabeleza,queo

corponãofilmadonãoconhece.Éapartirdoscorposqueocinemafilmaapassagem

dotempo,eésobreorealismodasrepresentaçõesdafigurahumanaqueocinema

constróiseusestilos,realistasounão.Comolliarriscadizerquetalvezhojenãohaja

corpopossívelanãosernocinema.Ocorpo,aosecolocaremcena,trazconsigotudo

oqueaexperiênciadevidanelesterámodelado,“algumacoisadacomplexidadeeda

opacidadedassociedadesealgumacoisadaexceçãoirremediáveldeumavida”.

Comolliafirmatambémqueacidaderealaospoucosestásendosubstituídapela

cidadefilmada.Aabordagemdacidadepelocinemaédiferentedaqueladospoderes

públicos,quetentamcontrolá-la:osfilmeslevamemcontaotempodasuahistóriae

doseuesquecimento.Filmaracidadesignificaconhecerseusmistérios,ocinema

absorveerevelaosseusvestígios,

...asvidasquepassaramporaí,oscorpos,aspalavras,asnarrativas,todoumemaranhadodeencontrostãointensivamentevividosquantorapidamenteperdidos.Filmada,acidadesetornatexto,hipertexto,emesmo,simultaneamente,coletâneadetodasashistóriaspossíveisnascidadeseléxicodetodasaspalavrastrocadas.Cidadecomocorpusdoscorposerededossignos.Sequênciaderelações(nosdoissentidos,deligarerelatar)quenãosãovisíveis:digamosqueocinemanosconfrontacomaquiloque,decadacidadefilmada,justamentenãosereduzasuadimensãovisível.(COMOLLI,2008,p.180)

Commolidesconstróiaideiadeque,aoproduzirmosumdocumentário,estaríamos

retratandooreal,talcomoelenosémostradoemnossarelaçãodiretacomele.Como

produtoresdeimagemestaríamos,necessariamente,eporintermédiodacâmera,

estabelecendorelaçõesficcionaiscomaquiloquefilmamos.

Comoselivrardapositividadedomundo?Éaquestãoquepraticamentesóocinematrabalha,justamenteporqueeleestáemconcorrênciacomomundo.Comonãoselivrardessasupostanaturezapositivadocinema?Comonãoentenderque,longedefilmara-realidade-tal-como-ela-se-dá,o

14O cineasta Jean-Luc Godard, por exemplo, considera que seu filme (de ficção) O desprezo é umdocumentáriosobreocorpodaatrizBrigitteBardot.

42

cinemasópodeapreendê-lacomoacumulaçãoderelações,amaiorpartedelasabstratasounãorepresentáveis,nãovisíveis,nãomostráveis?Comoconcebercinematograficamenteumarealidadequenãoseriaaqueladossistemasderelaçõesabstratoseinvisíveistãooumaisvisíveis?Colocaremcenanãoseriacolocaremdúvidaovisível,equegestopositivohaveriaseocinemanuncasecolocassenovisível?Comofilmarhojesemexcederovisível,sematravessar,nopresente,todoumembaraçomidiático,umaacumulaçãoloucadeimagens,derepresentações,defiltros,detelas,tudooquefazcomqueomundonuncamaissedarátalcomofoi,ouquetalveznuncatenhasido,porqueelesópoderesultardasomadasrelaçõesdeforçaedesejoqueoescrevemsegundoapóssegundo.Namedidaemqueamise-en-scèneaomesmotempodescartaeincluiessasrepresentações,asretorna,astecedenovo,ocinemabrincacomessaduplicidade,comessefundoduplo,comessefurta-cordomundo.(COMOLLI,2008,p.79–80)

Apartirdessasreflexõessecolocaaseguintepossibilidade:ocinemapodeentão

colocaremevidênciarelaçõesinvisíveisaomundo“real”?Podemosfilmes

produzidosacercadaconstruçãodeBrasílianosfornecer,atravésdeseus

dispositivoscinematográficosdocumentaiseficcionais,umaleituradeumcorpo

femininoemrelaçãocomamodernidade?

Caberessaltartambémoquãoimportanteéteremmenteadiscussãopropostapor

Certeauaoolharmosparaahistoriografiaeparaafilmografia“oficial”produzida

acercadaconstruçãodeBrasílianosprimeirosanosdaconstruçãoeexistênciada

cidade,aoobservarcomoseusdispositivospretensamenteobjetivosconstruíram

heróisficcionaisdagrandeempreitadamodernizadoraemodernistaquefoiBrasília.

43

1.3. Modernidade no cinema brasileiro

Jean-ClaudeBernardetescreve,em1967,Brasilemtempodecinema:ensaiosobreo

cinemabrasileiro,livronoqualdiscorreacercadaproduçãocinematográfica

brasileira,contemporâneaàépoca,entreosanosde1958e1966.Bernardetéum

críticobelgafilhodefamíliafrancesa,veioparaoBrasilem1949,quandotinhaainda

13anos,efoinaturalizadoem1964.ChegaaBrasíliaem1965,comobolsistadepós-

graduaçãoe,juntocomPauloEmílioSallesGomes,NelsonPereiradosSantoseLucila

RibeiroBernardet–suacompanheira–integraogrupoquedeucorpoaocursode

CinemadaUniversidadedeBrasília,partedaFaculdadedeComunicaçãodeMassas,

idealizadapelojornalistaPompeudeSouza.Olivroconsisteempartedesua

dissertaçãodemestrado,interrompidajuntocomoprópriocursodeCinema,

desmanteladoapósoGolpeMilitarde1964,comademissãovoluntáriaecoletivade

professoresemoutubrode1965.Bernardetéconsideradoumdosprincipaiscríticos

eteóricosdocinemabrasileiro,esuapublicaçãode67,umaimportantereferência

acercadeummomentonoqualocinemapassavaporumcicloimportantede

renovação,quevaiculminarnasprincipaiscorrentesdocinemamodernonacional:o

CinemaNovoeoCinemaMarginal.

SegundoprefáciodePauloEmílio,“aprincipaldescobertadeJean-ClaudeBernardet

nasceudeduasdeliberações:encararomodernocinemabrasileirocomoumtodo

orgânicoeprocuraramaisvariadaassociaçãocomotemponacional

correspondente.”(BERNARDET,1978,p.9)Equetempoeraesse?Paraentendê-lo,é

precisovoltarumpoucoaosprimeirospassosdaproduçãocinematográficadoBrasil.

Até1910,aproduçãonacionalseresumiaacercade100filmesporano.Osprimeiros

filmesbrasileirosforamproduzidosentre1897e1898,econsistiambasicamenteem

documentaçõesdefatoscotidianosdoRiodeJaneiro.FlávioMoreiradaCosta,no

textoIntroduçãoao(novo)CinemaBrasileiro,noschamaatençãoparaumconjuntode

filmesdeficçãoproduzidos,noiníciodoséculo,porpequenosproprietáriosdesalas

decinema.Osfilmesfaziamreconstituiçõesdecrimesurbanosjáexploradospela

44

imprensa,epodemconstituir,mesmoqueinconscientemente,numaprimeira

tentativanacionaldefilmesdegênero,inspiradaemfilmespoliciaisamericanos.15

Aprimeiraexibiçãodecinemanopaísaconteceem08dejulhode1896,noRiode

Janeiro,iniciativadeumexibidoritinerante,obelgaHenriPalillie.Em1897jáexistia

umasaladecinemanoRio,oSalãodenovidadesParis,dePaschoalSegreto,masa

estruturaçãodeummercadoexibidorsócomeçaaacontecerapartirde1907,noRio

eemSãoPaulo.ApesardejáseproduziremfilmesnoBrasil,eramexibidosnessas

salasprincipalmentefilmesdecompanhiasestrangeiras:aPathéeGaumont

(francesa),aNordisk(dinamarquesa),aCines(italiana),aBioskop(alemã)eaEdison,

VitagrapheaBiograph(americanas).ApósaPrimeiraGuerra,eoenfraquecimentoda

produçãoeuropeia,osfilmesamericanoscomeçamadominaromercadomundial.No

Brasil,aredenacionaldeexibiçãocriadaporFranciscoSerrador–aCompanhia

CinematográficaBrasileira–éasuaprincipaldifusorae,apesardecarregara

nacionalidadeemseunome,exibiaapenasfilmesestrangeiros.

Apartirde1930,inicia-senoBrasiloquepodemosconsiderarcomooprocessode

suarevoluçãoindustrial.GetúlioVargasassumeapresidência,enelasemantém

durante15anos,pormeiodesucessivosgolpesdeestado–inclusiveaquelequecria

oEstadoNovoem1937–instituindoummodelodegovernançanoqualoEstado

intervémdiretaeincisivamentenaeconomiadopaís.Aindustrializaçãodominao

tomdessasintervenções:grandesempresasestataissãocriadasnesteperíodo,como

aValedoRioDoceeaCompanhiaSiderúrgicaNacional.

OpaíspassaentãoasereinventarnaEraVargas.OBrasilquecomeçaaficarparatrás

éumpaíssemtradiçãoindustrial,etambémsemtradiçãocinematográfica.No

entanto,nãosepodeafirmarqueháum“surto”deproduçãocinematográficaapartir

15Sãoalgunsexemplos:OsEstranguladoresdeFranciscoMarzullo(1908)–commaisde800exibiçõesnoRiodeJaneiro;OCrimedaMaladeFranciscoSerrador(1908);OCrimedosBanhadosdeFranciscoSantos(1914);eNoivadodeSangue,deAntonnioLeal(1909).Realizavam-setambémfilmesmusicais,queforamsucessodebilheteria,comoPazeamor(1910),umarevistamusicalquesatirizaogovernodeNiloPeçanha,comroteirodeJosédoPatrocínioedireçãodeAlbertoMoreira;OGuarany(1911),deSalvatoreLazzaro,reproduzindotrechosdaóperadeCarlosGomeseARepúblicaportuguesaouCincodeoutubro(1911),comroteirodeDomingosMargarinosedireçãodeAlbertoMoreira,todosproduzidosnoRiodeJaneiro.

45

de30,queacompanheacrescenteindustrializaçãodopaís,assimcomofoiocasonos

EstadosUnidoscomosfilmesdewestern,tradiçãocinematográficaqueseinicia

juntamentecomosurtoindustrialamericanodoiníciodoséculo.

SegundoBernardet,ahistóriadaproduçãocinematográficanoBrasilécaracterizada

porumasériede“surtos”ou“ciclos”enãopermitiamumaleitura“emlinhareta”,

oscilandoemváriospontosdopaís.Nosanosqueprecederamadécadade1930,

aconteceramalgunspequenos“surtos”deproduçõesregionais:Recife,de1924a

1931;Campinas,de1923a1926;eCataguases/MG,de1925a1929,deondesaiu

HumbertoMauro,primeirocineastabrasileiroarealizaroquesepodeconsiderarum

cinemadeautor.

HumbertoMauroiniciasuaproduçãoemCataguasesapartirde1925,realizando

cercadeumfilmeporanoouumacadadoisanos.Ocinema,grandeausenteda

SemanadeArteModernade1922,poderiatersidorepresentadoporHumberto

Mauro,queacompanhaasuarepercussãopormeiodarevistaVerde,emCataguases.

Hánaproduçãodocineastaostraçosdeumamodernidadecaracterizadapela

descobertadaspossibilidadesdaculturabrasileira,quemarcoutambémaSemanade

22.OqueapareceprecocementeemHumbertoMauro,comocasoisolado,éaquilo

quevaiconstituirosaspectosfundadoresdoCinemaNovo:umcinemabrasileiroque

faledoBrasile,principalmente,deummodobrasileirodefazercinema.Mauro

realizavaseusfilmesserevezandoemváriasfunções,fugindoaosesquemas

industriaisdeproduçãoedeestúdios:filmaoBrasilmineirodeCataguases–muito

emboradepoismude-separaoRio,onderealizaGangaBruta(1933),umdos

clássicosdesuaprodução.

HumbertoMauroinaugura,portanto,ocinemadeautornoBrasil.Suaobrafoi

marginalizada,epermaneceupraticamentedesconhecidapormuitotempo,tendosua

primeiratentativaderecuperaçãoapartirde1954,narealizaçãoda1aMostra

RetrospectivadoCinemaBrasileiroemSãoPaulo.GlauberRocha,emdeclaraçãoao

SuplementoDominicaldoJornalBrasil,vaiescreverque“nomomento,apolíticamais

eficienteéestudarMauroenesseprocessorepensarocinemabrasileiro,nãoem

fórmulasdeindústria,masemtermosdofilmecomoexpressãodohomem”.(COSTA,

1966,p.186)

46

OqueaparecedesignificativonahistóriadocinemaentreHumbertoMauroeo

CinemaNovoéacriaçãodaCompanhiaVeraCruz:tentativadeindustrializara

produçãocinematográficabrasileira.Criadaem1949peloitalianoFrancoZampari,

emSãoBernardodoCampo,suaprincipaldiretrizfoiignoraroqueexistiaatéentão

emtermosdecinemabrasileiro,ecomeçartudodenovo:produçãodefilmesem

massa,natentativadeelevarocinemaaumaindústriapotente.Foicriadanamesma

épocadoTeatroBrasileirodeComédiaedoMuseudeArteModernadeSãoPaulo:

trêsempreendimentosambiciososquebuscavamreagircontraumcomplexode

inferioridadecoletivo.Acompanhiamanteve-seativaduranteapenas4anos,

produzindo17longase02curtas,com35projetosnãorealizados.

Nessatentativadeindustrializaçãodaproduçãocinematográfica,outrascompanhias

foramcriadas,alémdaVeraCruz:Maristela,MultifilmseaAtlântidaCinematográfica.

Estaúltimaéresponsávelpelaeclosãodaschanchadas,gênerodecomédia

estereotipadaque,apostandonosucessodeídolosdorádio–comoOscaritoeGrande

Otelo–,incorporavalongassequênciasmusicaisaoseuformato,alcançandoum

grandesucessodepúblicoentreasdécadasde40einíciode60.Muitoscineastasque

maistardedespontaramcomoíconesdoCinemaNovoproduziramchanchadas–éo

casodeRobertoFarias(UmcandangonaBelacap,1961)edeNelsonPereirados

Santos(Bocadeouro,1963).

Emmeioatodaessamovimentação–tantonapolíticadeindustrializaçãonacional,

comonasprimeirastentativasdecinema–haviaumaforteconsciênciadeatrasodo

país,acompanhadadeumatentativadesairdele.SegundoIsmailXavier,

Aconsciênciaamenadoatraso,correlataàideiade“paísdofuturo”,tevevigênciaatéaSegundaGuerraeestavaassociadaaumnacionalismoufanistaeornamental,deeliteoupopular;aconsciênciacatastróficadoatraso,correlataàideiadepaíssubdesenvolvidoquepedemudançasnaestruturaeconômica,urgentesmedidaspráticasparasuperaramiséria,ganhouforçadepoisdaSegundaGuerraMundialesetornoumaisnítidaapartirdosanos50.(XAVIER,2001,p.26)

Eéapartirdadécadade50quepodemoscomeçaradesenharumpanoramadoque

defatoseconsolidoucomoumcinemamodernonoBrasil.Édesseperíodoquetrata

olivrodeBernardet,quejásuspeitavaepreconizavaoiníciodeumimportanteciclo

47

deafirmaçãodocinemanacional,nãolivredadesconfiançadequepoderiasetratar

deapenasmaisumdos“surtos”queacompanharamasuahistóriaatéentão.

Em1954,NelsonPereiradosSantosapresentaofilmeRio40o,marcanteporiniciaras

preocupaçõesdeumanovageraçãodecineastasbrasileiros,principalmentenoque

tangedoisaspectosfundamentais:seumododeproduçãoindependenteeoconteúdo

relacionadoàtemáticasocial.Cineastascirculamentrecineclubesecinematecasno

Rio,SãoPaulo,BeloHorizonte,SalvadorePortoAlegre,assistemediscutemfilmes

produzidosnaEuropadopós-guerra:Rossellini,DeSicaeVisconti,representantesdo

neorrealismoitaliano;Resnais,TruffauteGodard,anouvellevaguefrancesa.

Paralelamente,nasceumgrandemovimentodecrítica:essescineastaspassama

escreverconstantementeemsuplementosliteráriosecolunasjornalísticas.Maisdo

queumexercíciodeerudiçãodacrítica,essamovimentaçãoemtornodostextose

cineclubestraçavaasprimeiraspistasparaquearealizaçãocinematográfica

brasileirabuscasseseuspróprioscaminhoscomocinemamoderno.

Essescineastas,partedeumaclassemédiaintelectualizada–GlauberRocha,Leon

Hirszman,NelsonPereiradosSantos,apenasparacitaralguns–,procuravamesboçar

umaproblematizaçãodamodernidadebrasileira.Eraprecisoreagircontraaherança

colonialista,queimplicavaemumaculturafortementemarcadapelainfluência

estrangeirae,emcontraponto,olharparaaculturabrasileiraapartirdesuas

manifestaçõespróprias.Certaspráticasnacionais–ofutebol,areligião,asfestas

populares–queeramvistas,demodogeral,comopráticas“alienantes”,deveriamser

consideradasapartirdesuascondiçõesintrínsecas,questionandoumamodernização

quetendea,digamosassim,superá-las.Noentanto,nãosetratavadeumolharque

preconizavaumestadode“purezapré-industrial”emrelaçãoaoBrasilesuahistória,

massim,deseutilizardamemóriacomoumestadodemediação,afimdeconstituir

umnovoestadodeconsciênciamoderno.Porumoutrolado,noquetangeomodode

produçãocinematográfica,tratava-sedereagiraosprocessosindustriaisdeprodução

ebuscar,nocinemadeautor,ummododeexpressãopormeiodoqualsepudesse

manifestarasquestõespolíticasesociaisqueinquietavamessescineastas.

Adécadade60seconstituicomooperíodoondeaproduçãodoCinemaNovocomeça

arefletiressaspreocupaçõesetentativasdeafirmação.Emfilmesmarcadosporuma

48

forteinfluênciadoneorrealismoitalianoedanouvellevaguefrancesa,eraimportante

narraraexistênciadohomemedamulherbrasileirosemdiálogocomascondições

sociais,seusmitoseimaginários.Háumforteimpactoprovocadoporalguns

documentárioscomoAruanda(1960)doparaibanoLinduarteNoronha.EmAruanda,

umafugadeescravoséencenadaporcamponesesparaibanos,paradaídocumentar

umquilombonaSerradoTalhado.SegundoBernardet,“ofilmenãoselimitaa

mostrarflagrantesdeumavidaatrasada,maspretendeapresentarosmecanismos

dessavida”(BERNARDET,1978,p.26).Eainda,ofilmedeNoronha,emsua

simplicidade,apontavaparaumcaminhopormeiodoqualerapossívelrealizar

filmessemquesetivesseummercadoexibidorconsolidado,esemacessoagrandes

investimentosparaarealização:preconizaamáximadoCinemaNovoumacâmerana

mão,umaideianacabeça,cunhadamaistardeporGlauberRocha.Aindasobreofilme

deNoronha,Bernardetexplicitaquenãosetratavasomentede“filmaruma

realidade”,masdeassumirocinemacomoconstruçãonarrativaepoéticadiantedela:

Noronhanãoétímidodiantedarealidade:nãoreceiatorná-lamaiscompreensívelatravésdeumesquemaabstrato,ouevocarcomhomensatuaisumacontecimentodoséculopassado,oudistorcerumpoucooritmodeumamúsica.Emborapreocupadoemrealizarotrabalhodecunhosociológicoeantropológicoantesdemaisnada,Noronhafeztambémumfilmepoéticoemtornodalibertação,afugadosescravoseacriaçãodePalmares.(BERNARDET,1978,p.26)

Ocinemamodernobrasileirovaisedelinear,portanto,apartirdesseolharparao

Brasildemodoqueseuscontrastesvitaisdepaíssubdesenvolvido–etodasas

implicaçõesqueessacondiçãovaiteremsuasdinâmicassociais–estejam

evidenciados,edaíaimportânciadainfluênciadoneorrealismoitaliano.Mas

também,pelomenosnesseinício,setratavadeolharparaofuturodocinema(edo

país)comumforteotimismo,haviaumaconsciênciadequeolharparaopassado

faziapartedomovimentodedelinearumnovofuturo.

Aintençãoprincipalera,deperspectivashistóricas,discutirarealidadeemseusdiversosaspectos–social,políticoecultural.Demodomaisoumenosexplícito,osfilmesdoCinemaNovo,emparticularosprimeiroslongas-metragensdoseunúcleofundador,apresentamumpanoramaricoediversificadodahistóriabrasileira,desdeoperíodocolonialescravistadoséculoXVIIatéasmudançasdecomportamentonasgrandescidades,sobretudonasegundametadedadécadade1960.Alémdisso,osjovenscineastasacreditavamque,aorealizaremseusfilmes,tambémescreveriamumnovocapítulonahistóriadoBrasil.(CARVALHO,MARIADOSOCORRO,2012,p.291–292)

49

Odiscursodoscinemanovistasnoiníciodosanos60eraentãomarcadoporessaforte

ideiadeliberaçãonacional,discursoqueemergianocinemaemmeioaogoverno

populistadeJuscelinoKubitschek.SegundoIsmailXavier,haviaaíumacongruência

entreopensamentoculturaleotempohistóriconoqualacontecia.

Eficientenaescolhadeum“mododeprodução”factívelelúcidaemsuasopçõesestéticas,anovageraçãodesenhouoprojetopolíticodeumaculturaaudiovisualcríticaeconscientizadoraquandoonacional-populismopareciaaindaumaalternativaviávelparaconduzirasreformasdeestruturadopaísapoiadopelamilitânciasindicalepelospartidosdeesquerda.Nestemomento,falouavozdointelectualmilitantemaisdoqueadoprofissionaldecinema–foiomomentodequestionaromitodatécnicaedaburocraciadaproduçãoemnomedaliberdadedecriaçãoedomergulhonaatualidade.(XAVIER,2001,p.27–28)

OqueacontecenesseperíodoinicialdoCinemaNovo,naspalavrasdocrítico,éuma

descobertadoBrasil,tendoemvistaqueocinemacomeçaaolharparalugarese

momentoshistóricospouquíssimoregistradosounarrados.JáapartirdoGolpede

1964,oCinemaNovotomaumnovocaminho:filmestornam-seoposição,resistência

ecríticaaosistemavigenteetambémaopopulismoanterioraogolpe.

50

1.4. Cinema de cavação

OCinemaNovosurge,portanto,comomarcodocinemamodernobrasileiro,aliado

aosmovimentosmodernistasnaarte,oquepodedaraimpressãodequeeleéo

espelhodenossamodernidade.Estefatoéinquestionavelmenteverdadeiro.Mashá

traçosdanossamodernidade–sobretudo,denossamodernização–quesóumtipo

decinemapodemostrar,principalmentenesseperíodocompreendidoentreadécada

de30eaconstruçãodeBrasília:ocinemadecavação.

Diantedadificuldadeemencontrarmercadoexibidorparafilmesnacionais,essetipo

deproduçãoinicia-seem1913:cineastaseramcontratadospararealizarbreves

documentáriosqueenalteciamrealizaçõesdefazendeiros,industriaisepolíticos.O

nomecavaçãofoialudidopejorativamenteaooportunismodessaprodução.Se

iniciavaaíatradiçãodoscinejornais,cujaproduçãoservirá,durantemuitasdécadas,

comosustentoaoscineastas,que,inclusive,reaplicavamessedinheiroemsuas

produçõesindependentes.OitalianoGilbertoRossi,quechegaaoBrasilem1911,foi

oprecursordessacinematografiaemSãoPaulo,eaeleseseguiramcinegrafistas

comoAntônioCampos,JoãoStamato,ArturoCarrari;noRio,osBotelho,Leal,Paulo

Benedetti,entreoutros.Essetipodeproduçãovaisemanterativaatéadécadade

1980,eapesardeseucarátercomercialeoportunista,vãotransmitirnatelao

espíritodeprogressodopaísemperíodossignificativosdesuamodernização,do

pontodevistadepolíticoseempresários.Tomaimpulsoespecialapartirdoprimeiro

governodeGetúlioVargas,queseutilizoumassivamentedessetipodeprodução

comoveículodepropaganda.

Naturaisecinejornaisabordamassuntoslocais,ofutebol,ocarnaval,asquermesses,amelhoriadasrodovias,asinaugurações,asvantagensdeumafazendaoudealgumafábricaquandoosdonosqueremvalorizarseunome,umafigurapolítica,algunsgrandesacontecimentospolíticos,arevoluçãode1924,ede1930,sempreapresentadosdopontodevistadequemficanopoder(senãoapolíticaouoEstadoMaiornãoautorizamaexibição)(BERNARDET,1979,p.24).

Oscinejornaiseramexibidosemsessõesdecinemaantecedendoaosfilmesdeficção,

masnãoeradomercadoexibidorqueessescineastastiravamseusustento–“os

espectadorespagamparaassistiraofilmedeficção,oscurtasvemdelambuja”.

51

Subsídios,estesprodutorestinhaméquetirardequemtemdinheiro:pessoasricasquequerempromoverseunome,empreendimentos,produtos,atospolíticosemundanose,naturalmente,fazerfilmesdeagradoaospatrocinadores.Aproduçãocinematográficabrasileiraassenta-senumdocumentárioexclusivamenteligadoaumaelitemundana,financeira,política,militar,eclesiástica,dequeoscineastassãodependentes.(BERNARDET,1979,p.25)

Oscineastascavadoresforampormuitotempoconsideradoscomoumachagano

cinemabrasileiropelamaioriadeseushistoriadores.Seusfilmeseramquaseque

negadoscomocinema,porquecinemamesmoeraocinemadeficção.Noentanto,a

realidademaissólidadeprodução–emquantidade–eraadessetipode

documentário,aoqualPauloEmíliosereferiucomodos“rituaisdepoderedoberço

esplêndido”.Seutriunfoestárelacionadoàfacilidadedeprodução–existequem

pague,existequemconsuma.

Maisrecentemente,aobradessescineastastemsidorecuperadacomodocumento

históricoemdiversaspesquisas.OfrancêsJeanManzon,queiniciasuaproduçãona

décadade1950,foibastanteestudadocomoimportantecineastadocinejornalismo–

suaobracontacommaisde900documentários.Sobreocineasta,Bernardet

comenta:

Nocinema,esseespírito16éencarnadoporJeanManzon,cujasfitassãofinanciadasporgrandesfirmasagrícolaseprincipalmenteindustriais;ostemasreduzem-seadois:quantidadeequalidade.Fala-seemtoneladasdecanaouaçoproduzidasporminutoouporhoraoupordia(nãotemimportância,poisopúbliconãotempontodereferência);paraconstruirtalobjeto,foiusadotantocimentoquantoserianecessárioparaconstruirumedifíciodeduzentosandares;fala-sedos“admiráveistrabalhadoreseadmiráveistécnicos”.Aissoadiciona-seumpoucodepoesiaemuitascores:oscolheiteirosdecaféexibemchapéusmulticolores;opoliestirenoincolortorna-severmelhonasmãosdeManzon;asplateiasficamembevecidasdiantedasorquídeasepapagaiosencontradosemumafavelasobreoAmazonas(...).Comonãosentir-seforteesegurodesidepoisdisso?(BERNARDET,1978,p.14–15)

16Dedesenvolvimentoeprogresso.

52

1.5. O cinema no canteiro de obras de Brasíl ia

Brasília,acidadequenascefilmada.Essafraseéreproduzidaemtodapublicaçãoque

tratadosprimórdiosdocinemaproduzidonacapital.Aparentemente,osprimeiros

registrosproduzidosnolocaldeimplantaçãodacidadedatamde1956.Oprimeiro

deles,datadode2deoutubrodesteano,registraaprimeiravisitadeJuscelino

Kubitschekaolocal,efazpartedocinejornalinformativono44/56,daAgência

Nacional.Osegundo–queseiniciacomaimagemdeumaplacaondeestáescrito

Brasília–27/10/56–registraavisitadeBernardoSayãoaomesmosítio,foicaptado

portécnicosdoConsórciodeEmpresasdeRadiodifusãodeNotíciasdoEstadode

Goiás(Cerne),ecompõeoacervodoMuseudaImagemedoSomdeGoiás.

AssimcomoahistóriadeBrasíliacomeçouasercontadaenquantoaindasegestavaa

capital,deformaavalidaroprogramapolíticodeJuscelinoKubitschek,tambémas

imagenseramproduzidascomoauxiliaresnessesentido.Juscelinodesembarcouno

PlanaltoCentralacompanhadodecineastas,cujafunçãoeradocumentaraconstrução

dacidade,produzindofilmesqueabordassemaspectospositivosdaempreitada:a

rapidezdasobras,aeuforiadoscandangosquechegavam,ainfraestruturaqueo

canteirooferecia,oarrojodaarquiteturamoderna,etc.Essasimagens,encomendadas

pelogovernodeJuscelino,resultavamemcinejornaisquepercorriamopaíseo

mundo,levandoaimagemdeBrasíliaedeseusucessocomopropulsorado

desenvolvimentodopaís.EntreessescineastasestavamJeanManzon,Carlos

Niemeyer(primodoarquiteto),PersinePerrin,HerbertRichers,IsaacRosemberg,

JoséeSálvioSilva,DinoCazzola,entreoutros.

Diantedapoucafédealgunsdequeaconstruçãodacidadedefatoseefetivaria,era

precisoalimentarumimagináriopositivoemtornodaconstruçãoqueconquistassea

populaçãoaseufavor.Emvezdeepifania,alimentarapopulaçãocomimagensque

mostrassem,demaneiraconcreta,oavançodasobras,obem-estareafelicidade

daquelesqueláestavam,umaimagemquevalidasseessefuturoalmejadocomo

possível,nãocomoalgoaconquistar,mascomoalgoqueseefetivanopresente.

ADivisãodeDivulgaçãodaNovacap,ligadadiretamenteaoengenheiroIsraelPinheiro(umdosdiretoresdaCompanhiaefuturogovernadordoDistritoFederal),empreendeuumapolíticaagressivaemtodoopaís.Havia

53

cincocaminhõespreparadosparadistribuirumacoleçãode15volumessobreafuturacapitalemcidadesestratégicasdetodasasregiõesdoBrasil.Nosnúcleosurbanosmaiores,seguiamigualmentefilmesem35mm,nospequenos,em16mm.(MORICONI,2012,p.46)

Portanto,ocinemaqueseproduziuduranteoperíododeconstruçãodacidadefoi

constituído,majoritariamente,pelomaterialproduzidoporessescineastas,

fortementemarcadopelapropagandagovernamental.Emmenornúmero,as

produçõesindependentestambémexistiram.Onorte-americanoEugeneFeldman–

designergráficodeprofissão,fotógrafoecinegrafistaamador–produziuumvasto

materialduranteasuapermanêncianocanteirodeobrasem1959.Suasimagens

foramproduzidasaconvitedeAloísioMagalhães,quedirigiaoCentroNacionalde

ReferênciaCultural(CNRC),eemmuitocontrastamcomotompropagandísticodos

cinejornais.OresponsávelpeladivulgaçãodessematerialfoiocineastaVladimir

Carvalho,queem1979realizouocurtaBrasília,segundoFeldman.EssaBrasília

mostradaporFeldman,emcores,eraaBrasíliadosoperáriosqueaconstruíram:a

cidadeéfundodapaisagemhumana,enãoocontrário.

MarcelCamus,cineastafrancêsquejáhaviafilmadoOrfeuNegro(1959)noRiode

Janeiro,filmatambémem1959aúltimasequência17deseufilmeOsbandeirantesem

Brasília.Ofilmedeficçãonarraatrajetóriadeumcaçadordediamantesfrancês,que

percorredesdeaflorestaamazônicaatéBrasília,ondesedáodesfechofinaldesua

epopeia.Onegativodofilmeencontra-senaFrança,inacessívelaopúblico.Segundoo

críticoSérgioMoriconi,queteveacessoaofilme,

Camusassumeinvoluntariamenteosloganafirmativode“50anosemcinco”deJK.Brasíliacomoaconsolidação–oumaterializaçãosimbólica–deumnovomundo.ÉnasequênciadaBahiadeOsbandeirantes,adocasamentodeBeija-Flor,queessasideiassãocolocadasdeformamuitodireta.UmdosamigosdonoivoexortatodosairemaBrasília:“Vamosparaláqueestáofuturo.Vamosparaláfazermaçanetas,acidadevaiprecisardemuitasmaçanetasdeporta”.Ofinal,irrealisticamenteglorificadordosambanaEsplanada,dispensacomentários.(MORICONI,2012,p.49)

ComexceçãodeCacáDiegues,querealizaem1960ofilmeBrasília(perdido),os

cinemanovistasvãoregistrarBrasíliaapenasapósasuainauguração.NelsonPereira

dosSantos,entãoprofessordocursodecinemadaUnB,realizaem1966,juntocom

seusalunos,FalaBrasília;JoaquimPedrodeAndraderealizaem1967Brasília,

17Umasequênciacorrespondeaoconjuntodeplanosnecessáriosparacompletarumaaçãodramática.

54

contradiçõesdeumacidadenova;GlauberRocha,em1980realizaoalegóricoAidade

daTerra.Noentanto,descobertorecentemente,ofilmedeGersonTavares–Brasília,

capitaldoséculo(1959)–passaaconstituirumexemplarúnicodessaprodução

duranteoperíododeconstruçãodacidade.Ocineasta,apesardenãosercomumente

referenciadocomoumcinemanovista,realizoufilmesquedialogavamfortemente

comatemáticaeomododeproduçãodessescineastas.Essalacunadereferênciasse

deupelofatodesuaobrater-semantidoperdidapormuitotempoemacervos

pessoaisedecinematecas.Omesmocineastavairealizartambém,em1967,olonga

deficçãoAmoredesamor,que,apóssuarestauração,passaaserconsideradoo

primeirolonga-metragemdeficçãointeiramenteambientadoemBrasília.

Operíododaconstruçãocontinuaasertemadefilmesmesmoapósainauguraçãoda

cidade.OjácitadoBrasília,segundoFeldman(1979)deVladimirCarvalhoéprecursor

nessesentido:umabuscadememóriasdocinemanaconstruçãoquefugissemdo

discursooficialescoimpregnadonoscinejornais.Omesmocineastarealizaaolongo

de19anosolonga-metragemdocumentárioConterrâneosVelhosdeGuerra(1990),

umdosmaisimportantesdocumentossobreostrabalhadoresdaconstruçãode

Brasília.Girandoemtornodedepoimentosdessestrabalhadores,Vladimir,segundo

suasprópriaspalavras,

...filmavaegravava,principalmente,nascidades-satélites,comoobjetivodeconfigurarumperfildaquelesremanescentesdaraçaanônimadospedreiros,investigandoquetipodeconsciênciaeleshaviamcriado,paralelaàdesmitificaçãosocialepolíticadaGrandeObra.Seguindoatrajetóriadessesconterrâneosvelhosdeguerra,convenci-mequetinhao“gancho”,ofiocondutorcomqueacomodarosdadosdahistóriadaprópriacidade,inclusivecomocaixaderessonânciadetodavidabrasileira.Istoé,poderiaalternarashistóriasdevidassemfuturonasurbesdebarraco,comfatosrecentesdaHistóriapolítica,socialeeconômicadoBrasil.Umatentativademesclarnomesmoquadrooshojechamadosde“paísreal”e“paísformal”.(CARVALHO,VLADIMIR,2003,p.173)

Em2012,AndréaPrateseCleissonVidalconsolidamoresgatedaobradeDino

CazollanofilmeDinoCazzola–umafilmografiadeBrasília.OitalianoDinoCazzola

chegouaBrasíliaem1959,substituindoosirmãosJoséeSálvioSilva,pararegistrara

inauguraçãodacidadeparaaTVTupi.Suasimagensconstituemumregistrodos

últimosanosdaconstrução,masprincipalmentedosprimeirosanosdevidada

capitalpósinauguração.

55

OutrosfilmesbuscaramtratardahistóriadecriaçãodeBrasília,abordandoos

aspectosdesuainvenção,masnãodiretamentetratandodocanteirodeobras,tais

como:Brasília,planejamentourbano,deFernandoCony(1964);Brasília:umroteiro

deAlbertoCavalcanti,deAntonioCarlosFontoura(1982);Brasília:aúltimautopiade

PedroAnísio,GeraldoMoraes,VladimirCarvalho,PedroJorgedeCastro,Moacirde

OliveiraeRobertoPires(1989);AinvençãodeBrasília,deRenatoBarbieri(2001);O

risco–LucioCostaeautopiamoderna,deGeraldoMottaFilho(2002);OscarNiemeyer

–avidaéumsopro,deFabianoMaciel(2008).

Nessabuscapelamemóriadaconstrução,háapenasdoisfilmesquetratam

diretamentedapresençadasmulheresnesseperíodo:Asagadascandangasinvisíveis

(2008),deDeniseCaputo;ePoeiraeBatomnoPlanaltoCentral(2010)deTânia

FonteneleeTâniaQuaresma.Osdoisfilmesbuscamemdepoimentos,reconstruira

históriadapresençadessasmulheresduranteoperíododaconstrução.Oprimeiro

trataexclusivamentedasprostitutasquevieramàBrasília;osegundo,buscafazer

umaapanhadogeraldasdiversaspersonagenspresentesnocanteirodeobras.

***

Dadoessepanoramageralsobreocinemaproduzidoduranteaconstrução,cabe

agoraapresentarosfilmesescolhidosparaessetrabalho.Tendoemvistaqueabusca

aquiépelarelaçãoentrecorpofemininoemodernidademostradanosfilmes,optei

porestabeleceroseguintecritério:primeiro,procurarnosdoisprincipaismodosde

cinemamodernorealizadosnoBrasilduranteaconstrução–nocinemadecavação,e

noCinemaNovo–comoeramostradoessecorpofemininoecomoestesearticula

comasintençõeseevidênciasnarrativasdeambos;segundo,buscarnosdoisúnicos

exemplaresquetratamdiretamentedamemóriadocorpofemininodurantea

construção,aspossibilidadesdereconstituiçãodessecorpo.

Portanto,ocinejornalAsprimeirasimagensdeBrasília,deJeanManzon(1957)surge

comoexemplardocinemadecavação;Brasília,capitaldoséculo,deGersonTavares

(1959),comoexemplardoCinemaNovo;PoeiraeBatomnoPlanaltoCentral(2010),

deTâniaFonteneleeTâniaQuaresma,eAsagadascandangasinvisíveis(2008),de

DeniseCaputo,comodocumentáriosderesgatedamemóriafeminina.Caberessaltar

56

queaordememqueosfilmesapareceminseridosnessetrabalhonãopriorizaa

ordemcronológicadarealizaçãodosmesmos,massimbuscacumpriratentativade

estabelecerumalinhanarrativaentreeles–acercadamodernidadeedocorpo

feminino.Háumaquebranecessária:ofilmedeDeniseCaputoapareceporúltimo,

mesmotendosidorealizadoantesdePoeiraeBatom.Essaquebrasejustificapelo

fatodePoeiraeBatomserumfilmequeambicionaoferecerumpanoramaamploda

presençafemininanaconstruçãodeBrasília,ejáofilmedeCaputoprocuraafunilar

essaperspectivaemumsegmentoespecífico–odasprostitutas.Aseguir,apresento

osfilmeseseusrespectivoscontextosdeprodução.

As primeiras imagens de Brasília (1957), de Jean Manzon

JeanManzon(1915-1990),fotógrafofrancêsradicadonoBrasilapartirde1940,teve

seusprimeirostrabalhosparaocinemarealizadosnoâmbitodoDepartamentode

ImprensaePropaganda(DIP)duranteaEraVargas.Entre1943e1951,emparceria

comojornalistaDavidNasser,realizoudiversasreportagensparaOCruzeiro,período

degrandesucessodarevista.Em1952montousuaprodutoracinematográfica–a

JeanManzonFilmsS.A.–,eapartirdaídirigiueproduziumaisde900documentários,

muitosdelesaserviçodoInstitutodePesquisaseEstudosSociais(IPES),umdos

órgãosarticuladoresdoGolpeMilitarde1964.Suaproduçãoaudiovisualesteve

fortementemarcadapelapropagandagovernamental.

JeanManzonfoiumdoscineastasconvidadospelogovernoJKparaqueviesseà

Brasíliadocumentaraconstruçãodanovacapital.JuscelinoeJeanManzontinham

umarelaçãoanterior,ocineastajáhaviarealizadoodocumentário/cinejornalO

mundoaclamaoBrasilem1956,noqualdocumentaumaviagemdeJuscelinopelo

exterioremseuperíododecampanha.Ofilmefaziapartedeumaestratégiapolítica,

segundoaqualcontaopróprioJuscelino,

...osbrasileirossótomariamconhecimentodoqueocorriacomigoatravésdaimprensa.Seriaumamaneiradeestarpresentenamemóriadopovo,nãoemligaçãopessoaledireta,masdeumamaneirasimbólica,porintermédiodeumaviagem.(apudBIZELLO,2008,p.94)

ManzonrealizoudiversosdocumentáriossobreBrasíliaeasobrasquecircundarama

implantaçãodacapital,entreeles:AsprimeirasimagensdeBrasília(1957),O

57

Bandeirante(1957),NoCinturãoVerdedeBrasília(1958),Amazôniavaiaoencontro

deBrasília(1958)eColunaNorte(1960).Ostrêsúltimostratavamdasgrandesobras

deestradasqueproveriamoacessoàcapital,principalmenteaBelém/Brasília.Os

doisprimeirospossuemváriosregistrosemcomum,etratamdiretamenteda

construçãodacidade.Oprimeiro–queéobjetodessapesquisa–destaca-sepor

constituirumdocumentáriocujaintençãonarrativaestáexplícitaemseutítulo:

trazeràpopulaçãoasprimeirasimagensdeBrasília.

Nãoécertosedevidosomenteaotítulo,masocinejornaldeJeanManzoné

constantementereferenciadoemestudosquetratamdaproduçãofilmográficada

construçãodeBrasíliacomosendooprimeiroregistrodessemomentohistórico.No

entanto,comojáfoiditoanteriormente,háregistrosemvídeodolocaldeconstrução

dacapitalrealizadosaindaem1956.Outroscinejornaisforamrealizadostambémem

1957,comoono01/58queregistraainauguraçãodaprimeiraescoladeBrasília.No

entanto,ofilmedeJeanManzonconsagrou-secomodetentordessepioneirismo.Sua

narrativapercorrediversosaspectosdainvençãoeconstruçãodeBrasília,reforçando

oseucaráterepopeico,eteveumasignificanteeficiênciaenquantopropaganda

governamentalnaépocadesuarealização.Alémdasexibiçõesconvencionaisdos

cinejornais–precedendolongasmetragensnassalasdecinema–háindíciosdequeo

filmefoitambémexibidoemoutrasocasiõesespeciais.AnaLuciaGomes,emseu

artigoBrasílianosfilmesdaNovacap,comentaqueaRevistaBrasíliade20deagosto

de1958apresentaaseguintereferênciaaofilmedeManzon:

FilmesemLisboa

Perantenumerosaassistência,figurasderelevodasociedadeportuguesaedogoverno,oEscritórioComercialdoBrasilnestacapitalexibiunosalãodeprojeçãodaresidênciadoindustrialJoãoRochadosSantosofilme:“AsprimeirasimagensdeBrasília”(RevistaBrasília,1958:16,apudGOMES,2013,p.51)

DadaatrajetóriadaproduçãocinematográficadeJeanManzon,marcadapor

documentárioscujoenlacecomapropagandagovernamentaleraevidente,As

primeirasimagensdeBrasíliaconstitui-seemumdocumentodoquerepresentou,

duranteaépocadaconstrução,aconstanteproduçãoeexibiçãodeimagensacercada

execuçãodameta-síntesedogovernoJK.Essasimagenstinhamoobjetivode

58

demonstrarque,aocontráriodadesconfiançademuitos,Brasíliaestavaacontecendo,

oprogressodoBrasilandavaatodovapor.

AoprocurarostraçosdocorpofemininonofilmedeJeanManzon,seráimportante

observarcomoaimagemdessecorposeinserianessediscursoprogressista.Eledeve

oferecerumaboaintroduçãodequalseriaolugardamulhernodiscursoda

modernizaçãoqueapareceimpressonofilme.

Brasília, capital do século (1959), de Gerson Tavares

Até2015nãohaviammençõesaocurta-metragemBrasília,capitaldoséculo,de

GersonTavares,comopartedafilmografiaacercadaconstruçãodeBrasília.Ascópias

dofilme,assimcomodetodaaproduçãodocineasta,haviamficadoesquecidasem

acervosdaCinematecadoMuseudeArteModerna(MAM),doCentroTécnicodo

Audiovisual(CTAv),daCinematecaBrasileira(CB)edoacervopessoaldeRuyPereira

daSilva(ex-sóciodeGerson).

Emmarçode2003,logoapósumperíododelongacrise,aCinematecadoMAM

promoveuamostraRaroseEsquecidos,comoobjetivodetrazerapúblicofilmesde

seuacervo,cujascópiasempilhavamasestantesehámuitoestavamesquecidas.

Dentreeles,ofilmeAntes,oVerão(1968),deGersonTavares,chamouaatençãodo

professordoDepartamentodeCinemaeVídeodaUniversidadeFederalFluminense,

RafaeldeLunaFreire.GersonTavarestambémprocurouaCinematecaapóstomar

conhecimentodamostra,surpresoporaindaexistiremcópiasdeseusfilmes.Ele

mesmohaviasedesfeitodetodaselasquandoresolveuabandonarocinema,na

décadade70.

DesseencontrosurgiuoprojetoResgatedaobracinematográficadeGersonTavares,

encabeçadaporRafaeldeLunaFreire.Oprojeto,quefoiconcluídoem2015,

restauroucópiasem35e16mmdedoislongas-metragens–Antes,overão(1968)e

Amoredesamor(1966)–esetecurtas-metragens–APetrobráspreparaseupessoal

técnico(1958),Ogranderio(1959),Brasília,capitaldoséculo(1959),ArtenoBrasil

dehoje(1959),Gafieira(1972),Ensinoartístico(1973)eSaveiros(1977).Alémdisso,

todoomaterialfoicompiladoemumDVD,queincluitambémocurta-metragem

59

Reencontrocomocinema(2014),deRafaeldeLunaFreire,noqualdocumentao

processoderecuperaçãodosfilmeseentrevistaodiretor.

GersonTavares,naturaldeAlcântara/RJ,iniciouseusestudosempinturanaEscola

NacionaldeBelasArtesem1947.Em1953,pormeiodeumabolsadaUniversidade

doBrasil,foiestudarpinturanaEuropa,tendovividoemLisboa,MadrieParis.Seu

interessepelocinemasurgiuapartirdeseuencontrocomobrasileiroSergio

Montagna,funcionáriodeumarepartiçãopúblicaecinéfilo,quecomeçoualevar

GersonaoscineclubesdeParis.Apartirdaí,Gersondecidiuinvestirnessenovo

campo,matriculando-senoCentroSperimentalediCinematografia,emRoma,onde

cursoudireçãoentre1956e1957.RetornouaoBrasilem1958,trazendoconsigo

umaCaméflex35mmfrancesa,e,associando-seaSérgioMontagnaeJoaquimPedro

deAndrade,formouaSagaFilmes.Passamentãoarealizardocumentários

institucionais,jingles,comerciaisparatelevisão,alémdealugarseusequipamentos

paraoutrasproduções.

Em1958,Gersonrecebeumapropostadeumcolegaitaliano,ofotógrafoGianpaolo

Santini,comoqualjáhaviatrabalhadonocurtaAPetrobráspreparaseupessoal

técnico:realizarumasériedetrêsfilmesqueretratassemoBrasildopassado,do

presenteedofuturo.Osfilmesdestinavam-seprincipalmenteaopúblico

internacional,tomandocomopremissaointeressequeopaísdespertavanoexterior.

Desseprojeto,realizadojuntoàprodutoraProcinedeRuyPereiradaSilva,foram

produzidos,em1959,Ogranderio(oBrasildopassado,retratandoumaviagempelo

RioSãoFrancisco),ArtenoBrasildehoje(oBrasildopresente,mostrandoasobrasde

artistasbrasileiroscontemporâneos,comoOscarNiemeyer,CândidoPortinarieBurle

Marx)eBrasília,capitaldoséculo(oBrasildofuturo,documentandoaconstruçãoda

novacapital).(FREIRE,2016,p.9)

EmentrevistaconcedidaaRafaeldeLunaFreirenodocumentárioReencontrocomo

cinema,Gersonafirmaqueseusfilmesnuncaforamfeitossobencomenda

governamental,ocineastasempretrabalhoucomproduçõesindependentes.Apesar

daboarepercussãodatrilogia–OgranderiofoipremiadocomomelhorfilmenoI

CertamenInternacionaldeCineDocumentalIbero-AmericanoyFilipinodeBilbao,

Espanha–Gersonencontroudificuldadesemsemanterfinanceiramentecoma

60

realizaçãodeseusfilmes,esuaprodutoramantinha-seprincipalmentecomarenda

provenientedalocaçãodeequipamentos.(FREIRE,2014)Nesseperíodo,amaior

partedosdocumentaristassobreviviamapartirdeparceriasfirmadascomogoverno,

quetinhamuitointeressenaproduçãodefilmesquepropagassemsuasrealizações.

Noentanto,ocurtadeGersonTavaresOgranderio,chamouaatençãodeGlauber

Rocha,queocoloca,juntamentecomoutrasproduçõescontemporâneas–comoO

cangaceiro(1953),deLimaBarreto,Rio40graus(1955),deNelsonPereirados

SantoseNagargantadoDiabo(1960),deWalterHugoKhouri–numanovasafrade

documentáriosquepassamasurgirnaproduçãonacional,quevoltavaseusolhares

paraoselvagemBrasil.(FREIRE,2016,p.13)

(...)essestítulosrecentesrepresentariamnavisãodealgunscríticosecineastasumarenovaçãodofilmedocumentáriobrasileiro,marcadosporumolharcríticoparaarealidadebrasileiraquesediferenciariadavisãotradicionaleoficialescadedocumentaristascomoPrimoCarbonari,IsaacRozembergouJeanManzon,cujaproduçãoemgrandeparteaindaseaproximavadoquePauloEmíliocaracterizou,emrelaçãoàproduçãodocumentariabrasileirasilenciosa,derituaisdopodereberçoesplêndido.(FREIRE,2016,p.14)

Apósaconclusãodosdocumentários,RuyPereiradaSilvaconseguiuumencontro

comoentãopresidenteJuscelinoKubitschekparaaexibiçãodatrilogia,que

aconteceuem29desetembrode1959,noPaláciodasLaranjeiras.Gersoncontaque,

apósaexibição,JuscelinocomentaraqueocurtaBrasíliacapitaldoséculoerao

primeirofilmesobreBrasíliadequeeletinhaconhecimentonoqualelemesmonão

aparecia.Ocomentárioésintomáticodaproduçãoqueerarealizadanoperíodo,que,

assimcomoofilmedeJeanManzon–AsprimeirasimagensdeBrasília–eram

realizadossobencomendagovernamentaletraziamJuscelinocomoprotagonista.

Concluídoemumperíodopróximoàinauguraçãodacidade,ofilmedeGerson

Tavares,apesarderecorreraalgunsrecursoscomunsaoscinejornaisdaépoca–o

didatismodanarraçãoemvoiceover18,porexemplo–,éumdocumentárioque

inevitavelmentemostraasobrasdanovacapital,masquetemcomofocoprincipalas

pessoasenvolvidasnaconstruçãodacidade.Dequesetenhaconhecimento,éoúnico

filmeproduzidoefinalizadocontemporaneamenteàconstrução,queassumeesse

enfoque.Dessaforma,busca-seaquiumoutroolharacercadocorpofeminino,que,ao

18Termotécnicoquedesignaavozdeumnarradornãopresenteemcena.

61

estabelecerrelaçõescomaspessoas,edistanciando-sedodiscursooficialesco,tende

aapontarparaamodernidadebrasileiravistaapartirdesuascontradições

intrínsecas.

Poeira e Batom no Planalto Central (2010), de Tânia Fontenele e Tânia Quaresma

Olonga-metragemPoeiraeBatomnoPlanaltoCentralfoirealizadonocontextodas

comemoraçõesdos50anosdeBrasília.Éumfilmedehomenagem,quebusca

resgatar,pormeiodeentrevistasedematerialdearquivo–principalmente

fotografias–amemóriafemininadaconstruçãodeBrasília.Oprojeto–queincluiu

tambémumaexposiçãoeapublicaçãodeumlivro–foicoordenadopelaeconomista

TâniaFontenele,econtoucomacolaboraçãodapesquisadoraMônicaFerreiraeda

cineastaTâniaQuaresma.TâniaFonteneleébrasiliense,filhadepaiscearensesque

vieramparaBrasílianaépocadesuaconstrução,seupaiem1957esuamãeem60.

MariaInêsFonteneleMourão,suamãe–queéumadasentrevistadasno

documentário–,foiaprimeiramulheraassumirapresidênciadaAssociação

ComercialdoDistritoFederal(ACDF)etambémfundadoradaAssociaçãoProfissional

deMulheresdeNegóciosnoDistritoFederal.

CommestradoemPsicologiaSocial,doTrabalhoedasOrganizaçõespelaUnB,Tânia

FonteneledesenvolveupesquisademestradointituladaPodereLiderançade

MulheresGerentesnoTopodeCarreiranaAdministraçãoPública.Suatrajetóriaé

marcadapeloenvolvimentoematividadeseinstituiçõesrelacionadasàquestãode

gênero,principalmentenoquetangeàrelaçãodamulhercomomercadodetrabalho.

FoifundadoradoInstitutodePesquisaAplicadadaMulher(IPAM).

Oprojetoteveinícioem2009,apartirdeumapesquisaemjornaiserevistasda

décadade1960,iniciadanaBibliotecaDemonstrativadoDistritoFederal.Foram

consultadostambémosacervosdoMuseuVivodaMemóriaCandanga,oClubedos

PioneirosdeBrasíliaeoArquivoPúblicodoDistritoFederal.Percebendoasraras

referênciasàsmulheres,oprojetofoiinicialmentedenominadoMulheresinvisíveisna

construçãodeBrasília.

62

Foramescolhidasparaapesquisaumtotalde50mulheres,deacordocomoseguinte

critério:elasdeveriamterchegadoaBrasíliaentre1956e60,epermanecidona

cidadeporpelomenos20anos,procurandomanterumadiversidadedeprofissões

entreelas.Dentreessasmulheres,4delas,jáfalecidas,sãohomenageadascom

trechosdeentrevistasconcedidasàsérieOsPioneiros19.TâniaFontenelecontaque,

aoiniciarocontatocomessasmulheres,percebeuumacertaresistênciaporpartedas

entrevistadasemseautodenominareminvisíveis,comodiziaotítulodoprojeto.Dessa

forma,alterouotítuloparaPoeiraeBatomnoPlanaltoCentral–50mulheresna

construçãodeBrasília.

Oprojeto,financiadopelaPetrobrásepeloGovernoFederal,tinhacomoobjetivo

principalhomenagearessasmulheresnoaniversáriode50anosdacidade.É

simbólicoqueonúmerodemulherestambémseja50.“Cinquentaanosdepoisdo

iníciodaconstruçãodanovacapital,percebemosqueseriaomomentomaisque

oportunoparadarvisibilidadeaessascorajosasmulheresehomenageá-las.”

(MOURÃO;OLIVEIRA,2010,p.5)

MeuprimeirocontatocomoprojetofoiemumaexposiçãonoCentroCulturaldos

CorreiosemBrasília,noanode2013.Alémdefotografias,aexposiçãoprocurava

recomporcenáriosdoperíodoeemumatela,odocumentárioeraexibidoemlooping.

Defato,oformatododocumentáriopermitequesejaapreendidotambémassim:é

estruturadoemtornodasentrevistascomas50mulheres,alternadoscomimagens

que,namontagem,estabelecemrelaçãodiretacomoassuntotratadonoáudiodas

entrevistas.Dequalquerforma,háumalinhanarrativaadotadatantoparao

documentário,comoparaolivroeparaaexposição.Osfatoshistóricosconsiderados

comofundadoresdanovacapitalsãocontadosecomentadosporessasmulheres,em

sequênciacronológica.Emmeioaessesaspectos,hárelatosdocotidianoedavidana

CidadeLivreenosacampamentos,relaçõesdetrabalho,relatossobreachegadaà

Brasília,etc.

Levandoemcontaque,paraessetrabalho,sãomaisimportantesosaspectos

levantadosporessasmulheresquetornempossívelaferirasrelaçõescotidianase

19Sériede1983,compostapor20episódiosedirigidaporTâniaQuaresma.

63

materiaisqueestabeleciamcomoespaçodeconstruçãodacidade,opteiporfazerum

relatoacercadofilmedemaneiraaressaltarosdepoimentosquetangenciemtais

aspectos.Caberessaltarqueofatodequeodocumentárioassumaaposiçãodecontar

ahistóriadasmulheresapartirdareproduçãodahistóriaoficialtambémconstitui

umaspectodeanáliseimportanteparaposicioná-loemrelaçãoàabordagemdo

corpofeminino.

A saga das candangas invisíveis (2008), de Denise Caputo

Ocurta-metragemdocumentárioAsagadasCandangasInvisíveis,realizadopela

jornalistaecineastaDeniseCaputo,nasceucomoumprojetodadisciplinade

DocumentáriodaFaculdadedeComunicação/UnB,ministradapeloprofessorMarcos

Mendes.Suaproduçãofoiiniciadaem2006econcluídaem2008.Ementrevistaao

programaLanterninha,daUnBTV(2015),adiretoracontaqueoprojetonasceua

partirdeseuinteresseemduastemáticasprincipais:opapeldasmulheresna

sociedadeenahistória;eaquestãodamemóriaedahistóriaoral.Dessaforma,

iniciouumapesquisaacercadaconstruçãodeBrasília,e,intrigadapelaescassezde

relatosacercadopapeldasmulheresnesseepisódiohistórico,iniciouumabusca

sobreaatuaçãodasmulheres,chegandoassimaoqueeladenominade“umdos

segmentosmaisinvisibilizados”nessanarrativa(DENISECAPUTO,2015a):as

prostitutasquevieramtrabalharnaconstruçãodeBrasília.

Aindanamesmaentrevista,Denisecontaqueseutrabalhoinicialdepesquisasedeu

pormeiodedissertaçõesproduzidasacercadotema,assimcomodeoutras

bibliografias.Apósessaprimeiraleitura,elaesuaequipeempreenderamalgumas

visitasaoNúcleoBandeiranteembuscaderelatosdepioneirosedeindicaçõessobre

ondeencontraressasmulheres.Segundodescreve,apesardaresistênciainicialem

tratardotemaporpartedealgunsmoradores,Deniseconseguiuchegaraalgumas

dessasmulheres.Aquelasqueconcordaramemcontarsuahistóriaaparecememseu

filme.(DENISECAPUTO,2015b)

Ocurta-metragemtemduraçãode15minutos,esuaestruturageralfoiarticulada

fundamentalmenteapartirdeentrevistas.Alémdasentrevistas,nasquaisos

personagensaparecemsemprenamesmasituaçãocênica,sãoincorporadasna

64

montagemimagensquedialogamcomotemaqueoraestásendotratadonas

entrevistas:imagensdaconstruçãodeBrasília,umtrilhodetrem,musasdocinemae

ascasasdaspersonagens.

Emsetratandodeumcurta-metragemdocumentárioqueadotacomoestrutura

fundamentalasentrevistasdeseuspersonagens,cabeaquiconsiderá-loapartirde

seuelementocondutor:asváriasvozesouvidasquevãonarraratrajetóriadas

prostitutasquevieramparaBrasílianaépocadesuaconstrução.Apesarda

intervençãoinevitáveldamontagem,quecompareceinclusivenaestratégiade

utilizarasimagensdearquivoeplanosdepassagem,oformatodeentrevistas

permitetrabalharaquestãodamemória,intençãoexplícitadadiretora.Parteassim

deumaestruturaedeumconteúdoquepermiteadentrarahistóriaoraldessas

personagens,afimdequeoexpectadorsejacapazdeconstruirumcamporeflexivoe

imagéticoacercadotema.Portanto,aoadentraressefilme,procuroindíciosdecomo

essecorpovivia,circulava,comochegaram,comodesapareceramasprostitutasque

participaramdaconstruçãodacidade,e,sobretudo,comoessecorpoévistoporelas

mesmas.

65

66

67

2. Modernidade, progresso e corpo-máquina

2.1. Filme: As primeiras imagens de Brasíl ia (1957) Direção:JeanManzon.Cinejornal,10’24”

Ofilmeseiniciacomumacartela:Êstedocumentáriotemaúnicafinalidadede

historiaremimagensosprimeirosmesesdevidadeBrasília.Oavisoparecetentar

evitarquequalqueroutraintençãomenosobjetivapossaseratribuídaaofilme.

Juscelinoabordodeumavião,olhapelajanela.Dajanela,elevêumaplaníciepovoada

porumaglomeradocomcasasesparsas.Anarraçãoemvoiceoveracompanhaessas

imagens:

DeBrasíliasepodefalarcomaspalavrasfelizesdoCardealArcebispodeSãoPaulo:“ComoanoivadoBrasil,árvoredavidanacional,plantadanoplanaltocentral.Ohomembrasileironãomaisarranhaaspraiascomooscaranguejos.”Brasília,umpolomagnéticoemGoiáséafinalarespostaaessacríticadedoisséculos.Ejáumacidadeprovisóriade10.000habitantesconstruídaporiniciativaparticular,cominversõessuperioresa500milhõesdecruzeiros,estende-seaoladodasgrandesobrasdogoverno.

Essaprimeirasequênciaintroduzcriadorecriatura:Juscelinoabordodeumavião,

fortesímbolodamodernidade,vêdecima,emvoodepássaro,aregiãoondeafutura

68

cidadeseráconstruídajásendoocupada.Asprimeirasimagenssubjetivasde

Juscelinosãodacidadeprovisória(CidadeLivre),enãodasgrandesobrasdogoverno

frutodoprojetodeLucioCostaparaacapital.Pareceimportanteafirmar,comessas

imagens,quearegiãojáestásendopovoada–hápessoasemBrasília,ondesóse

acreditavadeserto–,jáseefetivaaintençãodeocupaçãodoplanaltocentral–O

homembrasileironãomaisarranhaaspraiascomooscaranguejos;noentanto,a

narraçãotrataderessaltarqueessacidadeprovisória,cujaimagemédeumaaparente

“desordem”construtiva,foiconstruídaporiniciativaparticular,colocando-aassim

emoposiçãoàquiloqueserárealizadofuturamenteporiniciativagovernamental.

Apareceaquitambémumaprimeirametáforadacidadecomumafigurafeminina:

comoanoivadoBrasil,árvoredavidanacional,plantadanoplanaltocentral.Essetipo

deassociaçãoremeteàideiadeumcasamento,onascimentodacidade,noquala

mulher/Brasíliaapareceassociadaàgerminaçãodeumaárvoreplantadanoplanalto

central.

Logonasequênciaseguinte,aindaemvoodepássaro,épossívelveroiníciodasobras

dopalácioresidencial(PaláciodaAlvorada),conformedescreveonarrador:Opalácio

residencial,cujabelezadecorreapenasdesuasproporçõesseraprópriaestrutura,será

omarcodopontodevistatécnicoeartísticodacidadequesurge.Estáassimcolocadoo

planoaserlevadoacabo:opoderfederalseinstala,masnessecasoporumaobraque

émarcodopontodevistatécnicoeartísticodacidadequesurge,emoposiçãoàquela

feitaporiniciativaparticular.Omarcodessanovaarquitetura,querepresenta

tambémumnovotempo.OBrasilmodernosesobrepondoaoBrasilarcaico.

69

Oslongoscaminhosdanovacivilizaçãobrasileira:Brasília,airradiar-separaonorte,

paraocentroeparaosul.Emmeioaessafala,aindaemvoodepássaro,opalácio

residencialdálugaraimagensdalongaestradasendoabertaemumaplanície.Todo

umvastosistemacirculatóriodeumpaís,cujaimensidadeterritorialfazcomquea

construçãodeestradasvitaissejaumaépicaaventura.Comacâmeraagoraaoníveldo

chão,vemosdecostasdoishomensqueconversam:umdeles,depelenegraechapéu,

seguraumafolhagrandedepapel;enquantoooutro,cabeloscurtos,pelebrancae

camisasocial20,falaegesticuladiantedasestradasqueoscircundam,poronde

transitamváriostratores.Seguem-sealgumasimagensdemáquinasvistasdelonge,a

trafegarpelasviasquesãoabertas.Traçadososplanosdevidaoudemortepelos

capitãesdapacífica,masdurabatalhabrasileira,ospesadosengenhosdessaguerra

redentoraabrem,conquistam,subjugamoespaço.Acidadenovaestendeosseusbraços

àsirmãsmaisvelhas.

Estãoaliossoldadosdessadurabatalhabrasileira–engenheiro,operáriose

máquinas.Asmáquinaspassamentãoatomarmaioresdimensõesnatela,são

filmadasdepertoenquantomovimentamaterra.

20Trata-sedeBernardoSayão,engenheiroediretordaNovacap,encarregadodaconstruçãodarodoviaBelém-Brasília.ChegouaBrasíliaem1956,eapareceemumadasprimeirasimagensregistradasnosítiodeconstrução(vercap.1.5).BernardoSayãomorreuem1959,duranteaconstruçãodaBelém-Brasília,quandoumaárvoreemquedaoatingiu.

70

Máquinasgigantescasparaumgigantescomovimentodeterra.Asolidãoeconômicadoplanaltocentraldiminuicadavezqueumcaminhãopodepartircomasuacarga.SóaestradaentreBrasíliaeBeloHorizontetem730kmdeextensão.Eladeveráem18mesescolocaroRiodeJaneiroeSãoPauloemligaçãoasfaltadacomanovacapital,cujoeixomonumentaléconstituídoporumconjuntodeamplasavenidaseesplanadas.

Adurabatalhabrasileiraficaassimdefinida:subjugaroespaço,planificar,abrir

estradasqueestendamosbraçosdeBrasíliaàsirmãsmaisvelhas,cumprindooplano

deintegraçãonacional,acabandocomasolidãodoplanaltocentral.

Umasequênciadeimagensmostraagoraasquedasdeumacachoeira.Umhomem

paradoaoladodeumadelas,seguraumagranderégua,enquantooutrofotografa.

25.000cavalosserãoproduzidosporumausinaa3kmdacidade,queseráconstruídaem18meses.Somentenabaciadesterio,existeáguaemquantidadesuficienteparaduplicaroabastecimentoatualdoRiodeJaneiro.EmBrasíliaseformaráumlagomaiorqueaBaíadeGuanabara.

Umcampoagrícola,comcorredoresdeirrigaçãomostraocaminhodaágua,vários

homensneletrabalham:devidoàconformaçãodoterreno,osmananciaisqueservem

Brasíliapermitemirrigaçãoporgravidadedeváriasáreas,favorecendoa

transformaçãodosoloparaosfinsagrícolas.

Seguindoocaminhodaágua,vemosagoraumacalhaimprovisadaqueaconduzaté

umpequenocercadodemadeiracomumaplacaondeselê:BANHEIRO.Nacerca,

vemosdeforaalguémqueestádentropenduraraliumchapéudevaqueiro:um

banheirotosco,improvisadonocampo.Pelochapéu,ládentroseencontraum

71

nordestino.Sim,porqueàsvezes,quemvêchapéu,vêacara.Vemosentãoumhomema

tomarbanho,aáguaescorrefartamentepelabica.

Tomaatelaentãoaimagemdeváriosoperáriosacavarumalongavala.Naimagem

seguinte,elesempurramgrandesmanilhasdeferro,querolampeloterreno:tubos

parainstalaçãodausinapilotode600cavalosparaatenderàsemergênciasde

construção,antesdesecaptaraságuasdoParanoá.

Nessasequência,vemoscomoéimportanteressaltarnofilmeodiscursodo

abastecimentodeáguaedesuasaplicações.Nãosomenteparaumautilizaçãofutura

–aconstruçãodeumabarragemparageraçãodeenergia,acriaçãodolagoParanoá–

mastambémparaotempopresentedofilme,paraotrabalhodeconstrução–os

camposagrícolas,obanhodosoperários.Iniciando-secomasquedasd’água,que

demonstramaforçanecessáriaparaageraçãodeenergia,passandopeloscampos

agrícolas,pelopequenobanheiro,pelagrandeobraparaausinapiloto,asequência

querdeixarclaroquehááguaabundanteemmeioaodesertodoplanaltocentral.

Vemosagora,emumplanopanorâmico21horizontal,ocampodeumafábricade

tijolos,ondehomensempilhamomaterial.Nasequência,aimagemdeumcaminhão,

carregadodepeçasdemadeira,queatravessaacidadelivre:aindústriademateriais

21Numplanoemmovimentopanorâmico,acâmeragiraapartirdeseupróprioeixo,horizontalouvertical.

72

deconstruçãovaisedesenvolvendoanimadamenteemBrasília.Asmatériasprimas,

inclusivematerialcalcáriodealtoteorparacimento,sãoencontradascomabundância

naregião.Maisde100caminhõesentramdiariamentenacidade.Aqui,anarraçãotrata

dedeixarclaroqueamatériaprimanecessáriaparaaconstruçãodeBrasíliaestá

tantosendoproduzidaali,iniciandoodesenvolvimentodeumaindústrialocal,como

sendotrazidadefora,pormeiodosmaisde100caminhõesentramdiariamentena

cidade.Interessantequeaprimeiraimagemnosmostraaproduçãoemumaolariade

tijolos:poderiaserconcreto,ouaço,masotijolorepresentariaaquiuma

modernidadepossível,associadaàstécnicastradicionaisdeconstruçãoe,portanto,

maisfacilmenteapreendidapelopúblicocomopossibilidade.

Contrapondo-seàimagemdocaminhão,vemosagora,decostas,umacaravanade

pessoasquepercorreumaestradadeterra,montadosacavalo:avisãoinstintivado

povofazafluiraBrasíliaoperários,artífices,agricultores,comerciantes:ospioneirosda

grandemigraçãodofuturo.Esedigaqueahistórianãoregistraoutramarchade

conquistatãobemrecebida.Aoseaproximardogrupo,emplanosmaisfechados,

vemosasprimeirasmulheresaaparecernofilme.Sãoasúnicasimagensemplanos

maisfechadosqueofilmeoferecedessegrupo.Todaselascarregamcriançasnocolo:

nãosomenteoperáriosvêmparaacidade,mastambémasmulhereseseusfilhos,

famíliasque,seguindoumavisãoinstintivaempreendemumamarchadeconquista,a

grandemigraçãodofuturo.Aênfasenafigurafemininaematernalnessemomentodo

filmeparecenosquererdizerqueasfuturasgeraçõesdeBrasíliaestãogarantidas.

73

Emumaruadacidadelivre,aimagemdeumaplacaondeselêPARADADEÔNIBUSé

seguidapelaimagemdeumônibuscujoletreirodizBRASÍLIA.Porsuaportadescem

esobemvárioshomens,quevestemroupassimples,chapéusdepalha:Paraos

homensdolitoral,Brasíliaéumaideiamaisoumenosabstrata;paraeles,éapura

realidade.Nasequência,imagensdoaeroportodeBrasília.Umaviãoévistocruzara

pistadechegadaatravésdeumajanela.Homensvestindopaletósdescemdeum

avião:aprimeirametrópoleaserconstruídanaidadedaaviação.Rio/Brasíliano

máximode3horas;há60anos,quandosedemarcouasuaárea,acomissãofezem3

mesesamesmaviagem.

Ofilmeacabadepassarpelostrêsprincipaismeiosdetransporteparachegadaà

Brasília:acavalo,deônibusedeavião.Asequênciaéfinalizadacomograndetriunfo

dachegadadoavião,mas,aopassarporessasimagens,éirônicoperceberquemesmo

Brasíliasendoaprimeirametrópoleaserconstruídanaidadedaaviação,

permanecemaindaosmeiosdetransportemaisarcaicos,eaindahápessoasque

talvezdemoremosmesmos3meseslevadospelacomissãoparachegaràBrasília.

Chegamosagora,finalmente,averasobrasdearquiteturaemexecuçãonacapital.

Umaimagempanorâmicadohotelemexecução(BrasíliaPalaceHotel)éseguidapelo

planodeumoperárioqueencaixaumaimensavigadeaço,sustentadaporum

guindaste,naestruturametálicadoedifício.Seguem-seváriosplanosdoesqueleto

dessaestrutura.

74

Brasília,cidadedofuturo,terácomocertascidadesclássicasdaantiguidade,umamedidadegraçaarquitetônica.Nela,aidadedatécnicareencontraaidadedaharmonia,virtudesqueandaramseparadasnessestemposdeeclosãoindustrial.Acidadeestáassimfadadaaserummodeloparaomundo.Umhotelpara360hóspedes,feitodeestruturametálicadevoltaredonda,iniciadoemmarçode1957,deveráserinauguradoa3demarçode58,juntocomopalácioresidencial.

Juscelinovoltaàcena,dessavez,acompanhadodeIsraelPinheiro.Osdoisaparecem

emmeioaestacasdemadeira,noaltoandardeumadasobras.Elesconversam,

apontamparaosarredores.Sobemumaescadalateralechegamaotopodoedifício

emconstrução,caminhamporele:emcompanhiadosenhorIsraelPinheiro,o

presidentedarepúblicaacompanhaocrescimentodeBrasília,comfervordequemjávê

concretizadonoespaçoenotempotodososprojetos,todasasobrasfuturas,todoo

esplendoretodaavidadacidade.

ComoqueemumaimagemsubjetivadeJuscelinoeIsraelPinheiro,vemosagoraa

obradoPaláciodaAlvorada.Emmeioàsestacasefôrmasdemadeira,jáépossível

perceberascolunascaracterísticasdoedifíciosendoformadas:asoluçãodopalácio

residencialseorientoupelaescolhadosprincípiosdesimplicidadeepureza,que

marcaramnopassadooequilíbriodasgrandesobrasarquitetônicas.Voltamosentão,à

imagemdeJuscelinoeIsraelPinheiro,aindanotopodomesmoedifício,conversame

apontamemdireçãoaohorizonte.

Asprimeirasobrasdearquiteturasãocaracterizadaspelanarraçãocomoaretomada

dealgoquehaviaseperdidoemum“tempoantigo”(colocadodemaneiraabstrata):a

75

idadedatécnicareencontraaidadedaharmonia,virtudesqueandaramseparadas

nessestemposdeeclosãoindustrial.Acolocação,querefleteumaideiarenascentista–

buscarnaantiguidadeclássicaasproporçõesideais–écolocadademaneira

aparentementedespropositada,eacabaportransparecerumaespéciede“novo

renascimento”,umanovaformadedomíniodohomemsobreanatureza,superando

osjáexistentesavançosindustriaiseconciliando-osaumaharmoniaarquitetônica

totalmenteinovadora,masquerecuperaprincípiosdesimplicidadeepureza,que

marcaramnopassadooequilíbriodasgrandesobrasarquitetônicas.

ÉimportanteressaltarqueJuscelinosomentereaparecenofilmenessemomento,

observandosuasobrasnovamenteapartirdoalto–antes,doavião;agora,deum

edifício.AcompanhadodeIsraelPinheiro,osdoisfiguramcomograndesmaestros

daquelasrealizações,aquelesquetemodomíniodotodo.

Vemosagoraaimagemdaexecuçãodeumtelhado,apartirdedentrodocômodoque

elecobre.Astelhasestãosendoaindacolocadas.Acâmera,queapontaparacima,

começaadescerevemosumpadeiroqueretiraváriospãesdeumforno:opãofresco

éfeitoantesmesmoquesefaçaapadaria.

76

Emseguida,aimagemdeumparquinhodecriançascomumprédioaofundo:ogrupo

escolartemcapacidadepara320crianças.Passandoparaointeriordeumasala,

vemosumplanosemelhanteàqueledapadaria:umoperário,emcimadeumaescada,

prendeumlustredeiluminaçãoaoteto;acâmeradesceevemoscriançassentadas

emumasaladeaula:aindaseinstalavamosacessóriosdaescolaquandoasaulas

foraminiciadas.Porqueaculturanãopodeesperar.NãoseperdetempoemBrasília.As

atividadesaítêmdesersimultâneas.Asequênciaéfinalizadacomumplanoabertoda

sala,ondevemosaprofessoraquemostraafraseescritanoquadro:“Brasíliaéagora

anovacapitaldoBrasil”.Éasegundaveznofilmeemquevemosumamulher,agora,

nafiguradeumaprofessora.Nasaladeumhospital,algunsmédicosemtornodeuma

mesacomumpacientemostramumacriança,penduradapelospés:umrobusto

brasilianoinaugurouamaternidade.

Asduassequências–napadariaenaescola–vemdemonstraroritmoincessantedas

obras,que,noentanto,nãoimpedequeosserviçosbásicossejamgarantidospara

aquelesquealiestão:nãoseperdetempoemBrasília.Asimagensdascriançasna

escolaedonascimentodeumrobustobrasilianoparecemquerermostrarqueháuma

geraçãofuturaaserpreparada,umavidaqueseiniciaapesardasobras.Enovamente,

éemumasequênciaassociadaàscriançaseàgarantiadasgeraçõesfuturasqueo

corpofemininoaparece.

77

Numaimagemnoturna,vemosoesqueletodaestruturadeumedifícioemconstrução.

Épossívelverasfaíscasdasoldaquetrabalhaoferro:Otrabalhodesconheceanoite.

Oritmodastarefasaexecutarnãoopermite.Emumplanomaispróximo,vemos

operáriosjogaremparafusosincandescentesdeumparaooutro,eprendê-losà

estrutura:eessesoperáriospraticambaseballcomferroincandescente.Aqui,aimagem

dotrabalhonoturnodosoperários,evidenciandooritmofrenéticodasobras,aparece

amenizadapelaassociaçãodeumatarefacotidianadaconstruçãoaumadiversão,o

baseball.Umaformadetransmitirque,apesardasárduascondiçõesdetrabalho,

essesoperáriosofaziamcomprazer.

Háaquiumcorteparaamaquetedocongressonacional;acâmera,empanorâmica

vertical,mostradoishomensqueconversamemtornodamaquete,manipulando-a:

osarquitetosLucioCostaeOscarNiemeyer–aoprimeiro,coubeprojetareorientaras

obrasdeurbanismo;aosegundo,asobrasdearquitetura.Vemosagoraumasequência

deváriasmaquetes:umasuperquadraresidencial,oPaláciodaAlvorada,aIgrejinha.

Osdoistécnicoseartistas,justamenteadmiradosemtodoomundo,compõemcom

linhas,volumes,coreseespaçosasinfoniadeBrasília.

78

Emumplanoaberto,LucioCostatransitaentrepranchetasdeumagrandesala,sobre

asquaisvárioshomensdesenham:umaequipededica-seàartedefazercidades,

dentrodeperfeitassoluçõesdosproblemasurbanos.Coubeaosarquitetosuma

apresentaçãoobjetivadeseuofício,asimagensdasmaquetes,dosfuturosedifícios

queserãoconstruídosemBrasília.

Novamenteemumaimagemnoturna,vemosumhomementraremumapequena

casademadeira.Aluzdacasaestáacesae,atravésdeumajanela,vemosohomem

queacabadeentrarbeijarumamulherdentrodesuasala.

Brasíliajáexiste.Asfamíliasqueparalásedeslocaram,hojevivendocomsimplicidadeemummomentohistórico,irãoconstituiramanhãalegiãocomovidamentelembradadospioneiros,osprimeiroshomensemulheresquederamaoBrasilosprimeirosfilhosdeumanovaera.Ajovemcidadedoplanaltocentraléaestrelaguiadofuturo,ameninadosolhosdoBrasil.

Aimagemfinaldofilmeéumplanoabertodessasmesmascasinhas,eumcarropassa

emfrenteaelas,cruzandooquadro.Nessasequênciafinaléressaltadaaimportância

dafamília,daexistênciadeumageraçãoqueseiniciaemBrasília:Brasíliajáexiste.E

éessenúcleofamiliar–umhomem,suamulhereosfilhosqueirãogerarparaa

cidadedeamanhã–queestáaconstruirBrasília.

Asequênciafinalassocianovamenteocorpofemininoàmaternidade,àgarantidados

herdeirosdessaterra.Nãosomenteocorpodamulherapareceassociadoaessaideia,

79

mastambémanarraçãotrataderelacionarnovamenteBrasíliaaadjetivosfemininos

–ameninadosolhosdoBrasil.Curiosotambémqueaimagemdessenúcleofamiliar

apareçaassociadaaumacasaeumaruacomtraçosdacidadetradicionalbrasileira,e

nãodaarquiteturamodernistadospalácioseedifíciosapresentadospeloarquitetona

sequênciaanterior.Pareceaquiqueofilme,assimcomoemseuinícioaomostrara

CidadeLivre,tentacriarumafamiliaridadecompartedeseupúblicoalvo–os

trabalhadoresqueprocuraatrairparaaconstruçãodacidade.

80

2.2. Modernidade: um caminho inequívoco ao progresso?

OfilmedeJeanManzon,assimcomoboapartedesuavastaprodução,éconstruídoa

partirdeumanarrativafortementevinculadaasistemasinstitucionaisdepoder.O

lugardefaladaquelesquegovernamdápartidaaofilme,queassumeumpropósito

muitoclaro:transmitir,atravésdocinema,aimagemdaeficiênciadasações

governamentais.Essaimagemdeeficiênciaambicionacumprirumobjetivoainda

maior:mostrarumpaísqueviveintensamodernização,acaminhodeumfuturo

prósperoetransformador,noqualBrasíliaconstituiummarcoparadigmático.

AinserçãodaconstruçãodeBrasílianahistóriadoBrasiléprofundamentemarcada

poressavisãoparadigmática.Acidadeencarnadoispontosdeviradafundamentais:a

vanguardadomodernismobrasileiroqueadesenhou,transformando-aempontode

transiçãoparaumanovaexpressãoarquitetônicanacional,promessadeumanova

sociabilidade;eumgovernonacionaldesenvolvimentistaquepossibilitouasua

construção,transformando-aemmitopropulsordodesenvolvimentodopaís.

Acostumamo-nosadaronomedeparadigmaaessesmarcoscapitularesdahistória,e

herdamosessehábitodahistoriografiadaciência.Oprimeiroautilizarotermofoio

físicoefilósofoamericanoThomasKuhn.AEstruturadasRevoluçõesCientíficas,

publicadoporKuhnem1962,foiolivroacadêmicomaisdivulgadonoséculoXXe

tevemaisdeummilhãodecópiasvendidas.Graçasaodidatismodeseulivro,a

expressãomudançadeparadigmafoiincorporadaaosensocomum,aonosso

imagináriosocial,epassaaserutilizadaparafazeralusõesatransiçõesprofundas,

mesmoempráticasnãocientíficas.

Umadentretantasdefiniçõesdeparadigmanosdizqueelessãoformadospor“realizaçõescientíficasuniversalmentereconhecidasqueporumtempoprovidenciamodelosdeproblemasesoluçõesparaumacomunidadedepraticantes”(KUHN,1970:viii).Mudançasedesenvolvimentosnaciênciadão-seapartirdomomentoemqueumparadigmanãomaisconsegueexplicardeterminadosfenômenos.Emumcomplexoprocesso,antigasideias,práticaseteoriascientíficassãosubstituídasporoutrasmaisadequadaseeficazesnasoluçãodeumoumaisproblemasapresentados(KUHN,1970:92).(...)Apósamudançadeparadigma,ocientistaécomoquetransportadoparaoutromundo:“(...)depoisdeumarevoluçãooscientistasestãorespondendoaummundodiferente”(KUHN,1970:111)(CONDÉ,2005,p.129)

Essaleituradahistóriadaciênciapartirdeeventosrevolucionárioséumaideiaque

81

seestabelecenaemergênciadaciênciamoderna,eKuhnéherdeirodessatradição.

Segundoeleaciênciaésemprerevolucionária,etambémdescontínua,namedidaem

queumarevoluçãoouumamudançadeparadigmaprovocaumarupturaeuma

incomensurabilidadeentreaspartes–oquesepensavaantesedepoisdela.No

entanto,oconceitoderevoluçãonahistóriadaciêncianemsemprefoiadmitidoa

partirdanoçãoderupturaoudescontinuidade.

Revolução,nasRevoluçõesdasÓrbitasCelestesdeCopérnico,significasimplesmenteomovimentocircularerepetitivodoscorposcelestes,semqueaideiaderupturaestejapresente.Porém,aoinserir-senahistóriapolítica,revoluçãopassaadesignarruptura.Porexemplo,naRevoluçãoFrancesacomorupturacomoantigoregime.Assim,oconceitovoltaparaahistóriadaciênciajácomessesignificadoderuptura.(Cf.COHEN,1989,apud(CONDÉ,2005,p.132)

Aoolharparaalgumaspublicaçõesacercadamodernidade,vemoscomoanoçãode

paradigmaemKuhnapresentaafinidadescominterpretaçõeshistóricas,mesmonão

seaplicandodiretamenteaocampodahistóriadaciência.Tragocomoexemploo

livroModernidade:desacertosdeumconsenso(1994),deNelsonMelloeSouza,

publicaçãorecenteque,partindodapremissadequeháumababelconceitualcriada

emtornodotermo,buscacaminhosparadelineá-loemtermosfilosóficosehistóricos.

Oestudoanunciaasuaintençãodedesfazeraconfusão,opondo-seà“imprecisão

semântica”recorrentenosdiscursosacercadamodernidade.Ficaclaraasua

aproximaçãocomoconceitoderevoluçãoparadigmáticaquandoafirmaque

Pelaprimeiravez,emqualquerculturaletrada,amudançasocialinduziumutaçãonoparadigmaorganizacionaldavida.(...)Nassociedadespré-industriaisaestruturasocioeconômicajamaisfoialterada.Seusdiversosprocessosdemudançasocialrealizaram-sedentrodoparadigmada“Agrária”.Nelepermanecemporséculos;emalgunscasos,milênios.Coma“modernidade”amudançasocialproduzconsequênciasdistintas.Surgeumnovoparadigma,oda“Indústria”.(SOUZA,1994,p.14)

Paraoautor,háumaculminaçãodoprocessoindustrialeuropeu,natransiçãodo

séculoXIXparaoXX,queconstituiograndeparadigmaapartirdoqualsepodede

fatofalaremmodernidade.Passaadestilaracusaçõesaequívocoshistóricose

incongruênciasdediversosautoresquetrataramamodernidadedemaneira

diferente,eque,segundoele,caíramemarmadilhasteóricas,pecandoporexcessode

relativismo.ChegaaapontarcomoequívocaautilizaçãodotermoporBaudelaire:

Oneologismo“modernidade”surgiuemmeadosdoséculopassado.Umdos

82

primeiros,senãooprimeiro,ausá-lofoiBaudelaire22.Usou-omal,comosinônimopara“vidamoderna”,“modernização”e“modernismo”.Aconfusão,portanto,éontológica.Apalavranasceviciadaporquenasceantesdaprópriarealidadequelhedariasustentaçãosociológica.AotempodeBaudelaire,Marx,Dickens,Carlyle,tempodeindústriasiniciantes,praticamentenumúnicopaís,aInglaterra,redesferroviáriassurgindoesparsasaquieali,iluminaçãoagás,cidadespequenasderuasestreitas,poeirentasetortas,populaçãorala,economiaagrária,operaçõessemanestesiaquímica,transporteindividualacavalo,Igrejadominante,Inquisiçãoaindavivaadecretarpenademorteporquestõesmetafísicas,naviosàvela,torturainstitucionalizadaporsistemaspenaisaceitos,semrádio,semtelevisão,antibióticos,automóvel,aviões,águaencanada,comcidadesinteirassemsistemadeesgoto,nessestemposa“modernidade”estavaaindarelativamentelongedesurgirnoespaçosociocultural.OfenômenoqueBaudelairepercebia,acimadetudoporserpoeta,“sentia”,eraafluidezdatransiçãonoséculoXIX.Caminhava-seaceleradamenteparaamudançadeparadigma.(SOUZA,1994,p.19)

Portanto,comojáfoidito,suademarcaçãodoquesepoderiachamarde

modernidade,estacom“sustentaçãosociológica”,seiniciaapenasemfinaisdoséculo

XIXeprincípiosdoXX,ondesecaracterizaosurgimentodeumanovacultura,

decorrênciadoindustrialismodemassas.

Amodernidadesurgehistoricamente,provocandomutaçãoradicaldeparadigma,quandoaindústriadominaageraçãodoprodutobrutoporumladoepassaaseramaiorfontedeempregoporoutro.FenômenoperceptívelapenasentrefinaisdoséculoXIXeprincípiosdoXX,permitindoasociologiasurgirparacaptá-lo.Nuncaantes.(SOUZA,1994,p.35)

Entreossociólogosquecaptaramessatransformação,oautorcitaaobrade

FerdinandTonnies,ÉmileDurkheim,MaxWeber,GustaveLeBoneThorsteinVeblen.

Aquiloqueuniriaessesteóricosseriaofatodeadmitirqueestaríamosvivendoem

uma“épocahistoricamentesuigeneris,nãomaisfasedistintadeculturaantiga,mas

culturanova.”(SOUZA,1994,p.32–33)

Aoadmitiraexistênciadeumaculturaantigaquesecontrapõeaumaculturanova,o

autorpressupõeaincomensurabilidadeentredoisperíodosdivididosporuma

mudançadeparadigma.Causacertaperplexidadeadivisãofeitapeloautorquando

eleapontaasdiferençasentreumaculturaeoutra:

OOcidentesemprefoicristão,intoleranteparacomasoutrasreligiões,agrário,hierárquicoeritual.Anovaculturaécética,portantotoleranteparacomosincretismoreligiosoeventualmenteexistente,industrial-urbana,

22Refere-seaosensaiosHeroísmodavidamodernaeOPintordavidamoderna,escritosentre1859/60epublicadospelaprimeiravezem1863.

83

abertaemsuaestratificaçãosocialedifícilderitualizar-sedevidoàvelocidadedastransformaçõesquenãopermitemcristalizaçõesdecostumesecrenças.(SOUZA,1994,p.33)

Nãoéprecisograndeesforçointelectualparaperceberqueessacrençananova

culturaéinfundada,ou,nomínimo,idealizada.Ocaráterconservadoremessiânicodo

textodeSouzaajuda-nosaproblematizaressavisão.Estariaumanovacultura,

marcadapelamodernidade,homogeneamentedefinidapelostermosqueoautor

dispõe?Numaobservaçãosuperficialdomundoquenoscercaéfácilconstatarque

não,especialmentesedestacarmosamençãodoautoràsupostatolerânciacomo

sincretismoreligioso.Oautortomaaimprecisãodotermomodernidadecomoum

errodeabordagemasercorrigido,e,nessepercurso,tratademinimizarimportantes

contribuiçõesàconstruçãoteóricadamodernidade,comoaquelasdadaspor

BaudelaireeMarx.

VoltandoaofilmedeJeanManzon,aideiademodernidadequeofilmeprocura

mostrarécontaminadaporessaconstruçãoparadigmática:Brasíliarepresentaessa

mudança,essepontodeviradanahistóriadopaís,umcaminhoinequívocoao

progresso.Aparecenofilmeprincipalmenteassociadaàprosperidadenaindústria–

tantodaconstruçãocivilcomodosmeiosdetransporte;àexpectativadeascensão

social,refletidanaconfluênciademigrantesparaacapital,movidosporumidealde

umprósperofuturo;e,finalmente,àideiadequeaarquiteturabrasileiramodernista

viviaummomentodevanguardadiantedetodoomundo,equeissoestaria

representadonosedifícioseplanourbanísticodanovacapital.Brasília,portanto,

representariaumaculturanovasobrepondo-seaumaculturaantiga.

Éimportanteressaltarqueasideiasmodernistasimpressasnoprojetourbanísticode

Brasíliatambémprecedemdeumavisãoparadigmática.Éconhecidaaafinidade

profundaentreourbanismoquedesenhouBrasíliaeasideiasdeLeCorbusier.

SegundoMarshallBerman,oséculoXXconheceuvisõespolarizadasdavidamoderna:

porumladoumacerta“modernolatria”eporoutroumavisãocatastróficae

pessimista.ÀvisãodemodernismodaBauhaus,deGropious,deMiesvanderRohee

deLeCorbusier,Bermanassociaessa“modernolatria”,eatribuiaelesaconstrução

teóricadeuma“máquinaestética”.Essa“máquinaestética”,segundoBerman,vai

criartransformaçõesprofundasnoespaçourbanoenavidamoderna.Sobrepondo-se

84

aoambientequeseanunciaemfinsdoséculoXIX–aintensidadenotráfegoadvinda

daconcentraçãodepessoas,daintensidadedastrocas–ourbanismomodernovai

proporumanovaordem,quetemcomopreceitoprincipalevitaroconflito.

Aolongodequasetodooséculo(XX),espaçosurbanostêmsidosistematicamenteplanejadoseorganizadosparaassegurar-nosdequeconfrontosecolisõesserãoevitados.Osignodistintivodourbanismooitocentistafoiobulevar,umamaneiradereunirexplosivasforçasmateriaisehumanas;otraçomarcantedourbanismodoséculoXXtemsidoarodovia,umaformademanterseparadasessasmesmasforças.Deparamo-nosaquicomumaestranhadialética,emqueumtipodemodernismoaomesmotempoencontraenergiaeseexaureasimesmo,tentandoaniquilarooutro,tudoemnomedomodernismo.(BERMAN,1986,p.187–8)

LeCorbusierdescreveemseumanifestomodernistade1924–L’Urbanisme–uma

experiênciapessoalqueofezcrerqueotráfegoerainimigodobem-estardo

indivíduomoderno:expulsodaruapelotráfego,LeCorbusierconcluique“deixara

nossacasasignificavaque,umavezcruzadaasoleiradaporta,nósestávamosem

perigoepodíamossermortospeloscarrosquepassavam”(apudBERMAN,1986,p.

188).

ObruscomovimentoqueourbanismomodernistadeLeCorbusiervaifazeréassumir

quearuanãomaispertenceaopedestre,esimaocarro.Portanto,colocaoindivíduo

amovimentar-sedentrodocarroeconcebeespaçoscompletamentenovosqueassim

oconsidere.

Seasruaspudessemsimplesmenteserriscadasdomapa–LeCorbusierodisse,bastanteclaro,em1929:“Precisamosmatararua!”–,talvezessascontradiçõesnuncavenhamanosmolestar.Assim,aarquiteturaeoplanejamentomodernistascriaramumaversãomodernizadadapastoral:ummundoespacialmenteesocialmentesegmentado–pessoasaqui,tráfegoali;trabalhoaqui,moradiasacolá;ricosaqui,pobresláadiante;nomeio,barreirasdegramaedeconcreto,paraqueoshalospossamcomeçaracresceroutravezsobreascabeçasdaspessoas.(BERMAN,1986,p.191)

OplanourbanísticodeBrasíliaéfacilmentevisualizadonessaspalavras.Considerado

umadasrarasaplicaçõesdospreceitosdourbanismomodernoreunidosnaCartade

AtenasdeLeCorbusier,refleteafétransformadoradascidadesedasociedadeque

essespreceitospreconizavam.Elaspartemdoprincípiodequeocaosdavida

modernadeveserneutralizado,organizado,reconstituídoemumanovaordem

urbana.OqueBermanapontacomo“trágicaironiadourbanismomodernista”éa

destruiçãodavidaurbanaqueeleprópriopretendialibertar.

85

Aliados,portanto,aomodernismourbanísticodeseudesenho,atransferênciada

capitaldeveriasuperaresublimaroatrasodopaís,nãosomentedopontodevista

material,mastambémespiritual.Apósdoisséculosdeocupaçãolitorânea,Brasília

representaomomentoemqueopaísfinalmenteseinteriorizae,apartirdesse“polo

magnético”,conquistaterritórios“inexplorados”.Aconstruçãodasestradasaparece

comoforçapropulsoradodesenvolvimento.Asimbologiadamáquinaquecortaa

estradaemmeioaocerradorepresentaessedesbravamentodeterritório,deuma

batalhaaservencida,mastambémosímbolodeintegraçãonacional.

Aarquiteturamaterializaoavançotécnicoeculturaldopaís.NofilmedeJean

Manzon,asconsideraçõesacercadasobras,tantonanarraçãocomonasimagens–de

edifíciosemaquetes–,deixamclaraaintençãodemostrarqueelasrepresentamum

contrapontoaumatradiçãoconstrutivaanteriorque,apesardenãosertotalmente

evidenciada,apareceimplícitanasfalasdonarrador.

Todaessagamadeimagensefalaspositivasepromissorasemrelaçãoàcidade

formamocorpodeintençõesdofilme,que,emúltimainstância,querconvenceras

pessoasdequeBrasíliaépossível.Omundoaquiconstruídoédestituídode

contradições:éummundoondeotrabalhoininterruptoécomoumesportedivertido;

ummundoondeasmáquinasquecortamestradasapenaspromovemfelicidadee

prosperidade,adespeitodaquiloquederrubam.Éaideiadeumamodernidadeque

passanecessariamenteporumcaminhodeevoluçãoemlinhareta,transformadora

paraopaíseparaaquelesquenelaacreditam.

Noentanto,épossívelpercebertambémqueascontradiçõespresentesdesdeoinício

daconstruçãodeBrasílianãohaviamsucumbidoàforçadostratores.Apesardeo

filmenãotrazeràtonaaquestão,ficaclaroemalgumascenasqueascontradições

inerentesaoprocessodemodernizaçãopretendidopeloestadoestavampresentes:

osoperáriosquealichegamacavalooudeônibus,enquantooutroschegamdeavião;

asdurasjornadasdetrabalhoaqueeramsubmetidosostrabalhadores,queaindaà

noitepermanecemnaobra;acidadeprovisóriaemcontrapontoàcidadeplanejada

quenasce;e,principalmente,noquetangeofocodessetrabalho,todaaempreitadaé

propulsionadaporumaforçamasculina–Juscelino,seusarquitetos,seus

funcionárioseosoperáriosqueconcretizamessagrandiosarealização.

86

2.3. O corpo-máquina

OfilmedeJeanManzon,aodocumentar“asprimeirasimagensdeBrasília”,procura

abarcarasdiversaspersonagensenvolvidasnoprocessodeconstruçãodacidade:

JuscelinoKubitschek,seugrandefomentador;osengenheiros–BernardoSayãoe

IsraelPinheiro–braçosoperacionaisdeJuscelino;osarquitetos–LucioCostaeOscar

Niemeyer–mentescriativasportrásdainvençãodosedifíciosedesenhodacidade;

osoperários,grandemassanecessáriaàexecuçãodasobras;e,porfim,asmulheres,

necessáriasparaagarantiadefuturasgerações,amãequeirágerarosfilhos,ea

professora,quepassaconhecimentoaospequenosrebentos.Seriapossível

estabelecerrelaçõesentreaformacomoofilmecorporificaessaspersonagenseuma

ideiademodernidadeassociadahistoricamenteaocorpo?

Atransformaçãocrucialdosermodernoocidentalcomeçaaacontecerapartirde

umanegaçãodaexistênciamundanamedievaledeumaafirmaçãodointelectoeda

razãocomoformadeexistênciahumana.Ocorpo,nessesentido,passaaseruma

meraextensão,éobjetificadocomopertencenteàquelequeodominapelarazão,que

opossuimasnãooé,equepodeentãofazerdeleousoquebementender,aplicando

oquesuarazãopodeinculcar.Essatransformaçãoéfundamentalparaentendermos

umaformamodernadeserelacionarcomocorpo.

Ocorpomedieval,ouocorpoaindaenraizadoemtradiçõespopulares,nãoexistiaem

separadodohomem.Fazercorrerosangue,aindaqueempráticasmédicas,erauma

transgressão,eracomorasgaraaliançaentrecorpoealma.

OConcíliodeTours,em1163,proibiuaosmédicosmonásticosfazercorrerosangue.AprofissãomédicamudanoséculoXII,decompondo-seemdiferentescategorias:aqueladosmédicosuniversitários,clérigosmaishábeisemespeculaçõesdoqueemeficáciaterapêutica.Elesintervêmapenasparaosdoentes“externos”semtocarnocorpododoente.Aqueladoscirurgiões,quecomeçaverdadeiramenteaseorganizarnofinaldoséculoXIII,eagemnoâmbitodointeriordocorpo,ousandotransgredirotabudosangue.Sãofrequentementeleigos,desprezadospelosmédicos,porcausadesuaignorânciadosaberescolástico.(LEBRETON,2013,p.58–9)

Sepodemosencontrar,nodecursodahistória,algunsacontecimentossingulares

fundamentaisparaessatransformaçãonaformadeencararocorpo,podemoscitaro

desenvolvimentodamedicinaanatômica:éelaquevaicumprirefetivamenteessa

87

transgressão.AsprimeirasdissecaçõesoficiaisvãoocorrernoiníciodoséculoXV,na

ItáliadoQuatroccento.ApráticavaisebanalizarnaEuropadosséculosXVIeXVII,

tendocomoobrafundamentaloDecorporishumanifabrica(1543),deVesalius.Na

medidaemquesesubmeteocorpoaosabercientífico,admite-sequeelepodeserum

objetoseparadodoserhumanoqueoencarnou,eaísedáumarupturafundamental:

nãoseéumcorpo,massetemumcorpo.

ApartirdoséculoXVII,afilosofiamecanicistanaEuropaOcidentalpassaaevitaras

causastranscendentesnasreflexõesacercadanatureza,perdendoasuabase

religiosa,paraaproximá-lasàrazãodohomem.AastronomiaeafísicadeGalileuvão

introduzirumafraturaepistemológicaondeasfórmulasabstratasdamatemáticavão

refutarosdadossensoriaiseosentimentodeorientaçãodohomemnoespaço.A

natureza,portanto,esvazia-sedosseusmistériosparatornar-seumartefato

mecâniconasmãosdohomem.Oconhecimentodeveserútil,racional,despidode

sentimentoecapazdeproduzireficáciasocial.

Nafilosofia,opensamentodeDescarteséreveladordasensibilidadedeumaépoca,

mastambém,fundamentalparaaconstituiçãodaracionalidademodernaedo

dualismoentrementeecorpo.Descartesvaiescrever:“Ouniversoéumamáquinaem

quenãoháabsolutamentecoisaalgumaaconsideraranãoserasfiguraseos

movimentosdesuaspartes”(LEBRETON,2013,p.102).Ametáforamecânica

cartesianaatribuídaaouniversotambéméverdadeemsuaatribuiçãoaocorpo.

Descartesvaiestabelecerumestatutodesubordinaçãodocorpoàmente,opondo-os

emumaradicaldualidade:oindivíduoencontra-sedivididoemduaspartes,ocorpoe

amente,soldadospelaglândulapineal.EmseuDiscursodoMétodo(1637),Descartes

consideraumaradicaldualidade:amente,oua“alma”,éinteiramentedistintado

corpo.Aalmaseriaarepresentaçãodoeuesuaessênciaounaturezaconsistiria

apenasnopensar,nãodependendodequalquercoisamaterialparaexistir.Essa

dualidademente/corpojáhaviasidoantecipadanopensamentofilosóficodesde

Platão.Noentanto,Descartesvemreforçaraseparaçãoentrealmaenaturezanuma

oposiçãodesuperioridadedaprimeiraemrelaçãoàsegunda.Eessanaturezaincluia

naturezadocorpo.Arelaçãoqueopensamentoracionalmodernoestabeleceucomo

corpoencontrareflexosnohomemcartesiano,compostoporumacolagementreuma

88

almaquesóencontrasentidonopensar,eumcorpo,oumelhor,umamáquina

corporal,reduzidaaumasimplesextensão.

...everdadeiramentepode-semuitobemcompararosnervosdamáquinaqueeuvosdescrevoàstubulaçõesdasmáquinasdessasfontes;seusmúsculoseseustendõesàsdiversasengrenagenserecursosqueservemparamovimentá-las;seusespíritosanimaisàáguaqueosmove,cujocoraçãoéafonteeasconcavidadesdocérebrosãoosolhares.Alémdisso,arespiraçãoeoutrastaisações,quelhesãonaturaiseordináriasequedependemdocursodosespíritos,sãocomoosmovimentosdorelógiooudeummoinhoqueocursoordináriodaáguapodetornarcontínuo.(LEBRETON,2013,p.120)

MesmoseopondoaodualismoestabelecidoporDescartes,outrospensadorescomo

EspinosaeHumeadmitemmenteecorpocomoduascategoriasdistintasdeanálise,

aindaqueestabeleçamainterdependênciaentreelas.23Ouseja,afratura

epistemológicamodernaentrecorpoementepermanece,muitoemboraelaváser

tratadaapartirdesuainteração.Portanto,ocorpo,enquantocategoriaseparadado

serhumano,ecomosuaposse,éumainvençãomoderna.

Caberessaltarqueessaconcepçãopassadeantemãoporumanegaçãodeumcorpo

“grotesco”,comoafirmaLeBreton,ocorpopopular,aquelepresentenasfestas

medievais,noscarnavaisderua,queestãonocernedasociabilidade,principalmente,

noséculoXV.Nessasfestas,oscorpossemisturavamindistintamenteemruase

praçaspúblicas,constituindoumaefusãocoletiva,mediadapelocontatofísicodireto.

Essasociabilidade,levadaaoseuextremonasfestaspopulares,épartedocotidiano

dacidademedieval.SegundoAlainCorbin,osodoresdaParisnaprimeirametadedo

séculoXVIII,frutotantodaaglomeraçãodoscorposnoespaçopúblico,comodos

humoresprovenientesdelatrinas,mercados,etc.,vãodespertaravigilânciados

higienistas.Oconfinamentoeaaglomeraçãopassamaservistoscomosinônimode

doença,fetidão,e“apercepçãodosperigosdasemanaçõessociaislevaàdesconfiança

paracomamultidãopútrida,opovoeosanimaismisturados”.(CORBIN,1987,p.66).

Umanovasensibilidadeemrelaçãoaosodorespassaaseinstalarnamedidaemquea

necessidadedeindividuaçãoétambémcrescente.Aintolerânciaparacomoodordo

outrofazpartetambémdaconstituiçãodeumasensibilidademodernaemrelaçãoao

corpo.

23Verpp.122a124.

89

Ocorpogrotescoéformadoderelevos,deprotuberâncias,eletransbordadevitalidade,estámescladoàmultidão,indiscernível,aberto,emcontatocomocosmo,insatisfeitocomoslimitesqueelenãocessadetransgredir.Éumaespéciede“grandecorpopopulardaespécie”(Bakhtin),umcorpoeternamenterenascente:grávidodeumavidaanasceroudeumavidaaperder,pararenascerainda.(LEBRETON,2013,p.47)

Aconcepçãomodernadearquiteturavaisefundamentarnessatentativade

dominaçãodanaturezapelaaçãoracionalhumana.Anecessidadedemodernização

dascidadespassapelodesejodehigienizá-las,desepararsuasfunções,dedominaro

caos,deordenarofluxodoscorpos.Nessesentido,aarquiteturaacompanhao

desenvolvimentodasoutrasciênciasdesdeorenascimento,natentativadecriar

soluçõesdecontroledanaturezapelohomem,dedesenvolverdispositivosque

atendamàsnovasnecessidadesdedeslocamentoefixação,equetambémajudema

moldaraaçãohumana–corpórea–noespaço.

Aatividadedoprojetoemarquiteturasurgehistoricamenteapartirdaseparação

modernaentrecorpoeespaço.Atéarenascença,oarquitetoeraoconstrutor,eo

desenhoerautilizadoapenaspararealizaçãodecroquisduranteaobra.Apartirdo

renascimento,aarquiteturapassaaserconceituadaeentendidacomodisciplina

intelectualmenteelaborada,eoprojetopassaaserinstânciaessencialnaconcepção

arquitetônica–pensar,calcularedesenharantesdeconstruir.

Conceberconceitualmenteoespaçoimplicariaemconhecerprofundamenteas

relaçõesentreindivíduos,naturezaesociedade.SegundoArgan,éparteda

conceituaçãodarenascençaacrençadequeosantigosteriamestabelecidodeforma

maispurasuarelaçãocomanatureza,eissoestariarefletidonaformacomo

representavamsuasedificações:“...osantigoseramosmaioresconhecedoresda

natureza,poiseramaquelesquenanaturezaedanaturezadeviamextrairtodosos

elementosdesuavidaespiritual”24(ARGAN,1973,p.15).Comoessarelaçãonãoera

maispossívelaoindivíduomoderno,devidoàevoluçãodaciênciaedareligião,era

precisoresgataressemodelodeconstruireracionalizá-loàluzdamodernidade.A

renascençavaibuscar,portanto,naarquiteturadaGréciaClássica,arelaçãoentre

corpoeespaçoasertomadacomoidealeaserreproduzidacomomodeloválido.Essa

24Traduçãolivrede:“...losantigoseranlosmásgrandesconocedoresdelanaturaleza,puestoqueeranlosqueemlanaturalezaydeLanaturalezadebíanextraertodosloselementosdesuvidaespiritual”.

90

concepçãofoifundamentalparatodaaliteraturamodernaproduzidaacercada

arquitetura:aracionalidadeexistentenasteoriasdecomposiçãoeaplicaçãodos

elementosclássicos,jáémoderna.

Conceitualmente,éaquelamáquinacorporalcartesiana,comoumasimplesextensão,

queLeCorbusiervaiteremmenteaoelaborarseusprojetos,esemanifesta

principalmenteapartirdaadoçãodosistemademedidasporeleelaborado:o

Modulor.Essesistema,pensadoapartirdeumcorpohumanopadrão,deveriaaplicar-

seaoprojetocomoumtodo,desdeasmedidasdemobiliário,atéalturasdepé-direito

eproporçõesdefachada.ApalavraModulorécompostaapartirdemodule,ouseja,

unidadedemedida,esectiond’or(seçãoáurea),proporçãoclássicareproduzidapor

todaarenascençaeincorporadaporLeCorbusier.ApublicaçãoModulor1,de1948,

temcomosubtítuloEnsaiosobreumamedidaharmônicaàescalahumanaeaplicável

universalmenteàArquiteturaeàMecânicaModerna.Aoiniciarseusestudosacercado

Modulor,porvoltade1942,LeCorbusiereracontratadodaAssociaçãoNacional

FrancesaparaEstandardização(AFNOR),órgãoquetinhacomofunçãoauxiliara

reconstruçãodopaísnopós-guerra,eestabelecerumapadronizaçãodemedidasna

construçãocivil.Emumprimeiroestudo,LeCorbusiersolicitaaumdeseus

assistentes:

Tomeumhomemcomobraçolevantadocom2,20mdealtura,inscreva-oemdoisquadradossuperpostosde1,10m,coloque-oacavalosobreosdoisquadradoseumterceiroquadradoresultantelhedaráumasolução.Olugardoânguloretodevepoderajuda-loacolocaroterceiroquadrado.Comesteenredado,regidoporumhomeminstaladonoseuinterior,estouseguroquechegaráaumasériedemedidasquepoderãocolocardeacordocomaestaturahumana(obraçolevantado)eaMatemática.

Esseeraapenasumprimeiroestudoqueconsideravaumhomemcom1,75mde

altura.ApósapublicaçãodoModulor1,seguem-seumasériedeadaptaçõessugeridas

pormatemáticos,engenheiros,etc.,equesãoincorporadasaumnovosistema,

aperfeiçoadonoModulor2,publicadoem1950.LeCorbusierchegaentãoaum

padrãodefinidoapartirdeumhomemcom6pésdealtura,ou1,829m,

proporcionadodeacordocomaseçãoáureaeasequênciadeFibonacci.

OconceitodoModuloraparececomoumametáforadopensamentodeLeCorbusier

acercadarelaçãomodernistaentrecorpoeespaço,operandoemtermosde

91

concepçãoarquitetônicaaquelemesmopensamentomecanicistarelacionadoao

corpocartesiano.Considera-seumtipoparaocorponatentativadeseencontrar

proporçõesarquitetônicasideais,equesópoderiamderivardeumcorpocom

proporçõesideais–umhomemcom1,829mdealtura.Umcorpoidealizadoe

genérico.

Queassociaçõespoderíamosfazerentreessavisãomodernadocorpoeaformacomo

JeanManzoncorporificasuaspersonagensnofilmeAsprimeirasimagensdeBrasília?

Levandoemcontaoalinhamentodocineastacomasintençõespropagandísticasde

seuscontratantes,nãoerainteressantepsicologizaressaspersonagens,aprofundar-

seemsuascontradições,massimesquematizá-losdentrodeumalógicaque

favorecesseaintençãoinicial:atribuirposiçõesaessaspersonagensquedialogassem

comodiscursofavorávelàmodernizaçãodopaís.

Dessaforma,vemosaspersonagensposicionadas,emsuarelaçãocomoespaçoda

construção,apartirdeumacertahierarquia,refletidanaformacomoessescorpos

sãocolocadosemcena.TomandoprimeiramenteJuscelinoKubitschek.Eleéocorpo

altivo,pensante,omentorvisionárioqueobservaacidadesempreapartirdeum

pontomaisaltoqueosdemais(abordodeumavião,notopodeumedifício).Tantoo

seuolharapartirdoavião,comoaconversacomIsraelPinheironoaltodeumprédio

enquantoapontamparaohorizonte,mostramumhomemquedominaasuacriação.

Demaneirasimilarvemosposicionadososengenheiros,braçosoperacionaisdo

mentorJuscelino:BernardoSayãoaparecedoaltodeumaplanície,aolhareapontar

paraasestradasquesãoabertasportratores,enquantosupostamenteexplicaaoseu

subordinado–ooperário–asdiretrizesdoprojetoquedeveráseguir;poroutrolado,

IsraelPinheiroaparecejuntoaJuscelino,emumavisitaàsobras,eseusgestosdãoa

entenderqueestátransmitindoaopresidenteoandamentodasconstruções.Essas

duaspersonagenssãoassimcorporificadasemsuahierarquia:submetidasao

presidente,superioresaosoperários.

Jáosarquitetosaparecemencerradosnoespaçodoescritório.Nãoháqualquer

imagemqueosmostrenocanteirodeobras.Esseescritóriopoderiaestarem

92

qualquerlugar25.Dequalquerforma,essacolocaçãodosarquitetosencerradosem

seuescritório,àsvoltascomasmaqueteseplantasdeBrasília,reforçama

corporificaçãodelesnofilmecomomentescriativas,oseudomínioéodasabstrações

–oprojeto,amaquete.Elesrepresentamumcertoisolamentoemrelaçãoàrealidade

daconstrução–sãoamente,aracionalidadecriativa,opensamentoacercadacidade.

Osoperários,personagensqueaparecememmaiornúmeronofilme,são

corporificadosprincipalmenteemgrupo:agrandeforçabraçalquepossibilitaráde

fatoaconstruçãodacidade.Pormeiodeseuscorposémostradaaforçanecessária

paralevantarosedifícios,paraseempurrarumaenormetubulaçãoquedeverá

conduziraágua,pararebitarvigasdemetal,mesmoduranteanoite.Emgrupo

tambémsãomostradosachegarnacidade,sejadeônibusouacavalo.Hátrês

momentosapenasemqueosoperáriossãomostradosemprimeiroplano,

individualizados:noprimeiro,umoperárioquerecebeordensdoengenheiro,onde

ficaclaraaíasuasubordinação–éoprimeirooperárioapresentadonofilme;no

segundo,umoperárioapareceatomarbanhoemumbanheiroimprovisado,a

mostraraíqueexisteinfraestruturaparaqueessestrabalhadorestenhamcondições

devidadignasduranteasobras–nessemomentotambémooperárioécaracterizado

comonordestinopormeiodeseuchapéu,deformaacriaraliumaidentidadecomo

grandecontingentedemigrantesdessaregião;e,finalmente,umoperárioémostrado

emseuretornoparacasa,quandoencontrasuamulher,encenandoalianarrativada

famíliaquevaiconstruirofuturodeBrasília.

Ocorpofemininoémostradonofilmeapenasemtrêsmomentos:noprimeiro,

mulheresmontadasacavalo,carregandoseusfilhos;nosegundo,aprofessorado

grupoescolarlecionaparaseusalunos,crianças;eporfim,aesposaaguardao

operárioaochegaremcasa.Naprimeiraapariçãonofilme,seuscorposaparecem

associadosàmaternidade–amãeque,juntoaoutrasmães,carregamseusfilhosna

chegadaàBrasília.AnoivadoBrasil,mencionadananarraçãonoiníciodofilme,se

materializanafiguradessasmães.Nasegundaaparição,temosaprofessora.Muito

emboraelanãoapareçacomomãe,estáaliaoladodogrupodecrianças,seusalunos,

25ÉprovávelquesejaoescritóriodeLucioCostanoRiodeJaneiro,jáqueomesmoestevepresentenolocaldaconstruçãoapenasumavez,paravisitaaosítio.

93

afuturageraçãodeBrasília.E,porúltimo,afiguradaesposa,aquelaqueesperapelo

maridoemcasaànoite,apósasuajornadadetrabalho.

Emcontrapontoàformacomoocorpomasculinoéapresentadonofilme–ativoe

trabalhadornasobras;aquelequeolhaacidadedoalto;aquelequeidealizaacidade,

manipula-aatravésdemaquetes–ocorpofemininoapareceaquiresignadoaopapel

demãe,émostradocomoaquelequecarregaascrianças–nocoloounaescola–e

que,alheioaosacontecimentoseàatividadedohomem,espera-oemcasa.Seucorpo

éassociadoassimaoambientedoméstico,nãoparticipaativamentedaconstruçãoda

cidade.Mas,noentanto,paraqueacidadepossaprogredir,énecessárioqueele

estejaaliparagarantirosprimeirosfilhosdeumanovaera.

EsseesquemacriadoporJeanManzonposicionaaspersonagenscomocomponentes

deumaengrenagemnecessáriaparaosucessodaconstruçãodacidade.Ametáfora

docorpo-máquinafuncionaaquinãosomenteaplicadaacorposindividualizados,

mastambémaumesquemaracionalqueorganizaessescorposemtornodeum

objetivomaiorqueéamodernizaçãodopaís.Nãohácontradição,nãoháerro,nãohá

retorno:essaengrenagem,sebemarticulada,farácomqueopaíssigaoseucaminho

inquestionávelaoprogresso,tendoBrasíliacomopontodeinflexão.Maisqueuma

narrativaencerradaemdezminutos,ofilmedeJeanManzonnosmostraumlado

importantedahistóriaelaboradaacercadacidade,quetemmuitasafinidadescoma

históriaescritaqueseproduzianomesmoperíodo.Noentanto,aocoloca-lasem

imagens,elapermitequepossamosobservarcomoserevelamessasrelaçõesentre

corpoecidade,organizadassegundoesseesquema,eainda,aobservarqueamulher,

apesardepoucoaparecernahistóriaoficialdaconstruçãodeBrasília,temumlugar

definidonessaengrenagem.

94

95

3. Modernidade, contradição e corpo provisório

3.1. Filme: Brasíl ia, capital do século (1959) Direção:GersonTavares.Documentário,10’48”

Ofilmeseiniciacomascartelasdetítuloecréditossobrepostasàimagemdeum

mapadoBrasilColônia26,numageografiaimagináriadopaísnesseperíodo:grandes

rios,vegetaçãoabundante,habitantesnativoseatéanimaisaladoscompõemessa

cartografia.Amaravilhaderiquezasimaginadaspeloseuropeusaochegarnesse

território.Sobreessasimagens,emvoiceover,onarradoriniciasualocução:

Cumprindoumimperativoconstitucional,eefetivandoumpensamentoeumaaspiração

delongadata,opresidenteJuscelinoKubitschekestáconstruindoBrasília,anova

capitaldoBrasil.

26MapadePierreDescelliers,cartógrafofrancês,realizadoem1546.OriginalnaMapotecadoItamaraty,RiodeJaneiro.

96

Asrodasdeumagrandemáquinaemmovimentoemergemnatelapreta,acâmera

acompanhaseumovimentolateral;numplanoaberto27,vemosomesmotrator

operadoporumhomemdechapéu;numplanomédio28,vemososeurostoenquanto

dirigeamáquina.Nasequência,aindaemplanomédio,orostodeumhomemque

operaoutramáquina;emumplanoaberto,vemosamáquinaqueestehomemopera,

tendocomofundoumedifíciodeBrasíliajáconcluído;acâmerasemovimentaentão

emdireçãoàsentranhasdamáquina.Umsomdemotoracompanhatodaessa

sequência.Nessaintroduçãodofilme,homememáquinasãomostradosemumjogo

dealternânciaecomplementaridadequepersonificaamboscomoengrenagensa

executaraquiloqueanarraçãoexplicita:Surgindonoplanaltocentraldoterritório

brasileiro,Brasíliaestásendoconstruídasobreumaplanificaçãoaomesmotempo

orgânicaeracional...

Vemosagora,emprimeiroplano,oesqueletodaestruturametálicadeumedifício,

comacâmeraaoníveldochão.Anarraçãocontinua:...ematerializadacomoobjetivo

aposteriorideumatransformaçãoeconômicadoBrasil.Implantam-senodesertoos

germensdacivilizaçãodolitoral.Nessemomento,umatrilhainstrumental,eletrônica,

atmosférica,substituiobarulhodosmotoreseacompanhaaofundoanarração.A

27Enquadramentonoqualacâmeraestádistantedocorpofilmado,queocupaumpequenoespaçonoconjunto,constituindoumplanoqueajudaaambientarespaçoecorpo.28Enquadramentonoqualacâmeraestápróximadocorpofilmado,masaindadeixandoveralgodocenárioaoredor,constituindoumplanoqueaproxima-sedocorpoembuscadesuaexpressão.

97

câmerainiciaumlentomovimentopanorâmicopelaplaníciedeondeemergea

estrutura.Anarraçãoéinterrompida,eemseugiroacâmeraencontraumônibus,

queentraemquadro,pára,eporsuaportadescemtrêshomens.Atrilhaseacentua,

acompanhadaagoradosomdebatidas,marteladas,enquantoacâmeracontinuaseu

movimento.

Deixamosoônibusevemosaolongeumasequênciadeblocosdeestruturasmetálicas

(EsplanadadosMinistérios),umdelestomanovamenteoprimeiroplano;aofundo,o

CongressoNacional.Seugiroterminaemumguindaste,posicionadoemfrenteà

estrutura.Acâmeraacompanhaentão,emmovimentoascendenteesemcortes,o

mastrodoguindaste,chegandoatéseucume,ondeestápenduradaumavigametálica.

Anarraçãoéretomada:Entusiasmodedicadoaotrabalhocomum.Constrói-seum

futuroquesepodedefinirimprevisível.Nesseplanosequência,quecompletaumgiro

de180onaEsplanadadosMinistérios,asobrasdacapitalsãomostradasapartirde

umaarticulaçãoentrepessoasemáquinas–osoperáriosquedescemdoônibusno

inícioeoguindasteaofinaldoplano.

98

Vemosagora,defrente,oCongressoNacionalaindaemobras.AcúpuladoSenadojá

estáconcretada;aCâmara,aindaentreandaimeseestacas;astorres,emsua

estruturametálica.Naimagemseguinte,operáriosorganizamnochãoalgumasvigas

metálicascomaajudadeumamáquina,tendoaofundoaestruturadeumedifício.

Nenhumapedra,nenhumsulcoqueocupelugarquenãosetivessepensado.Acâmera

iniciaentãoummovimentoascendente,atéotopodastorresdocongresso.

Numanovaimagem,emcontra-plongèe29,entreastorresdocongresso,vemosum

homemcaminharemumdosandares,porsobreaviga.Osaglomeradosurbanos

foramcriadospelohomem.Doisplanosrápidosdeoperáriosquetrabalhamoferro,

nochão:Estaéacidadecriadaparaohomem.Ocortesecodeumamartelada.

29Posicionamentodacâmerasegundooqualumobjetoéfilmadodebaixoparacima;oseucontrário–plongèe–consisteemfilmaroobjetodecimaparabaixo.

99

Acâmeraagoraestábempróximaàestruturae,numtravelling30vertical,sobeao

longodeseusandarescomoummovimentodeelevador.Atrilhaeletrônicareproduz

oquepareceserumabatida,umecometálico.Décimosegundoandar,masaindamais

altoselançaráoaço.Oelevadorpára.

Nessassequências,agrandiosidadedosedifíciosdeBrasíliaéacentuadapelatrilha,

quecriaumaatmosferafuturística.Asestruturasmetálicaseaforçadoaçosão

contrapostasaotrabalhohumano,ressaltandotambémasintençõeshumanísticasdo

planoparaBrasília–acidadecriadaparaohomem–assimcomoassuasambições

estratégicas–oobjetivoaposteriorideumatransformaçãoeconômicadoBrasil–ea

racionalidadeempreendidaemseuprojeto–nenhumapedra,nenhumsulcoqueocupe

lugarquenãosetivessepensado.Aconstruçãoimagéticaressaltaessesaspectosa

partirdemovimentosdecâmeraensaiadoseprecisos:osplanosdebaixoparacima

(contra-plongée)ressaltamagrandiosidadedasobras;amovimentaçãopanorâmica

dacâmeraespacializaacidadenumaracionalidadeprevisível.Noentanto,anarração

falaemumfuturoquesepodedefinirimprevisível,assumindoumcertotomdecrítica

àsintençõesgeraisdoprojeto.

30Movimentosegundooqualacâmerasedeslocanoespaçopararegistrarumobjeto.Podeserlateral,quandoacâmerasemovimentahorizontaleparalelamenteaoobjeto;frontal,quandoacâmerasemovimentaperpendicularmenteaoobjeto;ouvertical–comoéocaso–quandoacâmerasemovimentaparacimaouparabaixo.

100

Emvoodepássaro,vemosaCidadeLivre,umaglomeradodensamentepovoado,com

largasruasdeterra,comummovimentointensodecarrosepessoas.Atrilhaque

ouvíamosnasequênciaanteriorseesmaeceaospoucos.Comacâmeraagoraaonível

dochão,vemosumaruadaCidadeLivre.Numlentomovimentolateral,pessoase

carroscirculam,vemosváriaslojas,letreiros.Atrilhamudabruscamenteparaosom

deumaviola.Noscanteirosdeobras,nascasasdemadeiradosacampamentos,na

cidadeprovisória,chamadaCidadeLivre,oscandangos,brasileirosvindosdetodasas

regiões,sãoosesforçadosrepresentantesdeumaverdadeedeumdestinoparaopaís.

Emcontrapontoàsimagensdasobrasdaarquiteturamodernista,essasequência

introduzocontextodevidadostrabalhadoresdacapital,avidaemsuacidade

provisória,ocotidianodaquelesqueconstroemacidade.Amudançabruscadetrilha

acentuaocontraste:umatrilhaeletrônicaparaafuturísticacidade,emcontrapontoà

modadeviola,paraoBrasilarcaico,provisório,ligadoaraízesregionais,onde

habitamosesforçadosrepresentantesdeumaverdadeedeumdestinoparaopaís.

Vemosagoraospésdeduaspessoas,umadefrenteparaaoutra:calçambotasem

estilocowboyevestemcalçajeans.Acâmerainiciaumtravellingvertical,apercorrer

ocorpodaspersonagens,queseguramfrutasnasmãos.Conformeacâmerasobe,

percebemossetrataremdeduasmulheres,decabeloscurtos,conversando:Nas

atitudes,sãoevidentesenaturaisaspretensõespioneiras.Aqui,ocineastaparece

querernosmostrarcomoessaspretensõespioneirasserefletemnovestuário,no

cortedecabelos.Aprimeiraimpressãoaovermossomenteospésdaspersonagens,

pelasbotasecalças,podeserdequesetratamdedoishomens.Omovimentoda

câmerabrincacomessaduplicidade,paramostraressepioneirismorefletidono

corpodessasmulheres.

101

Voltamosaocanteirodeobras,umhomemrebitacomumamáquinaaestrutura

metálica.Umoutroretiraorebiteincandescentecomumapinçaearremessapara

outro,queorecolhecomumfunil,repassando-ocomumapinçaparaumquarto

operário,queagorarebitaaestruturametálicacomumamáquina,juntoaomesmo

operárioquevimosinicialmente.Habilidade,destreza,domíniodatécnicademonstram

essesoperários.Ontemsimplescamponesesevaqueiros,ignoravamaexistênciadas

máquinas.Seguem-seváriosplanosdociclodotrabalhoderebitaraestrutura,os

operárioscaminhandoentreasvigas,penduradosàestruturametálica.Àsvezes,com

avidapagamopreçodaconquista.

UmnovoplanoabertodoCongressoNacional,atrilhaeletrônica,voltacommais

força.Umcaminhãocruzaoquadro,emsuaportaestáescritoNovacap,acâmera

deixaocongressoeacompanhaoseumovimentolateral.Ocaminhãosaidequadroe

vemosagoraosblocosdeestruturametálicadosministérios.Numaimagemapartir

dapartedebaixodarampadocongresso,umoperáriocruzaoquadroemcontraluz,

vemostambémandaimeseomovimentodaobra,aesplanadaaofundo.

102

Nummovimentopanorâmico,acâmeramostraosoperáriosquetrabalhamnacúpula

invertidaondeseinstalaráaCâmaradosDeputados,entreandaimeseferragens.

Protegidosporumacúpulaampla,sentar-se-ãoosfuturoslegisladoresdoBrasil.Ao

terminarseumovimentolateral,acâmerainiciaummovimentovertical,mostrando

novamenteaofundoosblocosdeestruturametálicadosministérios.

VoltamosparaumaruadaCidadeLivre,eatrilhanovamentemuda,demaneira

brusca,paraosomdeumaviola.Nãoparaesteoperosoaglomeradoderaçasede

coresserãoelaboradasasleis,poisestedesaparecerácomoiníciodavidadeBrasília,a

capitaldeamanhã.Seguem-seentãoalgunsplanosdosmoradoresdaCidadeLivre:

103

umgrupodehomens,emcontraluz,conversaemfrenteaumaloja;umhomemque

conversacomumamulherescoradaaumposte;acalçadadelojaseomovimentode

pedestres.Asmulheresaparecemnessasequênciaacompanhadasdehomens,

inseridasemumcotidianodacidade,esendocortejadasporeles.

Nessasduassequências,sãocontrapostosofuturoeopresentedacidade,como

excludentesumaooutro:oslegisladoresqueseinstalarãonacúpula,oraem

construção,nãolegislarãoparaopovoqueagoraocupaacidade.Elesnãosãoo

futuro.Enãosomentedepessoas,aquisefaladeumacidadesesobrepondoaoutra.A

CidadeLivre,resiliente,permanece,adespeitodaintençãodeprovisoriedade.

Novamenteestamosnocanteirodeobras,eumaimagempanorâmicamostraum

grandecanteiro,ondeferrossãodobrados,barracõesdeobraaofundo,muitos

operárioscirculamporali.Atrilhaeletrônicaretorna.Édagangueescuradasmãos

dostrabalhadoresqueestãosurgindoasjoiasdaarquiteturabrasileira.Gigantescos

movimentosdeterraforamrealizadosparaqueacidadesejaperfeita.Aimagemdeum

novocanteiro,tambémemmovimentopanorâmico,mostraedifíciosresidenciaisem

obrasaofundo,eemprimeiroplanobarracõesdemadeira.Constroem-seprimeiroos

edifíciosdestinadosaacolherosorganismosindispensáveisavidadeumanação.Os

técnicospossuemacomodaçõesprovisórias.

104

VemosagoraacapeladoPaláciodaAlvorada,jáconcluída.Acapelaconvidaao

chamadomísticodafé.Acâmerainiciaummovimentolateral,revelandoopalácioao

lado,tambémjáconcluído.Atrilhaeletrônicaseacentua.Noplanoseguinte,estamos

nointeriordopalácio,todomobiliado.Umhomemcaminhacruzandooquadroea

câmeraacompanhaseumovimento,eleatravessaagrandesala.OPalácioda

Alvorada,residênciadopresidentedosEstadosUnidosdoBrasil,jáseencontrapronto.

Sóbriaenecessáriadecoraçãodosinterioresacompanhaharmonicamenteaconcepção

estrutural.Váriosplanosmostramointeriordopalácio,comsuamobíliaeobrasde

arte.

105

Noavarandadodosegundoandar,doishomensolhamparaohorizonte.Acâmerafaz

ummovimentopanorâmico,mostrandoosarredoresdopalácio.Peloladodefora,a

câmerapasseiaaolongodafachadadopalácio,emumtravellinglateral,entrecortado

pelaspalmeirasdojardim.

Aconcepçãoplásticadenunciaumaunidadecriadoraedáatodaacidadeamarcacaracterísticadeumsótempo(grifomeu).TodososprojetosdosedifíciosdeBrasílialevamaassinaturadeOscarNiemeyer.Éasuaobradefinitiva.“Dogestoprimáriodequemassinalaumlugaroudeletomaposse,doiseixoscruzando-seemânguloreto,ouseja,doprópriosinaldacruz”Destasoluçãosimples,nasceuoplanodeBrasília.Autor,LucioCosta.

Acâmeramostraumhomemquelêumarevista,emfrenteàIgrejinha.Vemosnessa

cenaumpaineldeAthosBulcão,naentradadaIgreja,quehojenãomaisexisteA

câmeraacompanhaoedifícioemummovimentoascendente,atéotopodaigreja

ondeestáosinaldacruz.Emumplanoaberto,vemosafachadalateraldaIgrejinha,

concluída,masaindasemosazulejosdeAthosBulcão.Umoutroplanomostraa

frentedaigreja,homensemulherescirculamporali.

106

Foramapresentadasnessassequênciasasjoiasdaarquiteturabrasileirajá

executadas,frutodasmãosdostrabalhadores.Aparecemapósumaintroduçãoque

mostraasacomodaçõesprovisóriasdosoperários,emcontrapontoaosedifícios

destinadosaacolherosorganismosindispensáveisàvidadeumanação.Apesarda

constantealternânciaentreobraeoperários,aofilmaroPaláciodaAlvoradaea

Igrejinhasãoadotadosmovimentosdecâmeraqueacompanhameressaltama

composiçãoplásticadosedifícios–otravellinglateralnoPaláciodaAlvorada,a

panorâmicaverticalnaIgrejinha–eanarraçãotrataderessaltarseusatributos

técnicoseartísticos.Omovimentodaspessoasquecirculamnessesedifícioséquase

coreográfico.

VoltamosàCidadeLivre,novamentesobatrilhadamodadeviola.Vemosagoraum

grupodetrêscrianças,queolhamparaacâmera.Brasileirosdeamanhã.Paraeles,o

futuroreservaimprevisíveishorizontes.Seguem-seváriosplanosdocotidianona

CidadeLivre:umhomemescoradoaumaônibusconversacomoutropeloladode

dentro;umcavaloparadoemfrenteaumaloja;umhomementraemumônibuscujo

107

letreirodizTaguatinga;doismeninoscaminhampelaruacarregandobancosde

madeira;pessoaspercorremacalçadadaslojas;umaimagempanorâmicamostraum

grandeaglomeradodepessoasemumafeiraemfrenteaoedifíciodomercado;vários

planosdomovimentodepessoasnafeira.Nessesplanos,éevidenteadiscrepância

entreonúmerodehomensemulheresnocotidianodaCidadeLivre.Umadelas

circulaporumacalçada;outraatravessaarua;entreamultidãodafeira,vemos

passarapenasduasmulheresqueandamjuntas;asequênciaterminacomoplanode

umamulhernegra,comumguarda-sol,acompanhadadesuafilha.

Acâmeranosmostraagora,emtravelling,váriasmulheressentadasolhando

diretamenteparaalente.Masaqui,problemassériosquenãoconhecemaindaresposta.

Acâmeraterminaseumovimentonaportadoestabelecimentoaofundo,ondeestão

depédoishomenseumamulher.Todosolhamparaacâmera.

Vemosagoramulheresquelavamroupaàbeiradeumriacho,algumaslavamospés,

conversamentresi.Longedofragordasmáquinasedosmartelos,anaturezaauxiliaas

necessidadesdosquevivemopresente.

NessassequênciasdaCidadeLivre,aproximamo-nosmaisaindadaspessoasqueali

vivem,aimagemdosbrasileirosdeamanhã.Ograndeaglomeradodepessoasem

tornodafeira,ascriançasquecaminhamsozinhaspelasruas,asmulheresque,

sentadasladoaladoolhamparaacâmera,aimagemdaslavadeirassãoretratos

108

próximosdessarealidadecujodestinoéincerto,longedofragordasmáquinasedos

martelos.

Voltamosaocanteirodeobras.Osoperáriosdeixamotrabalho,seguematé

caminhõesqueoscarregamaosmontes.Váriosplanosdosoperárioscaminhando,

elespassamemfrenteàcâmera,oscaminhõesseguemapinhadosdeoperários.

Acabadootrabalho,Brasíliaperdeasuaprópriaalma.Emortaéemverdadetoda

cidadesemapresençahumana.Paracasacomansiedade,quealguémestáàespera.

Ofilmeterminacomimagensdealgunshomensemtornodeumafogueira,àbeirado

lago.Elestocamviolão,bebem,conversam;aolado,asilhuetadeumagrande

máquina.Amigos,umviolão,umafogueiraemúsicaparadizeradeusaodia

agonizante.Amanhã,estarámaispróximoofuturo.

109

3.2. Modernidade e contradição

OfilmedeGersonTavareséumadescobertarecente,econstituiemexemplarúnico

dentreosfilmescontemporâneosàconstruçãodacapitaleproduzidossobreela.

Tomandoocontextodeproduçãodofilmeeinserindo-onessasafrade

documentáriosqueaventavamoCinemaNovo,asuaanálisetorna-seimprescindível

paraumtrabalhoquebusqueosmeandrosdoprojetodemodernidadequeBrasília

inspirava.

Aestruturageraldofilmeéconstruídadeformaaressaltarocontrapontoentreo

Brasildofuturoquesepretendiacomanovacapital,eoBrasildopassadoquese

mostravalatentenocotidianodocanteirodeobras,naCidadeLivreenos

acampamentosdeoperários.AocontráriodofilmedeJeanManzon,cujodiscurso

procuraenaltecerumanovaculturaqueestavaporsurgirjuntocomacidadeea

sobreporumpassadoomissonofilme,Brasília,capitaldoséculotratadeexporesses

doistemposemcontradição.Éimportanteressaltarqueentre1957e59o

contingentepopulacionaldoDistritoFederalcresceusignificativamente31,fazendo

comqueascontradiçõessemostrassemdemaneiramaisevidente.

Ousoconscientedatrilhasonora–aoalternar-seentresonsfuturísticossobreas

imagensdacidademodernistaemconstrução,eumamodadeviolasobreasimagens

daCidadeLivre–ressaltademaneiraquasecaricataessecontrapontoentretempos.

Ouseja,ofilmedeGersonTavaresprocuraentenderamodernidadeencampadapor

Brasíliaapartirdesuascontradiçõesintrínsecas.MostraoquantoesseBrasildo

passadoaindaestariapresentenoBrasildofuturoquesepretendiaconstruir.

Portanto,aideiademodernidadeconstruídaemBrasília,capitaldoséculoquestionao

tratamentoparadigmáticodadoàhistória,presentenaabordagemdeJeanManzon.

Aoquestioná-lo,estánecessariamenteproblematizandoumacertadivisãodotempo

histórico.Essetempolineardarevoluçãoparadigmáticaconsideraahistóriacomo

umasucessãodeblocosestanques,divididospormurosquenãoadmiteminterseções

entreeles,umdecursoirreversível,queapontaparaofuturocomopontoculminante

31SegundooCensode1959,adensidadedemográficanoDistritoFederalevoluírade2,1hab./km2emjulhode1957para11hab./km2emmaiode1959.(RIBEIRO,2008,p.67)

110

deumatrajetória.

Umaleituraopostaaotratamentolinear,apontadoporReinhartKoselleckemseu

livroEstratosdoTempo(2014),consisteemenxergarotempohistóricocomo

recorrenteecircular:omodelocircularseriaatribuídoaosgregos,enquantoolinear,

aosjudeusecristãos.Segundooautor,ambososmodelossãoinsuficientes,poistoda

sequênciahistóricaécompostatantoporelementoslinearescomoporelementos

recorrentes.Koselleckpropõeumaabordagemque,segundoele,pretende“solapara

oposiçãoentreolineareocircular”:consideraostemposhistóricoscomo

constituídosde“váriosestratosqueremetemunsaosoutros,masquenãodependem

completamenteunsdosoutros”.(KOSELLECK,2014,p.19–20)

SegundoKoselleck,otermohistóriaemgregosignificaoqueosalemãesdenominam

deexperiência,eterumaexperiênciasignificaempreenderumaviagemde

descoberta.“Anarrativahistóricasósurgecomociênciaapartirdorelatodessa

viagemedareflexãosobreesserelato”.Ahistóriaseria,portanto,“aexpressãomais

puradeumaciênciadaexperiência”(KOSELLECK,2014,p.20).Osestratospropostos

peloautorestariamdivididosanaliticamenteemtrês,vinculadosaoqueeledenomina

vestígiosdaexperiência.

Oprimeirodelescorrespondeàconstataçãoexperiencialdasingularidade:sãofatos

que,vistoshistoricamente,representamreviravoltassingulares,ocorrências

surpreendenteseirreversíveisquealteramdemaneiraprofundaocursodahistória.

Aideiadeprogressotorna-sepossívelapartirdeumasucessãodesingularidades.

Admitindoqueassingularidadessãoapenasumapartedaconstruçãotemporal,um

segundoestratoacomplementa:arepetição.Esseestratoestávinculadoa

procedimentossimplesecotidianos,esuarecorrênciaseriaapré-condiçãoparaa

ocorrênciadesingularidades.Koselleckseutilizadoexemplodafalaedalinguagem

paraexplicá-lo:“mesmoquemdesejadizeralgonovoprecisaseexpressarna

linguagemexistente”.(KOSELLECK,2014,p.22).Repetiçãoesingularidadese

complementamnanarrativadostemposhistóricos.

Aquisurgeumfenômenoquetornatãointeressanteahistória:nãosóacontecimentossúbitosesingularesproduzemmudanças;asestruturasdemaiorduração–quepossibilitamasmudanças–parecemestáticas,mas

111

tambémmudam.Oproveitodeumateoriadosestratosdotempoconsistenasuacapacidadedemedirdiferentesvelocidades,aceleraçõesouatrasos,tornandovisíveisosdiferentesmodosdemudança,queexibemgrandecomplexidadetemporal.(KOSELLECK,2014,p.22)

Aessesdoisprimeirosvemsejuntarumterceiroestrato:atranscendência.

Fundamenta-senaconstataçãodequehátemposhistóricosquetranscendema

experiênciadeindivíduosegerações.Sãotranscendentesnãoporreferirem-seaum

sentidonãomaterial,masporconstituíremexperiênciasqueseestendemporvárias

gerações.Seriamexemplodessasexperiênciasacontínuareproduçãobiológica,

verdadesreligiosasoumetafísicas,quesetransformamemritmostãolentosqueuma

sógeraçãonãoteriaapercepçãoclaradesuasmudanças.

Koselleckvaiolharparaamodernidadeapartirdessanoçãotemporalcompostade

estratosinterpostos.Paraele,otermomodernidadeseentranhouemnossalíngua

coloquial,aproximando-sedeumasinonímiadonovo.Dessaforma,segundoa

periodizaçãoeurocêntricadotempohistóricoemidades–Antiga,Média,Modernae

Contemporânea–aquelasantecedentesàModernanãoseriamnovas.ParaKoselleck,

acategoriadonovofoiindevidamenteatribuídacomoexclusivadamodernidade.

Aventaassimacontrovérsiadessadivisãoemidades,apesardeseuefeitodidático:é

precisoadmitirque,emtodaselas,onovoinstaurouasuapotênciarealizadorae

transformadora.

Sendoassim,onovo,ouessatransformaçãosingularnodecursodotempoprecisa

tambémserrelativizadoapartirdasestruturasderepetiçãoedetranscendência,

admitindoqueessaobservaçãotambémpossibilitaprognósticostemporais.Ouseja,o

singulartambémestáinseridodentrodeumacadeiaderepetiçõesquelhepermite

acontecer,emesmoenquantonovo,poderáserprognosticado.SegundoKosseleck,é

essaaexperiênciatemporalcomaqualohistoriadorserelaciona.

Noentanto,essaformadelidarcomaexperiênciatemporalemKosellecknãoconduz

aumatotalaboliçãodasdivisõesemtemposhistóricos.Osestratospermitemuma

interpolaçãotemporal,segundoaqualéprecisoestaratentoaofatodeque,ao

falarmossobreumeventotransformadornopresente,estamostambémaprocurado

queháneledepassadoedefuturo.

112

Dessaforma,asestruturastantoserepetemcomosetransformam,edependendoda

velocidadedasmudanças,osperíodospodemsercaracterizadosdemaneira

diferente.SegundoKosseleck,oquepoderiamarcaroiníciodeumanovapercepção

modernaéque,apartirdeumdadomomento,apercepçãodasmudançaspassoua

serpercebidademaneiramaisacelerada,comonuncavistoantes.

Registremosentão:deacordocomapercepçãoquaseunânimedoscontemporâneos,aaceleraçãodoprocessopolíticodeuinícioànossamodernidade–muitoantesdearevoluçãotécnico-industrialimporasaceleraçõesaodiaadianormal.Issosignificaque,desdeentão,asantigasdoutrinaspolíticaseseusinventáriosdeexperiênciashistóricasavançamparaumnovoestadofísicoepassamasofrerumamudançaestrutural.Apossibilidadedeperceberdemodoimediatoessamudançaestruturaléprovavelmente,acaracterísticadamodernidade.Amudançaestruturalsetransformaemevento.(KOSELLECK,2014,p.221)

Oquepoderiaentãoserreconhecidocomoumamudançaestrutural(ou

paradigmática)éaquivistocomoumevento,reforçandoaideiadequeahistóriaé

compostaporestratosdistinguíveisquemudamemvelocidadesdiferentes.Segundo

Kosellecképartedotrabalhodohistoriadoridentificarosdiversosestratosesuas

respectivasvelocidadesdemudança.Dessaforma,poderiam

...redefinirasépocastemporaisquefazemjusàmodernidade,massemnecessidadedeexcluirasoutrasépocasdanossahistóriacomumcomoalgocompletamentenovo.Sequisermossaberquãonovaéanossamodernidade,precisamossaberquantosestratosdahistóriaantigaestãocontidosnopresente.(KOSELLECK,2014,p.221)

Essaabordagemdotempohistóricopermitequepossamosolharparaamodernidade

admitindoasimprecisõescomoconstitutivasdesuaexperiência.Nãosetratade

negarqueamodernidadeprovocoutransformaçõesdemaneiraprofundanomundoe

nonossomododevivenciá-loetransformá-lo.Mas,passadomaisdeumséculoe

meiodesdequeBaudelaireseutilizoupelaprimeiravezdotermo,anoçãodesse

processocomoumcaminhoinequívocoaoprogressoéapenasumaparteda

compreensãodessasmudanças,queatendeadiscursosdeterminados–namaioria

dasvezes,ideológicos.

MarshallBermanemseulivroTudoqueésólidodesmanchanoar:aaventurada

modernidade(1986),vaibuscarnosprimeirosmodernos–Baudelaire,Marx,Goethe,

113

Dostoievski–“descortinaralgumasdasdimensõesdesentido,(...)exploraremapear

asaventurasehorrores,asambiguidadeseironiasdavidamoderna”(BERMAN,

1986,p.11).OtítulodolivroconsisteemumafrasedeMarxextraídadeumtrechodo

ManifestodoPartidoComunista:

Todasasrelaçõesfixas,enrijecidas,comseutravodeantiguidadeeveneráveispreconceitoseopiniões,forambanidas,todasasnovasrelaçõessetornamantiquadasantesquecheguemaseossificar.Tudoqueésólidodesmanchanoar(grifomeu),tudooqueésagradoéprofanado,eoshomensfinalmentesãolevadosaenfrentar(...)asverdadeirascondiçõesdesuasvidasesuasrelaçõescomseuscompanheiroshumanos.(apudBERMAN,1986,p.21)

AfrasedeMarxédetentoradeumsentidoquevaipermearaóticadoautoracercada

modernidade.Muitoemboraadmitaqueháalgocompletamentenovosurgindo,para

Marxamodernidadeseauto-definecomoesseprocessodeconstanterenovação,ao

longodoqualnãosepode“pisarduasvezesnamesmamodernidade”.Sermoderno

significavivenciarumambientedeaventura,detransformaçãoconstante,de

crescimento,mastambémdaconsciênciaiminentedeseupotencialautodestrutivo.

Aodenunciarqueanoçãodemodernidadeesteve,aolongodoséculoXX,

erroneamenteassociadaàsideiasdemodernizaçãoemodernismo,Bermanvai

procurarresgataressainterdependênciaentreasforçasmateriaiseespirituais,entre

indivíduoeambientemoderno,que,segundoele,estevepresentenãosomentenos

escritosdeMarx,mastambémemBaudelaire,ambosnoséculoXIX.Éimportante

ressaltarqueBermanescrevenosanos1980,eficaclaraasuavisãodeque,apartir

dasegundametadedoséculoXX,correntesdepensamentocomoopós-modernismo

eoestruturalismo,quesepretendemsucessorasdamodernidade,esqueceram-sedo

espíritodemodernidadepresentenoséculoXIX,especialmenteemBaudelaire,que

emmuitoconvergecomoqueessascorrentesaventavamcomonovidade.

Bermandivideopercursohistóricodamodernidadeocidentalemtrêsfases:uma

primeiraquevaidoséculoXVIatéofinaldoséculoXVIII,períodonoqualaspessoas

estãoapenasexperimentandoavidamoderna,eosensodemodernidadeaindaé

difuso;umasegundafasequeseiniciacomaRevoluçãoFrancesa(1790)evaiatéo

séculoXIX,daqualemerge,abruptamente,umpúblicomoderno,quepartilhado

sentimentodeviveremumaerarevolucionária,masqueaindavivenciaumambiente

114

quenãoémodernoporinteiro(édessasensaçãodeviveremdoismundosque

emergeadicotomiamodernização/modernismo);efinalmenteumaterceirafase–o

séculoXX–naqualoprocessodemodernizaçãoseexpandepelomundo,o

modernismosedesenvolveatingindo“espetacularestriunfosnaarteeno

pensamento”,eosdoisprocessosatingemoápicedesuadicotomização,cadaum

delesreivindicandoparasiosentidodamodernidade.

Bermantrataderessaltarque,aocontráriodoqueafirmaSouzanocapítulo

anterior32,mesmoduranteaprimeirafaseamodernidadejáseanunciava,muito

emboraoambienteprevalecesseessencialmentemedieval.Essaprimeirafaseé

caracterizadaprincipalmentepelomovimentodesaídadocampoemdireçãoàs

cidades.Essemovimentoprovocaumamudançadesensibilidade,namedidaemque

essesindivíduospassamavivenciarexperiênciasqueasmaioresconcentrações

populacionaisprovocam.Bermanvaisevalerdefigurasliteráriasparailustraressa

primeirafase.Rapidamentecitada,ANovaHeloísa,deJeanJacquesRousseau,

apresentaumherói,Saint-Preux,querealizajustamenteessemovimentoexploratório

docampoparaacidade.

Eleexperimentaavidametropolitanacomo“umapermanentecolisãodegruposeconluios,umcontínuofluxoerefluxodeopiniõesconflitivas(...)Todossecolocamfrequentementeemcontradiçãoconsigomesmos”,e“tudoéabsurdo,masnadaéchocante,porquetodosseacostumamatudo”.Esteéummundoemque“obom,omau,obelo,ofeio,averdade,avirtude,têmumaexistênciaapenaslocalelimitada”.Umainfinidadedenovasexperiênciasseoferecem,masquemquerquepretendadesfrutá-las“precisasermaisflexívelqueAlcibíades,prontoamudarseusprincípiosdiantedaplateia,afimdereajustarseuespíritoacadapasso”(BERMAN,1986,p.18)

Aoanunciaressesnarradoresquejápercebememseuambienteastransformações

espaciaisesociaisqueamodernidadecomeçaaprovocar,Bermanestáassumindo

queesseprocessohistóricodetransiçãodamodernidadenãoacontecesomentepor

meiodetransformaçõesabruptas,masestásendocaptadopelasensibilidadedeuma

época,mesmoantesdaparadigmáticaRevoluçãoIndustrial.Relacionandoessa

leituratemporalaosestratosdetempodeKoselleck,poderíamosdizerquehácertas

rupturasnosestratosderepetição–ocotidianopré-industrial–queacontecemde

maneiramaislentaequesãoespéciesdeprognósticosdeacontecimentossingulares

32Verpp.81a83.

115

quevãopromover,aísim,transformaçõesmaisabruptas.Ouseja,épossívelperceber

quealgoestáparamudarradicalmenteeessatransformaçãojáseanuncia.

Nasegundafasedamodernidade–oséculoXIX–apaisagemcomeçaaser

modificada,eoambientemodernomostrasuasimplicaçõesnavidacotidiana:

...engenhosavapor,fábricasautomatizadas,ferrovias,amplaszonasindustriais;prolíficascidadesquecresceramdodiaparaanoite,quasesemprecomaterradorasconsequênciasparaoserhumano;jornaisdiários,telégrafos,telefoneseoutrosinstrumentosdemediaquesecomunicamemescalacadavezmaior;EstadosNacionaiscadavezmaisforteseconglomeradosmultinacionaisdecapital;movimentossociaisdemassa,quelutamcontraessasmodernizaçõesdecimaprabaixo,contandosócomseusprópriosmeiosdemodernizaçãodebaixopracima;ummercadomundialquetudoabarca,emcrescenteexpansão,capazdeumestarrecedordesperdícioedevastação,capazdetudoexcetosolidezeestabilidade(BERMAN,1986,p.19).

Énessafaseemqueosmodernistasvãoexploraresseambientetantocomofontede

seusataqueserejeições,comodesuasdescobertasnocampodasartesedo

pensamento.Figuraemblemáticadesseperíodo,Baudelairevaiseesforçarpara

transmitiraosseuscontemporâneos“umaconsciênciadesimesmosenquanto

modernos”.

Baudelairesepermitiuserprofundamentecontraditórioemrelaçãoaesseambiente

denovidades.Dividia-seconstantementeentreoelogioeufóricodavidamodernaea

suamaisprofundarecusa.EssacontradiçãodemonstraoquehaviaemBaudelairede

maisreveladordoprópriosentidodamodernidade:umprocessodifusoedifícilde

determinar,sendoaefemeridadeasuacaracterísticamaislatente.Baudelairevai

conclamaroinstante,oartistaquesefixaemseutempopresente.Aoquestionara

fixaçãodaculturafrancesanastradiçõesclássicas,afirmaque“todomestreantigo

temsuaprópriamodernidade”,esvaziando-adetodooseupesohistórico.Baudelaire

reconheciaonovo,amodernidadecomoumadisposiçãopresentedosujeitoque

encaraoseutempoeprocuratransformá-lo.

OscomentáriosdeBermanacercadaobradeBaudelaireoferecemumpanoramade

comoépossívelenxergar,naobradoartista,ostraçosdessacontradição,queorase

revestede“modernolatria”,oradetotaldescrença.EmOpintordavidamoderna

(1859-60),Baudelaireprojetaocenáriodemaravilhasdoambientemoderno,vistoa

116

partirdaobradeumpintordeseutempo–ConstantinGuys.Baudelairefaladauma

esfuzianteeuforiaqueoindivíduomodernosenteaosecolocarnomundo,aose

depararcomumnovoedifício,umanovamáquina,umanovavestimenta.

Assimelevai,corre,procura.Oquê?Certamenteessehomem,talcomoodescrevi,essesolitáriodotadodeumaimaginaçãoativa,sempreviajandoatravésdograndedesertodehomens,temumobjetivomaiselevadodoqueadeumsimplesflâneur,umobjetivomaisgeral,diversodoprazerefêmerodacircunstância.Elebuscaessealgo,aoqualsepermitiráchamardeModernidade;poisnãomeocorremelhorpalavraparaexprimiraideiaemquestão.Trata-se,paraele,detirardamodaoqueestapodeconterdepoéticonohistórico,deextrairoeternodotransitório.Selançarmosumolharanossasexposiçõesdequadrosmodernos,ficaremosespantadoscomatendênciageraldosartistasparavestiremtodasaspersonagenscomindumentáriaantiga.(...)Evidentemente,ésinaldeumagrandepreguiça;poisémuitomaiscômododeclararquetudoéabsolutamentefeionovestuáriodeumaépocadoqueseesforçarporextrairdeleabelezamisteriosa.AModernidadeéotransitório,oefêmero,ocontingente,éametadedaarte,sendoaoutrametadeoeternoeoimutável.(BAUDELAIRE,1988,p.173–4)

Poroutrolado,Baudelairejáhaviamostrado,emseuensaiosobreaExposição

Universalde1855–Métododecrítica.Daideiamodernadeprogressoaplicadaàs

BelasArtes.DeslocamentodeVitalidade–asuamaisprofundaaversãoàcrençano

infalívelprogresso:

Seumanaçãoconcebehojeaquestãomoralnumsentidomaiscomplexodoqueentendianoséculoprecedente,háprogresso,issoéevidente.Seumartistaproduznesteanoumaobraquemanifestamaissaberouforçaimaginativadoquedemonstrounoanopassado,certamenteeleprogrediu.Seosvívereshojesãomaisbaratosedemelhorqualidadedoqueosdeontem,issoéumprogressoincontestávelnaordemmaterial.Mas,porfavor,ondeestáagarantiadeprogressoparaofuturo?Poisosdiscípulosdosfilósofosdovaporedosinflamáveisquímicosaentendemassim:oprogressosólhesaparecesobaformadeumasérieindefinida.Ondeestáessagarantia?Elanãoexiste,afirmo,anãoseremnossacredulidadeeemvossafatuidade.(BAUDELAIRE,1988,p.36–7)

OqueBaudelairevaidenunciar,segundoBerman,éessaprofundacisãoentre

progressomaterialeprogressoespiritualqueoambientemodernopromove–“uma

confusãoquepersisteemnossoséculoesetornaespecialmenteexuberanteem

períodosdeboomeconômico”.Essavisãoacabacriandoafiguradeumartistaquese

voltaparasimesmo,apontandoacrençaemumprogressomaterialcomodanosasao

seuespírito.

Condenadocontinuamenteàhumilhaçãodeumanovaconversão,tomeiumagranderesolução.Parameverlivredohorrordessasapostasiasfilosóficas,resignei-meorgulhosamenteàmodéstia:contentei-meemsentir,

117

volteiabuscarumrefúgionaimpecávelingenuidade.Peçohumildementeperdãoporissoàsdiversasespéciesdeespíritosacadêmicosquehabitamasdiferentesoficinasdenossafábricaartística.Foiassimqueminhaconsciênciafilosóficaencontrourepousoe,pelomenos,possoafirmar–namedidaqueumhomempoderesponderporsuasvirtudes–queagorameuespíritogozadeumaimparcialidademaisfecunda.(BAUDELAIRE,1988,p.33)

Nessecontextodecríticaaoprogressomaterialéquevaiseinserirasuarecusaà

fotografia,evidenteemseuensaioOpúblicomodernoeafotografia(1859):o

verdadeiroqueafotografiasepropõeamostrartorna-seo“inimigomortaldaarte”.

Apoesiaeoprogressosãodoisambiciososquesedetestamcomumódioinstintivoe,quandosecruzamnomesmocaminho,éprecisoqueumsesubmetaaooutro.Sepermitirqueafotografiasubstituaaarteemalgumasdesuasfunções,embreveelasuplantará–ouacorromperá–completamente,graçasàaliançanaturalqueencontraránaestupidezdamultidão.(BAUDELAIRE,1988,p.73)

Todaessanegaçãoaoprogressomaterialaoredordoartista,assimcomoareferência

à“estupidezdamultidão”,écontraditóriacomaprópriaobradeBaudelaire:um

artistacujapoesiaeraescritasobrearua,avidacotidianae,principalmente,noturna

deParis,osbares,cafés,etc.NopróprioensaioOpintordavidamoderna,Baudelaire

conclamaoartistaa“casar-secomamultidão”,eledeve“adentraramultidãocomose

estafosseumimensoreservatóriodeenergiaelétrica”ou“umcaleidoscópiodotado

deconsciência”.NestasmetáforascriadasporBaudelaire,oartistaoperacomoum

recriadordasforçastecnológicasmodernas.

Emumadesuaspoesias–Osolhosdospobres(SpleendeParis,no.26,1864)–

podemossentirdemaneiramaisforteessainteraçãoentreoindivíduoeoambiente

modernoemtransformação.Opoemadescreve,naspalavrasdonarrador,uma

queixaemrelaçãoàsuaamada,diantedaqualsesentedistante.Oacontecimentoque

provocaessedistanciamentotomalugar“emfrenteaumnovocafé,naesquinadeum

novobulevar”ondeocasalestásentado.Ali,emmeioaodeslumbrantecafé,que

pontuaonovobulevar,ocasalapaixonadoésurpreendidoporumafamíliadepobres,

queobservaembevecidaasmaravilhasdoreluzenteestabelecimento.Adistância

entreocasalseevidencianomomentoemqueonarradorpercebeaindiferença,eaté

orechaço,desuaamadaemrelaçãoàquelafamília,enquantoestesesente

incomodadodiantedasituação:“mesentiaumtantoenvergonhadodenossas

garrafasecopos,maioresquenossasede”.

118

Oambienteondesedesenrolaacenaéreveladordacontradiçãoqueamodernização

dascidadespassaaevidenciar:osbulevaresparisiensesdametadedoséculoXIX,

frutodasintervençõesdeHaussmann,modificavamprofundamenteoambienteda

cidade.AfamíliadepobresdescritaporBaudelairerepresentavaocontingente

populacionalquehaviasidoexpulsodosantigosbairros,devastadospelaabertura

dasgrandesavenidas,equeagoravagavapelasruasdeParis.Aqui,amodernização

dacidadeabreumaferidaquetrazparaosolhosdoindivíduomodernoasua

evidentecontradição.

EmAperdadohalo(SpleendeParis,no.46,1865),Baudelaireconfrontaopoeta

diretamentecomadinâmicadanovacidade,agoraentrecortadapelosbulevares.Em

meioaonovoritmoqueobulevarimpõe,Baudelaireobrigaopoetaaatravessá-lode

umacalçadaaoutra,interpeladopelointensotráfegoeprocurandotransporolodaçal

demacadame(opavimentodemacadamequerevestiaosbulevarestendiaaficar

enlameadonosperíodosdechuva).Nessatravessia,opoetadeixacairoseuhalo,e

nãoconseguemaisrecuperá-lo.Aodeixarqueosímbolodasacralidadedoartistacaia

emmeioaotráfego,Baudelaireestádestituindoaartedetodooseucaráter

transcendenteetrazendo-aparaomeiodamultidão.Oartistaaliprecisaadaptar-sea

essenovoritmo,apoesianãoestáemseuhalo,masnomovimentoqueocorpodo

artistaprecisafazerparaseadaptaraosnovosritmosdacidadeedavidamoderna.

AsvisõesdeBaudelaireacercadavidamoderna,aindanoséculoXIX,são

surpreendentementeatuais–comexceção,claro,desuavisãopessimistaemtornoda

fotografia,que,apesardereacionária,explicitaoembateentreoverdadeiroeaarte

queestáemsuagênese.Nãosepodeolharparaosescritosdoartistaembuscade

umasódefiniçãodamodernidade.Eletransitaporumcaleidoscópiodedefinições,e,

apesardeautocontraditórias,cabemtodasdentrodesseprocessodifusoeirregular

queéamodernidade.Baudelairevaiserumafiguraque,segundoBerman,conseguiu

reunirasforçasmateriaiseespirituaisdavidamoderna:modernismoemodernização

sãoinseparáveisemsuaobra.

Comojáfoidito,Bermanconstataque,emsuaterceirafase–oséculoXX–,a

modernidadeatingiuumestágionoqualessainterdependênciaentreforças

materiaiseespirituaisdavidamodernafoiesquecida.Umaprofusãodedisciplinas

119

científicasemanifestaçõesartísticasquenemsequerexistiam“produziuuma

assombrosaquantidadedeobraseideiasdamaisaltaqualidade”duranteoséculoXX.

Noentanto,dentrodessaprofusão,opensamentoacercadamodernidadeviveum

achatamento,deixamosdereconheceraconexãoentreanossaculturaeanossavida,

eamodernidadepassaasemostrarestanquecomoum“monólitofechado”,oravista

apartirdeum“entusiasmocegoeacrítico”,oracomo“condenadasegundouma

atitudededistanciamentoeindiferençaneo-olímpica”.AquiBermansereferetanto

àscorrentesdecríticadamodernidadequepassamatomarcorpoprincipalmente

apósaSegundaGuerra,comoaposturasmaisradicaisdeafirmaçãodomodernismo,

queecoamnaprimeirametadedoséculo.Écuriosoobservarcomoessesdois

posicionamentosreuniam-seemBaudelaire,masque,apartirdoséculoXX,vai

reverberaremnovoshalosacoroarasforçasmateriaisdamodernidade,travestidas

demodernismo.

Bermancitacomoexemploodiscursodosfuturistasitalianos,defensoresda

modernidadepréPrimeiraGuerra,queopunhamradicalmentealiberdadeda

modernidadeàprisãodatradição:

Peguemsuaspicaretas,seusmachados,seusmarteloseponhamabaixoasveneráveiscidades,impiedosamente!Vamos!Ateiemfogonasestantesdasbibliotecas!Desviemoscanaisdeirrigaçãoparainundarosmuseus!(...)Deixemqueelesvenham,osalegresincendiárioscomseusdedosembrasa!Aquiestãoeles!Aquiestãoeles!(BERMAN,1986,p.26)

Essaavalanchepropostapelosfuturistas,seconsideradacomometáforadasforçasde

modernizaçãoedeprogresso,somenteacontecemediantea“altoscustoshumanos”.

Oqueaconteceatodasaspessoasqueforamtragadasnessasmarés?Suaexperiêncianãoestáregistradanaimagemfuturista.Aoquetudoindica,algumasdasmaisimportantesvariedadesdesentimentoshumanosvãoganhandonovascoresàmedidaqueasmáquinasvãosendocriadas.(BERMAN,1986,p.27)

Bermanassociaessapaixãopelamáquinaeessedistanciamentodopovotambémao

modernismodaBauhaus,Gropius,MiesvanderRoheeLeCorbusier:sãoelesquevão

criarosnovoshalosdoséculoXX.Comojámencioneinocapítuloanterior,os

preceitosdaarquiteturamodernadifundidosporLeCorbusiereaarquitetura

modernistabrasileirafeitasobsuainfluência,vãoconstituiresseespectrodo

modernismovoltadoparasimesmo,queBermamchamade“modernolatria”.

120

Cabeperguntarcomoessecorpodeideiasacercadomodernismonaarquiteturaeno

urbanismo,herdadasdomodernismoeuropeudaprimeirametadedoséculoXX,vão

impactarumpaíslatino-americanosubdesenvolvidocomooBrasil.SegundoJames

Holston,omodernismosevoltaparaospaísesemdesenvolvimentodaseguinte

forma:

Confrontandoosefeitosdeletériosdocapitalismosobreavidaurbana,tantonascidadesmetropolitanascomonascoloniais,osmodernistaslevantaramaquestãododesenvolvimentourbanonaÁfrica,ÁsiaeAméricaLatina.Comseusprojetosparaconstruirnovascidadesnessasregiões,parareconstruirvelhascidades,eparareorganizaroambienterural,propunhamcomefeitoqueospaísesemdesenvolvimentopudessemsaltardaidadedapedraparaaeradamáquina,docolonialismoparaumanovaordemsocialcoletiva(qualquerquesejaasuadefinição),doisolamentoparaaintegraçãoregionaleplanetária–semprecisarimitarodesenvolvimento(istoé,ocaos)daEuropaurbana.(HOLSTON,1993,p.89)

Nesseprojetoestavaimplícitaacrençadequeourbanismomodernistaofereciauma

soluçãoprontapara“salvaromundosubdesenvolvidodocaosedasiniquidadesda

revoluçãoindustrialeuropeia”.Seguindoomodelosoviético,aconstruçãodessas

novascidadesrequeriaumaforteintervençãoestatal,condiçãoespecialmente

propíciaempaísessubdesenvolvidoscomooBrasilpelofatodenãoexistiruma

burguesiasuficientementeconsolidadaapontoderesistiràsdesapropriaçõesde

terraqueoestadodeveriapromover.Alémdisso,essespaísescontavamaindacom

“generosaofertademão-de-obrabarata,evastasregiõesvaziasqueprecisavamser

povoadaseintegradasemumprojetodeconstruçãonacional”.

HolstonpartedoprincípioquehaviaemBrasíliaumaconvenienteafinidadeentrea

modernizaçãodopaíspretendidaporJuscelinoeomodernismodesuaarquitetura:

ambasconcordavamqueeraprecisoapagarumpassadoereescreverosnovos

símbolosdamodernidadebrasileira.Noentanto,segundoHolston,oprimeiro

equívocodoprojetomodernistaéque“emboratenhasidoconcebidaparacriarum

tipodesociedade,Brasíliafoinecessariamenteconstruídaehabitadaporoutra–pelo

restodoBrasil,quesepretendianegar.OdesenvolvimentosocialdeBrasíliaé

impulsionadopelastensõesecontradiçõesentreasduassociedades”(HOLSTON,

1993,p.30).

NofilmedeGersonTavares,vemosqueesseBrasildopassadojáocupavaocanteiro

deobrasdacapital.Sabemostambémqueessaspessoasnãoretornaramàssuas

121

cidades,comoerapretendidoàépoca,masalipermaneceram,reivindicandoinclusive

aconsolidaçãodaCidadeLivre(hojeNúcleoBandeirante).Assim,aonegaresseBrasil

dopassadooprojetodeBrasílianegavaoprópriosubdesenvolvimentodopaís,cuja

característicalatenteéasuaprofundadesigualdadesocial.

ÉcuriosoobservarcomoGersonTavaresregistraessasradiantescriaçõesda

arquiteturamodernista:comencantamentoereverência.Osplanosnosquaisé

descritaaarquitetura–concluídaounão–tratamderessaltarosseusaspectos

plásticosmaisevidentes:avastidãodaesplanadadosministériosvistaemumgirode

180o;ahorizontalidadedoPaláciodaAlvoradareforçadapelotravellinglateral;a

panorâmicaverticalparamostraracruzquecoroaacoberturadaIgrejinha;a

verticalidadedoedifíciodoCongressoNacionalnasubidadoelevador;apanorâmica

quemostraacúpuladaCâmaradosDeputados.Movimentoscoreográficosparauma

cidadecoreográfica.Umatrilhafuturísticaparaapromessadeumfuturoimpressana

arquitetura.

Emcontraponto,aofazerimagensdaCidadeLivre,Gersonposicionasuacâmeraao

níveldochão.Olhaparaaruaemsuaescalamaishumana:apenasoplanoaéreo,

comoquepartindodoaltodocongresso,ésuaimagemdeapresentaçãoe

contextualização.Gersonfilmaaspessoasdeperto,ematitudescotidianas,elassão

identificadaspelacâmeraemsuaindividualidade,emcontrapontoaomodo

esquemáticocomoJeanManzonmostraostrabalhadoresemseufilme.Sãocorpos

vividos,cujoolharmuitasvezesédirigidoincisivamenteparaacâmera.Elessão

corporificadosnanarrativadeGersonTavaresnãoapenascomoengrenagensdeum

mecanismo,mascomovidapulsante,presençaaomesmotemponecessária,

incômodaelatentenocanteirodeobrasdeBrasília,expondoasentranhasdeum

processodemodernidadequenãosepodeencerrarapenasnasimagensdesua

arquitetura.AfamíliadepobresdeBaudelaireestavaali,nocanteirodeobras,a

encarar-nosatravésdacâmeradeGersonTavares,apresenciaroresplandecente

futuroqueseanunciava;noentanto,sabendoquedelenãopoderiafazerparte.

122

3.3. O corpo provisório

AoassistiraofilmedeGersonTavares,JuscelinoKubitscheksurpreende-seaonãose

vernatela:nemcomoimagem,nemcomocitação.Masnãosomenteelefoiexcluído

danarrativadeGerson:LucioCostaeOscarNiemeyercomparecemapenasna

narração.Nenhumengenheiro,nenhumpolíticoimportante,nenhumatordahistória

oficialfoipersonificadoemseufilme.Oscorpospresentesemsuamise-en-scènesão

exclusivamentedehomensemulheresquetrabalhavamehabitavamacidadeque

estavapornascer.

Oquenosdizessaconstrução?Dopontodevistadoprópriocinema,tratava-sede

trazerparaoprimeiroplanoaspersonagensdessacontraditóriamodernidade

brasileira,personagensdeumBrasilarcaicoquesetentasobrepor,masque

permanece,resisteedinamizaanovacidade.Dopontodevistadaépoca,aindase

acreditavaqueaintençãoinicialdeexpulsãodaquelaspessoasdefatosecumpriria.

Então,eraprecisodenunciaressapresença,registrá-laemtodaasuaforça,latênciae

provisoriedade.

Ocorpodessaspessoaséfilmadocomoumcorpoquenãopertenceaessacidade.A

suapresençaécontingente:suarelaçãocomosedifíciosdanovacidadesedá

unicamentepelotrabalho.Aofinaldodia,voltamparacasa,ouseguemparauma

fogueiraàbeiradolago.Éumcorponegadoporessaarquitetura,assimcomooerao

corpodafamíliadepobresnobulevardeHaussmann.Évistotransitoriamentecomo

umcorpo-máquina:ocorpodooperárioqueincansavelmentedevetrabalharparaa

conclusãodasobras.Aofinaldodia,reveste-sedesuaidentidade,desua

musicalidadeprópriaàbeiradafogueira.Mesmoencarnadoemsuas

particularidades,essecorpoviveumaexperiênciaprovisória,diantedofuturoincerto

queosreservaapósofimdagrandeempreitada.Mas,emtodaasuaprovisoriedade,é

umcorpoquevaicontestarenfaticamenteanoçãodequeestáalisomenteaoperara

engrenagemdaconstrução.

Ametáforadocorpo-máquina,levadaacaboporDescartes,ecrucialpara

conceituaçãodeumcorpomoderno,foiquestionadaporalgunsfilósofos

subsequentes.EspinosaescreveusobreométodocartesianoemPrincípiosda

123

FilosofiaCartesiana,de1663–vinteeseisanosdepoisdeDiscursodométodo.Apesar

deosescritosdeEspinosateremumafunçãoexpositivadastesesdeDescartes,no

apêndicePensamentosMetafísicos,ficaclarooafastamentoqueEspinosaassumedas

tesescartesianas.ParaEspinosa,Deuséumasubstância,constituídaporatributos

infinitos,dosquaisnósconhecemosdois:opensamento(mente)eaextensão(corpo).

Assim,afirmaqueDeusétambémmatéria,natureza,enãosomenteumespírito

perfeito,comoemDescartes.ParaEspinosa,“emDeusaessêncianãosedistingueda

existência,poissemaexistênciaaessêncianãopodeserconcebida”(SPINOZA,1983,

p.24).Asubstânciainfinita–Deus–temcomoatributostantoaextensãocomoo

pensamentoeétantocorpóreacomomental.Dessaforma,ocorpoespinosanonãoé

umaverdadeouumentedefinido,seuslimitesecapacidadessópodemser

determinadosemfunçãodesuainteraçãocomosdemaisatributosdasubstância.

CabeaquiacolocaçãodeMarilenaChauí,acercadeEspinosa,noprefáciodaediçãoOs

Pensadores:

Arelaçãoentreaalmaeocorponãoéadaaçãoedapaixão–aalmaativaeocorpopassivo;nemaobscurarelaçãocartesianadeumaaçãorecíprocadocorposobreaalmaevice-versa.Arelaçãoespinosanaéumarelaçãodecorrespondênciaoudeexpressão.Espinosafogedeumaexplicaçãodetipomecanicista:ocorponãoécausadasideias,nemasideiassãocausadosmovimentosdocorpo.Almaecorpoexprimemnoseumodopróprioomesmoevento.(SPINOZA,1983,p.14)

Décadasdepois,DavidHumetambémvaiseoporaopensamentometafísicoe

teológicodeDescartesemseutextoInvestigaçãosobreoentendimentohumano

(1748).Partindodeumempirismoradical,Humeafirmaqueopensamentose

encontra“encerradoemlimitesmuitoestreitosetodoopodercriadordamentese

reduzàsimplesfaculdadedecombinar,transpor,aumentaroudiminuirosmateriais

fornecidospelossentidosepelaexperiência”.(HUME,1984,p.138)Nossasideiassão

unicamenteproduzidasapartirdas“questõesdefato”,daspercepçõesdecausae

efeitoquetemosdascoisasaonossoredor,oquenoslevaaaferir,porprincípiosde

conexão,relaçõesde“semelhança”,contiguidadeecausação,sempreprovocadospela

presençadeumobjetoaosnossossentidosouanossamemória.Dessaforma,o

pensamentoemHumenãoexisteemseparadodanossarelaçãocorpóreacomo

mundo.

124

Essasvisões,apesardenãosesobreporàfraturaepistemológicaproduzidapelo

pensamentomecanicista,vãoterrebatimentosdiretossobreasmodernasciênciasdo

séculoXX,entreelas,asciênciassociais.Encarandoaexistênciacorporalhumana,as

ciênciassociaisvãoseutilizardocorpoenquantocategoriasimbólicaeobjetode

análisequepermiteumamelhorapreensãodopresente.

Seráqueessasciênciasnãolevaramàprópriasubversãodanoçãodecorpo?Umasubversãoquaseinvisível,masdecisiva,temavercomoabandonodasoberaniatradicionalmentereconhecidaàconsciência,aqueledeslocamentoamplamentedesencadeadopelossociólogosepsicólogos,ignorandoasvelhasmetafísicaseseuconfrontoentrecorpoeespírito,recusando-seadesignarapessoaunicamenteporsuavontade.Atitudesecomportamentostomamaíumsentidototalmenteinédito:gestos,tensõesfísicas,posturasdiversastornam-seoutrostantosindícios,porexemplo,paraumapsicanálisesensívelàsmanifestaçõesínfimaseexpressõesanódinas.(...)Ocorpopodeconduzirsuaconsciênciaemvezdeserseuobjeto.Derepente,oestudodessecorpoedeseusatosrevelademododiferentedoquerevelavaatéaqui:considerarporexemploqueexisteumainteligênciadomovimentoforadotrajetoclássicoquesubordinaomotorà“ideia”,eestudademododiferenteaspráticas,éestudardemododiferenteasmaneirasdefazeredeexperimentar.Enfim,éteremvistarecursosdesentidoexatamenteondeelespareciamnãoexistir.(CORBIN;COURTINE;VIGARELLO,2012,p.10)

DavidLeBreton,emseulivroSociologiadocorpo(2007),constróiumpanoramade

comoasciênciassociaistemlidadocomocorpodesdeoseusurgimentocomo

disciplinanoséculoXIX.Segundoele,ocorpoéafronteiravivaquedelimitao

indivíduoemrelaçãoaosoutros,aquelequedefineasoberaniadapessoa.A

constituiçãodocorpomodernoimplicano“isolamentodosujeitoemrelaçãoaos

outros(umaestruturasocialdotipoindividualista),emrelaçãoaocosmo(as

matérias-primasquecompõemocorponãotemqualquercorrespondênciaemoutra

parte),eemrelaçãoaelemesmo(terumcorpo,maisdoqueseroseucorpo)”.(LE

BRETON,2013,p.9)

Fenomenologicamente(...)ohomeméindiscerníveldasuacarne.Estanãopodesermantidaporumapossecircunstancial;elaencarnaoseuser-no-mundo,aquilosemoqueelenãoseria.Ohomeméessenão-sei-o-queeessequase-nadaquetransbordaseuenraizamentofísico,masnãopoderiaserdissociadodele.Ocorpoéamoradadohomem,seurosto.Momentosdedualidadeemumavertentedesagradável(doença,precariedade,deficiência,fadiga,velhice,etc.)ouemumavertenteagradável(prazer,ternura,sensualidadeetc.),dãoaoatorosentimentodequeseucorpolheescapa,dequeexcedeaquiloqueeleé.Odualismoéoutracoisa;elefragmentaaunidadedapessoa,amiúdeimplicitamente,resultaemumdiscursosocialquefazdessesepisódiosdedualidadeumdestino;eletransformaoexcessoemnatureza,fazdohomemumarealidadecontraditória,ondeapartedocorpoestáisoladaeafetadaporumsentido.(LEBRETON,2013,p.240–41)

125

LeBretonassumeocorponãocomoumatributodapessoa,mascomoolugare

tempoindistinguíveldeumaidentidade.Ocorposeriaumaficção,culturalmente

eficienteeviva.Elenãoexisteemestadonatural,estácompreendidonatramasocial

desentidos,efuncionaparaasociologiacomoummito:elecristalizaoimaginário

social.Paraele,estudarocorpoécompreendersistematicamenteaslógicassociaise

culturaisqueocompõe,osimagináriossociaisqueserelacionamaele,eoseureflexo

noespelhosocial.

Emumatentativasimplificadadetraçarumpanoramahistórico,LeBretondefine

trêsprincipaispontosdevista,relacionadosaocorpo,quepersistemnasociologia

desdeoseusurgimento.Umprimeiroeledenominadesociologiaimplícitadocorpo,

quecaracterizaoiníciodasciênciassociais,equesedesenvolvedeacordocomduas

linhasdeanálisediretamenteantagônicas:umaencaraocorpocomoprodutodas

condiçõessociais;outra,ascondiçõessociaiscomodeterminadaspelascondições

corporais(biológicas).Éassimdenominadaimplícitaporquesecaracterizaporuma

incertezadequeocorpopoderiaserobjetodeestudoespecíficodasciênciassociais–

aoinvésdamedicinaoudabiologia.Éapsicanálise,maisespecificamenteFreud,que

vairomperessarelaçãopuradocorpocomumaorganicidade,transformando-oem

umaestruturasimbólica.

UmsegundopontodevistaLeBretondenominadeumasociologiaempontilhado,que

proporcionasólidoselementosdeanáliserelativosaocorpo,masnãotratade

sistematizá-los.ComeçaatomarlugarnatransiçãodoséculoXIXparaoXX,epassaa

considerarocorpocomoproduzidopeloserhumanonasuainteraçãocomosoutros

enasuaimersãonocamposimbólico,subordinandoassimofisiológicoàsimbologia

social.Osestudosnessafasedãomargem,entreoutrosdesdobramentos,àetnografia.

Finalmente,umaterceiraperspectivaseriaadeumasociologiadocorpo

propriamentedita,queseinclinamaisdiretamentesobreelecomoobjetodeestudo,

estabelecendológicassociaiseculturaisquetêmocorpocomoelementocentral.

Essesestudospassamatomarespaçoprincipalmenteapartirdofinaldadécadade

60.Nesseperíodo,umnovoimaginárioacercadocorpocomeçaasedifundirna

sociedadeocidental:umcorpoqueprecisaserlibertodesistemastotalizantes–tanto

docapitalismoliberaldoocidente,comodostalinismodooriente.Proliferam-seos

126

estudosacercadacorporeidadeenquantocondiçãodeexistênciadoserhumanoem

sociedade,nummovimentoque,partindodanegaçãodeidentidadestotais,busca

nosmodosdeexpressãodoscorpososatributosdeidentidadesespecíficas,

constituídassocialmente,tantopeloindivíduocomopeloseuespelhamentonooutro.

Nessesentido,háaquiumaatualizaçãodocorpomoderno–queconquistasua

autonomiaemrelaçãoàmente–paraatuarcomofatordeindividuaçãoque,em

últimainstância,vaiexpressarsuasdiferenças.Nesseperíododosestudosculturais,

avançamofeminismo,omovimentonegro,eoutrosgruposidentitáriosna

reivindicaçãodequeaespecificidadedeseuscorpossejareconhecida,estudada,e,

acimadetudo,consideradanasociabilidadeenaconstituiçãodessecorpovivido,

entranhadonaexperiência.Nocasodofeminismo,apartirdomomentoemquese

questionaanoçãodequehomensemulheressãopartedeumamesmaidentidade–a

humanidade–,adiferençasexualseimpõenãosomentecomoumdadobiológico,

mascomomanifestaçãodeidentidadessexuaisedegêneroconstituídashistóricae

socialmente(HALL,2006).

Adualidadequepromoveoestatutodepossedocorpo,afastando-odeum

pertencimentoaocosmoparaaproximá-lodanoçãodeindivíduo,éamesmaquevai

fazercomque,nessaterceirafasedamodernidade–oséculoXX–,ocorpopassea

existirenquantoexpressãodediferenças.Enquantoomodernismonaarquiteturavai

encararocorpoapartirdametáforamecânicaedesuascomposiçõesideais,a

modernizaçãovaidarpropulsãoparaumaconstantenecessidadedeadaptaçãoede

controlesobreocorpo–ocorpopassaasermoldadopeloindivíduoparaadaptar-se

àstransformaçõesdoespaçosocialqueocerca.

Aoaproximarmo-nosdaspersonagensnofilmedeGersonTavares,percebemosque

háumabuscapelacompreensãodessecorpocomoumcorpoarraigadoàexperiência,

umcorpovivido.Aconvergênciaqueofilmepromove,equeécaracterísticado

CinemaNovo,éaquelaentrehistória,espaçoeindivíduo,resultandonumcorpo

expressonatelaqueé,emcertamedida,resultadodessadinâmica.Noambienteda

construçãodeBrasíliavisívelnofilme,essecorpotransitaentreaidentificaçãocomo

ambientedaCidadeLivreeafaltadevínculocomacidadequeestáporsurgir.Essa

faltaéexpressaaquijustamentepelaoposiçãocomovínculoestabelecidonamise-en-

127

scèneentreessecorpoeoespaçoprovisóriodaCidadeLivre.Noentanto,porser

provisório,sabemosqueaqueleespaçonãoéconstitutivodessecorpo–essaspessoas

vieramdasmaisdiversaspartesdopaís,ealiestãoemsituaçãointermitente.O

vínculo,mesmoqueexista,éprovisório:emviasdesedesfazeroudesefortalecer.Éa

vivênciadaprovisoriedadequeconstituiocorpodofilme.

Aprimeirasequênciadofilmemostramáquinasetrabalhadorescomoquepartede

umamesmaforçanecessáriaparaerigiracapital.Assequênciasseguintesdescrevem

osedifíciosemconstruçãoe,aofinaldasequência,anarraçãodiz:Osaglomerados

urbanosforamcriadospelohomem.Estaéacidadecriadaparaohomem.Aquifica

explícitaapeculiaridadedeBrasíliaemrelaçãoaosdemaisaglomeradoshumanos:

estessãocriadospelohomem,aquelequeahabitaeapartirdessacondição,a

constróieconstitui;Brasíliaéumacidadecriadaparaohomem,umhomemqueviráa

habitá-lanofuturoquesepodedefinirimprevisível.

Aprópriarelaçãodosoperárioscomoseuofícioémostradaapartirdesua

provisoriedade.EmmeioàscenasemqueGersonfilma,deperto,operáriosque

rebitamaestruturametálica,noaltodeumedifício,anarraçãonosdiz:Habilidade,

destreza,domíniodatécnicademonstramessesoperários.Ontemsimplescamponesese

vaqueiros,ignoravamaexistênciadasmáquinas.Àsvezes,comavidapagamopreçoda

conquista.Aqui,háumasíntesedaaventuratransitóriavividaporessesoperários:

conheceramáquina,dominá-laeassumiroriscodeentregar-lheaprópriavida.

Embuscadessecorpovividoe,aomesmotempo,provisório,Gersonseaproxima

tambémdaspersonagensfemininasdessatrama.Asmulheresaparecem

corporificadasnofilmecomopartedocotidianodaCidadeLivreevistasapartirde

interaçõesdiversas.Aprimeiraapariçãosurgecomoindicativadeumcorpoque

aderiuaumcertopioneirismonovestuário,nocortedecabelo:mulheresusando

calçascompridasebotas,cabeloscurtos.Poroutrolado,nascenasdecotidiano,as

mulheresaparecemusandolongosvestidosrodados,eemdoisplanosaparecem

acompanhadasdehomens,comoquesendocortejadasporeles.Hátambémacena

quemostraogrupodemulhereslavandoroupasnoquepareceserumpequeno

córrego,porsobreaqualanarraçãodiz:longedofragordasmáquinasedosmartelos,

anaturezaauxiliaasnecessidadesdosquevivemopresente.Percebemosque,

128

diferentedoqueacontecenofilmedeJeanManzon,asmulheresnãosãoenxergadas

aquicomopersonagensdestinadasacumprirumpapel.Elassãomostradasassim

comoseuscorposseapresentam:oraousadas,oracortejadas,oraresignadasà

funçãodemanterlimpasasroupasdosoperários,oraapenasaesperadealgo.

Oplanoquemostraessasmulheresàespera,aolharparaacâmera,sentadasemum

batentepodeconstituirumaimagempreciosa:talvezoúnicoregistrovisualquese

temconhecimentodasprostitutasquevieramparaBrasílianoperíododesua

construção.Essafoiaminhaimpressãoaoassistiraofilmepelaprimeiravez,

principalmentepelaformacomoGersonolhavaparaaquelasmulheres,isoladamente

dentrodatrama,sobanarrativadeestaremaliproblemassériosquenãoconhecem

aindaresposta.Algumtempodepois,aolerumartigodeRafaelLunaFreiresobreo

filme,encontrooseguintecomentário:

Emboradeformanãoexplícita,Brasília,capitaldoséculosurpreendepormostrarclaramentenessasequência–massemmençãonanarração–nãoapenasoscandangosquemigraramparaconstruiracapital,praticamentetodoshomens,mastambémasprostitutasquehabitavamasentão“cidadesprovisórias”.Eraigualmentedosuoredocorpodessasmulheres,lavadosaoarlivre,queseerguiaanovacapitaldoBrasil.(FREIRE,2016,p.22)

129

130

131

4. Modernidade e corpo feminino

4.1. Filme 1: Poeira e batom no Planalto Central (2010) Direção:TâniaFonteneleeTâniaQuaresma.Documentário,58’48”

* Algumas considerações acerca do fi lme

Amontagemdofilmeéconstruídaapartirdetrechosdasentrevistasconcedidas

pelasmulheres,entremeadospormaterialdearquivo–entrefotografiaseimagens

emmovimento–inseridosdemaneiraailustrardiretamenteosfatosrelatadosnos

depoimentos.Porexemplo,seumamulhernarraachegadadaComissãoPoliCoelho,

suafalaéintercaladacomimagensdessacomissão.Demodogeral,apesardeser

perceptívelqueofilmeprocuraagruparosdepoimentosemtornodetemascomuns,

porvezesessestemassãodispersos,demaneiraqueumaentrevistasesegueaoutra

muitomaisporpequenasassociaçõesdeconteúdo–amençãoaumlugarouaum

personagem,porexemplo–doqueporumaestruturadefatocapitular.

Seriapossíveldizerqueofilmepodeserassistidotantodemaneirafragmentada–é

essa,porexemplo,aapreensãoquesetemdelequandoagregadoàexposiçãoem

galeria–comodemaneiracontínua,semprejuízonaapreensãodeseuconteúdo.

Trata-sedeumfilmequesedestacapelaquantidadedemulheresentrevistadasepela

diversidadederelatosquetrazàtona,maisdoqueporadotarumalinhanarrativa

quepossaserconsideradacomofatorpreponderantenaanálise.

Portanto,levandoemcontaessascaracterísticas,opteiporfazerumaleituraque

priorizasseostemastratadoseaformadeabordagemdosdepoimentosarticulados

comasimagensdearquivo,emdetrimentodeumaleituraquerespeitassealinha

temporaldofilme.Noentanto,nãodigocomissoquenãoháumaestruturainício-

meio-fimquenãodevaserlevadaemconsideração:ofilmeapresentaumprólogo,

umaintroduçãoeumfechamentoperceptíveis,eostemaselencadosabaixo

respeitam,demaneirageral,asequênciaadotadanamontagem,comexceçãode

algunsdepoimentosqueforamdeslocados.

132

Caberessaltarqueforampriorizadosnestaanálisemomentosdofilmeque

permitissemumaleituradarelaçãoqueocorpofemininoestabelecia,pormeiodas

imagenserelatos,comBrasíliaenquantoprojetodemodernidade,principalobjeto

dessetrabalho.Sendoassim,váriosdepoimentosforamdescartadostendoemvista

quenãoofereciamcampoparaessaexploração.Foidescartadotambémotrechodo

filmequetratadoperíododaDitaduraMilitar,jáquetalepisódioestáforadorecorte

temporalehistóricoadotadoparaestetrabalho.Seguimosentãocomaleiturado

filmeapartirdosseguintestópicos:Prólogo;Introdução;FatosRelacionadosàhistória

oficial;ChegadaemBrasília;Brasíliacomoespaçodeemancipaçãofeminina;Omundo

dotrabalho;Relaçãohomem/mulhernoespaçopúblico;Prostituição;eConclusão.

Prólogo

Ofilmeseiniciacomumanarraçãoemvoiceoverenquantosãomostradasascartelas

dospatrocinadores:Brasíliaéamulherquetevecoragemdeirparadentrodopaíse

fazeropaísflorescer.UmametáforaentreBrasília,amulhereoflorescerdopaísquea

mudançadacapitalrepresentaria.

Seguem-sealgumasimagensdocerrado,suavegetação,floresecachoeiras,enquanto

umamulhercanta,emvoiceover:Emmeioàterravirgemdesbravada/namais

esplendorosaalvorada/Sorricomoumsorrisodecriança/Umsonhotransformou-se

emrealidade...

133

Nasequência,ajábemconhecidaimagemaéreadocruzamentodoseixosquemarcou

aimplantaçãodacidade.Amúsicasegue:Surgiuamaisfantásticacidade...Na

próximaimagem,amãodeumamulheridosaseguraumapequenafotografia.Nela

vemosumhomemeumamulherqueposam,abraçados,emfrenteàscolunasdo

PaláciodaAlvorada;nocantodafoto,escritoemcaneta,épossívelleradata:1958.A

músicaconclui:Brasíliacapitaldaesperança!

NessaprimeirasequênciadePoeiraeBatom–queaquiconsideramoscomoum

prólogo–percebemosalgunselementosimportantesqueintroduzemotomdofilme:

primeiro,aassociaçãopoéticaentreBrasíliaeamulher,queconduztambémà

relaçãocomaflor,asementeplantada,oflorescerassociadoaofeminino;segundo,o

HinodeBrasília,cantadoemoff,trazamensagemdosritosoficiais,queprocuram

enaltecerasbelezasdacidadeeoheroísmodoseusurgimento;e,porúltimo,afoto

seguradaporumamulheridosa,mostraasuamemóriaassociadaaumcompanheiro,

amemóriadeumavidaadois,amulheracompanhadadohomem,tendoa

arquiteturamodernadeBrasíliacomopanodefundo.

Essestrêselementospossuemimportânciafundamentalparaoentendimentode

comoaquestãodegêneroserátratadaaolongodofilme.Nãoserápelanegaçãoda

históriaoficial–ousodohinoéadenúnciaprimeira–,nãoserátampoucopela

negaçãodosconvencionaispapeisdegêneroassociadosàmulher–arelação

metafóricacomaflor,opapeldeesposacomoprimeiroespelhodomundosocial.

Trata-sedeenalteceramulher,homenageá-la,reunirumaquantidadesimbólicade

personagensquetiveramoseupapelnaconstruçãodeBrasíliaedar-lhesvoz.

134

AprimeirapersonagemquenosapareceéLadirCarlosdeAlarcão,enfermeira.Sua

falaintroduzaassociaçãopretendidacomotítulodofilme:Nósfomosacostumadas

comapoeiraecomalama.Porqueagentetomavabanho,passavaumpó,umbatome

vinhané.Acarteladetítuloéaanimaçãodeumafotografia,ondeumamulher,

carregandosuabagagem,seaproximadeumônibuscujoletreirodizBRASÍLIA.

Acima,vemosotítulodofilme:Poeira&BatomnoPlanaltoCentral.

Introdução

Aseguir,asprimeiraspersonagensdofilmerelatamfatosconcernentesàsideias

mudancistasquederamorigemàBrasília:OrbellaLobo,professora,éfilhadeumdos

membrosdacomissãoCrulz;GuiomarCâmaraacompanhouomaridonacomissão

PoliCoelho;afamíliadeIsisGuimarães,tabeliã,hospedouacomissãoPoliCoelhoem

suafazenda;PalmerindaDonato,escritora,relataaestóriaemtornodafalade

ToniquinhonocomíciodeJatahy,etemseurelatointerpeladopelodeJuscelino

Kubitschek,emumregistrodearquivo;GlauciaMarina,paisagista,explicaoporquê

donomecatetinhoparaaresidênciaoficialdeJuscelino.Emtodosessesrelatos,as

mulheresseposicionamàpartedosfatosrelatados,nenhumadelaséprotagonista

dashistóriasquecontam:ousãofilhas,ousãocasadas,ouapenasobservadorasdos

fatoshistóricosnarrados,protagonizadosporhomens,capítulostidoscomo

fundamentaisparaoentendimentodahistóriadaconstruçãodeBrasília.

135

Emmeioaessesdepoimentos,ofilmetrazimagensdearquivo,fotografiasou

filmagens,demodoailustrarosfatosrelatados.Asmulherespodemservistasnessas

imagenssomenteemdoismomentos:narecepçãodacomissãoPoliCoelho,emuma

fazenda,duasmulheresacompanhamosdemaishomensnoscumprimentosà

comissão;enasimagensdavisitadamesmacomissãoaomarcodafuturacapital,

duasmulheresposamaoladodosmembrosdacomissãoparaumafoto.Emboraessas

imagensondeasmulheresaparecemnãorecebamqualquerênfasenamontagemdo

filme,elasilustrambemopapelfigurativoquetêmnoregistrodessesfatos.

AescritoraPalmerindaDonatovoltaaaparecer,efalasobreoconvitequerecebeude

DonaSaraKubitschekparaaprimeiramissarealizadanacapital.Seurelatoé

acompanhadoporfotografiasdamissaepelotrechodeumcinejornalquemostraa

chegada,noaeroporto,daspessoasquevieramparaoevento.Nessasimagensé

possívelverumnúmeromaiordemulheres,inclusivefreiras.Mulheresbemvestidas

acompanhamhomensbemvestidosquechegamnoaeroporto,ePalmerinda

acrescentaumacuriosidadesobreosapatoquecomprouparaviraoeventoeque,

porfim,ficouendurecidopelolamaçaldaáreaondeamissafoirealizada.

136

Énotávelque,emumeventoreligioso,apresençafemininatenhasidomarcantee

desejadapelosveículosoficiaisdedivulgação.Éumforteindicativodequeapresença

femininanoseventosoficiaisdaconstruçãoerarequisitadademaneiraritualística.

Afalaqueseseguecelebraessapresença,ilustradaporimagensdeaeromoçasede

umamulherqueapontaparaoplanourbanísticodacapital:

EuachoquesenãohouvessemmulheresemBrasília,Brasílianãoteriasidoconstruídacomofoi.Nãoéqueasmulheresfossemprasobras,fossemmexercombetoneira,pegarmartelo,baterprego,nãoéisso.Elasdavamaretaguarda(grifomeu)semaqualoshomensnãofariam,entende.(HelenaMariaViveiros,escritora)

Fatos relacionados à história oficial

Ofilmeprocuracontemplar,pormeiodosrelatosdessasmulheres,algunsmarcos

históricosdaconstruçãodeBrasília,alémdaquelesjámencionadosnaintroduçãodo

filme.Dificilmenteaabordagemédiferentedaquelaquejávimos:asmulheres

relatamosfatosapartirdeumolharexterno,sãoobservadoras,e,namaioriadas

vezes,apenasreproduzeminformaçõesquejáforamdisseminadaspelaescritaoficial

dahistóriadeBrasília.

ACaravanadaIntegraçãoNacionalérelatadapelaprofessoraCoseteRamos;amorte

deBernardoSayão,pelasuafilha,afuncionáriapúblicaLiaSayãodeSá;osonhode

DomBosco,pelapedagogaMariaMaura;e,finalmente,ainauguraçãodacidade

aparecenosrelatosdadonadecasaMárciadeSouza,daprofessoraecineastaMaria

Coeli,daprofessoraCoseteRamosedagerentedecasadeencontros33,Ione3433Caberessaltaraquioeufemismoutilizadoparadenominar,nascartelasdofilme,aquelaqueseriagerentedeumacasadeprostituição,queserácomentadomaisadiante.

137

Rodrigues.Asimagensdearquivorelacionadasaessesdepoimentosnãomostram

mulheres,comexceçãodaquelasrelacionadasàinauguração.

Entãoeucompreiumvestidoazulelistradodebranco.Ecompreiumóculos.Eaíteveafestaládainauguraçãoeeufui.Aífuiemcimadocaminhão.Aíquandoeuchegueilá,eutavadeóculosescuro,todacheiadedengo,sabe.Aíeufui,aíeupeguei,tireimeuóculos,etodomundoolhavapramimeria.Eeufalei,quediabo,quequeéisso,olheitavatudocerto.Todomundoolhava,ria,masriamesmo,naminhacara.Aíeupeguei,fuilánobanheiro,olheinoespelho,eutavatodaamarelaecomoóculosaquibranquinho.(MariadasNevesMorici,professora)

Meuprimeirovestidodebaile,olhasóqueglória,imaginaseeuiaesquecer.Umvestidocorderosa,derendafrancesa,lindo,maravilhoso.AíeuboteiovestidoequandoeuchegueieufuirecebidanoPaláciodoPlanaltopelopresidenteJKeDonaSara.(CoseteRamos,professoradoCaseb)

Nasimagensqueilustramainauguraçãovemosmulhereschegaremàcerimôniaem

cimadeumcaminhão.Emumaimagemgeraldosalão,vemosmulheresemvestidos

debaile,eéperceptívelqueháummaiornúmerodehomensquedemulheres.Em

umaúltimaimagem,vemosJuscelinoposaremumafoto,ondeestáaocentro,ladeado

pormuitasmulheresemseusvestidos.

34AgrafiadonomedeIoneRodrigueséapresentadanacarteladeidentificaçãodePoeiraeBatomcom“I”,ediferentementeemAsagadascandangasinvisíveis,ondeégrafadocom“Y”.Opteiporassumir,emcadaanálise,agrafiarelatadaporcadafilme.

138

Sobreosrelatosdacerimôniadeinauguração,éimportanteressaltarqueháuma

abordagemmuitosemelhanteàreferênciadaprimeiramissa:aimportânciada

presençaritualísticadamulheremeventosoficiaisdevisibilidade,quepodeser

percebidatambémnasimagens.NafotodeJuscelino,podemosimaginarqueo

fotógrafotentoureuniraspoucasmulheresquealiestavamparaposaraoseulado.

Nosrelatos,asmulheresrecordamosvestidosusadosnaocasião,oglamourdo

evento,apreparaçãoparaservistaempúblico.Novamente,temosorelatodeuma

curiosidadesobreapreocupaçãocomavestimenta,queretomaadicotomiaproposta

comotítulodofilme–estarbemarrumada,massujadepoeira.

AfiguradeJuscelino,protagonistadessahistóriaoficial,tambémécitadae

reverenciadaemalgunsdepoimentos:

Eleeramuitopopular,eraumapessoaassimmaravilhosa,ascriançaeramdoidasporele.(MariaAparecidaLeite,auxiliardeenfermagem)

Meusparentesvinhampracá,nósentrávamosatélánoPaláciodoGoverno,doJuscelino,agenteentravaaténoquartodele.Elepermitiaqueagenteentrasselá,sabe.OmeupessoalládeCuritibaficavaencantado.(EstherGumsXavier,professora)

Chegada em Brasília

Osrelatosdechegadailustramsituaçõesmuitodiversas,tantoemrelaçãoàs

motivaçõesparaavinda,comoaospercursosquetraziamessasmulheresatéaqui.É

comumaosrelatosamençãoàmotivaçãofinanceira,àexpectativademudardevida,

sejapeloiníciodeumnovoempreendimento,sejapelapossibilidadedeumemprego

público.Ofilmeprocuraressaltar,principalmente,opioneirismodasmulheresque

vieramembuscadetrabalhoemelhoriadevida,semdesconsiderar,noentanto,que

vinhamemmenornúmeroemrelaçãoaoshomens.

AparticipaçãodasmulheresnaconstruçãodeBrasíliafoideumagrandeimportância,porquevieramprimeirooshomens,entãoasmulheresquevieramnoinícioerammuitopoucas.Etinhamoutrasqueestavamnafrentecomoteveengenheira,teveummontedemulheres,quenaépocanãoeraumacoisamuitocomum.Eudigosempre,elasnãoeramdaépoca,elaserammaisàfrentedaépoca.ANeivamesmo,elaveiopraBrasíliaprasermotoristadecaminhão.(LiaSayãodeSá,FuncionáriaPública)

Eueramotoristadecaminhão,tinhaumavida,qualquerpessoa,qualquermulher,quegostadetrabalhardeviaatéinvejar.Deumdiaprooutro

139

descortinouavida,comeceiavereouvirosespíritos.(TiaNeiva,LiderEspiritual,gravadoparaasérieOsPioneiros,1983)

Asprofessoras,emespecial,foramselecionadasemumconcursoparaaprimeira

escoladeBrasília,conhecidacomoCaseb(siglaparaComissãodeAdministraçãodo

SistemaEducacionaldeBrasília).Muitasdelasouvieramsozinhas,outraziama

famíliaatrásdesi,invertendoalógicacorrentedequeasmulheresvinham

acompanharosmaridostrabalhadores.

Houveumconcursoparaosprofessoresvirempracá.Eutivesortequeeufuidasprimeirasemmúsica.Fuilogochamada,oprimeirocolégioqueteveaquifoiocolégioCaseb(NeusaFrança,professoradoCaseb).

EeumoravaemBeloHorizonte,entãotinhasaídoanovidadedecomeçaraconstruir...amudançadacapital,doRiodeJaneiro,para...aindanãosabiaolugar,masdeviaserouemMinas,comoaspessoasqueriamné,ouaquiemBrasília.Entãonestaocasiãoeuresolvi,semnemmesmofalarcomomarido,queelemandasseamudançaquenósíamosmudardeBeloHorizonte.EassimnósmudamosaquipraBrasília.MoreinoNúcleoBandeirantenaprimeiraavenida,nãotinhaaindanada.Enósentãoconseguimosumacasademadeira,muitosimples,maseragrande.SónessaminhacasanoNúcleoBandeiranteéquetinhaágua.Nasoutrasnãotinha.(MariadasNevesMorici,professoradoCaseb)

Alémdasprofessoras,outrasprofissionaisvinhamparaBrasíliaatraídaspelas

oportunidadesdetrabalho,comoenfermeiras,engenheiras,médicas,comerciantes,

agricultoras35eprostitutas36.Algumasdelasrelatamavindaacompanhadasdos

maridos,mastodastransparecemoespíritodeaventuradoqualeramimbuídasao

empreenderamudança.

Brasíliasurgiupramimcomoumaesperançadevidaporqueeu,garotaainda,jovem,querendomudardevidaeoBrasiltavamuitoatrasadoprecisandodemelhorar,surgiuaaprovaçãodeBrasília,começouentãoaconstrução.(BraulinaMendes,funcionáriadaNovacap)

AprimeiranotíciaquetiveemBrasíliaeumoravaemSíriaainda.Eumeencantei,eusouaventureira.Saídaminhaterracom19anospracasarcomumjovemigualeu,pravimproBrasildeumavez,temqueseraventureiro,né?(SalanKozac,comerciante)

OaviãoquevinhadaGuianamepegouemMacapáeeuvim.QuandochegouaquiemBrasília,elesobrevoouBrasília,efalou:olha,aquiseráafuturacapitaldoBrasil.Aíeuolheiassim,sótinhaaquelaterravermelha,né,os

35RepresentadasaquipelasjaponesasqueforamestimuladasporJuscelinoavirparaBrasíliacultivaraterra.

36Apesardenãohaverentrevistascomessasprofissionais,háumrelatodajámencionadagerentedecasadeencontro,IoneRodrigues.

140

esqueletosdosministérios...Eufalei:épraquiqueeuvenho!(ZeniMoreira,funcionáriadaNovacap)

Euchegueiaquiantesdainauguração,eolheiassim,tudomuitoseco,nãotinhafolhasverdes...Noaeroportoeuescreviumpoemasobreisso:buscooverdedasfolhasnumabuscasemfim/masoqueeubuscoporcertoéoverdedentrodemim.(LilianPortugal,professoradeteatro)

Eraumnegócioassimestranhíssimopramim.Cadaladoqueeuolhavaeracoisasubindo,construindo,oslacerdinhas37voando,eraassimfantástico,eraumaaventura.Euacreditoquenaquelaépocaaté1964,Brasíliaeraoparaíso,eraaliberdade,eraocampofértilpravocêrealizarqualquerprojetodevida.(GoldaPietricovsky,funcionáriapública)

Asmulheresnordestinas,quevinhamdepau-de-arara,relatamascondiçõesde

transportequeenfrentavam:

Brasíliaeramuitofaladanonordeste,né,eusoudonordeste,soudointerior,eeradepraxepessoasvirempracápraajudarnaconstruçãodeBrasília.EramcaminhõesecaminhõesquevinhamládonordestevindopracácompessoaspratrabalharemaquinaconstruçãodeBrasília.(MariaInêsFontenelleMourão,professora)

VimdeCurraisNovos,noRioGrandedoNorte,depau-de-arara.Umalonacobreocarro,né,etembancosassim,agentevaisentando,vaisentando,atécompletaraquelecaminhãodegente,ojoelhoencostandonascostasdooutro.Meninovemnocoloali,espremidinho.Eumesmovinhagrávida,né,umbarrigãoquesóvendo.Quandochegavanolugarqueagentedesciatodomundoassim,nomato,pertodeumcórrego.Quemtraziacomidapronta,davaumjeitodeesquentar,esubianovamente.Terminamosaviagemcom10dias.(JosefaCarmelita,lavadeira)

Mesmoqueemmenornúmero,osrelatosdemulheresquevieramapenas

acompanhandoosmaridostambémaparece:

EufuiaFriburgoeláeuconhecimeumaridoquetrabalhavanoBancodoBrasil.Nósprocuramosumanovamoradia.Opaidelenoprincípiodoano57telefonoupromeumaridoedisse:escuta,eulinojornalquevaiabriragênciaprovisórianoNúcleoBandeirantedoBancodoBrasilondevaiserconstruídaanovacapital.Umavidanovaquenósqueríamoscomeçareumacapitalnovaseconstruindo,esecombinava.(GerdaGumprich,dolar)

37 Nome dado aos funis ou correntes de vento que se formavam com frequência na época daconstrução, levantando poeira emmeio às obras. É uma referência a Carlos Lacerda, um dos maisfortesopositoresdeJuscelinoedaconstruçãodeBrasília.

141

Hánessesrelatosumaclaraintençãoemressaltaroperfilempreendedore

aventureirodessasmulheres,aproximando-odoespíritodoqualeramimbuídosos

homens,quevieramemmaiornúmero.Noentanto,asimagensdearquivoque

ilustramessesdepoimentosmostrampoucasmulheres:elasaparecem

principalmenteemfotografias,oraposandoaoladodomaridoedafamília,oraem

grupo–nocasodasprofessoras–masacompanhadasdeumhomem,sendoquea

únicamulheraaparecersozinhaéTiaNeiva,posandoaoladodeseucaminhão.

Muitosdepoimentossãopreenchidoscomimagensaéreasdaconstrução–quandose

faladapaisagemqueaquiencontravamaochegar–,imagensdepessoascarregando

malasnasruasdaCidadeLivre,todoshomens,ouimagensdospau-de-arara,que

tambémmostramsomentehomens.Háalgumasquemostrammulheresnesses

caminhões,massãofotografiasmeramenteilustrativas.Éperceptívelpelaqualidade

142

daimagem,tiposderoupaemodelodecaminhãonãotrataremdoperíododa

construçãodeBrasília.

Brasília como espaço de emancipação feminina

Aliadodecertaformaaodiscursodaaventuraedoespíritodeempreendedorismo

quemoviaasmulheres,ofilmeprocuranosdepoimentosumarelaçãoentreavinda

paraBrasíliaeabuscaporumacertaemancipaçãofeminina.Essaemancipaçãose

traduznumsentimentomotivadordamudançaparaacidadeemconstrução,como

numcertoespíritoquecontaminavaaquelasqueestavamparticipandoda

empreitadamoderna.

Naquelaépocasermulhereraumacoisamuitodifícil.Lembrandoquenósestamosnofinaldadécadade50pra60,queéquandocomeçouaemancipação,dizem,aemancipaçãodamulher.Entãoquemeraarrojadacomoeufuinaquelaépoca,sairdacasadosmeuspais,beminstalada,comempregofixo,universitária.Eeuiriaentãonocaso,paraocentrodopaís,paratrabalharaqui,apósseleção.(TherezinhadeJesus,professoradoCaseb)

AquiemBrasíliaeuaprendiaserindependente,serumamulherassimquepodiaexpressarnomeiopolítico,nomeiosocialdosempresáriosqueestavamemBrasília,eupodiachegarpraeleereivindicardireitospraempregadosdeles,entendeu?(AliceAndradeMarciel,enfermeira)

143

Asimagensassociadasaessasfalasmostrammulheres,incluindofreiras,presentes

emeventospúblicosdenotoriedade,fotografadasaoladodehomens,descendode

aviões,caminhandopelarampadoCongressoNacionaleemumcoralfemininoque

participadeumarecepçãonoaeroporto.Emboraassociadasafalasquetratamde

umabuscaporemancipaçãoeindependênciadamulher,asimagensmostram-nas

sempreacompanhadasdehomensimportanteseemeventosdenotoriedade.Ainda

nessasituação,chamaaatençãoaimagemdeumquartetodemulheres:aprimeira

estávestidadebaiana;asegunda,demiss;aterceirausaóculosmodernoseum

vestidocujaestampareproduzodesenhodascolunasdoAlvorada;eumaquartacom

roupadeestudante.Maisumavez,exemplosdecomoapresençafemininaem

eventosdenotoriedadeaconteciademaneiraritualística,e,nessecaso,asmulheres

aparecemfantasiadasemarquétiposfemininosparacumpriressepapel.

144

Emdepoimentoúniconofilme,umaprofessorachamaaatençãoparaoreflexode

umacertamodernidadenocorpodessasmulheres,naformacomosevestiameeram

vistasnoespaçopúblico:

Eufiqueibastantesurpreendidacomasnordestinas,porexemplo,oucomasmineiras,ouaspaulistasquechegavamdecalçacomprida.Gaúchanãousavacalçacomprida.Eeuaderiaisso,acheiumacoisafantástica,maravilhosa.(TherezinhadeJesus,professoradoCaseb)

O mundo do trabalho

Emboraotrabalhodessasmulheressejamencionadoconstantementeaolongodo

filme,algunsdepoimentosrelatamfatosdiretamenteassociadosaessecotidiano.São

entrevistadasprofissionaisdeatuaçãomuitovariada:telefonistas,médicas,parteiras,

lavadeiras,costureiras,calculistas,comerciantes,cozinheirase,principalmente,

professoras.

Nota-senosrelatosumanecessidadedeimprimirqueoempenhodedicadoao

trabalhoeraomesmoqueodoshomens,aqueledoespíritopioneiro,queimplicava

emlongasjornadasdetrabalhoparaqueaobraestivessedefatoconcluídanoprazo

previsto.

Opovotrabalhava24hspordia,numtinhahora,ninguémsepreocupavaemganharhoraextra,emtrabalharmais,sabe...queriaeratrabalhar,queriaveraobra.EntãoBrasíliaera24hs,né.(GeorginaJaneteCâmara,telefonista)

IlustrandoodepoimentodeGeorgina,noentanto,vemosimagensdeumcanteirode

obras,ondesomentehomenspodemservistos.Odepoimentoquesesegue,da

professoraCoseteRamos,fazumaassociaçãoentreotrabalhodoshomensedas

mulheres:primeiro,segundoela,elesseriamomotivodavindadessasmulherespra

Brasília;segundo,estandoaqui,algumasoptaramportambémtrabalhar.Outras

mantiveram-senacondiçãodeesposa.

Asmulheres,euvejoassim,doisgruposbemdistintos:umgrupoqueveioacompanhandoomaridoeficoumeioàmargem;mashouveoutrogrupodemulheresqueforammexercomflores,queforammexercomcabeleireiro,queforammexercomagrimensura...Entãoessasmulheresseengajaram.Elaschegaramtrazidaspelosmaridos,maselasnãoficaramparadasesperandoomaridoandarnão.Elascomeçaramasemexer:não,nãovouficarparadanoespaçonão,vouentrarnaluta.Eforampraluta.Aquantidadedeprofessorasquelargaramosmaridosesemandarampra

145

Brasília,eficaramaqui,eosmaridosforamembora,eelasficaramaqui,permaneceramcomosfilhos.Muitocorajosas,umgrupograndedemulheresmuito,muitocorajosas.(CoseteRamos,professoraCaseb)

Hádepoimentosdealgumasmulheresquemantinhamseutrabalhoassociadoao

trabalhodosmaridos.

Mamãetrabalhavaànoite,quaseanoiteinteira,emcimadumapranchetafazendoamediçãodasfazendas,ajudandomeupai,porqueelesaíaprocampoeelaficavaemcasa.Entãoelapassavaotempotodofazendoessesmapasedatilografando,naquelaépocanãotinhacomputador,pradesapropriarasterras.DaíéquevocêpoderiadarocomeçoentãoaBrasília.(GláuciaMarina,paisagista)

ChegamosnaCidadeLivre,meumaridojátinhafeitoumacasinhapranós.Nósbotamosumarmazémporquenósqueríamostrabalhardetudo.Entãoeuficavanaporta,falava,vamoentrar!,elesentravamnãodeixavaninguémsairsemcomprar.Umcafezinho,umaágua,umafruta,comecei...cativamososfregueses.(SalanKozac,comerciante)

Algunsdepoimentosevocamtambémopapeldasmulherescomocompanheirasdo

homem,aimportâncianofatodeacompanhá-loseapoiá-los.Amulheraparece,nesse

depoimentocomoparcerianecessáriaaosucessodohomem.

Olha,naquelecomeçoprincipalmente,asmulhereseramsóparceirasdoshomens.Agentepercebiaqueoshomensqueestavamsozinhos,orendimentonãoeraomesmo.Euvimuitasvezesdiscussõesassimdopadreorientandolá,porexemplo,doesposobuscaraesposa,né.(MariaMaura,pedagoga)

Aquelasqueseempenhavamemtarefasdeprimeiranecessidade–cozinheiras,

lavadeiras,parteiras,médicas,enfermeiras,etc.–descrevemjornadasdetrabalho

extenuantes,masqueseriammuitobemrecompensadaspeloretornofinanceiro.

OseuAntôniopediu,disse:Luiza,nãovaiemboradaquiagora,queminhamulhervaiganharneném,enãotemninguémaqui,nãotemmulher–nãotinhaquasemulheraqui,né–aquinãotemninguém.Eudisse,entãotábom,masoqueéqueeuvoufazeraqui.Eledisse,nãoeuvouarrumarunshomenspravocêdarcomida.Aíarranjouassimnasfirmasporaliumas10pessoas.Eucozinhavacarne,verduraefeijão.Tinhaunsfogõesredondoassim,comumnegócionomeioassimqueelesbotavaquerosene,noNúcleoBandeirante.Eramuitoassimdegente,euvimfizumbarracolánainvasãodoIAPI,quemeumaridofezumacasagrandeecomeçouavirnordestino,sótrabalhavapradarcomidaaessepovo.(LuizaFerreira,auxiliardeenfermagem)

LánoNúcleoBandeirantetodomundoalitrabalhava.Tinhagentequepegavaaroupadospolicialeviviadaquilo,pralavar.Era6conto,eunãomelembroonomedodinheiro.Eulavavaroupa(risos)ládomeuirmãoedopessoalqueerapramimganhardinheiroqueeutinhaquemandarodinheiroproPiauí,poxa,eutinhaquetrabalhar,era...Cêlavavaaquele

146

montederoupa,apolíciatedava6.000réis,eradinheirodemais.Eumandavanumseiquantopraminhaterraeaindaficavacomdinheiro.Eeusóandavabonita,euiaaocinema,comiabem,sobravadinheiro.(HildaRibeiro,auxiliardeenfermagem)

Eutrabalhavalavandoroupaparaospeão.Queaquitinhaempregopraquemtinhaestudo,vinhadelonge,quemnãotinha,ialavarroupa,iadarcomidaparaospeão,fazermarmita.Eraosmonte,eratodosantodia.Eulevantavadenoite,trêshorasdamanhãeulevantavapralavarroupa,esfregar,faziaumforronomeiodoquintal,botavaumavasilhagrandeassimpraferver,quesólimpavafervida,porqueeramuitapoeira,àsvezeseraatédeóleo.(JosefaCarmelita,lavadeira)

Em58,59,60nainauguração,em3anoseufiztantospartosqueeunãoseiquantosforam.Atendianosacampamentoseeralongeprasairdeumaconstruçãopraoutraconstrução.Eeucomabolsadeparto,porqueeulevavaatéáguafervidapradarobanhozinho,chegavalánãotinhaáguaàsvezes,entãoeraluva,oinstrumentalcirúrgicoeáguaeremédiodosolhosdoneném,tudotinhaquelevar.Entãoeufuimaisútilvindopracádoqueeuimaginei.(CacildaRosaBertoni,enfermeira-parteira)

Praláerademadeira.EraoIAPInaquelaépoca,queatendiaosempregados,osfuncionáriosdasobrasné.Naverdadeosprimeirostemposnãohaviaconsultório,erasóparto,erapartoatrásdeparto.Chegueiemumaocasiãoafazer20partosnumanoite.Otrabalhodasmulheres,vamosdizer,foiumtrabalhomuitointensivo,porquesetrabalhavadiaenoiteeohospitalnãotinhaestrutura,nãotinhanada.(JuremaChabalgoity,Médica)

Eramuitadificuldade,né,agentetinhaquelavarroupapraajudarsustentaromarido,igualfoimeucaso.Queeleganhavamuitopouco.Eudoenteainda,eueramuitodoente.Masvenci.(CelinaQuitériaZeferino,lavadeira)

Osdepoimentosdasprofessorastratambasicamentedascondiçõesdetrabalho,dos

númerosdealunosquerecebiamedoreconhecimentodemonstradopelosmesmos.

Oensinoeraumautopia,eraJuscelino,eraDarcyRibeiro,eraAnísioTeixeira,sósefalavanisso.(MariaMartaCintra,professora)

EudavaaulanoCASEBnosdoisturnos:de8aomeiodia,eutinhademeiodiaàsduaspraalmoçar,quinzeprasduaseucorriapracomeçarooutroturnodatarde.Entãoeuficavaemdoisturnos,quarentahorasporsemana.Sábado,osalunosqueriamdarauladepiano,entãoeupraticamenteficavaosábadorepletodealunosdepiano,demanhãànoite,eusótinhaodomingopradescansar.Entãoaminhavidacorreuassim.(NeusaFrança,professorademúsica)

Aprimeiraescolaclasseeranoacampamentodosengenheiros,elachamaEscolaJúliaKubitschekporcausadamãedonossopresidente,né,puseramonomenaescola.Eramuitobemorganizada,eradedoisandares.Servíamoslanche,porqueerapropósitodospioneirosdeeducaçãodeBrasíliademudaramaneiradoensinonoBrasil,entãoquiseramcomeçarporBrasília,queeraparaacriançaficarodiatodonaescola.Quaiscriançasquefrequentavam:desdefilhosdemédicos,atéosfilhosdosempregados.Entãoeumeoferecipraensinarosjaponesesafalarportuguês.Tinhajaponesesaté7anoseidosostambém.NoNúcleoBandeirantetinhaummercadinhoquevendiatudo,verdura,todosostiposdeverdura,fresquinha

147

agenteialáelestinhampegonooutrodianachácara.Entãoeucompravamuitolá.Aíeuchegueilánumalojaenemviqueohomemerajaponêsecompreialface,couve,compreitudoquetinhadireitoedepois...–Quantoé,quantoqueeutenhoquelhepagar?–Nãoprecisapagarnada,jápagou,vocêprofessormeu.(MariadasNevesMorici,professora)

AquiemBrasília,osprofessoresnoslevavamparaocerradoeaprofessoradebiologiamostravaasplantasedizia:oquequevocêsveemdiferente?Asplantasdocerradosãocheiasdepelos,ascopasdasárvoressãopequenas,masasraízessãoenormes.HouveumgrandeconcursonoRiodeJaneiro,noMaracanã,ondemaisde1000professoresfizeramumconcursopravirpraBrasília.EntãoforamescolhidososmelhoresprofessoresdoBrasil.EntãonóstivemososprofessoresquenosensinaramalutareaentendercomoéqueeraumacidadecriadanoséculoXX.(MariaCoeli,professoraecineasta)

Aodescreveremsuasjornadasdetrabalho,asimagensutilizadasmuitasvezesnão

constituemimagensdearquivo,sãoreproduçõesatuais,comoporexemplo,no

trabalhodaslavadeiras.Sãopouquíssimasasimagensdearquivoquemostramde

fatoessasmulheresatuandoemsuasprofissões,e,dentreelas,amaioriamostra

professorasrodeadasdeseusalunos.Foraasprofessoras,umafotografiachama

atenção:mostradapelamédicaJuremaChabalgoity,elaaparecedepé,aoladodeum

médicoqueestásentadoescrevendoemumamesadeconsultório,oqueseriauma

recordaçãodaqueleperíodo.Jurematemasmãosparatráscomoseaguardasseuma

resolução:háaliumatensãonasuaposturacorporal.Porqueessamulhernãoé

fotografadaemseupróprioconsultório?Seriaelasubordinadaaessehomem?

148

Relação homem/mulher no espaço público

Logonoiníciodofilme,chamaatençãoodepoimentodeIrmãOlga,concedidoparaa

sérieOsPioneiros(1983)eincorporadaaodocumentário.Seurelatoacenaparao

conflitonarelaçãohomem/mulhernoambientedaconstruçãodeBrasília:

Derepentemesentichamadaparaumavocaçãodiferente,avocaçãoreligiosa.Etavacomeçandoaconstrução,bemnocentrodoBrasil,dafuturacapitaldopaís.EufuiindicadacomoapessoaquesatisfaziaasnecessidadesdotrabalhodacongregaçãoemBrasília.Entãoficoucombinadoquenodia15desetembroasirmãspoderiamvirqueoalojamentojáestariapronto.Eeuperguntei:senósvamostrabalharcomoscandangos,porqueentãonãovamosmorarnavilaoperáriajuntocomeles?EdisseramqueaadministraçãodaNovacapnãoachoumuitobomporquequeriaqueasirmãstambémtrabalhassemjuntoàssenhorasquejáexistiam,dinamizandomaisaAssociaçãodasPioneirasSociaisquetinhasidocriadanoRioporDonaSara,etinhasidorecémcriadoumnúcleoemBrasíliacomapresidênciadaDonaCoracy,esposadodoutorIsrael.Equetambémmorandomuitoaliasirmãsiamserassediadasdiaenoiteerealmentenãoiriamaguentar.(grifomeu)Maseucontinueipensandoqueoidealteriasidoisso,agentesededicarinteiramentecomapopulaçãocomquemagentedeviatrabalhar.(IrmãOlga,gravadoem1983,sérieOsPioneiros)

Noentanto,quandootemaéretomadodemaneiradiretaemoutrosmomentosdo

filme,háclaramentedoisgruposcomdiferentesmanifestações.Oprimeiroassume

umtompacificador,evocandoaharmoniaeoespíritodecolaboraçãoexistenteentre

homensemulheres.

SermulheremBrasílianaquelaépocaeracomosevocêfosseumbotãoderosasperfumadoalinaquelelugar,alinapresençadeles,sabe?Porqueelesadmiravamesentiaaalegriadeteroperfumedeumafloraliporperto,né.Oqueseriadessestrabalhadores,senãotivesseessasmulheresalidispostasatrabalhareasuaralitambém.Eutenhomuitoorgulhodeserpioneira.(BraulinaMendes,funcionáriadaNovacap)

Eeraomaiorrespeitodaparóquia.Nósdormíamos,asmulheres,comaportaabertadoalojamento.Nuncaentrouláumbandido,nuncavocêouviufalaremestupro,qualquercoisaeratudobonitinho.Eumesentiaseguranacidade.IaproMinasBrasília,prapiscina.Eufuiaprimeira...pócontar?...EufuiaprimeiramoçaemBrasíliaqueuseibiquíni.(ZeniMoreira,funcionáriadaNovacap)

Sentiamaravilhosa,poderosa.Porquenuncaninguémmeafetou,nuncaninguémmemaltratou,nuncaninguémmeabordou,nunca,nunca,nunca.Quemfaladoscandangos,porqueelenãoconheceoscandangos.(SalanKozac,comerciante)

Haviamuitorespeito,agentedesciaaquelaAvenidaCentral,queantigamenteeraaAvenidaCentral,vocênãoouvia,ninguémsoltavapiadinha.(GeorginaJaneteCâmara,telefonista)

149

Nuncaouvifalaremviolênciasexual,emassédiomoral,nada.Nóspegávamosascaronascomosedafamíliadosmotoristasnósfôssemos.(MariaMartaCintra,professora)

Osegundogrupoapontaparaapresençalatentedesseconflitonocotidiano,noato

mesmodecircularpelaregiãodaconstrução.

AntigamenteoquefalavamdeBrasíliaeramaspiorescoisas.Queoshomensvinhampracá,masnãopodiamtrazerafamíliaporqueasmulherestinhamqueserviraoutroshomens.Coisasassim...horríveis.(LeocádiaParadela,professora)

Massemprequandosaíamosjuntos,comaminhairmãecomomeucunhado,erasemprecomaquelacautelademuitocuidadoconoscopranãoaproximarmososhomensqueeramunsdevoradores!Oshomensqueexistiamaquieramunsdevoradoresatrásdemulheres,né.Porqueelesvinhamsemfamília.(JandiraFrança,dolar)

Nessesdoisblocosdedepoimentosforamutilizadasapenasduasimagensdearquivo.

ElasilustramafaladeBraulinaMendes,aquelaqueserefereàmulhercomoum

botãoderosasperfumado,emostrambelasmulheresque“desfilam”emmeioaos

homensnarua.

Emumdepoimento,aparecetambémarelaçãocomaprocuraporcasamento,outra

evidênciadadiscrepânciaentreonúmerodemulheresedehomens.

Eulembroéque...nóstrazíamosempregadadeGoiânia,pramamãe...teveumaquenemdormiuemcasa,jáarranjouumcasamento.Entãotodaempregadaquevinhaeraum,doisdias,saíacasada.(GláuciaMarina,Paisagista)

Háaindaalgunsdepoimentosque,apesardenãotratardiretamentedarelação

homem/mulhernoespaçopúblico,evocamumespíritodeuniãoentreaquelesque

vivenciavamaconstruçãodeBrasília.

150

AsprimeirasimpressõesqueeutiveemBrasíliafoidauniãodetodosporquesevocêtivesseparadanabeiradadacalçada,epassasseumcarro,elesparavameofereciamumacarona.(SoniaVasconcelos,empregadadaCaixaEconômica)

Oespíritomesmodepioneiro,deajudarumaooutro.Euachoquenão...nãotinhaegoísmonemnadadisso,né...nomínimoeunãosentianadadisso.(GerdaGumprich,dolar)

Umbandodemenino,eraumacidadecommuitajuventude,porqueosqueacreditaramemBrasíliaeramjovenscasaisquevierampracá,né,pracidade,comomeupaieminhamãe,comumbandodefilho.(IaraPietricovsky,antropólogaeatrizdeteatro)

NósíamosfazercompranaCidadeLivrenossosfilhosficavamcomosoperários,noPaláciodaAlvorada.Eelestomavamcontadosnossosfilhos.Entãoauniãoentrehomensemulhereseramuitolegal,viu,muitomesmo,degranderespeito.(WandaClementinaCorso,professoraelídercomunitária)

Muitoemboraanarrativaadotadaprocurecolocarosdoisladosdasituação–deum

lado,atensãogeradapeladiscrepânciaentreonúmerodemulhereseonúmerode

homens;deoutro,atentativadeimprimirumasituaçãoharmônica,ondeoespírito

pioneiropacificavaqualquerpossívelconflito–sãomaisnumerosososdepoimentos

queprocuramesteúltimoenfoque.

Prostituição

Otemadaprostituiçãoéabordadonodocumentáriologoapósosdoisblocosde

depoimentosquetratamdarelaçãohomem/mulhernoespaçopúblico,citadosacima.

Sãomencionadasduasregiões–aPlacadasMercedeseaVilaParafuso–comolocais

ondeaprostituiçãoeraexercida.Hátrêsdepoimentosacercadotema,detrês

mulheresnãoprostitutas,sendoqueumadelaséIoneRodrigues,identificadana

legendacomogerentedecasadeencontros,umeufemismoparaoqueseriaagerente

deumacasadeprostituição,ouainda,cafetina.Nenhumaprostitutafoientrevistada

nodocumentário.

APlacadasMercedes!Aondeera...possofalar?...acasadasprostitutas.Alinoparafusomesmosótinhaeraomulheril,né,etodomundoiapralá,oshometudoiapralá.Eraaquelacoisadoida,tudopralá.Maseradividido,elaseramimpedidadevirpracáproNúcleoBandeirante.ElassófrequentavaaVilaParafusoeaPlacadaMercedes.(HildaRibeiro,auxiliardeenfermagem)

151

PorquePlacadasMercedes?PorquehaviaumaplacamuitograndedaMercedesBenzequandoagentechegavaláeraassim...eramuitofeiooqueeuvia...porqueelassentavamdequalquerjeito,ejátodasjáesgotadasdanoite,né.(GláuciaMarina,paisagista)

Asmulherdacasaqueeutrabalhavaeramulhereselegante.Tinhaosdiasdelavestirlongo.Eoutra,nãopodiacalçarsapatobaixosemmeia,sósapatoalto,commeia.Usavamuitasaia,muitablusa.Nosdiasdelongoeuusavatambémolongoprafazerpartené.Porqueagerentedacasatinhaqueandarelegante,né.Tinhamulherestrangeira,tinhamulherdetodolugardomundo.Oshomemeradefila,minhafilha,emuitohomemmesmoné.Eagenteiaatéodiaamanhecer.(IoneRodrigues,gerentedecasadeencontros)

Nosdoisprimeirosdepoimentosháumatentativadeseparar,pordefiniçãoepor

território,asprostitutasdasnãoprostitutas:amençãodeHildaRibeiroàseparação

territorial,elaseramimpedidadevirpracáproNúcleoBandeirante,assimcomoa

referênciadeGlauciaMarinaàregiãodaPlacadasMercedescomoumlugarfeioonde

asmulheressentavamdequalquerjeito.Essaúltimadescriçãocontrastamuitocomo

depoimentodeIone,queserefereaobordelcomoumlocaldemuitoglamour,onde

asmulheresestavamsempreelegantes.

Novamente,nãoháimagensdearquivoquemostremessasmulheres.Aúnica

imagemutilizadaéafotografiadeumalongafiladehomens,emreferênciaao

depoimentodeIone,quandoeladiz:oshomemeradefila,minhafilha,emuitohomem

mesmoné.Eagenteiaatéodiaamanhecer.

152

Conclusão

Osdepoimentosfinaisdofilme,entreosquaisseincluiumafaladadiretoraTânia

Fontenele,culminamemumaodeàBrasília.OdepoimentodeTânianosdáa

entenderasintençõesdarealizadoraeoseuenvolvimentopessoalcomotema.

Agentejáouviuquase50mulheres,entãotododiaéumaemoçãomuitogrande,porqueouvindoashistórias,euestououvindoaminhahistória.Alémdeserummomentohistóricoextraordinário,todomundoéunânimeemdizerqueapesardasdificuldades,daterra,dalama,dosbarraquinhos,maseraummomentodetantaesperança,detantaalegriaquesuperavamtudo.(TâniaFonteneleMourão,coordenadoradoprojeto)

Asúltimasfalasevocamapaixãopelacidade,oreconhecimentodosseuscriadores–

quesãoosúnicosqueaparecemnasimagensdearquivo–easensaçãodedever

cumpridodiantedosucessoqueaempreitadarepresentouparaopaís.

Nóstemosaquiumaqualidadedevidadiferente.Eessaabertura,esseverde,essecéumaravilhoso,sótemaoferecerdebompraquemvem,né.Achoqueapessoatemquevireamaranossacidade.(CleusadeOliveira,radialista)

Quemconheceahistória,deveterBrasílianocoração,comosímbolodonossopaísqueéimenso,equemereceuessagrandecapitalquenãoexistenomundoigual,cujaarquiteturadeNiemeyer,oprojetodeLúcioCosta,aquelesprimeirosgrandesnomesqueaquiestiveram,BurleMarx,merecemnossareverência.Entãoeuachoquetodobrasileirodevetermuitoamor,mesmoaquelesquenãoestãomorandoaqui,eucreioquedeveriamvalorizaraomáximoaconstruçãodessacapitalquesaiudepertodomar,queera,pravirparaocoraçãodoBrasil.(NeusaFrança,professorademúsica)

EuqueviBrasílianascer,euquevitodaagestação,depoistransformandoemmulher...euvitudoisso...valeuapena.(WandaClementinaCorso,professoraelídercomunitária)

Eofilmeterminadamesmaformacomoseinicia:numdepoimento,ametáforaentre

Brasíliaeamulher;masnãoqualquermulher,umamulherarrojada,modernacomoé

Brasília.

Brasíliapramiméumamulher...éumamulherde50anos,éumamulheremancipada,éumamulhercommuitascontradições,né,maséumamulherqueseafirma,equeelainfluencia,dopontodevistadecomportamento,oBrasileomundohoje.(IaraPietricovsky,antropólogaeatrizdeteatro)

SobemoscréditosfinaisenquantoaprofessoraNeusaFrançacantaoHinodoDistrito

Federal.

153

4.2. Filme 2: A saga das candangas invisíveis (2008) Direção:DeniseCaputo.Documentário,15’05”

Ofilmeseiniciacomumaimagemdeausência:acâmeraemtravellingpercorreuma

cidade,umbairronãoidentificado.Existealialgodeumacidadeabandonada:ruasde

terrabatida,casascomparedesemurosmanchados,remendados,rachados,portase

janelasfechadas,quandonão,preenchidascomtijolos.Nãoháumapessoasequera

circularporali.Emumdadomomento,umrelato,emvoiceover,iniciauma

apresentaçãodolugar:AquichamavaVeneza...Veneza...antigamentechamavaVeneza,

né...Adecoraçãoaquieralinda,eratodaencortinada,todacheiademesas,cadeiras.

Veneza...quelugarseriaesse?Umlugarondeadecoraçãolinda,encortinada,deum

outrotempocontrastacomaimagemdeabandonoquevemosnatela.Prosseguimos

eanarradoraagoranoséapresentada:Yone38,seunomeemumalegenda.Uma

senhoranegra,cabeloscurtosegrisalhos.Elaprossegueseurelato:Tinhaluznegra,

tinhaestátuapratudoquantoeraladoaqui...ah,eraumabelezaaqui,erauma

38AgrafiadonomedeYoneRodrigueséapresentadanacarteladeidentificaçãodeAsagadascandangasinvisíveiscom“Y”,ediferentementeemPoeiraeBatom,ondeégrafadocom“I”.Opteiporassumir,emcadaanálise,agrafiarelatadaporcadafilme.

154

maravilha!OrelatodeYonenoslevaimediatamenteaimaginaresselugarque,como

denunciaocontrasteentreimagensepalavras,nãoexistemais.

Surgeentãoumasegundanarradora:Auda,umamulhermaisjovem,aparentando

meiaidade,cabeloslongosecastanhos,vozarticulada.

Alembrançaqueeutenhoeraassim,decoisaassim,bemenfeitada,assim,umpoucodeexageropranossaépoca,praquelasmoças,praquelasmeninasemoçasqueeradomeuconvívio.Entãoagenteficavaachandoqueeratudoexagerado:obatom,aroupané,umpoucomaisdedecote,babados,flores,coresfortes,acharreteassim,eulembrodecharretecomcavalobranco,eulembroassimde...elacomasaiamuitorodadasobreobancodacharrete...(AudadeLima)

Auda,comoseurelatodeixatransparecer,nãoeraprostituta.Observavaessas

mulheresdelonge,juntoàsmeninasemoçasdeseuconvívio.Seuolharconstróium

mundodemuitabeleza,umabelezacompostadeexagerosquecontrastavacomoseu

universo.Seurelato,seuentusiasmo,aofalardessasmulheres,colocam-nasem

posiçõesopostas:doisgruposdemulheresporalicirculavam,eumerabemdistinto

dooutro,pelaformacomoseapresentavamnoespaçodarua.Aimagemdacharrete,

construídaporAuda,nostransportaparaesselugardeoposições.

155

Yonevoltaafalarconosco:Vocêentravaassimpareciaquetavaentrandoaténum

salãodebaile,numsabe...quetinhaumsalãomuitograndeaqui.Seguem-seimagens

desuacasa,umacasaondenãosevêqualquerindíciodosalãodebaile,massim

paredesdescascadas,opendentedeumpratodeplantasvazio,umacadeiravaziaem

meioaosalão,umacercademadeiracomumaportaaberta.

UmcortenoslevaaimagensdeBrasíliasendoconstruída:caminhõescheiosde

homenspercorremasviasdacidadeaindaemconstrução.Várioscaminhões,

enfileirados,imagemrecorrentenanossamemóriaacercadaconstrução.Nenhuma

mulheraparecenasimagens.

Segue-seorelatodeumnovonarrador,Francisco:Naquelaépocaasmulher...mulher

eramuitodifícil,nossasenhora,sótinhahomem,sóerahomemmesmo.Àsuafala,

complementaJoséPerdiz,umquartonarrador:

Elesnãopermitiamqueoshomens,queosmaridostrouxessemasmulher...pranãoatrapalharaconstrução.Elesachavamqueiaatrapalharaconstrução,porquetinhaquetrabalharumamédiade18,16horaspordia,eocaracasadoamulhermuitasvezescriacaso:“queé,cêtádandomaisvalornaobradequênimim?”(JoséPerdiz)

156

EmmeioàfaladePerdiz,sãomostradasimagensdaconstruçãodeBrasília,e

novamentesomentehomensaparecemali.Operáriosdaconstruçãonocanteiro

remexematerra,concretamlajes,misturamoconcreto.Umailustraçãodafalade

Perdiz:ocenáriodaconstruçãotomadoporhomensemtrabalhodiário.

Sãointroduzidasaseguirmaisduaspersonagens:NoemeAlveseNoemeLuis.

(Risos)Euvimnumcaminhãodegasolina,naprimeiravezqueeuvim,né.Depois,aminhamãemoravaaquiemGoianápolis,eeuvinhade2em2meses.Vinhadecarona...vinhadecarona...namoravaomotoristanaestrada,namoravané...(risos).Ficavadeitadinha(risos).Naqueletempoeueranovinha,bonitinha.Eutinha22anosnaquelaépoca,novinhané…peitindurinho,tudoné…(risos)(NoemeAlves)

Ah,onegóciofoisofrimento,minhafia,porquechegavanumacasa,erademenorpratrabalhar...“não,nãoserve”.Chegavanumambienteondeeuqueriaficar,tambémnãopodia,erademenor,tinhaqueestarsempre

157

correndodapolícia.Quandoapolíciapintava,tinhaqueesconder,debaixodecama,debaixodequalquercoisa,tinhaquemeesconder,nãopodiamostraracara,queeueramuitonovinha.Efoidose,menina,otremnãofoimolenão.(NoemeLuis)

Apresentam-se,finalmente,asprotagonistasdofilme:prostitutasquevieram

trabalharnaconstruçãodeBrasília.Seusrelatosiniciaisfalamdesuachegada,os

primeiroscontatoscomaquelelugar.Lugaressequesemostrapelasdificuldadesem

chegaresobreviveraele:seprostituirparaconseguircarona,seesconderdapolícia.

Ailegalidadeeanecessidadegerandoospercursosesituaçõesqueessasmulheres

vãoviver,localizando-asàmargemdeumprocesso,escondidasdahistória.Afalade

Perdizquesegueconcretizaessaimpressão:Sóqueessashistóriasdessasmulher

nuncavininguémcomentar.Nememjornal,nememtelevisão,nemnada.

Nasequência,imagensdeumtrilhodetrem,vistoquasequerenteaochão.Aofundo,

aolonge,umamulhercaminhasegurandoumamala,seguindoocaminhodotrilho.

Contextualizadoestáentãootítulodofilme,queentraemseguida:Asagadas

candangasinvisíveis.

Asdiversõeseraresumidooseguinte:tinhasóduasclasse,ooperáriopropriamenteditoeosengenheiro,osadministradordeobra,osprojetista,engenheirodeobra,mestredeobras.Essagamadeengenheirosedoutorados,elestinha...adiversãodeleseranoúnicoprédioquetinhadealvenariaqueeraumhotel,pertodoPaláciodaAlvorada,quedepoispegoufogo.Alitinhaumaboate,oucoisaparecida,aíelesiampralieànoitetinhaunscabaréquefoimontadosópraeles,vinhasómulheresescolhidaqueelesbuscavaemBeloHorizonte,SãoPaulo,RiodeJaneiro,Goiânia.Eotrabalhadornãotinhaaondesexualmente...ondeir.EletinhaqueirpraLuziâniaoupraFormosa.Masquandoaconteciaafolhadepagamento,queelesiam,davafalhadeserviço.Ecommuitocustoelesconvenceu...naépocaquemgovernavaBrasíliaeraoIsraelPinheiro...eaíeleconcordouemmontarocabarédepoisdaestradadeferronoNúcleoBandeirante.Ealifoimontado.(JoséPerdiz)

158

AimagemdotrilhodetremvoltaaaparecerdescritanorelatodePerdiz:depoisda

estradadeferrofoiimplantadaazonadascasasdeprostituição.

Ficavaseparadodafamília,né.Acidadeficavadeumlado,tinhasóumapartezinhaassimmaisoumenosdeuns100metrosdeseparaçãoné.Masaísóeracasané,sómulher,sómulher.(FranciscoAlves)

Sentiapreconceitodoladodasfamíliané.Queasfamílianumpodiaverumamulhernaruaqueelasmesmaligavaprapolícia“afulanatánarua”,“afulanatáassim”,“afulanatánafarmácia”,“fulanatánoaçougue”,“fulanatádessejeito”.Nãoseiondequeelasconseguianomedaspessoas,masconseguia.Ligava,járeclamava,apolíciavinhaerecolhiaagente.Numpodiaporcausadisso.Eramuitochato.(NoemeLuis)

Acidadeapareceaquidivididanãosomenteporumtrilhodetrem,mastambémpor

umavigíliaconstantedequempoderiacircularpelaCidadeLivre.Umobservatório

moral,doqualparticipavamhomensemulheres,estipulavamoslimitesparaquem

eradignoounãodeestaremestabelecimentosdacidade.

Aquelehotelzãoassim,tudodetábua,ocorredorzãoassimó.Aítinhaunsquartinhoassim,osquartinhocabiasóacaminhasó,cabiamuitomalacama,eumamesinhaassimó.Eratábuamesmo,queeraprovisórioné.(NoemeAlves)

Aíquandosaíaopagamentoaquiloaliviravauminfernoné,todomundoiapralá.Eessemecânicoquetrabalhavaconoscoficavaforçandopramimirlá,eufalava,fulanoeutônoivo,numtenhointeresseemirpracabaré.Elefalou“não,euquero...procêverasloucura,asloucura!”.Aíumdiaeufuicomele,numsábado.Elogonaentrada,umacasacomumafilade50homens,eufalei,“elestãocomprandooquêaí?”.Elefalou“nada,elestãoesperandoavezdelesprairproquartocomasmulherné”.Elefalou,“masesseépequeno,vamonooutrolá”.Aíeucontei,erauns300homensemfila.Tinhaumportãozinho,ocaraficavaalieamulhergritavalá“tôlivre”.Ocaraabriaoportãozinho,ocaraentrava.Daíumpouquinhooutra,“eutôlivre”,abria,entravaoutro.Sóqueelesaíaporoutraportadofundo.Elesentravaporaquiesaíaporlá.Eafilaiaandandoali,praticamenteanoiteinteira.(JoséPerdiz)

159

EmmeioàfaladePerdiz,aimagemdeumafiladehomens,àesperadaentradano

bordel,extraídadofilmeConterrâneosVelhosdeGuerra(1990),deVladimirCarvalho.

AdescriçãodeNoemeAlvesdaqueleespaçoíntimo–obarracãodemadeira,o

tamanhodosquartos,etc.–éumaimagemdememória,nãoháilustraçãoparaela.A

imagemdafiladehomensmostraoquesepodiavernoespaçopúblico,oquese

podiaalcançardaruaequedemarcavaafunçãodaquelelugar.

Emseguida,vemosimagensdeNoemeLuísaosemaquiaremseuespelho.Imagens

deseuquarto,suacamafeita,umapenteadeiracomsuascoisas.Esseespaçoíntimo,o

quartodesuacasahojeemdia,éaimagempossíveldaintimidadedessamulher.

Aíquandoerafinaldesemanaenchiaaquelescaminhãodepião,desoldado,detudoedespejavatudolánomeidarua.“Ficaaí,sevira,detardenósvemapanhar”.Ali,minhafilha,onegóciopegava,onegócioficavafeio.Eraumafilamesmo.Fedorentoasuvaco,fedorentoasuor,fedorentodetodojeito,masnãotemjeito.Nãotinhapraondecorrer,fazeroquê,tavaalipraquilo(risos).(NoemeLuis)

Entãoláeuconsertandocama,queeracamaquebradaquenãoacabavamais,efuiconversandocomasmulheresqueficavamali.EessameninadeGoiânia,euconversandocomelaecomasoutras,elafalou“olha,aloucura,vocênãoimagina.Nodiadopagamentopassavaemcimadagentede80a120homens”.(JoséPerdiz)

Aítinhadiaqueagentetinhaquepedirlicençapradonadacasa,quenãoaguentavamais.Aquelaspartesdagenteinchava,nãotinhamaiscondições.Elasdavaumapomadapragentelá,“40minutos,ficareservadapralá”,aídavaaqueles40minutosvoltavadenovo.Maserade60,dependiadoqueaguentava,nãotinhabasenão.Alitinha...atéahoraqueaguentasse.Senãoaguentassetinhaqueavisar.(NoemeLuis)

Nessasfalas,adescriçãodarotinadetrabalhodessasmulheres,ascondiçõesaque

eramsubmetidas:umaequaçãodetempo/dinheiro/eficiênciaaplicadaaocorpo

dasmulheres.AfaladeNoemeLuistambémcolocademaneiraclaraquehaviauma

hierarquiadetrabalho,essasmulheresestavamsubmetidasàsordensdeuma

superior,adonadacasaditavaasregras,quemdeveriaequantotempodeveriam

160

trabalhar.Mesmoemcondições“ilegais”,asregrasestavamestabelecidas:nãotinha

praondecorrer,fazeroquê,tavaalipraquilo.

Umaquebranofilme.AimagemdaentradadocinemadaCidadeLivreéseguidapor

fotosdemusasdosanos1950/60:BrigitteBardot,AudreyHepburn,LeilaDiniz,

JeanneMoreau,TuesdayWeld,SophiaLoreneNatalieWood.Emmeioaessas

imagens,entraafaladeAuda.

Narealidade,elaspassavamnaavenida,e,aosmeusolhos,aquilotudoeracomoumpersonagem,quesaiudocinema,quesaiudofilmeetavaalinaminharealidadené?(AudadeLima)

Eànoiteasmulhereserammuitolinda,todasvestidasdelongo,né,calçadadesapatoalto,meias…ninguémpodiairprosalãosemmeia,nemosapato,brilhandonopé.Porquesapatotorto,mulhernãofaziasalanão,né…enemvestidoassim,malvestidatambémnão.Eaquieramuitobonito,sabe,vinhagentee…vinhaospolíticostambém,vinhamuitoaqui,vinhamuitodeputadoaquiné…comoJuscelino,né.Juscelinofrequentouaqui,sentadoaquiondeeuestou,né.Aquitinhaumamesagrandeaqui.Eeleveiomuitasemuitasvezesaqui,ossegurançastudoficavamláforaesperandoele,né.Porqueeletambémnãoligavapranadanão,eleeramulherengo,né…nãoligavapranadanão.Eeletinhaconhecimentoné,comadonadacasa,agentetratavaelemuitobemné…umpresidente,cêjápensouumpresidentenacasadagente?Ah,cêtálouconé!(YoneRodrigues)

Tinhamuitosalãodecabelolásabe,salãodebeleza,entãoasmulherandavamuitobemarrumada,cabelãoassim,sabe.Muitobemarrumada,tudolimpinha.(NoemeAlves)

Nãopodiarepetirroupa,né,aroupatinhaquesersemprenova.Porexemplo,euvestiessaroupaaquihoje,amanhãnãopodiausarmais.Eadespesaficavacara.(NoemeLuis)

DetodoladodoBrasiltinhamulheraqui,tinhadoexterior,tinhacubana,tinhaduascubanaaqui,queagentenementendiaalínguadelas,nemdefrancêsnemnada,precisavadeumapessoaprasaberfalarprapodertransmitirpragentequeagentenãosabia.Conversavapelosinal.Mulhereslindas,sóvendo,né.Mulheresmuitobonitas.(YoneRodrigues)

161

Tinhaumasmulheresmaisbonitasqueeramaiscara,outrasmaisfeiaeramaisbarata.(risos)Asmaisnovaseramaiscara...(FranciscoAlves)

Emcontrapontoàsituaçãoapresentadanasfalasimediatamenteanterioresaessas,

quedescreviamospercalçosdarotinadetrabalhovividaporessasmulheres,esses

relatosconstroemumaoutraimagem:adecomoessasmulhereseramvistasno

espaçopúblicoenosalãodascasasdeprostituição.Naverdade,retoma-seaquia

imagemmentalqueintroduzofilme,incorporadanaquelemomentopelasfalasde

AudaeYone.Aassociaçãocommusasdocinema,apresentadasnasfotos,reforçaum

estereótipoqueglamourizaaprostituta.Essavisãoestáimpregnadanovamentenas

falasdeAudaeYone,mulheresqueobservamaprostitutadeumolharexterno:uma,

ameninaqueviveunaCidadeLivre,masquepertenciaaumoutrogruposocial;

outra,afuncionária,porassimdizer,deumacasadeprostituição,queexerciaum

papelordenadorecontroladornogrupodasprostitutas.Caberessaltarquesomente

nestaúltimafaladeYoneépossívelaferirqueelanãoeradefatoumaprostituta.

Apesardefalarapartirdeumaóticadequemviviaarotinadascasasdeprostituição,

Yonerefere-seàsprostitutasemterceirapessoa,assimcomoàdonadacasa.

Portanto,épossívelintuirqueelatrabalhavaali,desempenhandoumafunçãoque

nãoficaclaranofilme39.Assumindoesselugardefala,Yoneglamourizatambéma

imagemdosfrequentadoresdolocal–políticos,inclusiveJuscelinoKubitschek–,e

todoocenárioemtornodesseuniverso,incluindoaformacomoasprostitutasse

apresentavamaosclientes.Jánasfalasdasduasprostitutas,vemosamesmaquestão

vistaporumoutroângulo:estarbemvestida,bemarrumadaeraumrequisitoparao

negócio,paraavendadoserviçosexual.Eraprecisoseapresentarbemesemostrar

atraenteparaosclientes.Porúltimo,temosavisãodocliente,quecolocaaquestão

dosvaloresatribuídosaoserviçocomodiretamenterelacionadosàaparênciadessas

mulheres:asmaisbonitaserammaiscaras,asfeias,maisbaratas.

Tinhaassimumatabelacomaentradadoquarto,tinhaastabela,tanto,tanto,tanto...querquefalaquanto?(risos)Não,numpodefalar,né?Então,tinhaumtantoné,eumtantopraelas,umtantopracasa,quejádeixavanacopa,né.(YoneRodrigues)

Aporcentagemalieraoseguinte:étantodechave,eelesproibiaagentedefalar.Naquelaépocaera15cruzeirosdachave,15damulher.Masaqueledamulher,elajátinhaquedeixar5queeraprasoutrasdespesas,oálcool,o

39NofilmePoeiraeBatom,comojávimos,YoneécitadacomoGerentedecasadeencontros.

162

sabonete,ousodobanheiro.Tiravaaquelaporcentagempraeles,queerapranãoficardegraça,praelesnãoterprejuízo.Amulherpodiater,maselesnão.Eracomplicado.Umavidamuitohumilhante,querdizer,alémdevocêestarlá,trabalhandopravocê,cêtemquetrabalharpradona.Eladáocafé,dáoalmoço,dáajanta,aindatemquedividiroqueganhacomelas.(NoemeLuis)

Adonadacasaobrigavaamulherafazersalalá,elatinhaqueficarfazendosalalá,beber,pradarlucropraeles,né.(FranciscoAlves)

Essasfalasexplicitamcomosedavaacobrançaeadivisãododinheiroarrecadadona

casa,segundoaqualasprostitutasprecisavamcederparaacopaoupagarataxada

chaveoequivalentea50%dodinheirorecebidopeloserviço,aindasomadoàs

demaisdespesas,restandoaofinalapenasumterçoparaaprostituta.Emmeioàfala

deNoemeLuis,vemosimagensdelaemsuacozinha,entrevistapelacortinadaporta.

Vemosapenassuasilhueta,aimpressãodeestarescondida,reclusa.Essaimagem

entranomomentoemqueapersonagemdescreveumavidamuitohumilhante...,

parecendoquererestabelecerumarelaçãoentreessafigurareclusadaimagem,ea

suaresignaçãoàsituaçãodescritanafala.

Emseguidavemosnovamenteumaimagemdotrilhodetrem,dessavezvazio,eavoz

dadiretoraéouvidapelaprimeiravez:

(DeniseCaputo:EcomofoiofinaldaZonalá?)Cabô,todomundosaiufora,cabô(incomp.)eseapolíciapegassequalquermulhernaruaprendia,umbocadofoipraPapuda.Cabôenãotevemaiscolherdechápraninguémnão.Cabô,apolíciafezmuitacovardia,aGEB,oexército,sabe..enchiaoscaminhãodemulhersabe,elevavapraAlexânia,deixavalánaestrada…umbocadolevoupraLuziânia,muitaamigaminhafoi…elesbatiamdemais,sabe…foimuitacovardianaquelaépoca.(NoemeAlves)

Foideumahorapraoutra.Ojuizmandoufecharejáentroucomostratorderrubandotudo.Foisóumprazode24h…“saidebaixo,vamoderrubar”.Passouotrator,ostremeratudodemadeirané?Foimoendotudoali,acabou.“Evocêsdesapareçam!”Cadaumtevequecaçarseudestino,euvimpracá,outrasforampraLuziânia,outrasforampraCristalina,outrasforampraFormosa,outraspraGoiânia…esumiutudo.Desapareceuumadaoutra.(NoemeLuís)

Assim,damesmaformaqueforamtrazidas,asprostitutasforamexpulsas.Após

cumpriremoseupapeldeapaziguarosânimossexuaisqueinquietavamos

trabalhadoresnaconstruçãodacidade,e,tendoestasidoinaugurada,azonafoi

extirpada.Osdepoimentosdasprostitutasdemonstramaviolênciaeaintolerância

comqueforamrealizadasessasexpulsões,queseguiamaregradasremoçõesfeitas

apósainauguraçãodeBrasília,cujoprincípioeraomesmo:manterlongedacidade

163

qualquerindíciodoBrasildopassadocomoqualoprojetodecidadepretendia

romper,qualquerinterferênciaaoprojetomodernodecidadeedepaísque

impregnavaodiscursodanovacapital:Evocês,desapareçam!

Umasficourica.Outras,tudoqueganhou,queimava.Eeufalei,“ômas...eoquequeganhoucomisso?”Eela,“olha,euporexemploeutôbemdevida,játenhoalgunsapartamentos,tenhocasaprópria,tômepreparandoprasairdessavidaeformarminhafamília.Depoiseuvoufazerumtratamentodesaúdemuitobemfeitoearranjarumcasamento,porqueissonumévidanão.Issoémuitotriste,émuitosofrido,equandoagenteencontravaalgumcompanheirodebomcaráter,masmuitasvezestinhaunsignorantesqueàsvezesatébatianagentené”.(JoséPerdiz)

Quandoeulembrodaqueletempoeudigo“meusenhor,comofoiqueeusuportei,comoéquedeupravencer”.(NoemeLuís)

Eelaseramrealmentemulheresdiferentes,masassim,aosmeusolhosné,aquelacriançadaquelaépoca.Hojeeuconcluoquerealmenteelastinhamqueserumpoucodiferentesporqueelasjáfaziampartedeumavidadiferente.Jáerampioneirastambém,candangastambém,alinoseutrabalho.Hojeeutenhoomaiorrespeitoporessasmulheresquevieramtambémaventurarnessaépoca.SeaventuraramaviraBrasília,aviverumavidaassimdifícil,né,porqueimagina...(AudadeLima)

Asfalasconclusivasdofilmetentamdisporsobreodestinodessasmulheres–umas

ficourica;outrastudoqueganhou,queimava;sobreamemóriaemotivaqueguardam

desseepisódiodesuasvidas–comofoiqueeusuportei?;eofilmefinaliza,assimcomo

seiniciou,comapalavradeumaobservadoraexterna:(elas)jáerampioneiras

também,candangas(...).Hojeeuguardoomaiorrespeitoporessasmulheresque

vieramtambémaventurarnessaépoca.Apesardenamemóriadessasmulheres

persistiremasimagensdodurotrabalhoaquesesubmeteram,énecessáriolembrar-

sedelasapartirdaperspectivadafiguraheroicadocandango.

164

4.3. O corpo feminino: entre santa e puta

Arespeitodosdoisfilmesqueacabodedescrever,cabecolocarumaquestãoinicial:

nãoépossívellerapartirdelesumcorpofemininomaterializadounicamentenas

imagens.Hánosdoisumaarticulaçãoentreamemóriaeimagináriopresentenos

relatosdessasmulhereseomaterialdearquivoacercadaconstruçãodeBrasíliaque

éexpostonosfilmes.Dessaforma,abuscaqueessasnarrativasincitaméadeum

corpodescritoeambientadonosrelatosdaspersonagens,alternativaparaquese

possaenxergaroutrasnuancesdeumcorpotãopoucoregistradonalarga

documentaçãoaudiovisualacercadaconstruçãodeBrasília,produzidasporhomense

protagonizadasporeles.

Aentrevistanodocumentáriobrasileiropassaaserumaconstantemaiorapartirda

décadade1990,muitoinfluenciadopeloformatojornalísticoetelevisivo.Elasetorna

oprópriocorpodaobra,emtornodoqualodocumentárioéestruturado,muitas

vezesentremeadaporimagensqueserelacionamcomosdepoimentos.Mas,no

documentário,aentrevistanãoseprestasomenteacoletarinformações.Oatode

perguntaredeouvirtorna-seumaestratégiapolíticadodocumentário:fazpartedo

queacríticaBeatrizSarlochamade“viradasubjetiva”,

...quesemanifestatantocomotendênciaacadêmicaquantonomercadodebenssimbólicosesepropõeareconstituir“atexturadavida”,averdadecotidianacontidanarememoraçãodaexperiência,apromovertantoavalorizaçãodaprimeirapessoacomopontodevista,quantoareivindicaçãodeumadimensãosubjetiva.(...)“Umverdadeirorenascimentodosujeitoqueseacreditavamortonosanos1960e1970”.(SENRA,2010,p.113)

Ummovimentodedevoluçãodapalavra,deconquistadapalavraededireitoàpalavraseexpande,reduplicadoporumaideologiada“cura”identitáriapormeiodamemóriasocialoupessoal.(SARLOapudSENRA,2010,p.113–14)

Namedidaemqueosdoisfilmessepropõemaummesmoobjetivogeral–resgatara

memóriadasmulheresnaconstruçãodeBrasília–,esendotambémpioneirosnesse

intuito(aindaosúnicos),compõemumpanoramaaudiovisualinteressanteacercade

aspectossubjetivosdessahistória.Noprimeiro–PoeiraeBatom–osdiversos

depoimentosprocuramtecerumlargopanoramadessaspersonagens:mulheresde

diferentesclassessociais,profissõeseorigensdãooseutomdahistória.Jáosegundo

–Asagadascandangasinvisíveis–procuraaprofundaraindamaisaquestãoda

165

invisibilidadedamulhernahistória,aoapontarparaumsegmentoespecífico–odas

prostitutas–,quenosparecetersidovítimadeumaconstantetentativade

camuflagemaolongodaescritadahistóriadeBrasília.Foitratadocomumentecomo

fenômenoouchagasocial,destituindooscorposdessasmulheresdesua

individualidadeesubjetividade:nãosetinhaconhecimentoatéentãodequese

tivessedadovozaessasmulheresparaqueelasmesmaspudessemdescreverasua

vivênciadoperíododeconstruçãodeBrasília.Comomencioneinaintroduçãodeste

trabalho,mesmoapesquisadeJoelmaRodriguesquetratadiretamentedoassunto,

acabaporabordaraquestãodaprostituiçãocomofenômeno,e,mesmopartindoda

críticafeminista,aonãoincorporarafaladessasmulheres,generaliza-as.Nopróprio

PoeiraeBatom,aabordageméamesma,nenhumaprostitutaéentrevistada,orelato

maispróximoquetemoséodeYoneRodrigues,cujafunçãoéeufemisadana

referênciaàsuaprofissãocomogerentedecasadeencontros.

Dadasessasquestões,oqueimportaperguntaraessesfilmes,paraefeitosdoque

buscaessetrabalho,écomoasprópriasmulheresvãoreconfiguraressecorpo

femininonahistóriadaconstruçãodeBrasília,pormeiodasdescrições,estórias,

visõesquesomenteelaspodemnosoferecer.Ficaclaroaolongodosdoisfilmesqueé

impossíveldissociarosdiscursosdahistóriaoficialdoimaginárioconstruídopor

essasmulheres,eque,tantoanarrativapropostapelascineastasemtornodotema

comoosprópriosdepoimentosestãoimpregnadosdela.Mesmoassim,procuroaqui

pelasnuancesdessecorponarradoemprimeirapessoa,articuladoscomasimagens

dearquivoquedãosuporteaosdepoimentos.

Dessaforma,aoolharparaessesdoisfilmesproduzidospormulheres,épreciso

tambémprocurarnessafacetadanarrativacinematográfica–dodocumentáriode

entrevista,dabuscapelamemória–,outrasnuancesdarelaçãoqueocorpofeminino

estabeleceucomamodernidadenaconstruçãodeBrasília,jávistanosfilmes

anteriores,nasrepresentaçõesmasculinasquedelesefez.Trata-setambémde

questionaramaneiracomoessecorpofemininofoivistoporessescineastas,e

procurarnanarrativafemininadabuscapelamemóriaperdida,tantoostraçosde

pregnânciadessavozmasculinanonossodiscursosobrenósmesmas,comonos

traçosdeumesforçoporsereinventar.

166

Umhomemnãoteriaaideiadeescreverumlivrosobreasituaçãosingularqueocupamosmachosnahumanidade.Sequerodefinir-me,souobrigadaadeclarar:‘Souumamulher’Essaverdadeconstituiumfundosobreoqualseergueráqualqueroutraafirmação.Umhomemnãocomeçanuncaporseapresentarcomoumindivíduodedeterminadosexo:quesejahomeménatural.(BEAUVOIR,1970,p.9)

“Tudooqueoshomensescreveramsobreasmulheresdevesersuspeito,porqueelessão,aumtempo,juizeparte”,escreveunoséculoXVII,PoulaindelaBarre,feministapoucoconhecido.Emtodaparteeemqualquerépoca,oshomensexibiramasatisfaçãoquetiveramdesesentiremosreisdacriação.(BEAUVOIR,1970,p.15–16)

Dentrodaliteraturaproduzidaporhomensacercadamodernidade,recorroauma

dasfigurasliteráriasmaisutilizadasparafalardohomemmoderno,oudodesejode

desenvolvimento,–oFausto–equepodesuscitartambémumainterpretação

interessanteacercadecomoamulherfoivistapelohomemnesselargoedifuso

processoqueéamodernidade.Bermanrecupera,emTudoqueésólidodesmanchano

ar,oFaustodeGoethe,ededicaumcapítulodeseulivroaele.Goethecomeçaa

escreveraobraporvoltade1770,econtinuaaté1831,ouseja,iniciaaobraemum

períodoondeas“condiçõesmateriaisesociaisaindasãomedievais”,e“terminaem

meioàsconturbaçõesespirituaisemateriaisdarevoluçãoindustrial”.(BERMAN,

1986,p.45)

Faustoémovidoporessedesejodedesenvolvimentoque,paraGoethe,estáatrelado

aoidealculturaldeautodesenvolvimento:“oúnicomeiodequeohomemdispõepara

setransformar(...)éaradicaltransformaçãodetodoomundofísico,moralesocial

emqueelevive.”Trata-sederompercomovelhomundo,transformá-loparadaí

transformarasimesmo.ApartirdesuauniãocomMefistófeles(odiabo),Fausto

consegueosrecursos,amobilidadeeaautoconfiançadequenecessitaparaseguir

suajornada.

ParaBerman,notrajetoembuscadoautodesenvolvimentopercorridoporFausto,há

umasimbiosedepoder–dinheiro,corpo,espírito–queémotivadoradasua

empreitada,masquenãoseresumeaumamerarepresentaçãodaeconomia

capitalista.Alémdedinheiro,essepoderéprincipalmentepropulsorde

desenvolvimento,envolveumacrençanaforçaindividual,numaenergiahumanaque

écapazdemoveromundo.Mefistófeles,aooferecerseiscavalosaFaustoestá

principalmentefalandodevelocidade,muitomaisdoqueriqueza.Avelocidade,

167

segundoBerman,geraumaforçanitidamentesexual,erelacionadaàmasculinidade,

queestánocernedopoderdemudança,demovimentar-separatodososladoscom

rapidezedeterminação.

ImbuídodessasensaçãodepoderéqueFaustovaiconhecerGretchen,moradorade

umapequenacidade:oencontroentreumasensibilidadeedesejomodernos,euma

personagemaindaatreladaaestruturassociaistradicionais.Elesevêatraídopor

tudooqueelarepresentademaisbeloequeelehaviaabandonadonomundo:sua

inocência,simplicidadeehumildadecristã.Elasevêrepentinamenterodeadapor

presentes,providenciadosporMefistófeles,eéevidentequeaquiloteráumimpacto

emsuavida,fazendocomqueelasejavistademaneiradiferenteporaquelesquea

rodeiam.“Nuncaninguémlhedeunada;elacresceupobre,tantodeamorcomode

dinheiro;nuncapensouemsicomomerecedoradepresentesoudasemoçõesque

presentessupostamenteimplicam”.(BERMAN,1986,p.61)Assim,Gretchensevê

diantedapossibilidadedesetornardiferente,ecrescenelaodesejodese

desenvolver.Gretchenpassaaacreditaremsuasnecessidadespróprias,eétomada

por“umanovaespéciedeauto-respeito”.Noentanto,aoconfrontaressenovo

sentimentocomoseumundo,comaquelacidadeprovinciana,Gretchenpersonifica

emFaustoapossibilidadedemudança.Issooassustaeeleaabandona.

Faustoseassustaaoobservarseucrescimento;elenãosedácontadequeéumcrescimentoprecário,poiscarecedesuportesocialenãotemqualquersimpatiaouconfirmaçãoanãoserdapartedopróprioFausto.Aprincípio,odesesperodelasemanifestaatravésdapaixãodesenfreada,eelesedelicia.Porém,empoucotempooardorseconverteemhisteria,paraalémdoqueelepodecontrolar.Eleaama,masnocontextodeumavidaplena,compassadoefuturo,eemmeioaumlargomundoqueestádecididoaexplorar;paraela,oamorporeleignoraqualquercontextoeconstituiseuúnicoapoionavida.Forçadoaenfrentarointensodesesperodasnecessidadesdela,Faustoentraempânicoeabandonaacidade.(BERMAN,1986,p.62)

Atormentadopeloseuprópriodesejo,Faustoseretiraemumafloresta,buscao

isolamentonanaturezaparafugirdasperturbaçõesqueseusinstintoslhecausaram,

esevêtomadopelosentimentodeculpa.Imersonessesentimento,Faustochegaà

conclusãoque,porGretchen“terlhedadotudoquepodiadar,despertouneleum

apetitequeelanãoécapazdesaciar”.Imbuídodessacerteza,Faustoprocuraum

ritualsabáticoonde“desfrutademulheresincomparavelmentemaisexperientese

despojadas;drogasaindamaisinebriantes;estranhasemaravilhosasconversações

168

quevalemporverdadeirasviagens”.EnquantoFaustoprocuravadissolverasua

culpa,Gretchenhaviasucumbido:ovelhomundodesabarasobreela.Grávidae

julgadapelosseusvizinhosefamíliacomotraidora,acabacondenadaàmorte.

ApersonagemGretchennomitodoFaustorevelaumamulherque,emcontraponto

aohomemmoderno,continuapresaàsvelhasestruturas:nãolheéconcedidaa

mesmaliberdadedequedispõeFausto,nãoestãodisponíveisparaelaosmeios,o

podereaautoconfiançanecessáriosparapromoveressa“radicaltransformaçãode

todoomundofísico,moralesocial”emquevive.

Umamulherpobre,atreladaàfamília,nãotemqualquerliberdadedemovimento.Estádestinadaaver-seàmercêdoshomensquenãotemcomiseraçãoporumamulherquenãoconheceoseulugar.Noseumundofechado,loucuraemartíriosãoosúnicoscaminhosàsuadisposição.(BERMAN,1986,p.66)

OencontrodeGretcheneFausto–queéoencontroentreasestruturasdeumvelhoe

umnovomundo–colocademaneirasingularesseembateentreaspequenas

comunidadesquecomeçamasedesestruturarcomamodernidade.Mas,

principalmente,colocademaneiraclaraqueháquestõesdegêneroeclassequese

interpõemaesseprocessodedesenvolvimentoquechamamosdemodernidade.

GretchenvêoseudesejoporFaustoeporumnovomundoruirprincipalmentepor

suacondiçãodeclasseedemulher,ondeasvelhasestruturasatuamcommuitomais

força.BermanobservaaindaemsualeituraqueGretchenparecesermovidaporuma

aceitaçãoautodestrutivadeseudestino,comoseeladesejassesercondenada:“ela

estátentandoiralémdaslimitadasfronteirasdafamília,daigrejaedacidade,um

mundoondeadevoçãocegaeaautocastraçãosãoosúnicoscaminhosdavirtude”.O

queéapontadoporBermancomoum“desejodesercondenada”podeserentendido

comoaincorporaçãodoauto-sacrifíciocristãocomovirtude,principalmente

feminina,econstituintedessasubjetividade.Gretchensabequenãolheédadaoutra

escolha,equesuacondiçãofeminina,dentrodessevelhomundo,está

necessariamenteatreladaaessaaceitaçãodaculpa,dopecadooriginal,doqualnão

podeselibertaranãoserpelaredenção.

OconflitoentrevelhoenovomundonoFaustodeGoethenosdáaveras

transformaçõesdamodernidadenãoapenasnavisãodosvencedores,mastambém

169

daquelesquesãovencidosporelas,evidenciandoacrueldadequeasacompanha,

impulsionadaspela“destruiçãocriativa”deMefistófeles.ApersonagemdeGretchené

particularmenteimportanteparaessetrabalhojáqueposicionaamulher–doponto

devistamasculino–nesseprocessodaprimeiramodernidade,eéemblemáticoque

elaapareçanaconstruçãodeGoethejustamentecomopersonagemarquetípicadesse

velhomundo.Curiosotambéméopapelquedesempenhamasmulheresfeiticeirasdo

ritualsabático–incomparavelmentemaisexperientesedespojadas–quevãosaciaro

desejodeFausto,umoutroarquétipofemininoaserlevadoemconta.Apartirdesses

doisarquétipos–porumlado,amulhercristã(ousanta,oudefamília),implicadaem

fortesestigmassociaisacercadeseupapelnomundo;eporoutro,amulherdespojada

(ouputa,comopoderíamoslerhoje,semeufemismos)tambémimplicada,mesmoque

poroposição,nosmesmosestigmas–sãopontasdeumapolaridadeentreasquaiso

corpofemininovaitransitaremsuasrepresentaçõessociais.Essapolaridadevai

permeartodaaexistênciahistóricadasmulheres,implicandonaconstituiçãodesua

subjetividade,desuavisãodesimesma,edeseucorpo,crucialparaoentendimento

decomoamodernidadevaiatuarsobreocorpofeminino,tantonoquetangeasua

interdição,comonoseudevirenquantoexistênciasocial.

UmadistinçãosimplóriaquesepodeaferirapartirdaleituradoFaustoéadequeo

corpofemininonãovivenciaamodernidadedamesmamaneiraqueomasculino.A

oposiçãoentreFausto(omoderno)eGretchen(otradicional)sãotambémreflexosde

umaconstruçãodaracionalidademodernaapartirdedualidades.Comovimosem

Descartes,adualidadecorpo/menteéfundadoradessaracionalidade,eteveosseus

rebatimentosemdiversasoutraspolaridades.DeacordocomElizabethGrosz,

Arelaçãomenteecorpoéfrequentementecorrelacionadaàsdistinçõesentrerazãoepaixão,sensatezesensibilidade,foraedentro,sereoutro,profundidadeesuperfície,realidadeeaparência,mecanicismoevitalismo,transcendênciaeimanência,temporalidadeeespacialidade,psicologiaefisiologia,formaematéria,eassimpordiante.(GROSZ,2000,p.48–9)

Eassimpordiante,poderiavir,adistinçãoentremasculinoefeminino.Na

interpolaçãodessasoposiçõesfoiconstruídoopensamentoocidental,comosefosse

possívelsepará-laseconsiderá-lascomocategoriasestanques,equeserelacionam

sempreemdualidade,emoposição,nuncaemcomplementação.Ocorpo,apaixão,a

sensibilidade,aaparênciaeofemininosão,assim,admitidoscomocategoriasbrutas,

170

naturais,emsubordinaçãoàmente,àsensatez,àrealidade,aomasculino,categorias

racionaiseobjetivas.

Tipicamente,afeminilidadeérepresentada(explícitaouimplicitamente)deumadeduasmaneirasnessecruzamentodeparesdeoposição:ouamenteétomadaequivalenteaomasculinoeocorpoequivalenteaofeminino(e,assim,deantemão,excluindoasmulherescomosujeitosdoconhecimento,oufilósofas)ouacadasexoéatribuídasuaprópriaformadecorporeidade.Noentanto,aoinvésdeconcederàsmulheresumaformadeespecificidadecorporalautônomaeativa,nomelhordoscasos,oscorposdasmulheressãojulgadosemtermosdeuma“desigualdadenatural”,comosehouvesseumpadrãooumedidaparaovalordoscorpos,independentementedosexo.(GROSZ,2000,p.67)

Aolongodetrêsséculosopensamentoocidentaltemprocuradodiscutiradualidade

cartesiana.Noentanto,édeterminanteainfluênciadeDescartesnopensamento

racionalmodernoe,emsetratandodocorpofeminino,essadualidadeéainda

reforçadaporumsegundoelemento,queestámuitopresentenapersonagemde

Gretchen:amísticacristã.Odiscursocristãosobreocorpotransitaemuma

ambiguidade:deumlado,adignidadedocorposanto,ocorpodeCristo;edeoutro,o

corpopecador,relacionadoàfraquezadacarne.

AféeadevoçãoaocorpodeCristocontribuíramparaelevarocorpoaumaaltadignidade,fazendodeleumsujeitodaHistória.(...)CorpomagnificadodoFilhoencarnado,doencontrodoVerbocomaCarne.CorpogloriosodoCristodaRessurreição.CorpotorturadodoCristodaPaixão,cujosímboloéemtodaparteacruz,lembraosacrifíciopelaredençãodahumanidade.(...)Masexisteumaoutraimagemdocorpo,igualmentecheiadesentido,queéaimagemdoserhumanopecador.AIgrejadaContrarreformareforçouadesconfiançaqueomagistériojáhaviamanifestadonosséculosmedievaisarespeitodocorpo,“essaabominávelvestedaalma”.Corpodepreciadodoserhumanopecador,poisseouveincessantementedizerqueépelocorpoqueelecorreoriscodeperder-se.Opecadoeomedo,omedodocorpo,principalmenteomedodocorpodamulher(grifomeu),retornamcomoumaladainhasobformadeprecauçõesecondenações.(CORBIN;COURTINE;VIGARELLO,2012,p.19–20)

Nessaambiguidadesefundamentatodaamoralcristãacercadocorpo.Ocorposanto

éumcorposacrificado,cujosofrimentodacarnesedestinaàelevaçãodaalma.Daía

origemdocultoaocorposofredor,aomartíriopraticadoduranteaRenascença,

principalmentepormulheres,comopodemospercebernaresignaçãodeGretchen

diantedesuacondenação.

Amulheresteverelacionadaaocorpo,sejaeleimpuroounão,muitomaisdoqueo

homem,emtodaaconstruçãodamísticacristã:desdeomitodacriaçãodomundo–o

171

corpodeEvaconduzAdãoaopecadooriginal–aténaconcepçãodeJesus,naqual

Mariaestálivredopecadooriginal,mas,aindaassim,participadagestaçãoapenas

enquantocorpo,receptáculodoVerboDivino.

Jesuséofrutodeumaduplafiliação,deumaidentidadehumanaedivinaaomesmotempo.EleéprodutodauniãodoVerbomasculinoedivinoedeumacarnehumanaefeminina.OVerbosefezcarnefecundandoMariapelaanunciação-encarnação(grifomeu);seu“sopro”foiofermentodivino.EElenãosereproduzirá“segundoacarne”,massegundooVerbo.Paraocristão,onascimentobiológico,afiliação“carnal”deveviracompanhadadeumrenascimento,deumafiliação“espiritual”(...)OVerboencarnadoéoalimentodaalma.(CORBIN;COURTINE;VIGARELLO,2012,p.44)

Portanto,ahistóriadasmulheresesteveintimamenteligadaaoseucorpo,que,

biologicamente,estevecondicionadoàsconsequênciasdareprodução,ecujo

imagináriosocialfoialimentadofortementepelamísticacristãdocorposantoem

oposiçãoaocorpopecador.ComodiriaMichellePerrot,“éprecisoserpiedosaou

escandalosaparaexistir”(PERROT,2007,p.19).

Relacionadatambémàpolaridadepecado/santidadeatribuídaaofeminino,estáuma

outraequeserelacionadiretamenteàformacomoseucorposemanifestanoespaço

dacidade:aquestãodopúblico/privado.Opatriarcaanuncia:lugardemulheréna

cozinha,ouseja,lugardemulherédentrodecasa.Poroposição,arua,acidade,seria

olugardohomem?Umdosaspectosdaconstruçãodadiferençaentreossexosse

espacializanosdomíniosdopúblicoedoprivado.SegundoMichellePerrot,a

narrativahistóricatradicionalreservapoucoespaçoàsmulheres,namedidaemque

privilegiaacenapública,ondeelaspoucoaparecem.Oshistoriadoreshesitaram

muitoemtransporolimiardavidaprivada,porpudoroudesprezoparacomas

atividadesobscurasquetranscorriamnoanonimatodoméstico,umlugar“sem

história”.Contudo,acasaeafamília,talcomoaconhecemoshoje,sãoum

acontecimentohistórico,datadoemsuamodernidadee,então,assuntoamerecer

atençãodoshistoriadores.

Osmodosderegistrodasmulheresestãoligadosàsuacondição,aoseulugarnafamíliaenasociedade.Omesmoocorrecomseumododerememoração,damontagempropriamenteditadoteatrodamemória.Pelaforçadascircunstâncias,pelomenosparaasmulheresdeantigamente,epeloquerestadeantigamentenasmulheresdehoje(oquenãoépouco),éumamemóriadoprivado,voltadaparaafamíliaeoíntimo,

172

osquaiselasforamdelegadasporconvençãoeposição(grifomeu).(PERROT,1989,p.15)

Aconstruçãododomínioprivadonoimaginárioocidentalfoimuitoassociadaao

feminino,namedidaemquefoidadaàmulheraresponsabilidadepormanterolar.

WitoldRybczynski,aodiscorrersobreosurgimentodoconceitodadomesticidade

burguesa,chamaaatençãoparaapresençarecorrentedemulheresemquadrosde

pintoresholandesesrenascentistasquetinhamcomotemaprincipalomundo

doméstico:

Énatural(grifomeu)queasmulheresfossemofocodaspinturasdeDeWitte,vistoqueomundodomésticoqueeleestavapintandohaviasetornadooseudomínio(grifomeu).Omundodotrabalhomasculino,edavidasocialmasculina,haviasemudadoparaoutrolugar.Acasahaviasetornadoolugarparaoutrotipodetrabalho–otrabalhodomésticoespecializado–,otrabalhofeminino.(RYBCZYNSKI,1996,p.81)

AcolocaçãodeRybczynskiésintomáticaparaentendermosaformacomoaescritada

história,emalgunscasos,posicionouamulheremrelaçãoàorganizaçãodavida

domésticaesocial.Háumadiferençacrucialentreestaúltimaabordagemeàquelade

MichellePerrot.EnquantoRyvczynskiconsideranaturalapresençafrequentede

mulheresemquadrosqueretratamosambientesdomésticosholandeses,Perrot

colocaasituaçãosobumoutroenfoque,quequestionaesse“destino”:elasforam

delegadasaeleporconvençãoeposição.

Essarelaçãopúblico/privado,puta/santaécolocadadeformainteressantenoestudo

quefazMargarethRagoacercadaprostituiçãoemSãoPaulonoperíododeaugeda

culturadocafé.EmseulivroPrazeresdanoite:prostituiçãoecódigosdesexualidade

femininaemSãoPaulo(1890-1930),MargarethRagoconstróiumpanoramada

presençadessasprostitutasemumacidadequeviveumatransformaçãoprofundaem

seuscódigosdesociabilidadeurbana:barõesdecafépassamaresidirembelos

palacetesnaAvenidaPaulista;hotéisdeluxosãoconstruídos,comoomodernoGrand

Hotelnaruadireita,projetodoarquitetoalemãovonPuttkamer,umdosmarcos

inauguraisdaarquiteturadocafé.Ouseja,emmeioàmodernizaçãoqueviviaacidade

deSãoPaulo,asprostitutas,principalmenteestrangeiras,quecomeçavamavirparaa

cidadeatraídaspelaprosperidadeeconômica,impactavamprofundamenteaforma

comoasmulheresvivenciavamoespaçopúblico.

173

Aassociaçãodaprostitutacomumafiguradamodernidade,“corpomíticoalegóricoondeoutrasdiferençasnegadas”podemseinstalar,ocorrenocontextodeumasociedadequelidacomdificuldadesdiantedastransformaçõesurbanasquealteramacondiçãofemininaeosatributosdafeminilidade.Arelativaemancipaçãodamulher,sualivrecirculaçãonasruasepraças,suaentradamaisagressivanomercadodetrabalho,acriaçãodeumespaçopúblicoliterário,segundoaexpressãodeHabermas,asolicitaçãoparaquefrequentassereuniõessociais,restaurantesdamodaoutemporadaslíricasforamrecebidasdemaneiraextremamenteambígua.Sedeumladovalorizava-sesuaincorporaçãonumamploespaçosocial,poroutroprocurava-seinstaurarlinhasdedemarcaçãosexualdefinidorasdospapéissociaisbastanteclaras.Nocasodamulher,que“honestas”e“perdidas”nãoseconfundissem.Eque,acimadetudo,asmulheresseconscientizassemnademocratizaçãodavidasocial,dequesuanaturezaprimeiraeraamaternidade.Aprostitutapassou,então,asimbolizaraalteridademaisradicaleperigosa.(RAGO,1991,p.26)

Dessaforma,adiferenciaçãodocorponoespaçopúblicopassaaserumimperativo

paraamulher,queprecisavadefinirsequeriaservistacomoumamulherhonestaou

comoumaprostituta,oquefaziacomque“pequenosdetalhesdocomportamentoe

daaparênciafemininafossemcautelosamenteestudadoseproduzidos”:operfume,o

vestido,oscabelos,todosessescuidadoseramtomadosparaquepudessemse

distinguirumasdasoutraspeloolhardooutro.

MargarethRagocolocaaprostituiçãocomoumfantasmaquepassaaassombrara

vidapúblicadehomensemulheres,encaradocomoumproblemapúblico,“olado

negativodoprogresso”.Poroutrolado,aprostitutaerarecobertatambémpor

imagensquelheatribuíamcaracterísticasde“independência,liberdadeepoder”:

Figuradamodernidade,passavaaserassociadaàextremaliberalizaçãodoscostumesnassociedadescivilizadas,àdesconexãocomvínculossociaistradicionaiseàmultiplicidadedenovaspráticassexuais.Figurapúblicaporexcelência,podiacomercializaroprópriocorpocomodesejava,dissociandoprazereamor,aventurando-se,atravésdalivretrocapelodinheiro,emviagensdesconhecidasatémesmoparaoshomensdospaísesmaisatrasados.Poderosa,simbolizavaainvestidadoinstintocontraoimpériodarazão,aexemplodeSalomé,ameaçadesubversãodoscódigosdecomportamentoestabelecidos.(RAGO,1991,p.37)

QualquersemelhançaentreocenáriodescritoporMargarethRagonaSãoPauloda

transiçãodoséculoXIXparaoXX,eadescriçãofeitapelasmulheresqueparticiparam

daconstruçãodeBrasílianãoémeracoincidência.Percebemosnosdoisfilmescomo

adiferenciaçãoentremulhereshonestaseprostitutasestáfortementepresentenos

códigosdesuasociabilidade,naconfiguraçãodoespaçodaCidadeLivreetambémna

formacomosedefinemasimesmaseasoutras.Otrilhodotremdividiadois

174

territórios:asmulhereshonestasprontamentedenunciavamqualquerirrupçãodessa

demarcação.OsdepoimentosdasmulheresemPoeiraeBatomtransitamtambém

nessadiferenciação:eramuitofeiooqueeuvia...porqueelassentavamdequalquer

jeito,dizuma.Poroutrolado,agerentedacasadeencontrosdescreveumambientede

glamour,belezaeliberdade.EmAsagadascandangasinvisíveis,Audarecupera

tambémessamemóriadamulherpoderosa,autoconfiante,lindamentevestidaeo

impactodessafiguraemseupróprioimaginário.

NanarrativadeTâniaFontenelepercebemoscomoodiscursodoprogressoatodo

vaporéadmitidoeincorporadotantoàestruturadodocumentáriocomoao

depoimentodasmulheres.Nessaadmissãoinquestionada,acabaporreproduzir

projeçõesacercadocorpofemininoedacondiçãodamulherquecompõemo

imagináriomasculinoproduzidosobreela:amulhercomofiguramaternal,

necessáriaàconstruçãodofuturo;amulherqueflorescejuntoàBrasília;amulhera

servenerada,admiradaporsuabeleza.Ofilmeprocuraafirmartambémolado

empreendedoreaventureirodessasmulheresnaconstruçãodeBrasília.Asua

atuaçãoprofissionalautônoma,noentanto,épouquíssimomostradaatravésdo

materialdearquivo.Essaescassezdeapariçõespodeestarrelacionadacomasraras,

ouainda,programáticasapariçõesdamulherhonestanoespaçopúblico,fatoqueo

filmenãoquestiona.

Aoevitarascontradiçõesquesãoimpostaspelaquestãodegênero,ofilmedeixade

assumirquehaviamdiferençaseconflitosaseremsuperadospelasmulheres.

Importamostrarumaidealizaçãodamulherinovadora,modernacomoéBrasília,mas

éfatoqueelasestavamaliembemmenornúmeroeissojáseriaumaquestãoaser

levantada.

Portanto,ofilmeevitaquestionaroporquêdeessasmulheresteremsido

invisibilisadas,evitaoenfrentamentodiretodaquestãodegênerocomoumadas

implicaçõesnaformacomosecontouahistória,deixandoessasmulheresàparte.O

quedefatocumpreodocumentárioétrazeressasmulheresparaosholofotes,mas

semquesejaproblematizadaaformadecontarahistóriaqueasdelegouumpapel

secundário.Éumexemplodecomoaçõesdegêneroporvezesprocuramequilibrar

estatísticas,masevitamoenfrentamentodiretocomosdiscursosdahistória

175

construídapeloshomens,que,comojávimosnofilmedeJeanManzon,também

homenageiaasmulherescomonoivadoBrasil,asbelasfloresdocerrado,afimapenas

demantê-lasocupandoasmesmasposições.

JáDeniseCaputo,procuraumenfrentamentodireto.Apresençadasprostitutasem

Brasíliaéprecedidaporumaausência:elaschegamparasuprirumademanda.Como

FranciscoePerdizrelatam,nãohaviaquasemulheresemBrasília.Azonafoicriada

medianteumareivindicaçãodosoperáriosquenãotinhamondesatisfazersuas

necessidadessexuais.Ecomoessaquestãopassouainterferirnaprodutividadedos

trabalhadores,aadministraçãodaNovacapnãosófoiconiventecomofoiatuantena

implantaçãodazona.Elasurgeapartirdeumanecessidaderealaoandamentodas

obrasdeBrasília.

OfilmenosapresentaanarrativadeumtrajetopossívelparaachegadaaBrasília:

caronasemcaminhões,pagascomprogramasaolongodaestrada.Aochegarna

cidade,adificuldadeemseestabelecer,fugirdapolíciaporser“demenor”,procurar

porumlugarqueasacolhesse.Dequalquerforma,avindadessasmulheresé

impulsionadapelanecessidadedetrabalho,epelagrandepropagandaquesefaziade

Brasíliacomoumaterradeoportunidades.

Podemosestabelecerperguntasaofilmetaiscomo:dequeformaessasmulhereseram

vistasnarua?eobteremosváriasrespostasdiferentes.Umadelaséaimagemdeuma

mulherquelembramusasdocinema,vestidascomcoresexuberantes,cabelosbem

arrumados,batons,decotes,florais,saiasrodadas,levadasemcharretesguiadaspor

cavalosbrancos.Aoutraéamulherquetentairàfarmácia,aoaçougueeé

denunciadaàpolíciasimplesmenteporestarali.Essasimagensnãosão

necessariamenteexcludentes,masdenunciamadicotomiadocorpodasprostitutas,

oravistocomoimagemdeliberdade,autoconfiança;oracomosubordinado,caçado,

interditado.

Aprimeiraimagem–dabelezaedoglamour–provémdasmemóriasdeumamulher

que,enquantocriança,viaessasmulherescircularemnarua–espaçoondeelas

deveriamserreconhecidasparaatraíremosclientes–etambémdeumagerentede

casadeprostituição,quetendeaimpregnarsuamemóriaapartirdessepontode

176

vista,dosucessodeseunegóciofazpartetambémgarantirquepermaneçaamemória

desuaparteglamourosa.Asegundaimagem–ocorpooprimido,impedidodecircular

livremente–provémdasfalasdasprópriasprostitutas.

Essaimagemserepetequandoconsideramosoespaçodobordel,oudacasade

prostituição.Yonedescreve,noiníciodofilme,umsalãoencortinado,ondeas

mulheresfaziamsala,comluznegra,muitasestátuas,frequentadoporpolíticos

importantes(inclusiveopróprioJK),asmulheresmuitobemvestidas,sapatoalto,

meias,vestidoslongos.Enquantoasprostitutasnosdescrevemumhoteldetábua,

espaçoprovisório,comquartospequenos,ondesócabiamumacamaeumamesinha.

Eali,passavamporcimadelasde80a120homens,edeveriamatendê-losmesmo

queaspartesinchassem,tendoapenas40minutosparadescanso.Éumcorpoque

deveresistir,porsereleopróprioinstrumentodetrabalho.Resistirevoltaraosalão,

arrumadanovamente,ouàportadohotel,ondeumafiladehomensaguarda:tôlivre!

Ocorpofemininoquepodemosaferirdessesdoisfilmesé,portanto,umcorpo

divididopelaimagemquequerpassar.Asprojeçõesqueessasmulheresfazemdesi

mesmasestãoprofundamentearraigadaspeloscódigosdesexualidadeque,em

últimainstância,estãosubmetidosaumolharmasculino.Porumlado,amulher

honestaquersemostrarcompanheiradeseuparceiro,mastambémvisionáriadeum

futuroprósperoparasimesma,paraasuafamíliae,porquenão,paraasociedade

comoumtodo.Poroutro,aprostitutabuscaaprosperidadejustamentepela

comercializaçãodeseucorpo,quetantodevesermoldadopelaseduçãoqueexerce

sobreosoutroscomopelalatentepossibilidadedeinterdição.

Ocorpofemininovive,portanto,umconstanteimpassediantedesuamodernidade:a

possibilidadedeautodesenvolvimentoéintermediadapelosentravesquesua

condiçãofemininaencontranessasduaspolaridades.Sequeromedesenvolver,

precisoantesmecolocarnomundoapartirdaminhasexualidade:ouinterdito-a,ou

submeto-aàcondiçãodemercadoria,semprevigiadapeloolhardooutro.Nessa

intermediaçãoestáohomem,enquantoolharjulgador,mastambémenquanto

produtordediscursosacercadacondiçãofeminina.

177

178

179

Existe uma modernidade para o corpo feminino?

Limitar-seaosplanoseprocedimentosquecompõemumfilmeéesquecerqueocinemaéartecontantoquesejaum

mundo,queaquelesplanoseefeitosqueseesvaemnoinstantedaprojeçãoprecisamserprolongados,

transformadospelalembrançaepelapalavraquetornamocinemaummundocompartilhadobemalémda

realidadematerialdesuasprojeções.

JacquesRanciére,emAsdistânciasdocinema

Estavapostoamim,desdeoiníciodestapesquisa,umdesafio:articularconceitosde

diferentescamposdeconhecimentoemtornodeumapossívelabordagemdahistória

eteoriadacidade.Trazerofilmecomoobjetodeestudopareciaseromaiordos

desafios.Mesmoentranhadoemminhavivênciadiária,adentrarosfilmessetornou

umcampodeinfinitassurpresas.Aolongodopercurso,defrontei-mecominúmeros

filmes,ensaieidiversaspossibilidadesdeagrupamento,derelaçõesquediferentes

filmespoderiamfazercomotemaquepropunhadiscutir.Mas,acimadetudo,oque

eubuscavaeraproduzirumtrabalhoqueconstituísse,aofinal,umanarrativacuja

experiênciaseassemelhasseàquelaquetemosnasaladecinema:quefavorecessea

livreassociação,instigasseaimaginaçãoedeixasseaindaaberturaparaareflexão.

Claroqueháinúmeraslimitaçõesqueapalavraescritaimpõeequeosformatosque

nossãoexigidosparaumadissertaçãoaindanãoalcançam.Confessoqueasensação

quetenhonestemomentoédeumtrabalhoinconclusivo,quemaisdeixaperguntas

doquepropõerespostas.

Procureiumaestruturaque,aoinvésdetrazerosfilmescomomerailustração,

buscasseintroduzi-losemumaredederelações.Enxergonessaestruturatrêsfios

condutores:primeiro,opanoramadefundoqueéaquestãodamodernidade;

segundo,asvisõesquecercamaconstruçãodeBrasília;eumterceiro,transversal,

queseriaaformadecorporificaramulhertrazidaporcadaumdessesfilmes.

Considerodeextremarelevânciaofatodequeosfilmessãoextremamente

contraditóriosentresi.Brasília,capitaldoséculoapontaemdireçõesopostasàquelas

apresentadasemAsprimeirasimagensdeBrasíliaePoeiraeBatom.Asagadas

180

candangasinvisíveis,porsuavez,enfrentaosoutrostrêsfilmesaotrazerparao

primeiroplanoaspersonagensobscurecidasnosdemais.Aprostitutacorporificaa

mercadoriaeodesejo,eresisteaqualquertentativadeencarcerá-laemuma

identidade.Suafigura,fugidia,talvezsejaamaneiramaisconcretadepercebera

modernidadeafetandoocorpofeminino.Noentanto,aliberaçãosexualéumrisco

encarnadoporela,porissoasuainterdição.

Seformesmoprecisodarlugaràssexualidadesilegítimas,quevãoincomodarnoutrolugar:queincomodemláondepossamserreinscritas,senãonoscircuitosdaprodução,pelomenosdolucro.Orendez-vouseacasadesaúdeserãotaislugaresdetolerância:aprostituta,ocliente,orufião,opsiquiatraesuahistérica(...)parecemterfeitopassar,demaneirasub-reptícia,oprazeraquenãosealudeparaaordemdascoisasquesecontam;aspalavras,osgestos,entãoautorizadosemsurdina,trocam-senesseslugaresapreçoalto.Somenteaíosexoselvagemteriadireitoaalgumasdasformasdoreal,masbeminsularizadas,eatiposdediscursoclandestinos,circunscritos,codificados.Foradesseslugares,opuritanismomodernoteriaimpostoseutríplicedecretodeinterdição,inexistênciaemutismo.(FOUCAULT,2014,p.8–9)

Procuromostrarportanto,queocorpofemininotrazidoporessesfilmeséumcorpo

atreladoasistemasdesignificaçãoaindacarregadodearcaísmos,delegandoàs

mulheresouoseulugardevirtudeouoseulugardepecado.Ocontrapontocoma

modernidadequeBrasíliarepresentaéprovocadoraeajudaaevidenciara

necessidadedequestionarmososprocessoshistóricosquandosetratadeumabusca

pelahistóriadasmulheres.

Nãoprocuroprovaraquiqueodiscursoproduzidopelasmulheres–evidenciadonos

doisfilmesdirigidosporelas–trazuma“verdade”acercadessecorpofeminino.

Acreditoqueessesfilmesrepresentamumprincípio,umaetapadedenúnciaemuma

fasededescoberta,equenosajudamaenxergaroquantodessapolaridadeatribuída

aocorpofemininoaindaestáentranhadaemnossaconstruçãoacercadonossocorpo

edesuarelaçãocomahistória.

Desdeoseusurgimento–naGrã-BretanhaenosEstadosUnidosnosanos1960,ena

Françaumadécadadepois–ahistóriadasmulherestemprocuradosuprirséculosde

silêncio,principalmentedasfontes.Atéentão,asmulheresdeixavampoucosvestígios

diretos,dadooseuacessotardioàescrita.Nãoquenãohouvessemdiscursossobreas

mulheres,masesteseram,emsuamaioria,produtodaobradehomens.Osarquivos

privadosproduzidospormulheres,inclusivediários,fotografias,muitasvezeseram

181

destruídospelasprópriasmulheres,numanecessidadedeapagarrastrosàqualestá

subjacenteanoçãodehonra.

Ahistóriadasmulheresestáprofundamentemarcadapelahistóriadeseucorpo,das

questõesqueadiferenciamdosexooposto,dospapéisquedesempenhamnavida

privada;hoje,abrangeoespaçopúblicodacidade,dotrabalho,dapolítica,daguerra,

dacriação.Muitomaisquehistóriadasmulheres,abrangeahistóriadogênero,das

relaçõesentreossexos,integrandoamasculinidade.Masaindasetratadeum

trabalhoderesgate,eestámuitovinculadaàquestãodocorpoesuarelaçãocomo

espaçoqueocupa.Dessaforma,recuperandooquecolocaJohanScottacercada

escritadahistóriadasmulheres,aoconsiderarmosocorpofemininoemrelaçãocom

amodernidade,temosumacontradiçãoqueéinerenteaoprocessodamulher:o

constanteembateentreestruturastradicionaisemodernasnainserçãodamulherem

panoramasmaioresdetransformaçãohistórica,quedesafiamanoçãolinearde

progresso.

Dequeforma,então,poderiasemanifestarnamulher,oumelhor,nocorpofeminino

umamaiorautonomia,umdesejodedesenvolvimento?Essedesejomanifestocomo

buscadonovo,dorompimentocompadrõestradicionais,pormeiodoqualocorpo

atingeumpotencialexpressivodeindividuaçãovaiserconceituadoeproblematizado

pelofeminismo.Ateoriafeministaéfundamentalnoentendimentodaspossibilidades

queamulhertemdeseautotransformar,namedidaemqueocorpofemininoestaria

maisprofundamenteatreladoàsestruturastradicionaisdasociedadee,paraafirmar

suaautonomia,precisarianegá-las.

Ocorpoaparecenateoriafeministacomocategoriacrucialnoentendimentoda

existênciapsíquicaesocialdamulher.Paraalgumaspensadorasdofeminismo

contemporâneo,éimprescindívelaconcepçãodeumcorpovivido,entrelaçadoa

sistemasdesignificadoerepresentaçãoeconstitutivodeles.Asdiferençassexuais,

sendobiológicasouculturais,exigemreconhecimentoerepresentaçãosociaisenão

podemsererradicadas,elasrequeremmarcaseinscriçõesculturais.Nãoseevoca

...umcorpopuro,pré-cultural,pré-socialoupré-linguístico,masumcorpocomoobjetosocialediscursivo,umcorpovinculadoàordemdodesejo,dosignificadoedopoder.(...)Oqueestáemjogoéaatividadeeaatuação,amobilidadeeoespaçosocialconcedidosàsmulheres.(GROSZ,2000,p.77)

182

Portanto,paraofeminismodemodogeral,aoconsiderarocorpofemininoé

necessárioumentendimentoqueultrapasseomeroreconhecimentodesuas

especificidadesoudeseusdadosbiológicos,opondo-seaqualquerdeterminismoem

relaçãoaosmesmos.Trata-sedereconhecerocorpoemseuaspectopresente,para,a

partirdele,desvendarosprocessosqueassimoconstituíram.

AfamosafrasedeSimonedeBeauvoir“ninguémnascemulher,torna-semulher”

carregaemsiumpreceitofundamentalparaofeminismo:abiologianãoé

determinantenacorporeidadefeminina.Asespecificidadescorporaisdamulhernão

sãoumdestino,esimumacondição.Àfrasefamosa,segue-se:

Nenhumdestinobiológico,psíquico,econômicodefineaformaqueafêmeahumanaassumenoseiodasociedade;éoconjuntodacivilizaçãoqueelaboraesseprodutointermediárioentreomachoeocastradoquequalificamdefeminino.SomenteamediaçãodeoutrempodeconstituirumindivíduocomoOutro.(BEAUVOIR,1980,p.9)

AcategoriadoOutroéenfaticamenteutilizadaporBeauvoiraolongodosdois

volumesdeOSegundosexo,atéhojeumadasmaisimportantesobrasdofeminismo.A

ênfasenaalteridadecomportaaquestãodamulher,esuacolocaçãoemrelaçãoao

homem.Beauvoircolocaquenãotendemosespontaneamenteanosauto-definir

comoOutroesimcomoUm.Aperguntaqueseimpõeé:comoamulherpassouase

auto-definircomoOutroemrelaçãoaohomem,queseimpôshistoricamentecomo

Um?Noentanto,édifícilestabelecerummarcohistóricoquemarqueessa

transposição.

Nemsemprehouveproletários,semprehouvemulheres.Elassãomulheresemvirtudedesuaestruturafisiológica;pormaislongequeseremonteahistória,sempreestiveramsubordinadasaohomem:suadependêncianãoéconsequênciadeumeventooudeumaevolução,elanãoaconteceu.É,emparte,porqueescapaaocaráteracidentaldefatohistóricoqueaalteridadeapareceaquicomoabsoluto.(BEAUVOIR,1970,p.12–13)

Ofeminismoéumatentativaderedefiniressatransposição,deafirmaraautonomia

feminina,detrazeramulherparaolugardoUmenãodoOutro.Talvezaquelequelê

estetrabalhoeconseguiuchegaratéaquiestejaagoraseperguntandooporquêde

somenteagoraexporofeminismodemaneiraliteral.Paraalémdetodasasquestões

metodológicasquerondamaelaboraçãodeumtrabalhoacadêmico,euconsideroque

mesmonãocompondoumtópicoouumcapítulodestetrabalho,ofeminismoesteveo

183

tempotodopresente,mesmoqueemsuasentrelinhas.Considero,antesdemaisnada

que,paraalémdeumacategoriateórica,ofeminismoéumacondiçãoexistencial,de

visãodemundo.Trata-sedebuscaremsimesmaenopassadoquepermeiaonosso

presenteossignificadosdesermulher,buscaranossacondiçãoenquantosujeitos

históricos.Nãosetratadereescreverahistória,masdedesmistifica-la,denegaro

universal,debuscaroespecífico.

Questionaracondiçãodamulherenquantoumsujeitomoderno,significaadmitirque

onossoautodesenvolvimentoéprecárioainda,enãosesabesedeixarádeser.

Entenderasmarcashistóricasqueconstroemonossocorpofazpartedeumprocesso

deindividuaçãoquetalvez,nósmulherestenhamosreconhecidohábempouco

tempo.Éprecisoseenxergarnahistóriae,aoproblematizaraquestãodegênero,

reconhecemosqueelaoperahistoricamentenãosomentesobreasmulheres,mas

tambémsobreoshomens.

Asconsequênciasdessesarquétipospolaresatribuídosaocorpofeminino–oda

santaeodaputa–sãosentidasdiretamentenamaneiracomocirculamose

vivenciamosacidade.Acidadeécondiçãomaterialparaarealizaçãodoscorpos,

espaçodesuaproduçãoecirculação,suaorigemedestino.Ocorpo,porsuavez,

manifestaoscontrastesdacidade,éumcorposocial,urbanizado.Aoinvésdanoção

dequeoserhumano(ocorpo)constróioespaço(acidade),equeesteseestrutura

conformeessaregra,sugirocomestetrabalhoahipótesedequecorpoecidade

modificam-semutuamente,eéesseprocessoqueosconstituiaolongodotempo.A

transformaçãodascidadesnãoocorreemseparadodasconstantesmudançasnos

modosdeexpressãodoscorpos.

Ocorpo,seassimcolocado,podefuncionarcomoumpontodeintermediaçãoentreo

queseriaentendidocomointerno,subjetivo,produtodamente;eoqueseria

manifestadoexternamente,aquiloquepodeserobservadoevividomaterialmente.

Colocandodeoutraforma,ocorposeriaonossointermédioentrealmaecidade,eé

tantoveículodeatuaçãocomodepercepçãodoqueosseussentidosacessam.

Estudarocorpofemininoemsuarelaçãocomacidaderequeradmitir,inicialmente,

queessecorpocarregamarcasdeseuperíododeconfinamentoaodomínioprivado.E

que,seformosconsiderarqueaconquistadoespaçopúblicopelasmulheresé

184

relativamenterecente,hácoisademeioséculoatrás,suarelaçãocomacidadeainda

encontramuitosvestígiosdetudoqueseconsiderouseradequadoaumamulheraté

então.Comojáfoicitadoaqui,oquerestadeantigamentenasmulheresdehojeestá

escritoemseuscorpos.

Pensoqueéprecisonosposicionarmosdemaneiramaisradicalentreessasduas

polaridades,assumironossocorpocomodesejanteeatuante,paraquepossamos

reescrevê-lo,eassim,reescrevertambémacidadeaonossoredor.Nãosucumbirà

casaouàruacomoambientesnaturalizados,masrompercomoslimitesqueosdois

espaçosimpõemaonossocorpo.Éprecisoencararapulsãosexualincitadapela

figuradaprostitutacomoumaguia,enãoumcontraponto.Aoencará-ladefrente,

percebemosoquantoasexualidadefemininafoiinterditadaaolongodahistóriae

precisaserassumidacomoumatributodenossocorpo,quemoldademaneira

fundamentalanossarelaçãocomoespaçodacidade.

Cabebuscarqueoutrasinscriçõespodemsesobreporousejuntaraessas,oquede

fatofariacomquesentíssemosamodernidademarcandoosnossoscorpos.Eque

essecorpofeminino,imbuídodoespíritodeaventuraqueamodernidadeinspira,

passetambémaconstruiroutrashistórias,outrascidades,outrosfilmesquenos

proporcionemumcampodeincessantereinvenção.

185

Bibliografia

ARGAN,GiulioCarlo.Elconceptodelespacioarquitetonicodesdeelbarrocoanuestrosdias.BuenosAires:EdicionesNuevaVision,1973.

BARNEY,Elvira.MulherespioneirasdeBrasília.Brasília,DF:ThesaurusEditora,2001.

BAUDELAIRE,Charles.AmodernidadedeBaudelaire.TraduçãoSuelyCassal.RiodeJaneiro:PazeTerra,1988.

BEAUVOIR,Simone.OSegundosexo-1.Fatosemitos.TraduçãoSérgioMilliet.SãoPaulo:DifusãoEuropéiadoLivro,1970.

BEAUVOIR,Simone.OSegundosexo-2.AExperiênciavivida.TraduçãoSérgioMilliet.3.ed.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1980.

BERMAN,Marshall.Tudoqueesolidodesmanchanoar:aaventuradamodernidade.TraduçãoCarlosFelipeMoises;AnaMariaLIoriatti.SãoPaulo(SP):CompanhiadasLetras,1986.

BERNARDET,Jean-Claude.Brasilemtempodecinema:ensaiossobreocinemabrasileiro.RiodeJaneiro:PazeTerra,1978.

BERNARDET,Jean-Claude.Cinemabrasileiro:propostasparaumahistória.RiodeJaneiro:PazeTerra,1979.

BIZELLO,MariaLeandra.Entrefotografiasefotogramas:aconstruçãodaimagempúblicadeJuscelinoKubitschek(1956a1961).2008.UniversidadeEstadualdeCampinas,Campinas/SP,2008.

CARVALHO,MariadoSocorro.CinemaNovoBrasileiro.In:MASCARELLO,FERNANDO(Org.)..HistóriadoCinemaMundial.Campinas:Papirus,2012.p.289–309.

CARVALHO,Vladimir.Cinemacandango:matériadejornal.Brasília,Brazil:EdiçõesCinememória,2003.

CERTEAU,MichelDe.HistóriaePsicanálise-Entreciênciaeficção.TraduçãoGuilhermeJoãodeFreitasTeixeira.BeloHorizonte:Autêntica,2011.

COMOLLI,Jean-Louis.VerePoder,ainocênciaperdida:cinema,televisão,ficção,documentário.TraduçãoAugustinDeTugny;OswaldoTeixeira;RubenCaixeta.BeloHorizonte:Ed.UFMG,2008.

CONDÉ,MauroLúcioLeitão.ParadigmaversusEstilodePensamentonaHistóriadaCiência.Ciência,HistóriaeTeoria.BeloHorizonte:Argvmentvm,2005..

CORBIN,Alain.SabereseOdores:oolfatoeoimagináriosocialnosséculosXVIIIeXIX.TraduçãoLigiaWatanabe.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1987.

186

CORBIN,Alain;COURTINE,Jean-Jacques;VIGARELLO,Georges.Históriadocorpo,vol.1-DaRenascençaàsLuzes.5.ed.ed.Petrópolis:Vozes,2012.

COSTA,FlavioMoreiraDa(Org.).Cinemamoderno,CinemaNovo.RiodeJaneiro:JoséÁlvaro,1966.

DENISECAPUTO.ASagadasCandangasInvisíveis..[S.l:s.n.].Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=DTy3t69E3Pg>.Acessoem:30jun.2016.,2008

DENISECAPUTO.Lanterninha:AsagadascandangasInvisíveis,Bloco1de2..[S.l:s.n.].Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=rxi2K5RzXWE>.Acessoem:20jan.2017a.,2015

DENISECAPUTO.Lanterninha:AsagadascandangasInvisíveis,Bloco2de2..[S.l:s.n.].Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=-U-aobHw3oU>.Acessoem:20jan.2017b.,2015

DUARTE,LuizSérgio.AConstruçãodeBrasíliacomoExperiênciaModernanaperiferiacapitalista:aAventura.RevistaUFG-DossiêCidadesPlanejadasnaHinterlândia,v.AnoXIn.6,p.24–36,jun.2009.

FABRIS,Mariarosaria.Neorrealismoitaliano.In:MASCARELLO,FERNANDO(Org.)..Históriadocinemamundial.Campinas:Papirus,2012.p.191–219.

FOUCAULT,Michel.HistóriadaSexualidade1:Avontadedesaber.TraduçãoMariaTherezadaCostaAlbuquerque;J.A.GuilhonAlbuquerque.1.ed.SãoPaulo:PazeTerra,2014.

FREIRE,RafaeldeLuna.Atrilogiadecurtas-metragensdocumentáriosdeGersonTavaresde1959.DocOn-line,n.20,p.5–25,set2016.

GOMES,AnaLúciadeAbreu.BrasílianosfilmesdaNovacap.Resgate,v.21,n.1,p.49–58,2013.Disponívelem:<http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/view/8645753>.Acessoem:9fev.2017.

GONÇALVES,MarcoAntonio.Encontros“encorpados”econhecimentopelocorpo:filmeeetnografiaemJeanRouch.Devires,BeloHorizonte,v.6,n.2,p.28–45,jul.2009.

GROSZ,Elizabeth.CorposReconfigurados.CadernosPagu:corporificandogênero,Unicamp,n.14,p.45–86,2000TraduçãoCecíliaHoltermann..Disponívelem:<http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635340>.Acessoem:1maio2014.

HALL,Stuart.Aidentidadeculturalnapós-modernidade.RiodeJaneiro(RJ):DP&A,2006.

HOLSTON,James.Acidademodernista:umacríticadeBrasíliaesuautopia.SãoPaulo:CompanhiaDasLetras,1993.

187

HUME,David.Investigaçãosobreoentendimentohumano.OsPensadores-BerkeleyeHume.SãoPaulo:Abrilcultural,1984.p.138–178.

KOSELLECK,Reinhart.Estratosdotempo:estudossobrehistória.RiodeJaneiro:Contraponto:PUC-Rio,2014.

LEBRETON,David.AntropologiadoCorpoeModernidade.TraduçãoFábiodosSantosCrederLopes.3.ed.ed.Petrópolis,RJ:Vozes,2013.

MORICONI,Sérgio.Cinema-Apontamentosparaumahistória.Brasília,[Brasil]:ITS,InstitutoTerceiroSetor,2012.(ColeçãoarteemBrasília :cincodécadasdecultura).

MOURÃO,TâniaFontenelle;OLIVEIRA,MonicaFerreiraGasparDe.PoeiraebatomnoPlanaltoCentral:50mulheresnaconstruçãodeBrasília.Brasília:CEDIN/CEF,2010.

OLIVEIRA,MárcioDe.Brasília:omitonatrajetóriadanação.Brasília:Paralelo15,2005.

PEIXOTO,ClariceEhlers.Antropologiaefilmeetnográfico:umtravellingnocenárioliteráriodaantropologiavisual.RevistaBrasileiradeInformaçãoBibliográficaemCiênciasSociais-BIB,RiodeJaneiro,n.48,p.91–115,nov.1999.

PERROT,Michelle.Minhahistóriadasmulheres.TraduçãoAngelaM.SCorrêa.SãoPaulo:Contexto,2007.

RAFAELDELUNAFREIRE.Reencontrocomocinema..[S.l:s.n.].Disponívelem:<DVD-ResgatedaobracinematográficadeGersonTavares>.,2014

RAGO,Margareth.Osprazeresdanoite:prostituiçãoecódigosdasexualidadefemininaemSãoPaulo,1890-1930.RiodeJaneiro:PazeTerra,1991.

RANCIÈRE,Jacques.Afábulacinematográfica.TraduçãoChristianPierreKasper.Campinas,SP:Papirus,2013.

RANCIÈRE,Jacques.Asdistânciasdocinema.TraduçãoEsteladosSantosAbreu.RiodeJaneiro:Contraponto,2012.

RIBEIRO,GustavoLins.Ocapitaldaesperança:aexperiênciadostrabalhadoresnaconstruçãodeBrasília.Brasília:Ed.UnB,2008.

SANDOVAL,LizdaCosta.Brasília,cinemaemodernidade:percorrendoacidademodernista.2014.141f.UniversidadedeBrasília,FaculdadedeArquiteturaeUrbanismo,Brasília,2014.

SCOTT,JoanWallach.Géneroehistoria.TraduçãoConsolVilàIBoadas.México:FondodeCulturaEconómica :UniversidadAutónomadelaCiudaddeMéxico,2008.

SENRA,Stella.Perguntar(não)ofende,anotaçõessobreaentrevista:deGlauberRochaaodocumentáriobrasileirorecente.In:MIGLIORIN,CEZAR;BRASIL,ANDRÉ(Org.)..Ensaiosnoreal.RiodeJaneiro:AzougueEditorial,2010.p.97–121.

188

SILVA,JoelmaRodriguesDa.Mulher:“PedraPreciosa”;ProstituiçãoeRelaçõesdeGêneroemBrasília(1957-1961).1995.Dissertação–UniversidadedeBrasília,InstitutodeCiênciasHumanas,DepartamentodeHistória,Brasília,1995.

SOUZA,NelsonMelloE.Modernidade:desacertosdeumconsenso.Campinas:Ed.daUNICAMP,1994.

SPINOZA,BenedictusDe.OsPensadores-Espinosa.SãoPaulo:Abrilcultural,1983.

XAVIER,Ismail.Cinemabrasileiromoderno.SaoPaulo:PazeTerra,2001.(ColeçãoLeitura).

189

FilmografiaADIRLEYQUEIRÓS.Acidadeéumasó?Documentário,70’,2011.

ADIRLEYQUEIRÓS.Brancosai,pretofica.Documentário,90’,2014.

AGÊNCIANACIONAL.NovaCapital:Brasília-Presidentevisitalocaldaconstrução.CinejornalInformativon.44/56.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgivhQKv5jDQX68aUSRGxlN228I2JNRLhkBqryN8-SXrIM.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1956.

AGÊNCIANACIONAL.APrimeiraEscoladeBrasília.CinejornalInformativon.01/58.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgioVyZyv8vsgBR0q6qapCXy3kYcWiDqRz6erpWCsdMhX0.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1957.

AGÊNCIANACIONAL.CaminhosdeBrasília:AspectosdaconstruçãodaEstradaRio-Brasília,BR-3.CinejornalInformativon.21/58.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgicsfMOrZpsGzByUV0MMV5QWkvQpVSURNdb-9w77CPh18.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1958.

AGÊNCIANACIONAL.Brasíliajátemhistória.CinejornalInformativon.21/59.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgi3YenhKiriB3bRhHv3_QPjRwGEDNFQq8tc4r-iO34peo.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1959.

AGÊNCIANACIONAL.CaminhodaLibertação:Efetivam-seasobrasdaRodoviaBrasília-Acre.CinejornalInformativon.6/60.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgihLG3uyvdG2HULwvBpiAdCPRkQZXNx53mbWNtQwGeCEo.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1960.

AGÊNCIANACIONAL.InauguraçõesemBrasília.CinejornalInformativon.12/60.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgiZyQefhajNS-iuV7q0MQjPogMYlNpFV59Wdli4Dxnqwg.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1960.

AGÊNCIANACIONAL.BelémBrasília:rodoviadaunidadenacional.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgi7ZTkqVqLPQkMd-B0wwPzOJPoses0m9sSIwmHaySjqF0.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1962.

AGNÈSVARDA.Cléode5à7.Ficção,150’,1962.

AGNÈSVARDA.L’unechante,l’autrepas.Ficção,120’,1977.

AGNÈSVARDA.Lesditescariatides.Documentário,12’,1984.

AGNÈSVARDA.Sainstoitniloi.Ficção,105’,1985.

190

ANDRÉAPRATES;CLEISSONVIDAL.DinoCazzola,umafilmografiadeBrasília.Documentário,71’,2012.

CARLOSREINCHENBACH.LilianM:relatórioconfidencial.Ficção,120’,1975.

CARLOSREINCHENBACH.GarotasdoABC.Ficção,130’,2003.

CHANTALAKERMAN.JeanneDielman,23,quaiducommerce,1080Bruxelles.Ficção,201’,1975.

DÁCIAIBIAPINA.Entornodabeleza.Documentário,68’,2012.

DANEKOMIJEN;JAMESLATTIMER.Allstillorbit.Experimental,23’,2016.

DENISECAPUTO.ASagadasCandangasInvisíveis..Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=DTy3t69E3Pg>.Acessoem:30jun.2016.Documentário,15’,2008.

GERSONTAVARES.ArtenoBrasilhoje.RiodeJaneiro:TelaBrasiliseImagemTempo.Disponívelem:<DVD-ResgatedaObradeGersonTavares>.Documentário,11’,1959.

GERSONTAVARES.BrasíliaCapitaldoséculo.RiodeJaneiro:TelaBrasiliseImagemTempo.Disponívelem:<DVD-ResgatedaObradeGersonTavares>.Documentário,11’,1959.

GERSONTAVARES.Ogranderio.RiodeJaneiro:TelaBrasiliseImagemTempo.Disponívelem:<DVD-ResgatedaObradeGersonTavares>.Documentário,10’,1959.

GERSONTAVARES.AmoreDesamor.RiodeJaneiro:TelaBrasiliseImagemTempo.Disponívelem:<DVD-ResgatedaObradeGersonTavares>.Ficção,70’,1966.

GLAUBERROCHA.Deuseodiabonaterradosol.Ficção,110’,1964.

GLAUBERROCHA.TerraemTranse.Ficção,115’,1967.

GLAUBERROCHA.Aidadedaterra.Ficção,160’,1980.

JEANMANZON.AsprimeirasimagensdeBrasília.Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=xnXQQeU5nIk>.Acessoem:2fev.2017.Cinejornal,10’,1957.

JEANROUCH.Lesmaîtresfous.Documentário,36’,1955.

JEANROUCH.Moi,unnoir.Documentário,170’,1958.

JOAQUIMPEDRODEANDRADE.Brasília,contradiçõesdeumacidadenova.Documentário,22’,1967.

JOAQUIMPEDRODEANDRADE.Macunaíma.Ficção,110’,1969.

JORGEBODANZKY;ORLANDOSENNA.Iracema,umatransaamazônica.Ficção,90’,1975.

JOSÉEDUARDOBELMONTE.5filmesestrangeiros.Ficção,13’,1997.

191

LINDUARTENORONHA.Aruanda.Documentário,20’,1959.

MARIAAUGUSTARAMOS.Brasília,umdiaemfevereiro.Documentário,70’,1996.

NELSONPEREIRADOSSANTOS.Fala,Brasília.Documentário,14’,1966.

PAULOCÉSARSARACENI;MÁRIOCARNEIRO.Arraialdocabo.Documentário,19’,1959.

PEDROANÍSIOetal.Brasília,aúltimautopia.Documentário,97’,1989.

RAFAELDELUNAFREIRE.Reencontrocomocinema.RiodeJaneiro:TelaBrasiliseImagemTempo.Disponívelem:<DVD-ResgatedaobracinematográficadeGersonTavares>.Documentário,28’,2014.

RENATOBARBIERI.AinvençãodeBrasília.Documentário,55’,2001.

ROBERTOPIRES.Agrandefeira.Ficção,91’,1961.

ROBERTOROSSELLINI.Roma,cidadeaberta.Ficção,105’,1945.

SILVIOTENDLER.OsanosJK:umatrajetóriapolítica.Documentário,110’,1980.

TÂNIAFONTENELLEMOURÃO;TÂNIAQUARESMA.PoeiraeBatomnoPlanaltoCentral.Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=9rxJUc8kbSk&t=1s>.Acessoem:2fev.2017.Documentário,58’,2010.

VLADIMIRCARVALHO.BrasíliasegundoFeldman.Documentário,21’,1979.

VLADIMIRCARVALHO.Conterrâneosvelhosdeguerra.Documentário,154’,1990.

ZULEICAPORTO.Brasiliários.Experimental,10’,1986.