Disciplina: Hidrogeografia Professor: Felipe Brasil Alunos: Laila Sandroni e Thiago Bessa.
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - CORE · sua pesquisa sobre a obra do cineasta. A Liz...
Transcript of Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - CORE · sua pesquisa sobre a obra do cineasta. A Liz...
FaculdadedeArquiteturaeUrbanismoProgramadePós-GraduaçãoTeoria,HistóriaeCrítica
CORPO FEMININO E MODERNIDADE
NA CONSTRUÇÃO DE BRASÍLIA
Uma leitura a partir do cinema
Denise Sales Vieira
Orientação:
Profa. Dra. Ana Elisabete
de Almeida Medeiros
DissertaçãoapresentadaaoProgramade
Pós-graduaçãoemArquiteturaeUrbanismo
daUniversidadedeBrasíliacomorequisito
paraobtençãodotítulodeMestre.
PesquisadesenvolvidacomsuportefinanceirodaFundaçãodeApoioàPesquisadoDistritoFederal(FAP/DF)
Brasília,30dejunhode2017.
CORPO FEMININO E MODERNIDADE
NA CONSTRUÇÃO DE BRASÍLIA
Uma leitura a partir do cinema
Denise Sales Vieira
Bancaexaminadora:Presidente:
Profa.Dra.AnaElisabetedeAlmeidaMedeiros(FAU/UnB)
Membros:
Profa.Dra.MariaFernandaDerntl(FAU/UnB)
Profa.Dra.DáciaIbiapinadaSilva(FAC/UnB)
Brasília,30dejunhode2017.
Ficha catalográfica elaborada automaticamente, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
V658cVieira, Denise Sales Corpo feminino e modernidade na construção deBrasília: uma leitura a partir do cinema / DeniseSales Vieira; orientador Medeiros Ana Elisabete deAlmeida. -- Brasília, 2017. 191 p.
Disserta??o (Mestrado - Mestrado em Arquitetura eUrbanismo) -- Universidade de Brasília, 2017.
1. Brasília. 2. Corpo feminino. 3. Modernidade. 4.Cinema. I. Ana Elisabete de Almeida, Medeiros,orient. II. Título.
Dedico este trabalho
ÀfamíliadasRosálias,aforçafemininaquemeimpulsiona.
ÀfamíliaAlmeidaVieira,inspiraçãodehumoresensocrítico.
AEstela,afilhadaamada,quetantoaindatempordescobrir.
ADilmarDurães,provocadorconstante,queestásempre
adesestabilizarqualquercertezaqueeupenseter.
Aomeupai,ChicoVieira,emeuirmão,LeonardoVieira,
oshomensqueamo.
Àminhamãe,LíviaSales,melhoramiga,maiorinspiração,
companheiradetodososmomentos,aforçaeajuventude
quememantématentaeviva.
ÀmemóriademinhaavóInêsVieira.Seusorriso,suafée
seusbordadospermanecemcomigo.
ÀminhaavóRosáliaSales,amulhermaisextraordináriaqueeujávi.
Agradecimentos
Agradeçoimensamenteaosprofessoresquefizerampartedessepercursode
pesquisa,emespecial:àProfa.MariaFernandapelasaulasediscussõesacercada
modernidadeemBrasília;àProfa.DáciaIbiapina,pelaslongasconversassobre
cinema,mulher,Brasília,epelaparceriaincansávelnofazercinematográfico;àProfa.
ElaneRibeiro,pelograndeestímulodesdeoprimeiroartigo,portrazerumolhartão
especialatudoquetocaessevastocampoqueéahistória;eaoProf.DanielFaria,por
todasasimportantescontribuiçõesqueasuapresençatrouxenabancade
qualificação.
ÀProfa.eorientadoradestetrabalho,AnaElisabeteMedeiros,quemeacolheude
voltaàacademia,agradeçoimensamentepelacuidadosaatençãoaostextos,pelo
respeitoàsescolhasdepesquisa,peloestímuloàescritaepelapresençainstigantee
constante.
Aoscompanheirosdepós-graduaçãoVâniaLoureiro,MarlysseRocha,MarinaLimade
Fontes,IsadoraBanducci,VerônicaNeto,SuedFerreira,AnaFláviaRêgoMota,Lucas
Brasil,LeandroCruzePauloVictorBorgespelastrocasqueajudaramessapesquisaa
caminhar.
APaolaCaliarieGiselleChaim,quetornarampossíveloacessoàobradeGerson
Tavares.ARafaeldeLunaFreire,quegentilmenteencaminhouàFAUoDVDfrutode
suapesquisasobreaobradocineasta.ALizSandoval,peladisponibilizaçãodos
filmessobreBrasíliaquereuniuemsuapesquisademestrado.
ÀamigaAnaClaraJabur,pelasleituras,comentáriosetraduçõesnostextos.
AosamigosCarolinaPescatori,PriscilaErthal,RicardoTheodoro,CarlosHenriquede
Lima,LucianaVecchi,CarolinaBaima,ManuelaDantas,RayssaCoe,StellaLeipnitz,
GabrielSchvarsberg,BeatrizCintra,ReinaldoNavarro,MateusPorto,CecíliaPenna,
StepanKrawstchuk,ThiagodeAndrade,BrunoTerra,ClaraMoreira,LigiaPinheiroe
LailaLoddiquedesdeagraduaçãofazempartedaminhavida,eestãotodos,de
algumaforma,nosmeuspensamentossobreacidadeenasentrelinhasdessa
dissertação.
AgradeçoaosparceirosnofazercinematográficoPaulaSantos,AlannaAmorim,Dani
Azul,FláviaAndrade,CássioP.dosSantos,ErikaPersan,MarinaSandim,Déborade
Oliveira,SandroVilanova,CássioOliveira,LeandroPezão,FranciscoCraesmeyer,
AdirleyQueirós,SimoneQueiroz,AndréiaQueirós,JoanaPimenta,PedroMaiade
Brito,GuileMartins,MariaTerezaUrias,RenanRovida,CristinaAmaral,IrisJungese
FrancisVogner,pelasconversassobrecinema,pelosfilmesquepudemosfazerjuntos
epelosmuitosqueaindavamosfazer.
Amulhernãoéumarealidadeimóvel,esimumvir-a-ser;énoseuvir-a-serquesedeveriaconfrontá-lacomohomem,istoé,quesedeveriadefinirsuaspossibilidades.Oquefalseiatantasdiscussõeséquererreduzí-laaoqueelafoi,aoqueéhoje,quandoseaventaa
questãodesuascapacidades;ofatoéqueascapacidadessósemanifestamcomevidênciaquandorealizadas;masofatoé
tambémque,quandoseconsideraumserqueétranscendênciaesuperação,nãosepodenuncaencerrarascontas.
SimonedeBeauvoir,emOSegundoSexoI
Comotodaartequeparticipadadescrição,ocinemasedesgastaparafazercrerqueeleolhaparaomundo–quandoeleémuitomaisumpedaçodomundoquenosolha.Nãoolhar
paraomundo,masmundocomoolhar.
Jean-LouisComolli,emVerePoder
Sumário
Resumo 1
Abstract 3
Introdução 5Por que modernidade? 11Brasília: mito, modernismo e modernização 13Uma cidade construída por homens: onde estavam as mulheres na construção de Brasília? 18
1. Cinema, o olho da modernidade 291.1.História como ficção, ficção como história 341.2.A ficcionalidade do cinema documentário 371.3.Modernidade no cinema brasileiro 431.4.Cinema de cavação 501.5.O cinema no canteiro de obras de Brasília 52
2.Modernidade,progressoecorpo-máquina 672.1. Filme: As primeiras imagens de Brasília (1957) 672.2. Modernidade: um caminho inequívoco ao progresso? 802.3. O corpo-máquina 86
3.Modernidade,contradiçãoecorpoprovisório 953.1. Filme: Brasília, capital do século (1959) 953.2. Modernidade e contradição 1093.3. O corpo provisório 122
4. Modernidade e corpo feminino 1314.1. Filme 1: Poeira e batom no Planalto Central (2010) 1314.2. Filme 2: A saga das candangas invisíveis (2008) 1534.3. O corpo feminino: entre santa e puta 164
Existeumamodernidadeparaocorpofeminino? 179
Bibliografia 185
Filmografia 189
1
Resumo
Estetrabalho,desenvolvidonoâmbitodaHistóriaeTeoriadaCidadeedoUrbanismo,
procuraentrelaçardiversasáreasdeconhecimento–aarquitetura,ocinema,a
históriaeasciênciassociais–paradesafiarahistóriadaconstruçãodeBrasíliapor
meiodabuscapelorastrodeumcorpofemininopossivelmentepresente.
Possivelmente,porqueessecorpoébuscadoatravésdosvestígiosqueocinema
deixou,etambémdamemóriadaquelasquehojerevisitamessasimagens.Opanode
fundoparaessaobservaçãoéamodernidade,umcampoquevaialémdaconstatação
domodernismoimpressonoprojetodacidadeedamodernizaçãodopaíspretendida
pelogovernodeJuscelinoKubitschek.Destrincharossentidosdesseespírito
modernotemaquioobjetivodecontestaranoçãodeprogressonahistória,buscando
ascontradiçõesquemovemasmudançasmodernas,natentativadelocalizarocorpo
femininonessecampoderenovação.
Brasíliaéacidadequenascefilmada.Ocinema,artemodernaporexcelência,vai
comporcomimagensahistóriadonascimentodacidade.Nelaspoderiamestaros
vestígiosdeumahistóriapoucocontada,dasmulheresqueestiverampresentesno
canteirodeobrasdacapital:umcampotomadopelaforçamasculina,forçaeintelecto
necessárioàconstruçãodaempreitadamodernista.Comoessesfilmesvão
corporificaressasmulheres?Comoessecorposerelacionacomoespaçode
construçãodamodernidadeencampadaporBrasília?Eainda,épossível,apartir
dessasimagens,aferirumamodernidadeaocorpofeminino?Essassãoalgumas
perguntasqueguiamessetrabalhoe,maisquerespondê-las,procuraencará-lasde
frente,assumindoquecompõemapenasmaisumanarrativa,quenãosesobrepõeou
reescreveahistória,masprocuraacrescentarumaoutraperspectivaàconstruçãoda
cidadeeaoseupretensoprojetodemodernidade.
Palavras-chave:Brasília,corpofeminino,modernidade,cinema.
3
Abstract
Thiswork,developedinthecontextofHistoryandTheoryofCityandUrbanism,
seekstointerweaveseveralareasofknowledge-architecture,cinema,historyand
socialsciences-tochallengeBrasília’sconstructionhistorybysearchingforthetrail
ofapossiblypresentfemalebody.Possibly,becausethisbodyissoughtthroughthe
vestigesleftbycinema,andalsothroughthememoryofthosewhorevisitthese
imagestoday.Thebackgroundtothisobservationismodernity,afieldthatgoes
beyondtherealizationofmodernismimpressedonthecity’sprojectandthecountry’s
modernizationprocesssoughtbyJuscelinoKubitschek’sgovernment.Tounravelthe
sensesofthismodernspiritisawayofcontestingthenotionofprogressinhistory,
seekingthecontradictionsthatmovemodernchanges,intheattempttolocatethe
femalebodyinthisfieldofrenewal.
Brasíliaisacitythatisbornfilmed.Cinema,themodernartparexcellence,will
composethecity’sbirthwithimages.Theseimagescouldcontainthevestigesofan
untoldstory,ofthewomenwhowerepresentintheconstructionsiteofthecapital:a
fieldtakenbythemasculineforce,strengthandintellectnecessarytothemodernist
enterprise.Howwillthesefilmsembodythosewomen?Howdoesthisbodyrelateto
themodernityprojectembracedbyBrasília?Andyet,isitpossibletogauge,from
theseimages,amodernitytothefemalebody?Thesearesomequestionsthatguide
thisworkthat,ratherthananswerthem,triestofacethem,assumingthatthisisonly
onemorepossiblenarrative,whichdoesnotoverlaporrewritehistory,butseeksto
addanotherperspectivetothecity’sconstructionandtoitsso-calledmodernity
project.
Keywords:Brasília,femalebody,modernity,cinema.
5
Introdução
Enquantoestudantedearquiteturaeurbanismo,doispressupostosaparentemente
intrínsecosàáreadeconhecimentosempremeinquietaram.Oprimeirodeles:uma
abordagemextremamentetecnicistadadaaotratamentodoespaçoconstruído.Eaí
estoupropositalmentegeneralizando,poisqualquerescoladearquiteturaensina
seusestudantesalidarcomosdispositivosdecontroleedecomposiçãoespacial:é
precisosaberesquadrinhar,proporcionar,fazerfuncionaroespaço.Eumesmafui
umaestudantemuitohábilemtodasessastarefas,edefatoelasmedavamprazere
atéumacertaeuforiaacadaprojetofinalizado.
Emumdeterminadomomentodemeusestudos,medeicontadaabstraçãodetodas
aquelascomposições,plantas,maquetes,desenhos.Passeiameinquietarmuitocom
ofatodesaberquepoderiaproduziralgotãopoderoso–eaínãofalodegrandiosas
obras,apenasacreditoquequalquerespaçoplanejadoexerceumpodersobreaqueles
quedeleseapropriam–e,ainda,desaberquenãoteriacontrolesobreosefeitos
dessepoder.Defato,umpoucomaistardefuientenderquenãoeraexatamentea
necessidadedecontrolequemeinquietava–querertermaiscontrole–masapura
constataçãodequenãoexistecontrole.Essasreflexõesparecemdemasiadamente
simplistas,masfoimaisoumenosassimqueelasapareceramemminhacabeçade
estudantedegraduação.Eeuhesitoemguardá-lasnocompartimentodotempo
passadodainocência,porqueatéhojeconsideroqueelasforamimportantespara
tudooqueveiodepois–inclusiveessemestrado–etambémporqueacreditoque
continuamosinflamandoalgumasinocênciasaolongodavida,elasvãoapenas
ganhandooutrastonalidades.
Osegundopressuposto,eque,emcertamedida,éconsequênciadoprimeiro,seriao
estatutodeobradearteatribuídoàarquitetura–maisumageneralização.Nãoqueeu
estejaaquinegandoqualquerconceitorelativoàartisticidadedoobjeto
arquitetônico,masumaproblematizaçãoemtornodissomeparecianecessária,na
medidaemquepassamosadividiraquiloqueconstituioambienteconstruído–a
6
cidade–entreoquepodeounãoserchamadodearquitetura.Eusupunhaqueessa
divisãopoderiaofuscaronossoentendimentodessemesmoambiente.Nãoseriam
essesobjetos–aquiloqueseriaformalmentedefinido(aarquitetura),eaquiloque
constituiacidadeapartirdainformalidade(anãoarquitetura)–interdependentes
emumamesmadinâmica?Olharparaacidadeapartirdaóticadoarquitetoparecia
implicarqueestaríamossempreàprocuradeconverteroinformalemformal,numa
espéciedesalvaçãoquasequedoutrinária.
Lembro-mebemdedoisepisódiosnesseperíododegraduaçãoqueforammuito
marcanteseque,decertaforma,ofereciamalgumasrespostasàsinquietaçõesqueeu
jávinhaalimentando.Oprimeirodelesfoiem2003,quandotiveacessoaolivro
EstéticadaGinga:aarquiteturadasfavelasatravésdaobradeHélioOiticica,dePaola
BerensteinJacques.Haviaumagrandeeuforiaacercadaquelelivroentremimemeus
colegasdecurso,pareciaqueumnovomundohaviaseabertodiantedenós.Paola
noschamavaaolharparaacidade–maisespecificamenteafavela–apartirde
figurasdeleuzianas:ofragmento,olabirintoeorizoma.Movimentando-seapartirda
obradoartistaHélioOiticica,echamando-nosaolharparaumobjetoqueseria(de
acordocomospensamentosmaisortodoxos)umanãoarquitetura–afavela–,Paola
desconstróiqualquerlógicabináriaouestruturaarborescentequepossamosatribuir
àconstituiçãodoespaçoconstruído,cujapercepçãoeproduçãoaparecem
indiscerníveisemseulivro,assimcomoocorpoqueoconstrói,queopercorreeque
deleseapropria.Nesseuniverso,nãoeraimportanteelencarosatributostécnicose
artísticosnacomposiçãodosbarracos,ounaorganizaçãodasruasdafavela,ouem
suainserçãonoespaçourbano,massimobservaroqueesseorganismopoderia
evocaremtermosdedinâmicadeorganizaçãohumanaedevivênciaespacial,eque
sóalipoderiaexistir.
Umsegundomomento,em2004,naverdadeseresumeaumafraseproferidaporum
professor.Aindaestudantedegraduação,realizeiumintercâmbionumauniversidade
americana1.CursavaumadisciplinachamadaUrbanDesignSeminar,ministradapelo
1FacultyofLandscapeArchitecture,CollegeofEnvironmentalandScienceForestry,StateUniversityofNewYork(FLA-ESF-SUNY).Oconsórcioentreasduasuniversidades(UnBeSUNY)tinhacomoprincipalobjetivopromoverointercâmbioemtornodo“designcomunitário”(communitydesign,paraosamericanos).Àépoca,acabávamosdefundaroCASAS(escritóriomodelodaFAUUnB),eosalunos
7
professorEmanuelCarter,ediscutíamosalgunstrechosdolivrodeSpiroKostof,The
cityshaped:urbanpatternsandmeaningsthroughhistory.Nãovousaberreconstituir
exatamenteocontexto,maslembro-mebemdeumaafirmaçãofeitapeloprofessor:
“opoderdesenhaascidades”.Enãosomenteopodereconômico,ouopoderpolítico,
eleargumentava,mastambémopoderdeummoradordefavelaquetemacessoaum
materialeconstróiali,tomapossedaquelelugar.Nadisputaentreessesdiversos
podereséqueascidadessedesenham.
Jáconcluídaafaculdade,umjogodecoincidênciasacaboumelevandoatrabalhar
comrealizadoresdecinema.Em2007participeideumprimeirocurta-metragem
comoDiretoradeArte.Nuncahaviapensadoemsercineasta,masapossibilidadede
trabalharnessaáreacalhouparaquemandavainsatisfeitacomapráticados
escritóriosedeórgãospúblicos.Estive,portanto,nosúltimosanosfazendocinema,
masnuncadeixeideserarquiteta.Refugio-menasinfinitaspossibilidadesqueo
cinemaproporcionaemlidarcomoespaço,enelemevejosempredianteda
possibilidadedeinventarmundos,oureinventaroqueexiste.Nocinema,essacriação
sedádeumaformaemquesãoarticuladosnãosomenteasdimensõesespaciais,mas
tambémotempoeocorpo.Lidarcomocinemamefezenxergarcommaisclareza
essaintrínsecarelação,aimpossibilidadededissociaçãoentreespaço,corpoetempo.
Eéessanoçãoquevaipermeartodasaslinhasdessetrabalho.
Enquantocineasta,omeucampodeinteresseaopensarnashistóriasqueeuqueria
contarsempretransitounouniversodofeminino.Meuprimeirotrabalhocomo
diretoraeroteirista,ocurta-metragemMeiofio,faladarotinadeumamulherque
passaaviversozinhaemumrecémimplantadoloteamentodoprogramaMinhacasa,
MinhaVidaemÁguasLindasdeGoiás.Desenvolvoatualmentemaisdoisnovos
roteiros:umcurtametragemcomtítuloprovisórioAmulherdanoite,quefalasobre
asrelaçõesqueumamulherestabelececomoespaçonoturnodasruasdeCeilândia;e
umlongametragemintituladoAmulhernoquartoaolado,umaficção-científicasobre
umaprostitutaquetempremonições,ambientadaemumfuturohipotéticoondea
prostituiçãoésitiadaemumnovosetornaperiferiadeBrasília,entreCeilândiae
americanosquedelávinhamparticipavamdessasatividades.NósparticipávamosdeumadisciplinaintituladaCommunityDesignStudio,epodíamostambémcursaroutrasdisciplinasdoprograma.
8
ÁguasLindas.Todoselesperpassamarelaçãoentreamulhereacidade,assimcomo
asrelaçõesentrecentroeperiferia;nocaso,entreBrasíliaeaórbitadecidadesque
estãoaoseuredor.
Enfim,quandomepropusavoltarparaaacademia,sempresoubequeemum
mestradogostariadetransitarentretrêsquestões–ocinema,amulhereacidade.
Chegandoagoraaofinaldessatrajetória,parecequedesdesempreesteveevidente
quechegariaaesseponto,masaolongodopercurso,atéqueotal“objeto”estivesse
delineadoemminhacabeça,muitacoisaaconteceu.Aprimeiradelas,deinfluência
determinante,equemeapareceulogonaprimeiradisciplinaquecursei(Cidade
Contemporânea,comAnaElisabeteMedeiros,quemaistardeveioaserorientadora
destetrabalho),foiocontatocomaleituradeTudoqueésólidodesmanchanoar,de
MarshallBerman.Apartirdessaleitura,aquestãodamodernidadetornou-seuma
constanteemtudooqueeuescrevia.EntenderoprocessoqueBermandescrevia
comomodernidademeajudouaelaborarumaprimeirapergunta:nissoquechamam
demodernidade,ondeestáamulher?Épossívelfalardesseprocessoolhandoparaas
questõesfemininaserelacionando-acomacidade?
Maistarde,enquantocursavaasdisciplinasTeoriaeMetodologiadaHistória,como
professorDanielFaria(PPG/HIS),eBrasília:questõesdeurbanizaçãoehistória,com
osprofessoresMariaFernandaDerntleEduardoRossetti(PPG/FAU),foiquedefato
euconseguidefinirumobjeto:apresençademulheresemfilmesproduzidosacerca
daconstruçãodeBrasília.Assim,eutinhaumrecortetemporal–operíododa
construção,entre1957e1960–etambémumaquestãodegêneroaserrelacionada
comahistóriadacidade–algumasbibliografiasapontavamqueaausênciarelativa
demulheresduranteoperíododaconstruçãodeBrasíliagerouconflitose
desdobramentos,comoacriaçãodaZonadeBaixoMeretrícionaCidadeLivre.
UmagamadefilmesfoiproduzidaaolongodaconstruçãodeBrasília–umacidade
quejánasceufilmada.Cabiabuscarnessesfilmescomoessasmulheresapareciam,
querelaçõeseramestabelecidasentreelas,oprocessodeconstruçãodacidade
mostradonosfilmeseainda,comoessamulherserelacionacomamodernidadeque
Brasíliaeosfilmesproduzidossobreelaaventavam.Noentanto,falarsobreamulher
apartirdosfilmesseriademasiado,porqueoqueestáalídisponíveléuma
9
construçãoimagéticaesonoradeumuniverso.Oqueexistenumfilmeéumcorpo
filmado,esuaexistênciaestabelecerelaçõescomaquiloqueéinternoaofilme–o
espaçofilmadoeotempodanarrativa.Porissoaopçãodetrazernotítulodesse
trabalhoocorpofeminino,enãoamulher,comopartedoobjetodepesquisa.
Assimcomoocorpo,acidademostradapelocinemaexisteenquantonarrativa,ese
concretizanatelapelamise-en-scene2.Essaconstruçãodepende,fundamentalmente,
dasarticulaçõesentrecorpo,espaçoetempo.Aestóriaalicontadavainosoferecer
umaoutracidade,queépurarelação.Sendoumalinguagemquearticulamundo
objetivoesubjetivo,borrandooslimitesqueanaliticamenteimpomosaeles,ocinema
écapazdenosdefrontarcomaspectosdaditarealidade,oumelhor,comimpressões
derealidade,aretóricadebasedocinema.Osafetosdacidade,asuarelaçãosubjetiva
enãoporisso,menosmaterial,comaquiloqueaelapertenceequenelasereproduz
estãonessejogodeobservaçãoqueocinemapropõe.Tendocomoobjetoprincipal
nãoocorpo,nemacidade;nãoaarquitetura,nemanãoarquitetura;massimoque
estáentreeles,umtextoqueoscomunica,voubuscarnocinema,emseuesforço
narrativo,ospotenciaisexistentesnessarelação.Partotambémdopressupostoque
sãooscomponentestemporaisdofilme–omomentohistóricoaqueserefere,o
instanteemqueérealizado,aduraçãoquearticulaanarrativa–quepermitem
posicioná-loemumaperspectivahistórica.
OsfilmesacercadaconstruçãodeBrasíliaestãoaolharparaumepisódiodeseumito
deorigem.Brasília,enquantoinvençãomodernistaepartedeumprojetode
modernizaçãodopaís,somentepassaaserconsideradaformalmenteenquanto
cidadeapartirdodiadesuainauguração:21deabrilde1960.Oqueantecedeessa
dataseriacomouma“pré-história”,quenãocontemplaapenasoperíododesua
construção,mastambémtodoodesenrolardasintençõesdemudançadacapitaldo
Brasilparaoplanaltocentral.Portantoessemitodeorigemcondensatambémparte
dahistóriadanossamodernidade,queBrasíliafoicapazdematerializar.
2Éumtermofrancêsprovenientedoteatro,eaplicadoaocinemadesdeadécadade1950.Amise-en-scenedeumfilmeédefinidapelaconstruçãoquearticulaseuselementosdeimagemesom–enquadramento,entonaçãodevoz,movimentodoscorposnoespaço,luzecor,etc.–evãoformar,emúltimainstância,essaatmosferainternaaofilme.
10
Omomentodesuagestação–desdequeseiniciaocanteirodeobrasem1957atéa
suainauguraçãoem1960–éummomentoemqueháumaintensadiscussãoem
tornodomodernocinemabrasileiro.OCinemaNovojádavaosseusprimeirospassos
desde1954,ehaviaaliumabuscaporumaformadefazercinemaqueemmuito
dialogavacomasintençõesdanovacapital:olharparaopassadodonossopaíscomo
formadeselançarparaumnovofuturo,construindoumamodernidadedefato
brasileiracomomaneiradeafrontaraculturacolonialistadosubdesenvolvimento.O
CinemaNovobuscavaaexpressãodeumcinemamodernobrasileiro,assimcomoa
arquiteturaeourbanismobuscavasuaexpressãomodernistaemBrasília.
Àpartedoquefoiconsideradocomomovimentoartísticonahistóriadocinema,
cineastasbuscavamtambémmeiosdesobrevivênciafinanceira,fazendocomque,
desdeoiníciodoséculoXX,ummercadoespecíficodeproduçãocinematográficase
desenvolvesse.Muitosprofissionaiscinegrafistas,algunsprovenientesdojornalismo,
buscavamoseusustentonaproduçãodecinejornaisedefilmesencomendadospor
empresários:umtipodepráticaqueficouconhecidacomocinemadecavação.Hoje,
essematerial,apesardetersidoproduzidocomfinsdepropaganda,éconstituídopor
importantesdocumentosacercadasrealizaçõesgovernamentaisedasempreitadas
industriaiseagrícolasemumperíododeintensamodernizaçãodopaís.Brasíliafoi
umadessasempreitadas,fortementedocumentadapormeiodoscinejornais.
EaconstruçãodeBrasíliacontinuouasertemadefilmes,mesmoapósainauguração
dacidade.Materiaisdearquivoesquecidos–comoodeEugenneFeldmanedeDino
Cazzola–começaramaserreveladose,conformeveremosadiante,vãogerarnovos
documentáriosqueprocuramresgatarereinventaressasmemórias.Ocinemasobre
Brasíliapermaneceemconstantereinvenção,procurandomeandrosdahistóriada
cidadequenãocansamdesesobrepor.Algunsdocumentáriossãonotáveisnesse
sentido:Brasília,contradiçõesdeumacidadenova(1967),deJoaquimPedrode
Andrade,expõeasjálatentescontradiçõescentro/periferiananovacidade;
ConterrâneosVelhosdeGuerra(1990)deVladimirCarvalho,vaiprocuraramemória
dosoperáriosdaconstrução,comespecialatençãoaomisteriosomassacreda
PachecoFernandes;Acidadeéumasó?(2010)deAdirleyQueirósvairevisitaromito
damodernidadedeBrasíliaatravésdahistóriadeCeilândia.Nessabusca,doisfilmes
apenasserelacionamdiretamentecomaquestãofeminina.Apostandonachavedo
11
documentáriodeentrevista,PoeiraeBatomnoplanaltocentral(2010)deTânia
FonteneleeTâniaQuaresma,eAsagadascandangasinvisíveis(2008)deDenise
Caputo,sãopioneirosnessatentativadereconstruiraparticipaçãodamulherna
históriadaconstruçãodacidade.
Por que modernidade?
Sermodernopareceumapré-condiçãodadaàquelequenasceecresceemBrasília,
cidadeinventada,quecarregaamodernidadeemsuagênesedecriação.Nasce-seem
umambientecarregadodesímbolosmodernos,concretizadosemseusedifícios,no
desenhourbanodoplanodeLucioCostae,consequentemente,nomododevidaquea
cidadeabarca.
Imaginemosumapessoaquevivesuarotinanesseambiente.Elaacordacedoefaz
umalongacaminhadapelaáreaverdedassuperquadras,cruzandolivrementeos
pilotisdosedifícios.Segueatéacomercialpróxima,obarulhodotráfegoaolonge,
amortecidopelasárvores.Napadaria,comprapãoparaocafédamanhã,evoltapara
encontrarosseusaoredordamesa.Logo,pegaseucarroesegueatéaesplanadados
ministérios,ondetrabalha.Aofinaldeseuexpediente,percorreomesmocaminhode
volta,porlargaserápidasavenidas(hojenãotãorápidasassim).Estacionaseucarro,
mas,antesdeirparacasa,passarapidamentepelaescoladeseufilho,queficana
mesmaquadraemquereside.Jantamtodosnovamenteaoredordamesa,edormem
nosilêncioapaziguadorgarantidopelasárvoresqueosrodeiamepeladistânciade
qualqueroutrousoperturbador.Essaéumarotinamecânica,imaginadaemfluxo,de
maneiraquasequecaricata,masdescrevealgumasfacetasdesseambientemoderno
queBrasíliaproporciona,edecomoessecorpoimaginadoserelacionacomacidade.
MasoquesignificasermodernoemBrasília?Estáessamodernidadechanceladanos
traçosdesuacriação?Opteiporpercorrerdoiscaminhosnatentativaderespondera
essapergunta.Oprimeirocaminhoconsisteembuscarcomoéconstituídoesse
conceitohistóricochamadomodernidade,enquantocondiçãotransformadorada
sociedadeedeseusespaços.Essaperguntaconduzacaminhosmuitoamplose
contraditórios,maspartedeumaconstataçãomuitosimples:aindasomosmodernos,
12
enãoépossívelatribuirossentidosdessaconstataçãoapenasàconstruçãodacidade
modernista.Ouseja,apesardeBrasíliaserumacidademoderna,aprópria
modernidade,enquantoprocesso,vaicontradizerapossibilidadedeengessamento
desseconceitoemseusedifícios,espaçosurbanoseconstituiçãodeseuterritório.
Osegundocaminhoconsisteembuscarossentidosdessamodernidadenãosomente
noespaçoqueelaconstitui,mastambémnoscorposqueahabitam.Parte-sedo
pressupostoqueamodernidadeinstauratambémumatransformaçãonessemodode
percepçãoedeexistênciacorpórea,equeserelacionadiretamentecomosespaços
queessecorpohabita.Ouseja,háumespíritomodernoquecontamina,
materialmente,tantooespaçoquantoocorpo.
Osdoiscaminhostêmcomoobjetivocriaressepanodefundo,essecenáriomoderno;
cenárioqueé,caberessaltar,denaturezamaterial,semqueessapossaser
diferenciadadoqueéoseuespírito.Éimportantenãoperderdevistaque,ao
delinearessecenário,estoubuscandoenxergarcomoocorpofemininoaparecenessa
históriatoda.Cumpreaquibuscarumentendimentodemodernidadenumsentido
queésimultaneamenteamploesingular,equevaicriarumpanodefundopara
entenderosentrecruzamentosaqueessetrabalhosepropõe–entreamodernidade,
ocorpofemininoeocinema.
Asreflexõesquetragoaolongodetodootrabalhotransitamnessecampode
descoberta,umabuscanesselargoedifusoprocessohistóricoqueéamodernidade,e
dosmúltiplosdesdobramentosqueelaevoca.Entendidaenquantoprocesso,podenos
ajudarapercebercomoduasfacetasdamodernidadeatuavamsimultaneamentena
construçãodeBrasília:amodernizaçãodopaísenquantoprojetopolítico,eo
modernismoqueadesenhou.AoolharparaoespaçodeBrasíliaapartirdanarrativa
docinema,teremosexpostasdiversascamadasdesseespaçosocialehistórico,
admitindoqueomesmotambéméconstituídopelasimagensqueocinemaproduz.
13
Brasíl ia: mito, modernismo e modernização
Brasíliafoiinventadaeinaugurada:poucascidadesnahistórianasceramassim.Na
maioriadelasháumaorigem,quepodeseratomadadepossedeumterritório–
comoaconteceuemnossascidadeslitorâneas,ondeosportuguesesiniciaramsua
colonização.Demaneirageral,umacidadeseiniciaapartirdeumnúcleode
formação,quepodeserumapequenaruacomercial,ouumafeira,ummercado,um
portoouestaçãodetremqueatraiumoradoresparaosseusarredores,ouuma
fábrica,ouumpostodegasolinaàbeiradaestrada.Sãoatrativoscomerciais,
humanos,quefazemcomquepessoasdecidamdividirummesmoterritório.Feitaa
aglomeração,tratam-sedeinstituirasregras,asleis,éprecisogeriraqueleespaço.É
opoder–dequemconstrói,dequemocupa,edequemgoverna–quevaidesenhando
ocrescimentodessacidade.MasBrasílianascedeoutraforma:idealizadacomo
projetodeintegraçãonacional,éplanejadaedesenhadanopapel,construídaemmeio
aocerrado“inexplorado”,ecomumdiadeinauguraçãoagendado.Masqueideiase
movimentaçõeslevaramàconstruçãodacidade?Porque,paraquemeondeconstruí-
la?Aoolharmosparaessa“pré-história”deBrasília,percebemosqueháumpodera
desenharacidademesmoenquantoelaexistiasomentecomoideia.
AprimeirahistoriografiaproduzidaacercadeBrasíliacomeçouaserpublicadaa
partirde19573,ouseja,depoismesmodapossedeJuscelinoKubitschek(1956).O
concursoparaoprojetodacapitaljáhaviasidorealizadoeasobrasjáhaviamsido
iniciadas.Éumahistóriaquecomeçaasercontadajuntocomonascimentodacidade,
quandoelajárepresentavaumacriaçãoconcretadogovernoJK.Ocientistasocial
MárciodeOliveira,emseulivroBrasília:omitonatrajetóriadanação(2005),fazum
apanhadosistemáticodasprincipaisobrasproduzidasaté1980concernentesaoque
eledenominaideiasmudancistas:umconjuntocoerentededesejos,opiniõese
projetosqueafirmavamanecessidadedemudançadacapitaldolitoralparao
interiordopaís,equeculminariamnaconstruçãodeBrasília.
3Asexceçõessão:asmençõesfeitaspelojornalistabrasileiroefundadordoCorreioBraziliense,HipólitoJosédaCosta(1774-1823),emseuprópriojornal(1813);eolivroAquestãodacapital:Marítimaounointerior?(1877),dodiplomatabrasileiroFranciscoAdolfoVarnhagem(1816-1878),alémdosrelatóriosfeitosporcomissõesoficiaisqueestudaramoplanaltocentralaprocuradosítioadequadoparaaimplantaçãodacapital.
14
Nascidanoseiodeumprojetogovernamental,essabibliografiacomeçaacompilar
essecorpodeideiasconcomitantementeàconstruçãodaprópriacidade.Essa
sincronicidade–quenãoéacidental–tinhacomoobjetivocriarumlastrohistórico
paraaempreitadadogoverno.Afimdecomprovaressatese,MárciodeOliveiravai
procurarnessasfontesasmençõesaosprincipaisepisódiosquepontuaramo
históricodasideiasmudancistas,indicandocomoarecuperaçãodeunseocultaçãode
outroscontribuiuparaaconstruçãodeumanarrativafavorávelàconstruçãode
Brasília,muitasvezescolocando-acomoconsequênciainevitávelnahistóriadopaís
queaantecede.
Oliveiravaibasearsuaanáliseemdoistiposdefonte.AprimeiraconsistenaColeção
Brasília,umconjuntode5volumespublicadospeloServiçodeDocumentaçãoda
PresidênciadaRepública.4OobjetivodaColeçãoestáexplícitonacitaçãoqueé
reproduzidaemtodososvolumesdaedição:
(...)ofereceraosestudiosososelementosdocumentaisrelativosàinteriorizaçãodacapitaldoBrasil,tantodeseuaspectohistóricoquantodopolítico,socialeeconômico,desdeosantecedentesmaisrecuadosatéadatafixadaporleiparaatransferênciadoGovernoparaBrasília,21deabrilde1960.(ServiçodeDocumentaçãodaPresidênciadaRepública,apudOLIVEIRA,2005,p.78)
Osegundogrupodefontesconsisteempublicaçõesde“historiadores”5,
compreendidasentre1957e1980.Boapartedoslivros,principalmenteaquelescom
4AColeçãocontacomosseguintesvolumes:1.AntecedentesHistóricos,compostopor3tomos:1594-1896,1897-1945e1946-1956.Seuobjetivoeradescrevero“desenvolvimentodaideiadainteriorizaçãodacapitaldesdesuaorigematéodia31/01/56”,momentodapossedeJK,comumaabordagemfactualecronológica,masnãointerpretativa;2.DiáriodeBrasília,compostopor4tomos:1956-1957,1958,1959e1960.Seuobjetivoeraapresentaranualmenteodia-a-diadaconstrução,comumaabordagemessencialmentenarrativa;3.Coletâneadeopiniõesdepersonalidadesbrasileiraseestrangeirassobreanovacapitalduranteoprocessodeconstrução,compostopor9volumes,comumaabordagemfactualejornalística;4.CongressoNacionaldeBrasília,compostoporumvolume,contacomopiniõesdoscongressistassobreafuturacapital;5.Brasília,históriadeumaideia(acréscimoao1ovolume–Antecedentes...),incluídodeformaadarumaversãosintéticadapré-históriadeBrasília,compretensõeshistórico-sociológicas,informalmenteassinadopelodiplomataRauldeSáBarbosa.
5Oautoroscolocaassim,entreaspas,aolongodetodootexto,tendoemvistaquenemtodosostrabalhosporeleanalisadostinham,defato,pretensãohistórica.Sãoeles:JoséPeixotodaSilveira:Anovacapital.Porque,paraondeecomomudaranovacapitalfederal(1957);J.R.Vasconcelos:Brasília,peçadepolíticanacionalista(1957);RuyBloem:Mudançadacapital(1958);OsvaldoOrico:Brasil,capitalBrasília(1958);IsmaelPordeus:RaízeshistóricasdeBrasília.Datasedocumentos(1960);J.O.deMeiraPenna:Quandomudamascapitais(1958);MoisésGicovate:Brasília,umarealizaçãoemmarcha(1959);HorácioMendes:Brasíliaeseusantecedentes(1960);EduardoK.Mello:Brasília,
15
evidentepretensãohistóricaerealizadosduranteoperíododaconstrução,foram
escritospor“atoresengajadosedefensoresdatransferência”(OLIVEIRA,2005,p.
80).Apenasparacitaralgunsexemplos,ErnestoSilvateveatuaçãodestacadano
processodetransferênciacomosecretáriodaComissãodeLocalizaçãodaNova
Capital(1951-1953),presidentedaComissãodePlanejamentodaConstruçãoeda
MudançadaCapitalFederal(1956)ediretordaNovacap(1956-1961);MeiraPenna
eraembaixadoreteveseulivroapoiadoporIsraelPinheiro(presidentedaNovacap
duranteaconstrução,eprimeiroprefeitodeBrasília);EdgardVictorerafuncionário
daNovacap,admitidoem1959.Oliveiradestacaque
AanálisedessasobrasindicaquehaviasidonoseioeapartirdoprocessodetransferênciadacapitaldesencadeadopelogovernoJKquehistoriadores,jornalistas,eoutrosprofissionaiscomeçaramarecuperarestaimportantepartedahistóriabrasileira,imbuídosdomesmointuitopresentenogovernoJK:criarlastrohistóricoesocialparaanovacapital.Curiosamente,portanto,eranointeriordahistória–aindanãoescrita–deBrasíliaenãonointeriordahistóriadoBrasil,queseencontravaamaiorpartedostrabalhoshistóricossobreatransferênciadacapital,alémdofatodessestrabalhosteremsidoescritosporpersonagensdiretamenteenvolvidoscomaquestão.(OLIVEIRA,2005,p.80)
AobservaçãodeOliveiraédequeatônicageraldessestrabalhosémuitosemelhante:
validamoprojetodetransferênciadacapitalparaointeriordopaís,situandosua
origemnoBrasilColônia(maisprecisamentenaInconfidênciaMineiraenaideiade
transferênciadacapitalparaaviladeSãoJoãoDelRei6),orquestrandoosepisódios
deformaqueBrasíliaapareçacomoconsequênciadeuma“históricaaspiração
nacional”,eposicionandoJuscelinocomooseuprincipalrealizador,aqueleque
finalmentetevecoragemdeexecutá-la.Oliveirareforçaaindaqueasobrasdos
“historiadores”“nãoseesmeramnacitaçãodasfontesbibliográficasedocumentais;
caracterizam-semesmopeladescontextualizaçãodosfatos,provocandoum
emaranhadoentreopinião,fontehistóricaepropagandaafavordamudança”
(OLIVEIRA,2005,p.82).
história,urbanismo,arquitetura,construção(1960);OlímpioFerraz:Brasília(1961);JoséGeraldoVieira:Paralelo16:Brasília(1966);ErnestoSilva:HistóriadeBrasília(1970);RauldeASilva:OsidealizadoresdeBrasílianoséculoXIX(1975);GeraldoI.Joffily:Brasíliaesuaideologia(1977);AdirsonVasconcelos:Amudançadacapital(1978);EdgardD’AlmeidaVitor:HistóriadeBrasília(1980).
6Emboraodesejode transferência tenhasidocitado tantopelaColeçãocomopelos “historiadores”,outrosaspectosdomovimentoinconfidenteforamsimplesmenteignorados.
16
AcontribuiçãodesseapanhadofeitoporOliveiraestáemdemonstrarcomoa
primeirahistoriografiaacercadeBrasíliavaicontribuirparaaconstruçãodomitoem
tornodesuaconstrução.Juscelinoestavanãosomenteconstruindoumanovacapital,
mastambémempenhadoemconstruir“umnovoBrasil,comumnovopassado,um
novofuturo,eenfim,umnovosentido”(OLIVEIRA,2005,p.84).Muitoemborao
autornãoquestioneolastrohistóricoquealimentaessasfontes,ressaltaqueasideias
mudancistasnãoapontavamnecessariamenteparaBrasília.OpróprioJuscelino,
enquantodeputadofederal,porduasocasiões–duranteaConstituintede1946e,
novamente,navotaçãoparadelimitaçãodoslimitesdoDistritoFederalentre1948e
1953–defendeuveementementealocalizaçãodanovacapitalnotriângulomineiro,
informaçãoquefoicuidadosamenteomitidadasfontesanalisadasporOliveira.Foi
somenteem1955,jáemcampanhaparaapresidência,queJuscelinoteriasido
“convencido”amudardeideia.SegundocontaemseulivroPorqueconstruíBrasília
(1975),Juscelinoteriasidointerpeladoporumpopular(AntônioSoaresNeto,o
Toniquinho)duranteumdiscursonacidadedeJataí/GO,quelheindagouacercado
cumprimentododispositivoconstitucionalquedeterminavaamudançadacapital
federalparaoplanaltocentral.Naquelemomento,Juscelinoprometecumprira
constituição,e,jáempossado,vaiincluirBrasíliacomometa-síntesedeseuprograma
degoverno.
AcreditoqueoestudorealizadoporOliveirarevelaasmuitasfacetasdeeventosda
históriadacidadequetomamoscomofactuais,masque,naverdade,sãocontados
dentrodeumacertaorquestraçãonarrativaafavordoprogramagovernamental,
inflamadatambémpelagrandeeuforiaqueBrasíliaprovocounocenárionacionale
internacional.Asuaanálisevaiapenasaté1980,quandoentãocomeçamasurgir
outrosestudosacercadaconstruçãodacidadequepassamaquestionaranarrativa
historiográficaquehaviasidoproduzidaatéentão,assimcomopassamalidarnão
somentecomumprojetodecidade,mascomumacidadequecomeçaaserocupadae
aadquirirdinâmicaprópria.
Em1980oantropólogoJamesHolstoniniciaseutrabalhodecampoparapublicar,em
1989,TheModernistCity–anAntropologicalcritiqueofBrasilia,traduzidonoBrasil
em1993comoAcidademodernista:umacríticadeBrasíliaesuautopia.Oautorse
propõeaestudarantropologicamenteacidade,problematizandooprojeto
17
modernistadeBrasíliaapartirdesuascontradiçõesinternas,explorandoassuas
diferençascomascidadesbrasileirastradicionaisetambémcomaocupaçãoquese
deuporaquelesqueahabitaram.
OlivrodeHolstonéumdentretantosquepassamaserpublicadosapartirdadécada
de80quevãoquestionaraquelanarrativaqueposicionaBrasíliadentrodoâmbitoda
“históricaaspiraçãonacional”.SegundoHolston,Juscelinoadmitiaque,antesde
conheceroprojetodeLucioCosta,“nãotinhaumaideiaformadasobreogênerode
cidadequeiriaconstruir”.Poroutrolado,quandoHolstonquestionaNiemeyerse
Juscelinoestavacomprometidocomasinovaçõessociaisdoplanopilotoecomoutras
propostas,eleresponde:“nuncadiscutíamospolítica,nemadele,nemaminha.”
(apudHOLSTON,1993,p.101).Tudoindicaquehavia,decertaforma,um“acordode
cavalheiros”,sacramentadopelodesejodeumobjetivocomumentreambos–a
construçãodeBrasília–masque,politicamente,representavaideaisdiferentespara
cadaum:paraosarquitetos,aconcretizaçãodeideaisdaarquiteturamodernista,de
cunhosocialista,queaspiravamaumnovomodelodecidadeondeasdiferençasde
classepoderiamsereliminadas;jáparaJuscelino,aconcretizaçãodeBrasília
representava,simbolicamente,oprimeiropassoparaarealizaçãodeseuprojeto
nacional-desenvolvimentistaparaopaís.
ÉnessepontoqueHolstonlançamãodosconceitosdemodernismoemodernização
paraexplicardequeformaomesmosímboloarquitetônicopodeevocar
interpretaçõestotalmentedivergentes.Nessapolissemiadosímboloarquitetônico
teriamseapoiadoosdoispensamentos–odomodernismoeodamodernização.A
inovaçãoartísticaquepropunhaomodernismonaarquiteturasatisfaziaodesejo
políticodemodernizaçãodopaís,muitoemboraosdoisinteressesfossem
completamenteopostos.
MarshallBermanemseulivroAllthatissolidmeltsintoair,publicadopelaprimeira
veznosEstadosUnidosem1982,etraduzidonoBrasilparaTudoqueésólido
desmanchanoar:aaventuradamodernidade(1986),tambémseutilizadostermos
modernismoemodernização,convergenteàutilizaçãofeitaporHolston.Berman,em
suaabordagemmarxista,afirmaqueopensamentosobreavidamodernanoséculo
XXsebifurcouem“doiscompartimentoshermeticamentelacradosumemrelaçãoao
18
outro:modernizaçãoemeconomiaepolítica,modernismoemarte,culturae
sensibilidade”.(BERMAN,1986,p.101)
Nossavisãodavidamodernatendeasebifurcaremdoisníveis,omaterialeoespiritual:algumaspessoassededicamao“modernismo”,encaradocomoumaespéciedepuroespírito,quesedesenvolveemfunçãodeimperativosartísticoseintelectuaisautônomos;outrassesituamnaórbitada“modernização”,umcomplexodeestruturaseprocessosmateriais–políticos,econômicos,sociais–que,emprincípio,umavezencetados,sedesenvolvemporcontaprópria,compoucaounenhumainterferênciadosespíritosedaalmahumana.Essedualismo,generalizadonaculturacontemporânea,dificultanossaapreensãodeumdosfatosmaismarcantesdavidamoderna:afusãodesuasforçasmateriaiseespirituais,ainterdependênciaentreindivíduoeoambientemoderno.(BERMAN,1986,p.151)
NessatônicaéqueamodernidadequeBrasíliarepresentouapareceincorporadaa
essetrabalho.Asintençõesexplícitasnoprojetodecidadeambicionadopelogoverno
deJuscelino,partedeumprojetomaiordemodernizaçãodopaís,aliadasàsintenções
deumprojetoarquitetônicomodernista,criavamumaimagemdemodernidade
brasileiraqueocinemaprocuroumostraraolongodoperíododaconstruçãoda
cidade.Poderiaocinemaentãonosrestituiressainterdependênciaentreindivíduoe
ambientemoderno,refletidanoscorposecidadesqueconstróiemsuamise-èn-scene?
Uma cidade construída por homens: onde estavam as mulheres na construção de Brasíl ia?
Olhandoparaessemitodeorigemdanossamodernidade,coubeentãoumapergunta:
tendoosfilmessobreaconstruçãodeBrasíliacomopanodefundo,comoocorpo
femininoeravistoemrelaçãoaesseprojetodemodernidade?AhistoriadoraJoan
ScottemseulivroGeneroeHistoria(2008),argumentaque,parasebuscaruma
reinscriçãodasmulheresnahistória,éprecisofazerdelas“ofocodoquestionamento,
otemadahistória,umagentedanarrativa”7(SCOTT,2008,p.35).SegundoScott,
escreverahistóriadasmulheresconsistetambémemreunirevidênciaseutilizá-las
paradesafiarasideiasdeprogressoerecessão.
Aesserespeito,setemcompiladoumnúmerodeprovasparademonstrarqueoRenascimentonãorepresentouumautênticorenascimentoparaasmulheres;queatecnologianãopropicioualiberaçãodasmulheres,nemem
7Traduçãolivrede:“elfocodelcuestionamiento,eltemadelahistoria,unagentedelanarrativa”.
19
seulugardetrabalho,nemnoambientedoméstico;que“otempodasrevoluçõesdemocráticas”excluiuasmulheresdaparticipaçãopolítica;quea“afetuosafamílianuclear”limitouodesenvolvimentoemocionalepessoaldasmulheres;equeosurgimentodaciênciamédicaprivouasmulheresdaautonomiaedosentidodecomunidadefeminina.8(SCOTT,2008,p.38)
Sobqueviésentão,poderíamostrazerasmulherescomoagentesdanarrativaacerca
daconstruçãodeBrasília?Tendoemvistaqueaquestãodegênerofoipoucotratada
nahistoriografiaacercadacidade,comotrazeressaspersonagensdaconstruçãopara
daroseutomdahistória?
Osregistrosfotográficoseaudiovisuaisproduzidosnaépocadaconstruçãorevelama
grandedisparidadeentreaquantidadedemulheresehomensnocanteirodeobras:a
quantidadedehomensdemonstra-seinfinitamentemaior.Historicamente,a
construçãociviléumramodeproduçãoqueseutilizamajoritariamentedeforçade
trabalhomasculina,emboramuitorecentementeainserçãodamulherjácomecea
sernotada.Paraalémdessefato,aformaderecrutamentodetrabalhadoresem
Brasíliaseguiucritériosmuitoclaros:dadaaurgênciadaobra,eaexpectativadentre
osadministradoresdequeessaforçadetrabalhoretornariaaosseuslocaisdeorigem
apósconcluídaaobra,requeriam-setrabalhadoresquefossem
(...)homens,jovens,fortes,solteirosequetivessemdeixadosuasfamíliasnoslocaisdeorigem.Acombinaçãodestesfatores,emespecialosdoisúltimos,configuraumasituaçãoemqueaausênciademulherestorna-sefontedeconflitosdeterminadosbasicamentepeladificuldadedesemanterrelacionamentoscomosexooposto–namoros,casamentos,relaçõessexuais.(RIBEIRO,2008,p.97)
Osrelatosacercadaausênciarelativademulheressãoconstantesnosdepoimentos
dosoperários.Mas,comoasmulheresnãoeramdefatoproibidasdevir,orelato
daquelaspoucasquevieramcomosseusmaridosrevelapartedessepanorama.
Em57foiquecomeçouavirmuitagente.Cinquentaeseteagentenumpodianemsairnarua(ri).[-Porquê?]Ah,oshomepegavaagente(ri).É.NessaépocatinhatrêsmulhéaquiemBrasília,né?Entãonósajuntavaastrêsmulhéeiadenoiteprabeiradocórregodenoite,lavarroupa,mastinha
8Traduçãolivrede:“Aesterespecto,sehacompiladouncúmulodepruebasparademonstrarqueelRenacimientonorepresentounauténticorenacimientoparalasmujeres,quelatecnologíanocondujoalaliberacióndelasmujeres,nienellugardetrabajo,nienelhogar,que“eltempodelasrevolucionesdemocráticas”excluyóalasmujeresdelaparticipaciónpolítica,quela“afectuosafamilianuclear”limitoeldesarrolloemocionalypersonaldelasmujeres,yqueelsurgimientodelacienciamédicaprivoalasmujeresdeautonomíaydelsentidodecomunidadfeminina”.
20
queoshômeficarlápertoporque(ri)...invadia,sabe?Àsvezeseusaíaassimnaportadaruaquetinhaumrestaurante,erabemnaesquina,né,eusaíaassimnaportapraolharassim,né,pegarumarlivre.Aíoshômevinhaagarravanobraçodagentesaíapuxandopelaruaabaixo(ri).Nósgritavaaíoshomesaíacorrendopraacudir,euvoutefalarumacoisa(ri).Ôlugarterrível.(Depoimentodaesposadeumcarpinteiro,residentenaCidadeLivre,apudRIBEIRO,2008,p.107)
Portanto,asmulheresestãopresentesnanarrativaacercadaconstruçãodeBrasília
comoaquiloquefazfaltaaoshomens.SegundooantropólogoGustavoLinsRibeiro
emseulivroOcapitaldaesperança:aexperiênciadostrabalhadoresnaconstruçãode
Brasília(2008),“aproporçãodemulheressolteirasera,emalgumasáreas,de17para
cadagrupode100homenssolteiros”(RIBEIRO,2008,p.108).Ribeiroaponta
inclusivequeaausênciarelativademulheresserefletianaescassezdaprestaçãode
serviçosdomésticos,numaatribuiçãodessaatividadeaoâmbitoexclusivamente
feminino.
Pouquíssimostrabalhosforamrealizadosexclusivamenteacercadotema.Aquestão
dapresençafemininaduranteaconstruçãodeBrasíliaécitadademaneiraenpassant
emtrabalhosquetratamdoambientedaconstrução,ecomenfoquesemelhanteao
dadoporRibeiro:anarrativadafalta.LuizSérgioDuartedaSilva,emseulivroA
ConstruçãodeBrasília:modernidadeeperiferia(1997),mencionaadisparidadeentre
homensemulheres:
Oambientedaconstruçãoeraumlugarextraordinário.Suapopulaçãoeracaracterizadapelodesequilíbrionaquantidadedehomensemulheres(100/17em1959).(...)Umlugarisoladodetudo,compoucasmulheres,muitaexploraçãoeondeasociabilidadeerareconstituídanãosónosinterstíciosdosistema:naCidadeLivre,nosrestaurantescoletivos,nofutebol,nasmesasdejogodepife-pafe,mastambémnoambientedetrabalho(aobra).(DUARTE,2009,p.79)
ApublicaçãoMulheresPioneirasdeBrasília(2001)deElviraBarney,traz
depoimentosdemulheresquevieramparaBrasíliaantesdesuainauguraçãoouem
seusprimeirosanosdeexistência.Das91mulheresentrevistadas,apenas38
chegaramantesdainauguração.AautoraveioparaBrasíliaem1961,acompanhando
omarido,oarquitetocolombianoCésarBarney.OlivrodeElvirareúnepequenos
depoimentosdessaspioneiras,descritoscomaspalavrasdaautora.Osdepoimentos
sãoorganizadosemordemalfabética,echamaaatençãoofatodeessasmulheres
seremconstantementereferidascomoesposasdealguém:naintroduçãodecada
21
depoimento,abaixodonomedapioneira,constaadatadechegadaaBrasília,a
origem,easituaçãoconjugaldecadauma–viúvadefulano,casadacomcicrano.Em
suamaioria,tratam-sedecompanheirasdefuncionáriosdaNovacap,arquitetos,
empresários,médicos,etc.,dentreelas,CoracyUchôaPinheiro(viúvadeIsrael
Pinheiro)eLiaSayão(filhadeBernardoSayão).Algumaschegaramaindacriançasou
adolescentes.Descrevemasagrurasdosafazeresdomésticosnaépoca,afaltade
empregadas,aprecariedadedasinstalações,curiosidadesacercadavidacotidiana,
etc.Aabordageméclaramentedirecionadaamulheresdeumaclassesocialmais
favorecida,eécomumemtodososdepoimentosareferênciaàvidaconjugalcomo
determinantenahistóriadedeslocamentodessasmulheresparaanovacidade.Há
poucasreferênciasdiretasaofatodeseremminorianaépoca,assimcomoàscausase
consequênciasdisso.
ANovacapdavapassagemdeaviãoparaohomem.Esóparaohomem,semincluirafamília.MasAníbalcomprouaspassagensdoRioparaGoiâniaescondido,paraelaeosfilhos.(SobredepoimentodeAnaSantanaPereira,emBARNEY,2001,p.39)
Quasemorriademedo,poishaviamuitohomempelarua,equasenenhumamulher.Masoespíritodeaventuraprevaleceu...(SobredepoimentodeDalvadeLimaCatsiamakis,emBARNEY,2001,p.72)
Mulher,nempensardesairànoite,pois,comoeramescassas,seria“atiçarfogoondenãohaviaágua”.(SobredepoimentodeNormaFerreiradaCunhaMello,emBARNEY,2001,p.224)
Ainauguraçãodacidadefoimuitoemocionante.Atéosengenheirosdesfilaramemjipes,easmulheres,quenãotomarampartenisso,gritavampelonomedosmaridos,entusiasmadascomodesfile.(SobredepoimentodeMarildaCastrodeFigueiredo,emBARNEY,2001,p.188)
Fatoengraçadoaconteceu,quandofizeramumcinemademadeiranaCidadeLivre,econvidaramoscandangosparaaestreia,jáqueiriapassarumfilmecomaBrigiteBardot.Foiaquelaexpectativa,edesignaramumcoroneldapolíciaparacontrolaropúblico,tudoorganizado.Lápelastantas,Brigitecomeçaatirararoupa,efoiaquelaloucura!Oscandangos,nocinema,ficaramalvoroçadosdetalforma,quetiveramdeinterromperasessão.(SobredepoimentodeVeraLúciaMeirelesTamm,emBARNEY,2001,p.258)
Mulhereracoisarara,atéchamavaatenção.Contaelaquenosábado,asfirmaslotavamoscaminhõesdehomens,eoslevavamparaLuziânia,paraas“farras”.Eraumafestaparaeles.(SobredepoimentodeDorotéaAroucheNeves,emBARNEY,2001,p.81)
LisbethchegouemBrasíliacomapenasdozeanoserecém-saídadocolégiointerno.MoravanaCidadeLivre,ondeopaiconstruiuumpostodegasolina,aoladodacasaparamorar.Tudodemadeira.Maselaestavafeliz,poistinha
22
maisliberdadeparasairdecasa,andardebicicletaaliemvolta,tudoótimo.Umdia,viuquedooutroladodaruahaviaumacasacheiadegentebonita,arrumada,etinhamúsica.“Semandou”paralánasuabicicleta,eachouqueeramuitomaisanimadodoquedoladodecá.Aquinãohavianada,edoladodelá,erasófesta.Sóqueseupaideuordemparaelanuncamaisatravessar,poisláeraacasadeprostitutas,gentequenãoprestavaetc.etc.Pôsumempregadodopostoparavigiá-la.Elaficoutriste,mastevequeentender.Criançaainda,nãosabiabemdascoisas.(SobredepoimentodeElisabethCascãoFrança,emBARNEY,2001,p.97)
Nesteúltimodepoimento,adentramosmaisumaquestãoatreladaàdisparidadeentre
homensemulheres:avindadeprostitutasaoambientedaconstrução,assimcomoo
deslocamentodostrabalhadoresparacidadespróximas–Luziânia,Formosa–na
buscadessasprofissionais.Amençãoaessaatividadetambémaparecenolivrode
GustavoLinsRibeiro.
AquinofimdaAvenidaCentralaíhaviaumazona,ummeretrício.Entãohaviaessemeretrício.Emboraeraummal,masummalnecessário.Porqueagrandequantidadedeoperário,ecertosoperáriosespecializados,trabalhavamnascompanhia,numtrouxeramsuasfamília.Agrandemaioriadeoperárioerahomemsozinho.Entãoporissohouveanecessidade.Aíéqueàsvezesempredavaumasconfusãozinhaporquemulher,jogo,cachaça,nuncadeixavadedaralgumaconfusão.(DepoimentodecomerciantedaCidadeLivreapudRIBEIRO,2008,p.109)
Sobreaprostituiçãoduranteaconstruçãodacapital,éimportantedestacara
pesquisademestradodahistoriadoraJoelmaRodriguesdaSilva–Mulher:“pedra
preciosa”;prostituiçãoerelaçõesdegêneroemBrasília(1957–1961)(1995).A
pesquisadeJoelmaRodriguesconsistenoprimeirotrabalhoacadêmicoquesetem
conhecimentoacercadotemadaprostituiçãoduranteaconstruçãodacidade.Sua
investigaçãopartedealgumasperguntas:
(...)sehaviammulheresnaconstruçãodeBrasília,porquenãosefalavaarespeitodelas?Esehaviamprostitutas,porqueaomenoscomo‘delinquentes’elasnãohaviamsidoincluídasnas‘memórias’e‘diários’jápublicadossobreoperíodo?Qualosignificadodaprostituiçãonoespaço/tempodelimitadopornós?Afinal,oqueproduzafiguradaprostituta?(...)ComoteriasidoaaçãodoEstadofrenteàprostituiçãoe,quaisinstrumentosteriamsidousadosparacoibi-laouincentivá-la?(SILVA,1995,p.I–II)
E,apartirdessasperguntas,constróiumahipóteseinicial:
UmadashipóteseseradequeoEstado,atravésdaNovacapeempreiteiras,haviaatuadocomoproxenetaobjetivandogarantiraválvuladeescapeparaaspulsõesemocionaiselibidinaisdoshomensquetrabalhavamnaconstrução:garantindosatisfação,garantiriaoritmoaceleradoqueasobrasexigiam.(SILVA,1995,p.II)
23
AperspectivadeJoelmaéadaviolênciacontraamulherque,segundoela,estaria
implícitanessetipoderelação.Aprostituiçãoé,paraaautora,“umaviolênciasocial
quefazdamulherobjetoeinstrumentodelazer/prazer,práticaondeseconcretizam
asrepresentaçõessobreosgêneros,teatronoqualsereestabelecemasrelações
sociais”(SILVA,1995,p.II)Partindodeumapremissafoulcaultiana,posicionandoas
relaçõesdegêneroesexualidadedentrodaperspectivadopoder,aautoraexploraa
questãodaprostituiçãoatribuindohistoricamenteàmulher,umaposiçãosubalterna
emrelaçãoaohomem;dessasubordinação,nasceriaoespaçoparaaprostituição.Sua
análisepassaentãoporumarevisãododiscursomédicoereligioso,ressaltandoem
queaspectosessasinstânciasestiveramvigiandoecontrolandoasmulheres,
confiscando-lhesodesejoealiberdade,eainda,culpando-aspelaluxúriaepelas
doençassexualmentetransmissíveis.Finalmente,Joelmavaibuscarnasmemórias
daquelesqueparticiparamdaconstruçãodeBrasília,predominantementeatravés
dosdiscursosmasculinos,remontarocotidianodaépoca,analisandotambémo
silêncioimpostoàsprostitutas.Asocorrênciaspoliciaisdaépocaentramcomo
complementaresàtentativaderemontaressecotidiano.
OterceirocapítulodotrabalhodeJoelma–Asfalaseossilêncios:homensemulheres–
éconstruídoapartirdefontesprimárias:depoimentoscedidosaoProgramade
HistóriaOraldoArquivoPúblicodoDF.Emumaprimeiraparte,suaconstruçãoparte
dedepoimentosmasculinos,tantodaquelesqueseutilizavamdosserviçosdas
prostitutas,comodefuncionáriosdogovernoedeempreiteiras,querelatamsua
atuaçãonosentidodefacilitaraocorrênciadessasáreas–primeiramentelocalizadas
emLuziâniae,posteriormente,naprópriaCidadeLivre.
Noprincípio(1956),emnovembroassim,opessoalreclamavamuito.Tinhamuitagenteaísozinha,então,nãotinhamulher,nãotinhacoisanenhuma.Aíeudigo...bom,então,eufuiaLuziâniaecombineicomJucadaPonte.Etinha(...)umsubempreiteiro,chamadoFlausino,eudigo:"ÓFlausino,vocêsaicomteucaminhãoaí,eupago,vocêarrumatrêsmulheresaí.TemaquiaMetropolitana,temaCoengeetemaRabello,então,umamulherpracadacompanhia.EtrazelasaíevamosinstalarelasemLuziânia."AíeuarrumeiláumlocalemLuziânia,fiztrêscasinhasbemfeitinhas,cominstalaçãosanitáriaetudo,aquelenegóciotodo.Eumbelodomingonósestávamos...éporqueagentetrabalhava21horaspordiadireto,nóssóparamosnasexta-feirasantaporqueoIsraelmandouparar.Então,numbelodomingo,tavaatéumdomingobonito,demanhãcedoumas7epouco,apareceumcaminhãolánocampo,todomundotrabalhando(...)apareceumcaminhãocomoFlausino,umsujeitodirigindo,eraocaminhãodeleeelenoestribocomamãolevantadaassimecumprimentandoeemcimadocaminhão
24
vinhamtrêscamascomtrêsdonzelasládepenhoaretudo,emcimadocaminhãomandandobeijopropessoal.Atravessaram,mandandobeijopropessoal,atravessaramocampotodoeeufiqueiestarrecidoporqueparouaobratoda,ficoutodomundoolhando.Aíeugritava,eupegueiojipeesaíatrásládoFlausinoeemparelheicomele,eudigo:"ÓFlausinomandaessadroga,levatudolápraLuziâniarápidoporquesenãoninguémtrabalhamaishojeaqui."AíláfoielepraLuziânia,instalouláolupanarláemLuziânia(...)Trêsmulheressó,trêsmulheres.Porqueelasnãoqueriamvir.Elastinhammedo,longepraburro,umnegóciohorrível.ElefoiláproladodeUruaçu,seilá.(...)Edessastrêscasinhas,hojeemdiatemumbairroláemLuziânia,bairromovimentadoeasnoitesemLuziâniasãolánessetaldebairrolá,dizquenasceunaquelaépoca.(DepoimentodeAthualpaSchmitz,engenheiro,apudSILVA,1995,p.108)
Apósdiscorreracercadosdepoimentosmasculinos,Joelmaargumentaque,aoentrar
emcontatocomasmulheresquetrabalharamcomoprostitutasnoperíodo,nenhuma
delassedispôsalheconcederentrevistas.Omomentoqueseria,portanto,dedicadoa
ouvi-lasétransformadoemumaargumentaçãoacercadosilênciodessasmulheres.
Ocorreque,muitoemboraotrabalhodeJoelmatragaumaincrívelcontribuiçãono
sentidodereconstruiressesfatos,dereunirnarrativasdosatoreseinstituiçõesda
época,limita-seadescrevê-losapartirdaóticamasculina.Joelmademonstra,ao
longodetodooseutrabalho,umposicionamentomuitoclaroemrelaçãoà
prostituição:elaéumaviolênciacontraamulher.Dessaforma,condenaaspulsões
sexuaismasculinaseoshomensque,aonãoconseguiremcontê-las,obrigamessas
mulheresasujeitarem-seaessasituação.Pornãotermosacessoemseutrabalhoaos
depoimentosdaquelasquesão,defato,objetodeseuestudo,ficamosnovamente
apenascomanarrativamasculinaacercadahistória.
Nasduaspublicaçõesmencionadasacima,asúnicasaquetiveacessoatéentãoacerca
dapresençadasmulheresduranteaconstruçãodacidade,percebemosdois
estereótiposdemulheresmuitobemdelineados:odamulherpioneira,que
acompanhaomarido(tambémpioneiro),equeporventurapassaaintegrara
sociedadebrasilienseeagerarosseusprogenitores;ooutro,odaprostituta,figura
obscura,marginalizada,porémnecessáriaaofielandamentodasobras.Seriamentão
apartirdessasduaspersonagensquecomeçamosarecontaressahistória?
Mas,antesmesmodeapontaraspersonagens,éprecisoperguntaroporquêdeterem
sidosilenciadasoucolocadasàmargemdaquelaqueseriaahistóriaoficial.
Perguntar,comodizodepoimentodeMarildaCastro,porqueasmulheresnão
25
tomarampartedisso?Emquemedida,dentrodesselimitetemporal–oepisódio
delineadopelaconstruçãodeBrasília–podemosentenderalgoquedigamaisacerca
deduasquestõesamplas:primeiro,comoasmulheresserelacionamcomoprocesso
detransformaçãoentendidocomomodernidade;esegundo,comoocinema,arte
modernaporexcelência,poderevelaraspectosdessarelaçãopormeiodoscorpos
queconstróiemsuamise-èn-scene.
Portanto,aoobservarocorpofemininonosfilmesproduzidosacercadaconstrução
dacidade,procuroindíciosdapresençaouausênciadessecorpo,traçandoassimuma
novanarrativaacercadessarelaçãoentrecorpofemininoemodernidade.Observo-o
apartirdoselementosqueofilmemeoferece:Quemfilma?Quandofilma?Emque
contextohistóricoseinseremrealizadoresefilmes?Quetipoderelaçãonarrativaé
estabelecida–documentalouficcional?Apartirdequeóticaabordaaconstruçãoda
cidade?E,finalmente,comoocorpofemininoémostrado?Ouporquenãoé
mostrado?
***
Procureiestruturaressadissertaçãodeformaqueasquestõesteóricasqueforam
levantadasaparecessemladoaladocomosfilmesqueescolhitrabalhar.Noentanto,
antesdeadentrá-los,énecessáriofalardocinema,oveículopormeiodoqual
pretendoobservaressarelaçãoentrecorpofemininoemodernidadenaconstrução
deBrasília.Dessaforma,noprimeirocapítulo–Cinema,oolhodamodernidade–
procuroadentrarouniversodocinemacomoveículodeexpressãomodernopor
excelênciae,comotal,passíveldecontarasestóriasdenossamodernidade.Vou
transitarporquestõesquesãonecessáriasparaaabordagemquetragoaquie
cruciaisaocinema,comoadicotomiaentreficçãoerealidade,eapossibilidadedeas
construçõesaudiovisuaisseremencaradasnumaperspectivahistórica.Procuro
tambémfalardoscaminhosqueahistóriadodocumentáriopercorreunatênuelinha
quedivideocinemadocumentáriodocinemadeficção.Corpoecidadeaparecemaqui
tambémcomoelementosdessejogo,assumindoumaoutraexistêncianaconstrução
cinematográfica.Porfim,procurodelinear,rapidamente,dequeformaa
modernidadesemanifestounocinemabrasileiro,seuscaminhos,principaisatorese
26
característicadaprodução,quevaieclodirquasequesimultaneamenteàconstrução
deBrasília.
Osegundocapítulo–Modernidade,progressoecorpo-máquina–éconstruídoa
partirdofilmeAsprimeirasimagensdeBrasília(1957)deJeanManzon.Ofilmeevoca
amodernidadeemBrasíliacomoumcaminhoinequívocoaoprogresso,etambéma
relaçãoqueessepensamentoestabeleceucomocorpo-máquinae,porsuavez,como
corpofeminino.Oterceirocapítulo–Modernidade,contradiçãoecorpoprovisório
–éconstruídoapartirdofilmeBrasília,capitaldoséculo(1959)deGersonTavares.O
filmesurgecomoumaprovocaçãoàidéiademodernidadepropostanaprimeira
parte.Apesardotítuloprofético,ofilmeapontaparaascontradiçõesdoprojetode
modernidadedesdeocanteirodeobras,eabrecaminhosparaadiscussãodeum
processodifusoecontraditório,ondenovoearcaicoestãoemconstanteoposição.
Nessecontexto,ocorposurgecomoelementodesestabilizadordoidealmodernodo
corpo-máquina,umcorpoidentitário,vivo,arraigadoemsistemasdesignificação,
entreeles,ocorpofeminino,masqueviveemcondiçãoprovisória:apósconcluídaa
construção,aquelesqueofilmemostradeveriamsairdali.E,finalmente,oquarto
capítulo–Modernidadeecorpofeminino–éestruturadoapartirdedoisfilmes
contemporâneos:PoeiraeBatomnoPlanaltoCentral(2010),deTâniaFontenelee
TâniaQuaresma;eAsagadascandangasinvisíveis(2008),deDeniseCaputo.Osdois
filmesprocuramresgatar,pormeiodamemóriaoral,ahistóriadasmulheresdurante
aconstruçãodeBrasília.Aquipodemosenxergar,demaneiraretrospectiva,ostraços
dessecorpofemininodescritoporaquelasquedefatovivenciaramoprocessode
construçãodeBrasília.Epermitequefinalmentepossamosnosperguntar:comoo
projetodemodernidadequeBrasíliaevocadialogacomaimagemdocorpofeminino?
29
1. Cinema, o olho da modernidade
Omundodito“real”comoopercebemos,emnossarelaçãodiretaematerialcomele,
umavezmodificadopelacâmeraepeloolhardocineasta,ganhaumanovarealidadee
éassimpercebidopeloespectadornateladocinema.Essanova“realidade”
percebida,essenovomundoqueéofilme,apesardeencontrarsuportenesseespaço
“real”,aelesesobrepõe.Essaéaoperaçãobásicadocinema,queservecomopanode
fundoparaoseuentendimentocomomanifestaçãomoderna:umainteraçãoentre
homememáquinanaproduçãodesentido,transitandoconstantementena
ambiguidadeentrerealeficcional.
Essaafirmaçãodeautonomiadaimagemcinematográficaéprópriadoentendimento
doqueémodernonocinema.Asprimeirasmanifestaçõescinematográficas–aartede
captarimagenseprojetá-lasemgrandeformato–sãoconcomitantesàRevolução
Industrial.Portanto,ocinema–comoartequedependedamáquinaparaexistir–
nascecomoevoluçãotecnológicae,juntamentecomafotografia,sãomanifestações
artísticasdamodernidade.Poderiasedizerqueocinemajánascemoderno.
Noentanto,dentrodahistóriadocinema,écomumadivisãoentreocinemaclássicoe
ocinemamoderno.Opontoderupturahistóricaentreessesdoiscinemasseriaa
SegundaGuerraMundial,muitoemborajásepudessesentirmudançasaindano
períodoentre-guerras.Hánopós-guerradaEuropaumaeclosãodediversas
manifestaçõescinematográficasquepromovemimportantesrupturas,refletidas
tantonosfilmes,comonosmodosdeprodução:oneorrealismoitalianoreagecontraa
herançafascista,comumforteapelonacionalista,opondo-seàinvasãodocinema
americano,recusandoosestúdioselevandoseucinemaparaasruas,captadasem
planosabertosquebuscavammostrararealidadenaItáliadopós-guerra;anouvelle
vaguefrancesaafirmafortementeocinemadeautor,quebracomaclássicanarrativa
americana(início,meioefim)e,nasmãosdoscinegrafistas,câmeraspequenas
30
seguemosatorespelasruasdeParisemlongosplanos9sequência10.Essasduas
correntesserãodeterminantesparaoquesepassouaentendercomocinema
modernoemtodoomundo:afasta-sedaideiaclássicadocinemacomo
entretenimento,comodesvioparaummundodemagiaeilusão,ondeofinalfelizé
imperativo;paraafirmarumrealismocapazdeproduzirhistória,eatémesmode
reinventá-la.NaspalavrasdeItaloCalvino,
Nãoseiquantoocinemaitalianodopós-guerramudounossamaneiradeveromundo,mascomcertezamudounossavisãodocinema(dequalquerum,atémesmooamericano).Nãoexistiamaisummundonatelailuminadanasalaescurae,foradela,umoutro,heterogêneo,separadoporumaclaradescontinuidade,oceanoeabismo.Asalaescuradesaparecia,atelaeraumalentedeaumentoquefocalizavaocotidianodefora,obrigadaasefixarnaquilosobreoqueoolhonutendeapassarsemprestaratenção.(apudFABRIS,2012,p.217)
NessaafirmaçãodeÍtaloCalvinoestáoqueAndréBazin,umdosmaisimportantes
teóricosdocinemamoderno,consideravacomoessênciadessecinema:asua
capacidadede“revelarosentidoocultodosseresedascoisas,semquebrarsua
unidadenatural”(apudRANCIÈRE,2013,p.113).Portanto,oneorrealismoitaliano
estaria,naspalavrasdeRancière,completandoumaespéciedevocação“natural”do
cinemadesevoltarparaarealidade.
JacquesRancière,filósofofrancêsquevoltoupartedeseutrabalhoparaasquestões
docinema,constróiumcapítuloemseulivroAfábulacinematográfica(2013)em
tornodeumaperguntaprovocativa:existiriaumamodernidadecinematográfica?
TomandoDeleuzecomoumdosprincipaisteóricosdocinemamoderno,Rancièrevai
questionaradivisãoqueDeleuzepromoveentreaimagem-movimentoeaimagem-
tempo.ParaDeleuze,essasduasimagensestariamrelacionadas,respectivamente,ao
cinemaclássicoeaocinemamoderno,separadashistoricamentepelaSegundaGuerra
Mundial.
MasoqueseriamessasduasimagensdeDeleuze?Aimagem-movimento,segundoas
palavrasdeRancière,“seriaorganizadasegundoalógicadoesquemasensório-motor,
concebidacomoencadeamentonaturalcomoutrasimagens,numalógicadeconjunto
9Umplanoconsisteemumtrechodefilmerodadoiniterruptamente,limitadoporumenquadramento,equepodetantoserfixo–acâmeranãosemove–oumóvel–acâmerasemovimenta.10Planodemaiorduraçãoquecontemplaváriasações,semcortesentreelas.
31
análogaàqueladoencadeamentofinalizadodaspercepçõesedasações”.Jáaimagem-
tempo,“seriacaracterizadaporumarupturadessalógica,pelaaparição–exemplar
emRossellini11–desituaçõesóticasesonoraspurasquenãosetransformammais
emações”(RANCIÈRE,2013,p.113).Éimportanteressaltarque,paraDeleuze,não
háumahistóriageral,ouumahistóriadocinema:todooseupensamentogiraem
tornodeumahistórianatural.Portanto,eletrataasimagensapartirdesignos,desua
existênciaautônoma.ÉnessepontoqueRancièrebuscaasuacontradição:como,
dentrodalógicadeumahistórianaturalpoderiamdoiseventos,traduzidosem
imagens,seremseparadosporumcortehistórico–nocaso,aSegundaGuerra
Mundial?
SemapretensãodeadentrarouniversodeDeleuze,terrenoque,paraestetrabalho,
seriademasiadopantanoso,gostariadefocarnacríticadeRancière,mesmo
assumindooriscodeparecersimplista.ParaRancièrenãohádoistiposdeimagens
opostas,correspondendoaduaserasdocinema,massimdoispontosdevista
diferentessobreaimagemquetantopodemserpercebidasnocinemaconsiderado
clássicocomonocinemamoderno,equemanteriamumarelaçãoem“espiralinfinita”.
Oquediferenciaessesdoispontosdevistaseriaarelaçãoqueaimagem-movimento
estabelececomosacontecimentosdamatéria-imagem–aquiloqueéoperaçãoda
montagemcinematográfica,doencadeamentocausalentreumaimagemeoutra–ea
relaçãoqueaimagem-tempoestabelececomopensamento-imagem–aquiloque
percebemosdemaneiraautônomaemcadaimagem,comoexperiênciaquenão
dependedeumencadeamentocausal.
Noentanto,Rancièreadmitequehá,defato,umarupturahistóricapromovidapela
SegundaGuerra.
Hámesmoduaslógicasdaimagemquecorrespondemaduaserasdocinema.Entreasduas,háumacrise,identificável,daimagem-ação,umarupturadoelosensório-motor.EessacriseestáligadaàSegundaGuerraMundialeàapariçãoconcreta,nasruínasdaguerraenaafliçãodosvencidos,deespaçosdesconexosedepersonagensàsvoltascomsituaçõesdiantedasquaisrestamimpassíveis.(RANCIÈRE,2013,p.119)
11Cineastaitaliano.SeufilmeRoma,cidadeaberta(1947)étidocomoummarcoinicialdoneorrealismo.
32
Segundooautor,essarupturasedáemtermosdepassagemdeummodelo
representativoparaumamodernidadeartística,aqualelepreferesereferircomo
regimeestéticodaarte.Segundoomodelorepresentativo,“otrabalhodaarteé
pensadosegundoomodelodaformaativaqueseimpõeàmatériainertepara
submetê-loaosfinsderepresentação”.Jánoregimeestéticodaartea“imposição
voluntáriadeumaformaaumamatériaérecusada.Apotênciadaobraidentifica-se
comumaidentidadedoscontrários:identidadedoativoedopassivo,dopensamento
edonãopensamento,dointencionaledoinintencional”.
ParaRancière,ocinemaseriaaencarnaçãoliteraldessaunidadedoscontrários,a
uniãodoolhopassivoeautomáticodacâmeraedoolhoconscientedocineasta.
Éaartequerealizaaidentidadeprimeiradopensamentoedonãopensamentoquedefineaimagemmodernadaarteedopensamento.Mastambéméaartequeinverteosentidodessaidentidade,parareinstaurarocérebrohumanoemsuapretensãodesetornarocentrodomundoedecolocarascoisasàsuadisposição.Essadialéticafragiliza,deinício,qualquervontadededistinguir,portraçosdiscriminantes,doistiposdeimagens,edefixar,assim,umafronteiraqueseparaumcinemaclássicodeumcinemamoderno.(RANCIÈRE,2013,p.127)
Dessaforma,Rancièrereafirmaolugardocinemacomoartemodernaporexcelência,
emcontrapontoàrupturaestabelecidaporDeleuze.
Artemodernaporexcelência,ocinemaéaarteque,maisdoquequalqueroutra,sofreoconflitoouexperimentaacombinaçãodessasduaspoéticas.Combinaçãodeumolhardeartistaquedecideedeumolharmaquínicoqueregistra,combinaçãodeimagensconstruídasedeimagenssubmetidas,elefaz,geralmente,desseduplopoderummeroinstrumentodeilustraçãoaserviçodeumsucedâneodapoéticaclássica.Porém,tambéméaartequepodeelevaràsuamaisaltapotênciaoduplorecursodaimpressãomudaquefalaedamontagemquecalculaaspotênciasdesignificânciaeosvaloresdeverdade.(RANCIÈRE,2013,p.162)
***
Nestecapítuloprocurodeiníciolevantarquestõesteórico-metodológicas,situadas
nasinter-relaçõesentrerealeficcionalqueocinemaestabelece:Comoocinemapode
seruminstrumentodeproduçãodesentidosacercadomundo?Comoaconteceessa
construção,dopontodevistadequemrealizaofilmeetambémdequemovê?Como
admiti-loemsuaautonomia,emsuanovarealidade?Emseguida,partindoparauma
abordagemhistoriográfica,voubuscarcomosedesenhouessamodernidadeno
33
cinemabrasileiro,equeinter-relaçõeselapodeestabelecercomamodernidade
encampadaporBrasília.
Dessaforma,abroestecapítulocomquestõesquemotivaramaincorporaçãodo
cinemaaestetrabalho(Históriacomoficção,ficçãocomohistória).Emseguida,
adentroalgumasquestõesrelacionadasaocinemadocumentário,objetodeestudo
dessapesquisa,tendocomopanodefundoaambiguidadeentrerealeficcional(A
ficcionalidadedocinemadocumentário).Nasequência,procurolevantarbrevemente
episódiosdahistóriadocinemabrasileiro,quevãodelinearoentendimentodesua
própriamodernidade(ModernidadenocinemabrasileiroeCinemadecavação).E,por
fim,façoumbreveapanhadodosparalelosquesepodemestabelecerentreessa
produçãocinematográficaeaconstruçãodeBrasília(Ocinemanocanteirodeobras
deBrasília).
34
1.1. História como ficção, f icção como história
Aficção–sobsuasmodalidadesmíticas,literárias,científicasoumetafóricas–éumdiscursoquedáforma[“informe”]ao
real,semqualquerpretensãoderepresentá-loousercredenciadoporele.Destemodo,elaopõe-se,
fundamentalmente,aumahistoriografiaquesearticulasempreapartirdaambiçãodedizeroreal–e,portanto,a
partirdaimpossibilidadedeassumirplenamentesuaperda.
MicheldeCerteau,emHistóriaePsicanálise–entreciênciaeficção
Aprimeiraquestãoquesecolocaaopropormosoestudodeumanarrativa
audiovisual–ofilme–comoobjetivoderefletiracercadeumapretensarealidade
histórica–aconstruçãodeBrasília–éadecomosedáaintermediaçãoentreeles,
comoahistóriapodeserproblematizadaapartirdeumanarrativaque,mesmoque
seproponhadocumental,carregaemsiumaconstruçãoficcional.Portanto,antesde
maisnada,cabediscorrerumpoucoacercadessarelaçãoentrerealidadeeficção.Vou
buscaralgumastonalidadesdessadiscussãonotrabalhodohistoriador,tendocomo
impulsoasquestõeslevantadasporMicheldeCerteauemseulivroHistóriae
Psicanálise–entreciênciaeficção(2011).Conformepodesernotadonacitaçãono
iníciodestecapítulo,Certeauproblematizaarelaçãoentreciênciaeficçãonotrabalho
dohistoriador,e,porconseguinte,asrelaçõesdessascomaditarealidade.Cabe
ressaltarqueotrabalhodeCerteaunãoéaplicadodiretamenteàficção
cinematográfica,massimàconstruçãoficcionalcomoumaoperaçãocompositiva.
Aopercorreressecaminho,procuroaspossibilidadesdeseagregarocinemaaeste
trabalho,distanciando-medeumaabordagemsegundoaqualseriapossívelreduzi-lo
aunidadesestáveisaseremcombinadas–umprocedimentocientífico.Partodo
princípiodequeotrabalhohistoriográficoé,necessariamente,umaproduçãode
ficçõeseque,dessaforma,tomarumobjetodeestudoficcional–comoofilme–não
invalida,masreforçapráticasque,ameuver,sãoinerentesaoatodesecontaro
passado:aimaginação,ainterpretaçãoeafabulação.
OprimeirocapítulodolivrodeCerteau–Ahistória,ciênciaeficção–escrito
originalmenteem1983,seiniciacomaelucidaçãode“quatrofuncionamentos
possíveisdaficçãonodiscursodohistoriador”.Noprimeirodelesficçãoehistória,
35
Certeauexplicitaoembatedahistoriografiaocidentalcomaficção:estadeveriaser
negadanamedidaemqueahistóriasepretendeciênciaeerudita.Essanegação
provocaumdistanciamentodahistóriaemrelaçãoaoqueéfabular,eseocupaem
denunciaroserrospresentesnosmitos,naslendasdamemóriacoletivaouderivadas
dacirculaçãooral,parareafirmarseusacertoscientíficos.Osegundo,ficçãoe
realidade,é,emcertamedida,consequênciadoprimeiro:essaseparaçãoentre
científicoeficcionalconcedeàhistóriaumestatutoderealidade,enquantooseu
contrárioéposicionadosobosignodofalso,ouseja,onãofalsodeveseroreal,
fazendocrerassimqueháalgoverdadeiro.Enoterceiro,ficçãoeciência,constróia
hipótesedequeaciência,aorealizarcorrelaçõesentreunidadesdistintaseestáveis,
ouaofazerfuncionarhipótesesnoespaçodeumpassadoseutilizandoderegras
científicaspresentes,tambémestariaproduzindoficções.Eporfim,emaficçãoeo
limpo,Certeauretomaaacusaçãofeitacontraaficçãodequeestacareceriade
limpezacientífica.Eafirma:
Comefeito,ela(aficção)lidacomumaestratificaçãodesentido,relataumacoisaparaexprimiroutra,configura-seemumalinguagemdaqualextrai,indefinidamente,efeitosdesentidoquenãopodemsercircunscritos,nemcontrolados.Diferentementedoquesepassacomumalinguagemartificial–emprincípiounívoca–elanãotemespaçopróprio[propre].Elaé“metafórica”.Movimenta-se,imperceptível,nocampodooutro.(CERTEAU,2011,p.47–8)
Certeauvaiseguir“trêspistasdereflexão”afimdediscorreracercadessainter-
relaçãoentreciênciaeficção:asrelaçõesentrehistoriadoreasinstituiçõesque
determinamsuaprodução(oEstado,auniversidade,acorporação);asrelaçõesdo
mesmocomoaparatocientífico(ainformática,porexemplo);eaaglutinaçãodostrês
(historiador/instituição/aparato).Seguindoessaspistas,Certeauestáprocurando
mostrarque“épossívelconsiderarahistoriografiacomoumamisturadeciênciae
ficção,oucomoumlugaremquesereintroduzotempo”.
SementraremdetalhesdaexploraçãofeitaporCerteauenquantosegueessaspistas,
oquecaberessaltaréqueeleprocuradesconstruirqualquerpretensãodeexatidão,
nacorrespondênciacomarealidade,queahistoriografiapossater.Tantoas
instituiçõescomoosaparatostêmpapelativonaconstruçãohistoriográfica
impedindoqueessapossaseauto-afirmarisenta,verossímelecorrespondenteao
real.Asinstituiçõessãofiguraçõesdotempopresente,opoderatuantequeorganizao
36
trabalhohistoriográfico;oaparato(nocaso,ainformática)serve-sedeabstrações
matemáticaseestatísticasparaforjarumailusãodeconfiabilidadehistórica.A
exploraçãodeCerteaucirculanosentidodeevidenciaraimpossibilidadedeque
ciênciaeficçãopossamserdesvencilhadasnotrabalhohistoriográfico,e,por
conseguinte,qualquerpretensãodesesepararobjetoesujeito,razãoepaixão,
passadoepresente.
Paradevolveralegitimidadeàficçãoqueassombraocampodahistoriografia,convém“reconhecer”,emprimeirolugar,nodiscursolegitimadocomocientífico,orecalcadoqueassumiuaformade“literatura”.Asastúciasdodiscursocomopoder,afimdeutilizá-losemficaraseuserviço,asapariçõesdoobjetocomoatorfantásticonoprópriolugardo“sujeitodosaber”,asrepetiçõeseosretornosdotemposupostamentepassado,osdisfarcesdapaixãosobamáscaradeumarazão,etc.,tudoissodependedaficção,nosentido“literário”dotermo.Aficçãonemporissoéestranhaaoreal;pelocontrário,(...)odiscursofictitiousestámaispróximodorealqueodiscurso“objetivo”(OGDEN,1932).Mas,nestecaso,alógicaadotadaédiferentedaquelautilizadapelasciênciaspositivas.ElacomeçouafazeroretornocomFreud.Suaelucidaçãoseriaumadastarefasdahistoriografia.(CERTEAU,2011,p.68–9)
...odiscursohistoriográficoé,emsimesmo,comodiscurso,alutadeumarazãocomotempo,masumarazãoquenãorenunciaaoqueelaaindaéincapazderealizar,umarazãoemseumovimentoético;eleestaria,portanto,navanguardadasciênciascomoaficçãodoqueelasconseguemalcançardeformaparcial.Umaafirmaçãodecientificidadeorientaodiscursoque,emsimesmo,conjugaoexplicávelcomoqueaindapermaneceinexplicável;oqueserelataaíéumaficçãodaprópriaciência.(CERTEAU,2011,p.69–70)
EssainterfacesugeridaporCerteau,ameuver,abreosseguintesquestionamentos:
Emquemedidatemosproduzidotrabalhosacadêmicoscujapretensãodeveracidade
científicapodesercolapsadapelaficçãoimbuídaemsuaconstrução?Eassim,
assumindoaficçãoinerenteaoprocessodeconstruçãohistoriográfica,nãopoderiao
historiadorincorporaraoseutrabalhoobjetoslivresdaaparenteexatidãocientífica,
ouseja,objetosassumidamenteficcionais–comoaliteratura,ocinema?
37
1.2. A ficcionalidade do cinema documentário
Ocinemanascenaépocadagrandedesconfiançaemrelaçãoàshistórias,notempoemquesepensavaque
umaartenovaestavanascendoejánãocontavahistórias,nãodescreviaoespetáculodascoisas,não
apresentavaosestadosdealmadaspersonagens,masinscreviadiretamenteoprodutodopensamentono
movimentodasformas.Apareceuocinemaentãocomoaartemaisindicadapararealizartalsonho.“Ocinemaé
verdade;umahistóriaéumamentira”,disseJeanEpstein.
JacquesRanciére,emAsdistânciasdocinema
Areflexãoacercadasrelaçõesentrerealeficcionalacompanhaahistóriadopróprio
cinema.Aprópriadivisãoentrecinemadeficçãoecinemadocumentáriopassapor
diversasrevisões,provocandoumaconstantereavaliaçãoacercadopotencial
documentaldocinemadeficção,assimcomodaficcionalidadepresentenocinema
documentário.Osfilmesqueserãoincorporadosaestetrabalhosãoclassificados
comodocumentários,asuacâmeraobservadiretamenteobjetosemação,poisnãohá
umaconstruçãodramatúrgicacomatoresediálogosestabelecidosemumroteiro,
muitoemboranãosepossanegarqueháaliumaencenação.Portanto,apenaspara
efeitodecondução,adotoaabordagemhistóricamaisampladocinema
documentário,admitindoaficcionalidadepresentenestegênero.
Autordamaisantigafotografiaconhecida–datadade1826–,ofrancêsNicéphore
Niepce,denominavadepontodevistaasfotosquetirava.Nascidadavontadede
representaçãodarealidade,aliadaàsinvençõestecnológicas,afotografiaestática
logoevoluiparaafotografiaemmovimento,eem1895osIrmãosLumièreregistram
oprimeirocinematógrafo(inventado,naverdade,porLéonBouly,em1892).No
mesmoanoexibemAchegadadotremàestaçãodeCiotat,comumenteconhecido
comooprimeirofilmedahistóriadahumanidade,masquefoiexibidonamesma
sessãojuntamentecommais10filmescurtos,dentreeles,Asaídadosoperáriosda
fábricaLumière.Comapenascercade50segundos,ofilmeconsisteemapenasum
planofixoqueregistraachegadadeumtremàestação.Durantesuaexibição,conta-
seque,aoteraimpressãodequeotremavançavaemdireçãoàplateia,muitas
38
pessoasfugiramparaofundodasala.Ocinemanasce,portanto,documental;ea
ficçãoinerenteaelejápodeserpercebidapelareaçãodaplateia.
Aindaem1895,Felix-LouisRegnault,antropólogofrancês,registroupor
cronofotografia12“umamulherafricanafabricandoumpotedebarro,trêsafricanos
ajoelhadosemposiçãoderepousoeumafricanosubindoemumaárvore”(PEIXOTO,
1999,p.92).Essasforamasprimeirasexperiênciasdousodeimagensemtrabalhos
científicoseRegnaultestavaempenhadoemmostrarasuautilidadeparaa
etnografia.Comenfoquenafisiologiahumana,seutilizavadessasimagenspara
estudosteóricossobreastécnicasdemovimentodocorpo.
Sóocinemapoderáfornecer,emabundância,documentosobjetivos;graçasaele,oantropologista[termodoautor]pode,hoje,colecionaravidadetodosospovos,guardandoemsuagavetatodososatosespecíficosdasdiversasraças.(REGNAULTapudPEIXOTO,1999,p.92)
NoentendimentodeRegnault,naquelemomento,omaterialfilmadoeraumdado
objetivoparaapesquisaetnográfica.Muitosantropólogospassamaseutilizarda
imagem–tantoemmovimentocomoestática–empesquisasdecampo:eraoperíodo
dasgrandesexpediçõescientíficasetambémdaexpansãocolonialistaeuropeia.O
documentárioetnográficopassaaseruminstrumentofascinanteparaacaptaçãoda
imagemdooutro,efoimuitoutilizadocomoummeiodeglorificaressasexpedições.
Foiumperíododedisseminaçãododocumentário,principalmenteapartirdas
décadasde20e30doséculoXX.
Odebateacercadaobjetividadedodocumentárioetnográficosomentecomeçaase
intensificarapartirdasdécadasde50e60,estimulado,principalmente,pela
diversidadedeexperiênciasaudiovisuaisquecomeçavamaaparecer.Porexemplo,
em1966,WortheAdairensinaramtécnicasdefilmagemaumgrupodeNavajopara
queregistrassemseuprópriomododevida.Aoassistiremconjuntamenteomaterial,
eraperceptíveladiferençaentreomaterialcaptadopelospesquisadoresdaquele
captadoporelesmesmos.Daíareflexãodequenãoháobjetividadenaimagem
captada:elarepresentasempreumapercepçãoparticulardooperadordacâmera.
12Técnicapormeiodaqualsãotiradassucessivasfotografias,aintervalosdetempouniforme,equedãoailusãodemovimento.OfuzilcronofotográficofoiinventadopelofrancêsÉtienne-JulesMareyem1882,eeracapazdetirar12fotografiasporsegundo.
39
Étempodeconcluirque,deumamaneirageral,acâmaranãopodeserconsideradacomoumobservadorsociológicoobjetivo,imparcial.Éinútilcontinuaramultiplicarasexigênciasdenão-intervenção;évãosonharcomumacâmarainvisívelqueregistraráofatosocialemseuestadonu,nasuapurezaesuaespontaneidadeoriginal.(DeHeusch,1962,p.25;apudPEIXOTO,1999,p.102)
NocinemadaUniãoSoviética,DzigaVertovremexeuaspremissasdodocumentário,
personalizandoacâmeracomoobjetointegradoaocorpodocineastaeaopróprio
filme.EmThemanwiththemoviecamera(1929)sãomuitasasvezesemquevemoso
cineastaesuacâmerarefletidosemimagensdoprópriofilme.Éoolho-máquinaque
vêarealidade,e,aosecolocartambémcomomatériafilmante,negaarelação
distantecâmera/objeto,paratorná-losumacoisasó.SegundoJacquesRanciére,
EssaonipresençadacâmeraedocameramaneraapresençadoolhoqueregistraarealidadeparaDzigaVertov,cujocinemaefetivamenteafirmaumaposiçãofundamental:arecusadaficção,arecusadaartequecontahistórias.ParaDzigaVertov,comoparaJeanEpsteinemuitosdeseuscontemporâneos,ocinemaseopõeàshistóriascomoaverdadeàmentira.Paraeles,ovisíveljánãoéasededasilusõessensíveisqueaverdadedevedissipar;éolugardemanifestaçãodasenergiaseconstituemaverdadedeummundo.(RANCIÈRE,2012,p.39)
JeanRouch,cineastaeetnólogofrancês,vailevaraextremosadefiniçãodeVertovda
câmera-olho,ocinema-órgão,amáquinaqueseintegraaocorpoque,aoproduzir
umarelação,constróiumconhecimento.Rouchinstituioconceitodecine-transe,no
qualevocaaparticipaçãofísico-corporaldaquelequefilmanaproduçãodessarelação
comooutro,umatentativadedissolverarelaçãosujeito/objetonaconstruçãode
umaetnografiaoudeumfilme.E,principalmente,reforçaaalteridadeinerenteaoato
defilmar,ondeumfilme,assimcomoaprópriaetnografia,ésempreresultadodeuma
relaçãoentrequemfilmaequeméfilmado.“Oqueimportanãoétantoomundo
dado,arealidade,ouogestodocumental,massimarelaçãoqueengendra,porsua
vez,aprópriafilmagem”(GONÇALVES,2009,p.36).Sendoaimagemproduzidaa
partirdeumarelação,dissolve-seailusãodequeocinemaseriaumarepresentação
doreal.Aimagemproduzidaapartirdaíseriafalsa,secontrapostaaoquese
considerareal.Rouchvaiexploraroqueeleauto-intitulapotênciadofalsona
construçãodeumaetnografiaqueconsideraosváriospontosdevistaenvolvidos,
incorporandoaimaginaçãoeafabulaçãocomoevidências,einvertendoodiscurso
etnográficonaconstruçãodanarrativacinematográficadocumental.Paraele,o
importanteéseestarimbuídodeumespíritoinerenteàconstruçãodeumfilme,
40
assumindoqueimaginarasrelaçõescomosoutrosecomoespaçotambémfazparte
daconstruçãodoquechamamosrealidade.
EsseconceitolevadoaextremoporJeanRouchtestavaoslimitesentreobjetividadee
subjetividade,entredocumentárioeficção.AoolharparaRouchestamosolhando
tambémparaasquestõesdocinemacomoumtodo:oembateentrerealidadeeficção
éinerenteaoatodefilmar.Aonosutilizarmosdeimagensesons,dequalquer
natureza,pararefletiracercadomundo,estamoscolocandodeantemãoessaquestão.
QuandoRouchfalaemcine-transeelejáviveuaexperiênciadeOsmestresloucos13,e
osrituaisdepossessãosãofundamentaisparaessadefinição:umritodepossessãoé
umateatralizaçãodovivido.Equemhádedizerquenãoéreal?Nessesentido,seo
cinemapodeserumtranse,eleéumaficcionalizaçãodavidaque,assimcomooutras,
tambémcompõeoquechamamosderealidade.
Numadiscussãomaisrecente,odocumentaristaecríticodecinemaJeanLouis-
Comollipõeemquestãoodestinodocinemaemummundosaturadopor
representaçõesesimulaçõesdarealidade.EmseulivroVerePoder,ainocência
perdida:cinema,televisão,ficçãoedocumentário(2008),Comolliofereceumasíntese
interessanteacercadarealidade,nãosomenteimpressanocinema,mastambémpor
todamanifestaçãoqueparticipadadescriçãodomundo.
Umdepoimento,umapalavra,umdocumentoeapróprianarrativapodemremeterafatos,aelessereferirecomelesestabelecerrelações;contudo,delesseseparampormeiodaelaboraçãoque,aindaquedigarespeitoaofato,oreconfiguraemformasquenãosãomaisasdele.(...)Ocinemanasceudocumentárioedeleextraiuseusprimeirospoderes(Lumiére).Oqueoaproximadojornalismoéofatodequeeleserefereaomundodosacontecimentos,dosfatos,dasrelações,elaborando,apartirdelesoucomeles,asnarrativasfilmadas;eaquiloqueoseparadojornalismoéofatodequeelenãodissimula,nãonega,masaocontrário,afirmaoseugesto,queéodereescreverosacontecimentos,assituações,osfatos,asrelaçõesemformadenarrativas,portanto,odereescreveromundo,masdopontodevistadeumsujeito,escrituraaquieagora,narrativaprecáriaefragmentária,narrativaconfessaequefazdessaconfissãoseupróprioprincípio.(COMOLLI,2008,p.173–4)
13Osmestresloucos(Títulooriginal:LesMaîtresFous),éumdocumentáriodeJeanRouch,realizadoem1955,noqualocineastaregistraumritualhaouka,praticadoportrabalhadoresnigeriensesreunidosemAccra,naCostadoOuroafricana.OritodepossessãoporelespraticadoreproduzpersonificaçõesemblemáticasdadominaçãocolonialeuropeianaÁfrica.Oconceitodecine-transefoiinstituídoporJeanRouchapartirdessaexperiência,emalusãoaoritodepossessão:acâmeraparticipadoqueéfilmado,étransformadapeloqueobserva.Observadoreobservadoparticipamdeummesmotranse.
41
Comolliconsideraquetododocumentárioérealizadosoboriscodoreal,assumindo,
portanto,suafragilidadediantedaditarealidade,assimcomodesuabarreiracoma
ficção:“todofilmedeficçãocomportaumviésdocumentário:oscorposdosatores
sãosemprefilmadossoboregimedeinscriçãoverdadeira14”.
Segundoele,ocorpofilmadoatingeumapotênciadeconvicção,umabeleza,queo
corponãofilmadonãoconhece.Éapartirdoscorposqueocinemafilmaapassagem
dotempo,eésobreorealismodasrepresentaçõesdafigurahumanaqueocinema
constróiseusestilos,realistasounão.Comolliarriscadizerquetalvezhojenãohaja
corpopossívelanãosernocinema.Ocorpo,aosecolocaremcena,trazconsigotudo
oqueaexperiênciadevidanelesterámodelado,“algumacoisadacomplexidadeeda
opacidadedassociedadesealgumacoisadaexceçãoirremediáveldeumavida”.
Comolliafirmatambémqueacidaderealaospoucosestásendosubstituídapela
cidadefilmada.Aabordagemdacidadepelocinemaédiferentedaqueladospoderes
públicos,quetentamcontrolá-la:osfilmeslevamemcontaotempodasuahistóriae
doseuesquecimento.Filmaracidadesignificaconhecerseusmistérios,ocinema
absorveerevelaosseusvestígios,
...asvidasquepassaramporaí,oscorpos,aspalavras,asnarrativas,todoumemaranhadodeencontrostãointensivamentevividosquantorapidamenteperdidos.Filmada,acidadesetornatexto,hipertexto,emesmo,simultaneamente,coletâneadetodasashistóriaspossíveisnascidadeseléxicodetodasaspalavrastrocadas.Cidadecomocorpusdoscorposerededossignos.Sequênciaderelações(nosdoissentidos,deligarerelatar)quenãosãovisíveis:digamosqueocinemanosconfrontacomaquiloque,decadacidadefilmada,justamentenãosereduzasuadimensãovisível.(COMOLLI,2008,p.180)
Commolidesconstróiaideiadeque,aoproduzirmosumdocumentário,estaríamos
retratandooreal,talcomoelenosémostradoemnossarelaçãodiretacomele.Como
produtoresdeimagemestaríamos,necessariamente,eporintermédiodacâmera,
estabelecendorelaçõesficcionaiscomaquiloquefilmamos.
Comoselivrardapositividadedomundo?Éaquestãoquepraticamentesóocinematrabalha,justamenteporqueeleestáemconcorrênciacomomundo.Comonãoselivrardessasupostanaturezapositivadocinema?Comonãoentenderque,longedefilmara-realidade-tal-como-ela-se-dá,o
14O cineasta Jean-Luc Godard, por exemplo, considera que seu filme (de ficção) O desprezo é umdocumentáriosobreocorpodaatrizBrigitteBardot.
42
cinemasópodeapreendê-lacomoacumulaçãoderelações,amaiorpartedelasabstratasounãorepresentáveis,nãovisíveis,nãomostráveis?Comoconcebercinematograficamenteumarealidadequenãoseriaaqueladossistemasderelaçõesabstratoseinvisíveistãooumaisvisíveis?Colocaremcenanãoseriacolocaremdúvidaovisível,equegestopositivohaveriaseocinemanuncasecolocassenovisível?Comofilmarhojesemexcederovisível,sematravessar,nopresente,todoumembaraçomidiático,umaacumulaçãoloucadeimagens,derepresentações,defiltros,detelas,tudooquefazcomqueomundonuncamaissedarátalcomofoi,ouquetalveznuncatenhasido,porqueelesópoderesultardasomadasrelaçõesdeforçaedesejoqueoescrevemsegundoapóssegundo.Namedidaemqueamise-en-scèneaomesmotempodescartaeincluiessasrepresentações,asretorna,astecedenovo,ocinemabrincacomessaduplicidade,comessefundoduplo,comessefurta-cordomundo.(COMOLLI,2008,p.79–80)
Apartirdessasreflexõessecolocaaseguintepossibilidade:ocinemapodeentão
colocaremevidênciarelaçõesinvisíveisaomundo“real”?Podemosfilmes
produzidosacercadaconstruçãodeBrasílianosfornecer,atravésdeseus
dispositivoscinematográficosdocumentaiseficcionais,umaleituradeumcorpo
femininoemrelaçãocomamodernidade?
Caberessaltartambémoquãoimportanteéteremmenteadiscussãopropostapor
Certeauaoolharmosparaahistoriografiaeparaafilmografia“oficial”produzida
acercadaconstruçãodeBrasílianosprimeirosanosdaconstruçãoeexistênciada
cidade,aoobservarcomoseusdispositivospretensamenteobjetivosconstruíram
heróisficcionaisdagrandeempreitadamodernizadoraemodernistaquefoiBrasília.
43
1.3. Modernidade no cinema brasileiro
Jean-ClaudeBernardetescreve,em1967,Brasilemtempodecinema:ensaiosobreo
cinemabrasileiro,livronoqualdiscorreacercadaproduçãocinematográfica
brasileira,contemporâneaàépoca,entreosanosde1958e1966.Bernardetéum
críticobelgafilhodefamíliafrancesa,veioparaoBrasilem1949,quandotinhaainda
13anos,efoinaturalizadoem1964.ChegaaBrasíliaem1965,comobolsistadepós-
graduaçãoe,juntocomPauloEmílioSallesGomes,NelsonPereiradosSantoseLucila
RibeiroBernardet–suacompanheira–integraogrupoquedeucorpoaocursode
CinemadaUniversidadedeBrasília,partedaFaculdadedeComunicaçãodeMassas,
idealizadapelojornalistaPompeudeSouza.Olivroconsisteempartedesua
dissertaçãodemestrado,interrompidajuntocomoprópriocursodeCinema,
desmanteladoapósoGolpeMilitarde1964,comademissãovoluntáriaecoletivade
professoresemoutubrode1965.Bernardetéconsideradoumdosprincipaiscríticos
eteóricosdocinemabrasileiro,esuapublicaçãode67,umaimportantereferência
acercadeummomentonoqualocinemapassavaporumcicloimportantede
renovação,quevaiculminarnasprincipaiscorrentesdocinemamodernonacional:o
CinemaNovoeoCinemaMarginal.
SegundoprefáciodePauloEmílio,“aprincipaldescobertadeJean-ClaudeBernardet
nasceudeduasdeliberações:encararomodernocinemabrasileirocomoumtodo
orgânicoeprocuraramaisvariadaassociaçãocomotemponacional
correspondente.”(BERNARDET,1978,p.9)Equetempoeraesse?Paraentendê-lo,é
precisovoltarumpoucoaosprimeirospassosdaproduçãocinematográficadoBrasil.
Até1910,aproduçãonacionalseresumiaacercade100filmesporano.Osprimeiros
filmesbrasileirosforamproduzidosentre1897e1898,econsistiambasicamenteem
documentaçõesdefatoscotidianosdoRiodeJaneiro.FlávioMoreiradaCosta,no
textoIntroduçãoao(novo)CinemaBrasileiro,noschamaatençãoparaumconjuntode
filmesdeficçãoproduzidos,noiníciodoséculo,porpequenosproprietáriosdesalas
decinema.Osfilmesfaziamreconstituiçõesdecrimesurbanosjáexploradospela
44
imprensa,epodemconstituir,mesmoqueinconscientemente,numaprimeira
tentativanacionaldefilmesdegênero,inspiradaemfilmespoliciaisamericanos.15
Aprimeiraexibiçãodecinemanopaísaconteceem08dejulhode1896,noRiode
Janeiro,iniciativadeumexibidoritinerante,obelgaHenriPalillie.Em1897jáexistia
umasaladecinemanoRio,oSalãodenovidadesParis,dePaschoalSegreto,masa
estruturaçãodeummercadoexibidorsócomeçaaacontecerapartirde1907,noRio
eemSãoPaulo.ApesardejáseproduziremfilmesnoBrasil,eramexibidosnessas
salasprincipalmentefilmesdecompanhiasestrangeiras:aPathéeGaumont
(francesa),aNordisk(dinamarquesa),aCines(italiana),aBioskop(alemã)eaEdison,
VitagrapheaBiograph(americanas).ApósaPrimeiraGuerra,eoenfraquecimentoda
produçãoeuropeia,osfilmesamericanoscomeçamadominaromercadomundial.No
Brasil,aredenacionaldeexibiçãocriadaporFranciscoSerrador–aCompanhia
CinematográficaBrasileira–éasuaprincipaldifusorae,apesardecarregara
nacionalidadeemseunome,exibiaapenasfilmesestrangeiros.
Apartirde1930,inicia-senoBrasiloquepodemosconsiderarcomooprocessode
suarevoluçãoindustrial.GetúlioVargasassumeapresidência,enelasemantém
durante15anos,pormeiodesucessivosgolpesdeestado–inclusiveaquelequecria
oEstadoNovoem1937–instituindoummodelodegovernançanoqualoEstado
intervémdiretaeincisivamentenaeconomiadopaís.Aindustrializaçãodominao
tomdessasintervenções:grandesempresasestataissãocriadasnesteperíodo,como
aValedoRioDoceeaCompanhiaSiderúrgicaNacional.
OpaíspassaentãoasereinventarnaEraVargas.OBrasilquecomeçaaficarparatrás
éumpaíssemtradiçãoindustrial,etambémsemtradiçãocinematográfica.No
entanto,nãosepodeafirmarqueháum“surto”deproduçãocinematográficaapartir
15Sãoalgunsexemplos:OsEstranguladoresdeFranciscoMarzullo(1908)–commaisde800exibiçõesnoRiodeJaneiro;OCrimedaMaladeFranciscoSerrador(1908);OCrimedosBanhadosdeFranciscoSantos(1914);eNoivadodeSangue,deAntonnioLeal(1909).Realizavam-setambémfilmesmusicais,queforamsucessodebilheteria,comoPazeamor(1910),umarevistamusicalquesatirizaogovernodeNiloPeçanha,comroteirodeJosédoPatrocínioedireçãodeAlbertoMoreira;OGuarany(1911),deSalvatoreLazzaro,reproduzindotrechosdaóperadeCarlosGomeseARepúblicaportuguesaouCincodeoutubro(1911),comroteirodeDomingosMargarinosedireçãodeAlbertoMoreira,todosproduzidosnoRiodeJaneiro.
45
de30,queacompanheacrescenteindustrializaçãodopaís,assimcomofoiocasonos
EstadosUnidoscomosfilmesdewestern,tradiçãocinematográficaqueseinicia
juntamentecomosurtoindustrialamericanodoiníciodoséculo.
SegundoBernardet,ahistóriadaproduçãocinematográficanoBrasilécaracterizada
porumasériede“surtos”ou“ciclos”enãopermitiamumaleitura“emlinhareta”,
oscilandoemváriospontosdopaís.Nosanosqueprecederamadécadade1930,
aconteceramalgunspequenos“surtos”deproduçõesregionais:Recife,de1924a
1931;Campinas,de1923a1926;eCataguases/MG,de1925a1929,deondesaiu
HumbertoMauro,primeirocineastabrasileiroarealizaroquesepodeconsiderarum
cinemadeautor.
HumbertoMauroiniciasuaproduçãoemCataguasesapartirde1925,realizando
cercadeumfilmeporanoouumacadadoisanos.Ocinema,grandeausenteda
SemanadeArteModernade1922,poderiatersidorepresentadoporHumberto
Mauro,queacompanhaasuarepercussãopormeiodarevistaVerde,emCataguases.
Hánaproduçãodocineastaostraçosdeumamodernidadecaracterizadapela
descobertadaspossibilidadesdaculturabrasileira,quemarcoutambémaSemanade
22.OqueapareceprecocementeemHumbertoMauro,comocasoisolado,éaquilo
quevaiconstituirosaspectosfundadoresdoCinemaNovo:umcinemabrasileiroque
faledoBrasile,principalmente,deummodobrasileirodefazercinema.Mauro
realizavaseusfilmesserevezandoemváriasfunções,fugindoaosesquemas
industriaisdeproduçãoedeestúdios:filmaoBrasilmineirodeCataguases–muito
emboradepoismude-separaoRio,onderealizaGangaBruta(1933),umdos
clássicosdesuaprodução.
HumbertoMauroinaugura,portanto,ocinemadeautornoBrasil.Suaobrafoi
marginalizada,epermaneceupraticamentedesconhecidapormuitotempo,tendosua
primeiratentativaderecuperaçãoapartirde1954,narealizaçãoda1aMostra
RetrospectivadoCinemaBrasileiroemSãoPaulo.GlauberRocha,emdeclaraçãoao
SuplementoDominicaldoJornalBrasil,vaiescreverque“nomomento,apolíticamais
eficienteéestudarMauroenesseprocessorepensarocinemabrasileiro,nãoem
fórmulasdeindústria,masemtermosdofilmecomoexpressãodohomem”.(COSTA,
1966,p.186)
46
OqueaparecedesignificativonahistóriadocinemaentreHumbertoMauroeo
CinemaNovoéacriaçãodaCompanhiaVeraCruz:tentativadeindustrializara
produçãocinematográficabrasileira.Criadaem1949peloitalianoFrancoZampari,
emSãoBernardodoCampo,suaprincipaldiretrizfoiignoraroqueexistiaatéentão
emtermosdecinemabrasileiro,ecomeçartudodenovo:produçãodefilmesem
massa,natentativadeelevarocinemaaumaindústriapotente.Foicriadanamesma
épocadoTeatroBrasileirodeComédiaedoMuseudeArteModernadeSãoPaulo:
trêsempreendimentosambiciososquebuscavamreagircontraumcomplexode
inferioridadecoletivo.Acompanhiamanteve-seativaduranteapenas4anos,
produzindo17longase02curtas,com35projetosnãorealizados.
Nessatentativadeindustrializaçãodaproduçãocinematográfica,outrascompanhias
foramcriadas,alémdaVeraCruz:Maristela,MultifilmseaAtlântidaCinematográfica.
Estaúltimaéresponsávelpelaeclosãodaschanchadas,gênerodecomédia
estereotipadaque,apostandonosucessodeídolosdorádio–comoOscaritoeGrande
Otelo–,incorporavalongassequênciasmusicaisaoseuformato,alcançandoum
grandesucessodepúblicoentreasdécadasde40einíciode60.Muitoscineastasque
maistardedespontaramcomoíconesdoCinemaNovoproduziramchanchadas–éo
casodeRobertoFarias(UmcandangonaBelacap,1961)edeNelsonPereirados
Santos(Bocadeouro,1963).
Emmeioatodaessamovimentação–tantonapolíticadeindustrializaçãonacional,
comonasprimeirastentativasdecinema–haviaumaforteconsciênciadeatrasodo
país,acompanhadadeumatentativadesairdele.SegundoIsmailXavier,
Aconsciênciaamenadoatraso,correlataàideiade“paísdofuturo”,tevevigênciaatéaSegundaGuerraeestavaassociadaaumnacionalismoufanistaeornamental,deeliteoupopular;aconsciênciacatastróficadoatraso,correlataàideiadepaíssubdesenvolvidoquepedemudançasnaestruturaeconômica,urgentesmedidaspráticasparasuperaramiséria,ganhouforçadepoisdaSegundaGuerraMundialesetornoumaisnítidaapartirdosanos50.(XAVIER,2001,p.26)
Eéapartirdadécadade50quepodemoscomeçaradesenharumpanoramadoque
defatoseconsolidoucomoumcinemamodernonoBrasil.Édesseperíodoquetrata
olivrodeBernardet,quejásuspeitavaepreconizavaoiníciodeumimportanteciclo
47
deafirmaçãodocinemanacional,nãolivredadesconfiançadequepoderiasetratar
deapenasmaisumdos“surtos”queacompanharamasuahistóriaatéentão.
Em1954,NelsonPereiradosSantosapresentaofilmeRio40o,marcanteporiniciaras
preocupaçõesdeumanovageraçãodecineastasbrasileiros,principalmentenoque
tangedoisaspectosfundamentais:seumododeproduçãoindependenteeoconteúdo
relacionadoàtemáticasocial.Cineastascirculamentrecineclubesecinematecasno
Rio,SãoPaulo,BeloHorizonte,SalvadorePortoAlegre,assistemediscutemfilmes
produzidosnaEuropadopós-guerra:Rossellini,DeSicaeVisconti,representantesdo
neorrealismoitaliano;Resnais,TruffauteGodard,anouvellevaguefrancesa.
Paralelamente,nasceumgrandemovimentodecrítica:essescineastaspassama
escreverconstantementeemsuplementosliteráriosecolunasjornalísticas.Maisdo
queumexercíciodeerudiçãodacrítica,essamovimentaçãoemtornodostextose
cineclubestraçavaasprimeiraspistasparaquearealizaçãocinematográfica
brasileirabuscasseseuspróprioscaminhoscomocinemamoderno.
Essescineastas,partedeumaclassemédiaintelectualizada–GlauberRocha,Leon
Hirszman,NelsonPereiradosSantos,apenasparacitaralguns–,procuravamesboçar
umaproblematizaçãodamodernidadebrasileira.Eraprecisoreagircontraaherança
colonialista,queimplicavaemumaculturafortementemarcadapelainfluência
estrangeirae,emcontraponto,olharparaaculturabrasileiraapartirdesuas
manifestaçõespróprias.Certaspráticasnacionais–ofutebol,areligião,asfestas
populares–queeramvistas,demodogeral,comopráticas“alienantes”,deveriamser
consideradasapartirdesuascondiçõesintrínsecas,questionandoumamodernização
quetendea,digamosassim,superá-las.Noentanto,nãosetratavadeumolharque
preconizavaumestadode“purezapré-industrial”emrelaçãoaoBrasilesuahistória,
massim,deseutilizardamemóriacomoumestadodemediação,afimdeconstituir
umnovoestadodeconsciênciamoderno.Porumoutrolado,noquetangeomodode
produçãocinematográfica,tratava-sedereagiraosprocessosindustriaisdeprodução
ebuscar,nocinemadeautor,ummododeexpressãopormeiodoqualsepudesse
manifestarasquestõespolíticasesociaisqueinquietavamessescineastas.
Adécadade60seconstituicomooperíodoondeaproduçãodoCinemaNovocomeça
arefletiressaspreocupaçõesetentativasdeafirmação.Emfilmesmarcadosporuma
48
forteinfluênciadoneorrealismoitalianoedanouvellevaguefrancesa,eraimportante
narraraexistênciadohomemedamulherbrasileirosemdiálogocomascondições
sociais,seusmitoseimaginários.Háumforteimpactoprovocadoporalguns
documentárioscomoAruanda(1960)doparaibanoLinduarteNoronha.EmAruanda,
umafugadeescravoséencenadaporcamponesesparaibanos,paradaídocumentar
umquilombonaSerradoTalhado.SegundoBernardet,“ofilmenãoselimitaa
mostrarflagrantesdeumavidaatrasada,maspretendeapresentarosmecanismos
dessavida”(BERNARDET,1978,p.26).Eainda,ofilmedeNoronha,emsua
simplicidade,apontavaparaumcaminhopormeiodoqualerapossívelrealizar
filmessemquesetivesseummercadoexibidorconsolidado,esemacessoagrandes
investimentosparaarealização:preconizaamáximadoCinemaNovoumacâmerana
mão,umaideianacabeça,cunhadamaistardeporGlauberRocha.Aindasobreofilme
deNoronha,Bernardetexplicitaquenãosetratavasomentede“filmaruma
realidade”,masdeassumirocinemacomoconstruçãonarrativaepoéticadiantedela:
Noronhanãoétímidodiantedarealidade:nãoreceiatorná-lamaiscompreensívelatravésdeumesquemaabstrato,ouevocarcomhomensatuaisumacontecimentodoséculopassado,oudistorcerumpoucooritmodeumamúsica.Emborapreocupadoemrealizarotrabalhodecunhosociológicoeantropológicoantesdemaisnada,Noronhafeztambémumfilmepoéticoemtornodalibertação,afugadosescravoseacriaçãodePalmares.(BERNARDET,1978,p.26)
Ocinemamodernobrasileirovaisedelinear,portanto,apartirdesseolharparao
Brasildemodoqueseuscontrastesvitaisdepaíssubdesenvolvido–etodasas
implicaçõesqueessacondiçãovaiteremsuasdinâmicassociais–estejam
evidenciados,edaíaimportânciadainfluênciadoneorrealismoitaliano.Mas
também,pelomenosnesseinício,setratavadeolharparaofuturodocinema(edo
país)comumforteotimismo,haviaumaconsciênciadequeolharparaopassado
faziapartedomovimentodedelinearumnovofuturo.
Aintençãoprincipalera,deperspectivashistóricas,discutirarealidadeemseusdiversosaspectos–social,políticoecultural.Demodomaisoumenosexplícito,osfilmesdoCinemaNovo,emparticularosprimeiroslongas-metragensdoseunúcleofundador,apresentamumpanoramaricoediversificadodahistóriabrasileira,desdeoperíodocolonialescravistadoséculoXVIIatéasmudançasdecomportamentonasgrandescidades,sobretudonasegundametadedadécadade1960.Alémdisso,osjovenscineastasacreditavamque,aorealizaremseusfilmes,tambémescreveriamumnovocapítulonahistóriadoBrasil.(CARVALHO,MARIADOSOCORRO,2012,p.291–292)
49
Odiscursodoscinemanovistasnoiníciodosanos60eraentãomarcadoporessaforte
ideiadeliberaçãonacional,discursoqueemergianocinemaemmeioaogoverno
populistadeJuscelinoKubitschek.SegundoIsmailXavier,haviaaíumacongruência
entreopensamentoculturaleotempohistóriconoqualacontecia.
Eficientenaescolhadeum“mododeprodução”factívelelúcidaemsuasopçõesestéticas,anovageraçãodesenhouoprojetopolíticodeumaculturaaudiovisualcríticaeconscientizadoraquandoonacional-populismopareciaaindaumaalternativaviávelparaconduzirasreformasdeestruturadopaísapoiadopelamilitânciasindicalepelospartidosdeesquerda.Nestemomento,falouavozdointelectualmilitantemaisdoqueadoprofissionaldecinema–foiomomentodequestionaromitodatécnicaedaburocraciadaproduçãoemnomedaliberdadedecriaçãoedomergulhonaatualidade.(XAVIER,2001,p.27–28)
OqueacontecenesseperíodoinicialdoCinemaNovo,naspalavrasdocrítico,éuma
descobertadoBrasil,tendoemvistaqueocinemacomeçaaolharparalugarese
momentoshistóricospouquíssimoregistradosounarrados.JáapartirdoGolpede
1964,oCinemaNovotomaumnovocaminho:filmestornam-seoposição,resistência
ecríticaaosistemavigenteetambémaopopulismoanterioraogolpe.
50
1.4. Cinema de cavação
OCinemaNovosurge,portanto,comomarcodocinemamodernobrasileiro,aliado
aosmovimentosmodernistasnaarte,oquepodedaraimpressãodequeeleéo
espelhodenossamodernidade.Estefatoéinquestionavelmenteverdadeiro.Mashá
traçosdanossamodernidade–sobretudo,denossamodernização–quesóumtipo
decinemapodemostrar,principalmentenesseperíodocompreendidoentreadécada
de30eaconstruçãodeBrasília:ocinemadecavação.
Diantedadificuldadeemencontrarmercadoexibidorparafilmesnacionais,essetipo
deproduçãoinicia-seem1913:cineastaseramcontratadospararealizarbreves
documentáriosqueenalteciamrealizaçõesdefazendeiros,industriaisepolíticos.O
nomecavaçãofoialudidopejorativamenteaooportunismodessaprodução.Se
iniciavaaíatradiçãodoscinejornais,cujaproduçãoservirá,durantemuitasdécadas,
comosustentoaoscineastas,que,inclusive,reaplicavamessedinheiroemsuas
produçõesindependentes.OitalianoGilbertoRossi,quechegaaoBrasilem1911,foi
oprecursordessacinematografiaemSãoPaulo,eaeleseseguiramcinegrafistas
comoAntônioCampos,JoãoStamato,ArturoCarrari;noRio,osBotelho,Leal,Paulo
Benedetti,entreoutros.Essetipodeproduçãovaisemanterativaatéadécadade
1980,eapesardeseucarátercomercialeoportunista,vãotransmitirnatelao
espíritodeprogressodopaísemperíodossignificativosdesuamodernização,do
pontodevistadepolíticoseempresários.Tomaimpulsoespecialapartirdoprimeiro
governodeGetúlioVargas,queseutilizoumassivamentedessetipodeprodução
comoveículodepropaganda.
Naturaisecinejornaisabordamassuntoslocais,ofutebol,ocarnaval,asquermesses,amelhoriadasrodovias,asinaugurações,asvantagensdeumafazendaoudealgumafábricaquandoosdonosqueremvalorizarseunome,umafigurapolítica,algunsgrandesacontecimentospolíticos,arevoluçãode1924,ede1930,sempreapresentadosdopontodevistadequemficanopoder(senãoapolíticaouoEstadoMaiornãoautorizamaexibição)(BERNARDET,1979,p.24).
Oscinejornaiseramexibidosemsessõesdecinemaantecedendoaosfilmesdeficção,
masnãoeradomercadoexibidorqueessescineastastiravamseusustento–“os
espectadorespagamparaassistiraofilmedeficção,oscurtasvemdelambuja”.
51
Subsídios,estesprodutorestinhaméquetirardequemtemdinheiro:pessoasricasquequerempromoverseunome,empreendimentos,produtos,atospolíticosemundanose,naturalmente,fazerfilmesdeagradoaospatrocinadores.Aproduçãocinematográficabrasileiraassenta-senumdocumentárioexclusivamenteligadoaumaelitemundana,financeira,política,militar,eclesiástica,dequeoscineastassãodependentes.(BERNARDET,1979,p.25)
Oscineastascavadoresforampormuitotempoconsideradoscomoumachagano
cinemabrasileiropelamaioriadeseushistoriadores.Seusfilmeseramquaseque
negadoscomocinema,porquecinemamesmoeraocinemadeficção.Noentanto,a
realidademaissólidadeprodução–emquantidade–eraadessetipode
documentário,aoqualPauloEmíliosereferiucomodos“rituaisdepoderedoberço
esplêndido”.Seutriunfoestárelacionadoàfacilidadedeprodução–existequem
pague,existequemconsuma.
Maisrecentemente,aobradessescineastastemsidorecuperadacomodocumento
históricoemdiversaspesquisas.OfrancêsJeanManzon,queiniciasuaproduçãona
décadade1950,foibastanteestudadocomoimportantecineastadocinejornalismo–
suaobracontacommaisde900documentários.Sobreocineasta,Bernardet
comenta:
Nocinema,esseespírito16éencarnadoporJeanManzon,cujasfitassãofinanciadasporgrandesfirmasagrícolaseprincipalmenteindustriais;ostemasreduzem-seadois:quantidadeequalidade.Fala-seemtoneladasdecanaouaçoproduzidasporminutoouporhoraoupordia(nãotemimportância,poisopúbliconãotempontodereferência);paraconstruirtalobjeto,foiusadotantocimentoquantoserianecessárioparaconstruirumedifíciodeduzentosandares;fala-sedos“admiráveistrabalhadoreseadmiráveistécnicos”.Aissoadiciona-seumpoucodepoesiaemuitascores:oscolheiteirosdecaféexibemchapéusmulticolores;opoliestirenoincolortorna-severmelhonasmãosdeManzon;asplateiasficamembevecidasdiantedasorquídeasepapagaiosencontradosemumafavelasobreoAmazonas(...).Comonãosentir-seforteesegurodesidepoisdisso?(BERNARDET,1978,p.14–15)
16Dedesenvolvimentoeprogresso.
52
1.5. O cinema no canteiro de obras de Brasíl ia
Brasília,acidadequenascefilmada.Essafraseéreproduzidaemtodapublicaçãoque
tratadosprimórdiosdocinemaproduzidonacapital.Aparentemente,osprimeiros
registrosproduzidosnolocaldeimplantaçãodacidadedatamde1956.Oprimeiro
deles,datadode2deoutubrodesteano,registraaprimeiravisitadeJuscelino
Kubitschekaolocal,efazpartedocinejornalinformativono44/56,daAgência
Nacional.Osegundo–queseiniciacomaimagemdeumaplacaondeestáescrito
Brasília–27/10/56–registraavisitadeBernardoSayãoaomesmosítio,foicaptado
portécnicosdoConsórciodeEmpresasdeRadiodifusãodeNotíciasdoEstadode
Goiás(Cerne),ecompõeoacervodoMuseudaImagemedoSomdeGoiás.
AssimcomoahistóriadeBrasíliacomeçouasercontadaenquantoaindasegestavaa
capital,deformaavalidaroprogramapolíticodeJuscelinoKubitschek,tambémas
imagenseramproduzidascomoauxiliaresnessesentido.Juscelinodesembarcouno
PlanaltoCentralacompanhadodecineastas,cujafunçãoeradocumentaraconstrução
dacidade,produzindofilmesqueabordassemaspectospositivosdaempreitada:a
rapidezdasobras,aeuforiadoscandangosquechegavam,ainfraestruturaqueo
canteirooferecia,oarrojodaarquiteturamoderna,etc.Essasimagens,encomendadas
pelogovernodeJuscelino,resultavamemcinejornaisquepercorriamopaíseo
mundo,levandoaimagemdeBrasíliaedeseusucessocomopropulsorado
desenvolvimentodopaís.EntreessescineastasestavamJeanManzon,Carlos
Niemeyer(primodoarquiteto),PersinePerrin,HerbertRichers,IsaacRosemberg,
JoséeSálvioSilva,DinoCazzola,entreoutros.
Diantedapoucafédealgunsdequeaconstruçãodacidadedefatoseefetivaria,era
precisoalimentarumimagináriopositivoemtornodaconstruçãoqueconquistassea
populaçãoaseufavor.Emvezdeepifania,alimentarapopulaçãocomimagensque
mostrassem,demaneiraconcreta,oavançodasobras,obem-estareafelicidade
daquelesqueláestavam,umaimagemquevalidasseessefuturoalmejadocomo
possível,nãocomoalgoaconquistar,mascomoalgoqueseefetivanopresente.
ADivisãodeDivulgaçãodaNovacap,ligadadiretamenteaoengenheiroIsraelPinheiro(umdosdiretoresdaCompanhiaefuturogovernadordoDistritoFederal),empreendeuumapolíticaagressivaemtodoopaís.Havia
53
cincocaminhõespreparadosparadistribuirumacoleçãode15volumessobreafuturacapitalemcidadesestratégicasdetodasasregiõesdoBrasil.Nosnúcleosurbanosmaiores,seguiamigualmentefilmesem35mm,nospequenos,em16mm.(MORICONI,2012,p.46)
Portanto,ocinemaqueseproduziuduranteoperíododeconstruçãodacidadefoi
constituído,majoritariamente,pelomaterialproduzidoporessescineastas,
fortementemarcadopelapropagandagovernamental.Emmenornúmero,as
produçõesindependentestambémexistiram.Onorte-americanoEugeneFeldman–
designergráficodeprofissão,fotógrafoecinegrafistaamador–produziuumvasto
materialduranteasuapermanêncianocanteirodeobrasem1959.Suasimagens
foramproduzidasaconvitedeAloísioMagalhães,quedirigiaoCentroNacionalde
ReferênciaCultural(CNRC),eemmuitocontrastamcomotompropagandísticodos
cinejornais.OresponsávelpeladivulgaçãodessematerialfoiocineastaVladimir
Carvalho,queem1979realizouocurtaBrasília,segundoFeldman.EssaBrasília
mostradaporFeldman,emcores,eraaBrasíliadosoperáriosqueaconstruíram:a
cidadeéfundodapaisagemhumana,enãoocontrário.
MarcelCamus,cineastafrancêsquejáhaviafilmadoOrfeuNegro(1959)noRiode
Janeiro,filmatambémem1959aúltimasequência17deseufilmeOsbandeirantesem
Brasília.Ofilmedeficçãonarraatrajetóriadeumcaçadordediamantesfrancês,que
percorredesdeaflorestaamazônicaatéBrasília,ondesedáodesfechofinaldesua
epopeia.Onegativodofilmeencontra-senaFrança,inacessívelaopúblico.Segundoo
críticoSérgioMoriconi,queteveacessoaofilme,
Camusassumeinvoluntariamenteosloganafirmativode“50anosemcinco”deJK.Brasíliacomoaconsolidação–oumaterializaçãosimbólica–deumnovomundo.ÉnasequênciadaBahiadeOsbandeirantes,adocasamentodeBeija-Flor,queessasideiassãocolocadasdeformamuitodireta.UmdosamigosdonoivoexortatodosairemaBrasília:“Vamosparaláqueestáofuturo.Vamosparaláfazermaçanetas,acidadevaiprecisardemuitasmaçanetasdeporta”.Ofinal,irrealisticamenteglorificadordosambanaEsplanada,dispensacomentários.(MORICONI,2012,p.49)
ComexceçãodeCacáDiegues,querealizaem1960ofilmeBrasília(perdido),os
cinemanovistasvãoregistrarBrasíliaapenasapósasuainauguração.NelsonPereira
dosSantos,entãoprofessordocursodecinemadaUnB,realizaem1966,juntocom
seusalunos,FalaBrasília;JoaquimPedrodeAndraderealizaem1967Brasília,
17Umasequênciacorrespondeaoconjuntodeplanosnecessáriosparacompletarumaaçãodramática.
54
contradiçõesdeumacidadenova;GlauberRocha,em1980realizaoalegóricoAidade
daTerra.Noentanto,descobertorecentemente,ofilmedeGersonTavares–Brasília,
capitaldoséculo(1959)–passaaconstituirumexemplarúnicodessaprodução
duranteoperíododeconstruçãodacidade.Ocineasta,apesardenãosercomumente
referenciadocomoumcinemanovista,realizoufilmesquedialogavamfortemente
comatemáticaeomododeproduçãodessescineastas.Essalacunadereferênciasse
deupelofatodesuaobrater-semantidoperdidapormuitotempoemacervos
pessoaisedecinematecas.Omesmocineastavairealizartambém,em1967,olonga
deficçãoAmoredesamor,que,apóssuarestauração,passaaserconsideradoo
primeirolonga-metragemdeficçãointeiramenteambientadoemBrasília.
Operíododaconstruçãocontinuaasertemadefilmesmesmoapósainauguraçãoda
cidade.OjácitadoBrasília,segundoFeldman(1979)deVladimirCarvalhoéprecursor
nessesentido:umabuscadememóriasdocinemanaconstruçãoquefugissemdo
discursooficialescoimpregnadonoscinejornais.Omesmocineastarealizaaolongo
de19anosolonga-metragemdocumentárioConterrâneosVelhosdeGuerra(1990),
umdosmaisimportantesdocumentossobreostrabalhadoresdaconstruçãode
Brasília.Girandoemtornodedepoimentosdessestrabalhadores,Vladimir,segundo
suasprópriaspalavras,
...filmavaegravava,principalmente,nascidades-satélites,comoobjetivodeconfigurarumperfildaquelesremanescentesdaraçaanônimadospedreiros,investigandoquetipodeconsciênciaeleshaviamcriado,paralelaàdesmitificaçãosocialepolíticadaGrandeObra.Seguindoatrajetóriadessesconterrâneosvelhosdeguerra,convenci-mequetinhao“gancho”,ofiocondutorcomqueacomodarosdadosdahistóriadaprópriacidade,inclusivecomocaixaderessonânciadetodavidabrasileira.Istoé,poderiaalternarashistóriasdevidassemfuturonasurbesdebarraco,comfatosrecentesdaHistóriapolítica,socialeeconômicadoBrasil.Umatentativademesclarnomesmoquadrooshojechamadosde“paísreal”e“paísformal”.(CARVALHO,VLADIMIR,2003,p.173)
Em2012,AndréaPrateseCleissonVidalconsolidamoresgatedaobradeDino
CazollanofilmeDinoCazzola–umafilmografiadeBrasília.OitalianoDinoCazzola
chegouaBrasíliaem1959,substituindoosirmãosJoséeSálvioSilva,pararegistrara
inauguraçãodacidadeparaaTVTupi.Suasimagensconstituemumregistrodos
últimosanosdaconstrução,masprincipalmentedosprimeirosanosdevidada
capitalpósinauguração.
55
OutrosfilmesbuscaramtratardahistóriadecriaçãodeBrasília,abordandoos
aspectosdesuainvenção,masnãodiretamentetratandodocanteirodeobras,tais
como:Brasília,planejamentourbano,deFernandoCony(1964);Brasília:umroteiro
deAlbertoCavalcanti,deAntonioCarlosFontoura(1982);Brasília:aúltimautopiade
PedroAnísio,GeraldoMoraes,VladimirCarvalho,PedroJorgedeCastro,Moacirde
OliveiraeRobertoPires(1989);AinvençãodeBrasília,deRenatoBarbieri(2001);O
risco–LucioCostaeautopiamoderna,deGeraldoMottaFilho(2002);OscarNiemeyer
–avidaéumsopro,deFabianoMaciel(2008).
Nessabuscapelamemóriadaconstrução,háapenasdoisfilmesquetratam
diretamentedapresençadasmulheresnesseperíodo:Asagadascandangasinvisíveis
(2008),deDeniseCaputo;ePoeiraeBatomnoPlanaltoCentral(2010)deTânia
FonteneleeTâniaQuaresma.Osdoisfilmesbuscamemdepoimentos,reconstruira
históriadapresençadessasmulheresduranteoperíododaconstrução.Oprimeiro
trataexclusivamentedasprostitutasquevieramàBrasília;osegundo,buscafazer
umaapanhadogeraldasdiversaspersonagenspresentesnocanteirodeobras.
***
Dadoessepanoramageralsobreocinemaproduzidoduranteaconstrução,cabe
agoraapresentarosfilmesescolhidosparaessetrabalho.Tendoemvistaqueabusca
aquiépelarelaçãoentrecorpofemininoemodernidademostradanosfilmes,optei
porestabeleceroseguintecritério:primeiro,procurarnosdoisprincipaismodosde
cinemamodernorealizadosnoBrasilduranteaconstrução–nocinemadecavação,e
noCinemaNovo–comoeramostradoessecorpofemininoecomoestesearticula
comasintençõeseevidênciasnarrativasdeambos;segundo,buscarnosdoisúnicos
exemplaresquetratamdiretamentedamemóriadocorpofemininodurantea
construção,aspossibilidadesdereconstituiçãodessecorpo.
Portanto,ocinejornalAsprimeirasimagensdeBrasília,deJeanManzon(1957)surge
comoexemplardocinemadecavação;Brasília,capitaldoséculo,deGersonTavares
(1959),comoexemplardoCinemaNovo;PoeiraeBatomnoPlanaltoCentral(2010),
deTâniaFonteneleeTâniaQuaresma,eAsagadascandangasinvisíveis(2008),de
DeniseCaputo,comodocumentáriosderesgatedamemóriafeminina.Caberessaltar
56
queaordememqueosfilmesapareceminseridosnessetrabalhonãopriorizaa
ordemcronológicadarealizaçãodosmesmos,massimbuscacumpriratentativade
estabelecerumalinhanarrativaentreeles–acercadamodernidadeedocorpo
feminino.Háumaquebranecessária:ofilmedeDeniseCaputoapareceporúltimo,
mesmotendosidorealizadoantesdePoeiraeBatom.Essaquebrasejustificapelo
fatodePoeiraeBatomserumfilmequeambicionaoferecerumpanoramaamploda
presençafemininanaconstruçãodeBrasília,ejáofilmedeCaputoprocuraafunilar
essaperspectivaemumsegmentoespecífico–odasprostitutas.Aseguir,apresento
osfilmeseseusrespectivoscontextosdeprodução.
As primeiras imagens de Brasília (1957), de Jean Manzon
JeanManzon(1915-1990),fotógrafofrancêsradicadonoBrasilapartirde1940,teve
seusprimeirostrabalhosparaocinemarealizadosnoâmbitodoDepartamentode
ImprensaePropaganda(DIP)duranteaEraVargas.Entre1943e1951,emparceria
comojornalistaDavidNasser,realizoudiversasreportagensparaOCruzeiro,período
degrandesucessodarevista.Em1952montousuaprodutoracinematográfica–a
JeanManzonFilmsS.A.–,eapartirdaídirigiueproduziumaisde900documentários,
muitosdelesaserviçodoInstitutodePesquisaseEstudosSociais(IPES),umdos
órgãosarticuladoresdoGolpeMilitarde1964.Suaproduçãoaudiovisualesteve
fortementemarcadapelapropagandagovernamental.
JeanManzonfoiumdoscineastasconvidadospelogovernoJKparaqueviesseà
Brasíliadocumentaraconstruçãodanovacapital.JuscelinoeJeanManzontinham
umarelaçãoanterior,ocineastajáhaviarealizadoodocumentário/cinejornalO
mundoaclamaoBrasilem1956,noqualdocumentaumaviagemdeJuscelinopelo
exterioremseuperíododecampanha.Ofilmefaziapartedeumaestratégiapolítica,
segundoaqualcontaopróprioJuscelino,
...osbrasileirossótomariamconhecimentodoqueocorriacomigoatravésdaimprensa.Seriaumamaneiradeestarpresentenamemóriadopovo,nãoemligaçãopessoaledireta,masdeumamaneirasimbólica,porintermédiodeumaviagem.(apudBIZELLO,2008,p.94)
ManzonrealizoudiversosdocumentáriossobreBrasíliaeasobrasquecircundarama
implantaçãodacapital,entreeles:AsprimeirasimagensdeBrasília(1957),O
57
Bandeirante(1957),NoCinturãoVerdedeBrasília(1958),Amazôniavaiaoencontro
deBrasília(1958)eColunaNorte(1960).Ostrêsúltimostratavamdasgrandesobras
deestradasqueproveriamoacessoàcapital,principalmenteaBelém/Brasília.Os
doisprimeirospossuemváriosregistrosemcomum,etratamdiretamenteda
construçãodacidade.Oprimeiro–queéobjetodessapesquisa–destaca-sepor
constituirumdocumentáriocujaintençãonarrativaestáexplícitaemseutítulo:
trazeràpopulaçãoasprimeirasimagensdeBrasília.
Nãoécertosedevidosomenteaotítulo,masocinejornaldeJeanManzoné
constantementereferenciadoemestudosquetratamdaproduçãofilmográficada
construçãodeBrasíliacomosendooprimeiroregistrodessemomentohistórico.No
entanto,comojáfoiditoanteriormente,háregistrosemvídeodolocaldeconstrução
dacapitalrealizadosaindaem1956.Outroscinejornaisforamrealizadostambémem
1957,comoono01/58queregistraainauguraçãodaprimeiraescoladeBrasília.No
entanto,ofilmedeJeanManzonconsagrou-secomodetentordessepioneirismo.Sua
narrativapercorrediversosaspectosdainvençãoeconstruçãodeBrasília,reforçando
oseucaráterepopeico,eteveumasignificanteeficiênciaenquantopropaganda
governamentalnaépocadesuarealização.Alémdasexibiçõesconvencionaisdos
cinejornais–precedendolongasmetragensnassalasdecinema–háindíciosdequeo
filmefoitambémexibidoemoutrasocasiõesespeciais.AnaLuciaGomes,emseu
artigoBrasílianosfilmesdaNovacap,comentaqueaRevistaBrasíliade20deagosto
de1958apresentaaseguintereferênciaaofilmedeManzon:
FilmesemLisboa
Perantenumerosaassistência,figurasderelevodasociedadeportuguesaedogoverno,oEscritórioComercialdoBrasilnestacapitalexibiunosalãodeprojeçãodaresidênciadoindustrialJoãoRochadosSantosofilme:“AsprimeirasimagensdeBrasília”(RevistaBrasília,1958:16,apudGOMES,2013,p.51)
DadaatrajetóriadaproduçãocinematográficadeJeanManzon,marcadapor
documentárioscujoenlacecomapropagandagovernamentaleraevidente,As
primeirasimagensdeBrasíliaconstitui-seemumdocumentodoquerepresentou,
duranteaépocadaconstrução,aconstanteproduçãoeexibiçãodeimagensacercada
execuçãodameta-síntesedogovernoJK.Essasimagenstinhamoobjetivode
58
demonstrarque,aocontráriodadesconfiançademuitos,Brasíliaestavaacontecendo,
oprogressodoBrasilandavaatodovapor.
AoprocurarostraçosdocorpofemininonofilmedeJeanManzon,seráimportante
observarcomoaimagemdessecorposeinserianessediscursoprogressista.Eledeve
oferecerumaboaintroduçãodequalseriaolugardamulhernodiscursoda
modernizaçãoqueapareceimpressonofilme.
Brasília, capital do século (1959), de Gerson Tavares
Até2015nãohaviammençõesaocurta-metragemBrasília,capitaldoséculo,de
GersonTavares,comopartedafilmografiaacercadaconstruçãodeBrasília.Ascópias
dofilme,assimcomodetodaaproduçãodocineasta,haviamficadoesquecidasem
acervosdaCinematecadoMuseudeArteModerna(MAM),doCentroTécnicodo
Audiovisual(CTAv),daCinematecaBrasileira(CB)edoacervopessoaldeRuyPereira
daSilva(ex-sóciodeGerson).
Emmarçode2003,logoapósumperíododelongacrise,aCinematecadoMAM
promoveuamostraRaroseEsquecidos,comoobjetivodetrazerapúblicofilmesde
seuacervo,cujascópiasempilhavamasestantesehámuitoestavamesquecidas.
Dentreeles,ofilmeAntes,oVerão(1968),deGersonTavares,chamouaatençãodo
professordoDepartamentodeCinemaeVídeodaUniversidadeFederalFluminense,
RafaeldeLunaFreire.GersonTavarestambémprocurouaCinematecaapóstomar
conhecimentodamostra,surpresoporaindaexistiremcópiasdeseusfilmes.Ele
mesmohaviasedesfeitodetodaselasquandoresolveuabandonarocinema,na
décadade70.
DesseencontrosurgiuoprojetoResgatedaobracinematográficadeGersonTavares,
encabeçadaporRafaeldeLunaFreire.Oprojeto,quefoiconcluídoem2015,
restauroucópiasem35e16mmdedoislongas-metragens–Antes,overão(1968)e
Amoredesamor(1966)–esetecurtas-metragens–APetrobráspreparaseupessoal
técnico(1958),Ogranderio(1959),Brasília,capitaldoséculo(1959),ArtenoBrasil
dehoje(1959),Gafieira(1972),Ensinoartístico(1973)eSaveiros(1977).Alémdisso,
todoomaterialfoicompiladoemumDVD,queincluitambémocurta-metragem
59
Reencontrocomocinema(2014),deRafaeldeLunaFreire,noqualdocumentao
processoderecuperaçãodosfilmeseentrevistaodiretor.
GersonTavares,naturaldeAlcântara/RJ,iniciouseusestudosempinturanaEscola
NacionaldeBelasArtesem1947.Em1953,pormeiodeumabolsadaUniversidade
doBrasil,foiestudarpinturanaEuropa,tendovividoemLisboa,MadrieParis.Seu
interessepelocinemasurgiuapartirdeseuencontrocomobrasileiroSergio
Montagna,funcionáriodeumarepartiçãopúblicaecinéfilo,quecomeçoualevar
GersonaoscineclubesdeParis.Apartirdaí,Gersondecidiuinvestirnessenovo
campo,matriculando-senoCentroSperimentalediCinematografia,emRoma,onde
cursoudireçãoentre1956e1957.RetornouaoBrasilem1958,trazendoconsigo
umaCaméflex35mmfrancesa,e,associando-seaSérgioMontagnaeJoaquimPedro
deAndrade,formouaSagaFilmes.Passamentãoarealizardocumentários
institucionais,jingles,comerciaisparatelevisão,alémdealugarseusequipamentos
paraoutrasproduções.
Em1958,Gersonrecebeumapropostadeumcolegaitaliano,ofotógrafoGianpaolo
Santini,comoqualjáhaviatrabalhadonocurtaAPetrobráspreparaseupessoal
técnico:realizarumasériedetrêsfilmesqueretratassemoBrasildopassado,do
presenteedofuturo.Osfilmesdestinavam-seprincipalmenteaopúblico
internacional,tomandocomopremissaointeressequeopaísdespertavanoexterior.
Desseprojeto,realizadojuntoàprodutoraProcinedeRuyPereiradaSilva,foram
produzidos,em1959,Ogranderio(oBrasildopassado,retratandoumaviagempelo
RioSãoFrancisco),ArtenoBrasildehoje(oBrasildopresente,mostrandoasobrasde
artistasbrasileiroscontemporâneos,comoOscarNiemeyer,CândidoPortinarieBurle
Marx)eBrasília,capitaldoséculo(oBrasildofuturo,documentandoaconstruçãoda
novacapital).(FREIRE,2016,p.9)
EmentrevistaconcedidaaRafaeldeLunaFreirenodocumentárioReencontrocomo
cinema,Gersonafirmaqueseusfilmesnuncaforamfeitossobencomenda
governamental,ocineastasempretrabalhoucomproduçõesindependentes.Apesar
daboarepercussãodatrilogia–OgranderiofoipremiadocomomelhorfilmenoI
CertamenInternacionaldeCineDocumentalIbero-AmericanoyFilipinodeBilbao,
Espanha–Gersonencontroudificuldadesemsemanterfinanceiramentecoma
60
realizaçãodeseusfilmes,esuaprodutoramantinha-seprincipalmentecomarenda
provenientedalocaçãodeequipamentos.(FREIRE,2014)Nesseperíodo,amaior
partedosdocumentaristassobreviviamapartirdeparceriasfirmadascomogoverno,
quetinhamuitointeressenaproduçãodefilmesquepropagassemsuasrealizações.
Noentanto,ocurtadeGersonTavaresOgranderio,chamouaatençãodeGlauber
Rocha,queocoloca,juntamentecomoutrasproduçõescontemporâneas–comoO
cangaceiro(1953),deLimaBarreto,Rio40graus(1955),deNelsonPereirados
SantoseNagargantadoDiabo(1960),deWalterHugoKhouri–numanovasafrade
documentáriosquepassamasurgirnaproduçãonacional,quevoltavaseusolhares
paraoselvagemBrasil.(FREIRE,2016,p.13)
(...)essestítulosrecentesrepresentariamnavisãodealgunscríticosecineastasumarenovaçãodofilmedocumentáriobrasileiro,marcadosporumolharcríticoparaarealidadebrasileiraquesediferenciariadavisãotradicionaleoficialescadedocumentaristascomoPrimoCarbonari,IsaacRozembergouJeanManzon,cujaproduçãoemgrandeparteaindaseaproximavadoquePauloEmíliocaracterizou,emrelaçãoàproduçãodocumentariabrasileirasilenciosa,derituaisdopodereberçoesplêndido.(FREIRE,2016,p.14)
Apósaconclusãodosdocumentários,RuyPereiradaSilvaconseguiuumencontro
comoentãopresidenteJuscelinoKubitschekparaaexibiçãodatrilogia,que
aconteceuem29desetembrode1959,noPaláciodasLaranjeiras.Gersoncontaque,
apósaexibição,JuscelinocomentaraqueocurtaBrasíliacapitaldoséculoerao
primeirofilmesobreBrasíliadequeeletinhaconhecimentonoqualelemesmonão
aparecia.Ocomentárioésintomáticodaproduçãoqueerarealizadanoperíodo,que,
assimcomoofilmedeJeanManzon–AsprimeirasimagensdeBrasília–eram
realizadossobencomendagovernamentaletraziamJuscelinocomoprotagonista.
Concluídoemumperíodopróximoàinauguraçãodacidade,ofilmedeGerson
Tavares,apesarderecorreraalgunsrecursoscomunsaoscinejornaisdaépoca–o
didatismodanarraçãoemvoiceover18,porexemplo–,éumdocumentárioque
inevitavelmentemostraasobrasdanovacapital,masquetemcomofocoprincipalas
pessoasenvolvidasnaconstruçãodacidade.Dequesetenhaconhecimento,éoúnico
filmeproduzidoefinalizadocontemporaneamenteàconstrução,queassumeesse
enfoque.Dessaforma,busca-seaquiumoutroolharacercadocorpofeminino,que,ao
18Termotécnicoquedesignaavozdeumnarradornãopresenteemcena.
61
estabelecerrelaçõescomaspessoas,edistanciando-sedodiscursooficialesco,tende
aapontarparaamodernidadebrasileiravistaapartirdesuascontradições
intrínsecas.
Poeira e Batom no Planalto Central (2010), de Tânia Fontenele e Tânia Quaresma
Olonga-metragemPoeiraeBatomnoPlanaltoCentralfoirealizadonocontextodas
comemoraçõesdos50anosdeBrasília.Éumfilmedehomenagem,quebusca
resgatar,pormeiodeentrevistasedematerialdearquivo–principalmente
fotografias–amemóriafemininadaconstruçãodeBrasília.Oprojeto–queincluiu
tambémumaexposiçãoeapublicaçãodeumlivro–foicoordenadopelaeconomista
TâniaFontenele,econtoucomacolaboraçãodapesquisadoraMônicaFerreiraeda
cineastaTâniaQuaresma.TâniaFonteneleébrasiliense,filhadepaiscearensesque
vieramparaBrasílianaépocadesuaconstrução,seupaiem1957esuamãeem60.
MariaInêsFonteneleMourão,suamãe–queéumadasentrevistadasno
documentário–,foiaprimeiramulheraassumirapresidênciadaAssociação
ComercialdoDistritoFederal(ACDF)etambémfundadoradaAssociaçãoProfissional
deMulheresdeNegóciosnoDistritoFederal.
CommestradoemPsicologiaSocial,doTrabalhoedasOrganizaçõespelaUnB,Tânia
FonteneledesenvolveupesquisademestradointituladaPodereLiderançade
MulheresGerentesnoTopodeCarreiranaAdministraçãoPública.Suatrajetóriaé
marcadapeloenvolvimentoematividadeseinstituiçõesrelacionadasàquestãode
gênero,principalmentenoquetangeàrelaçãodamulhercomomercadodetrabalho.
FoifundadoradoInstitutodePesquisaAplicadadaMulher(IPAM).
Oprojetoteveinícioem2009,apartirdeumapesquisaemjornaiserevistasda
décadade1960,iniciadanaBibliotecaDemonstrativadoDistritoFederal.Foram
consultadostambémosacervosdoMuseuVivodaMemóriaCandanga,oClubedos
PioneirosdeBrasíliaeoArquivoPúblicodoDistritoFederal.Percebendoasraras
referênciasàsmulheres,oprojetofoiinicialmentedenominadoMulheresinvisíveisna
construçãodeBrasília.
62
Foramescolhidasparaapesquisaumtotalde50mulheres,deacordocomoseguinte
critério:elasdeveriamterchegadoaBrasíliaentre1956e60,epermanecidona
cidadeporpelomenos20anos,procurandomanterumadiversidadedeprofissões
entreelas.Dentreessasmulheres,4delas,jáfalecidas,sãohomenageadascom
trechosdeentrevistasconcedidasàsérieOsPioneiros19.TâniaFontenelecontaque,
aoiniciarocontatocomessasmulheres,percebeuumacertaresistênciaporpartedas
entrevistadasemseautodenominareminvisíveis,comodiziaotítulodoprojeto.Dessa
forma,alterouotítuloparaPoeiraeBatomnoPlanaltoCentral–50mulheresna
construçãodeBrasília.
Oprojeto,financiadopelaPetrobrásepeloGovernoFederal,tinhacomoobjetivo
principalhomenagearessasmulheresnoaniversáriode50anosdacidade.É
simbólicoqueonúmerodemulherestambémseja50.“Cinquentaanosdepoisdo
iníciodaconstruçãodanovacapital,percebemosqueseriaomomentomaisque
oportunoparadarvisibilidadeaessascorajosasmulheresehomenageá-las.”
(MOURÃO;OLIVEIRA,2010,p.5)
MeuprimeirocontatocomoprojetofoiemumaexposiçãonoCentroCulturaldos
CorreiosemBrasília,noanode2013.Alémdefotografias,aexposiçãoprocurava
recomporcenáriosdoperíodoeemumatela,odocumentárioeraexibidoemlooping.
Defato,oformatododocumentáriopermitequesejaapreendidotambémassim:é
estruturadoemtornodasentrevistascomas50mulheres,alternadoscomimagens
que,namontagem,estabelecemrelaçãodiretacomoassuntotratadonoáudiodas
entrevistas.Dequalquerforma,háumalinhanarrativaadotadatantoparao
documentário,comoparaolivroeparaaexposição.Osfatoshistóricosconsiderados
comofundadoresdanovacapitalsãocontadosecomentadosporessasmulheres,em
sequênciacronológica.Emmeioaessesaspectos,hárelatosdocotidianoedavidana
CidadeLivreenosacampamentos,relaçõesdetrabalho,relatossobreachegadaà
Brasília,etc.
Levandoemcontaque,paraessetrabalho,sãomaisimportantesosaspectos
levantadosporessasmulheresquetornempossívelaferirasrelaçõescotidianase
19Sériede1983,compostapor20episódiosedirigidaporTâniaQuaresma.
63
materiaisqueestabeleciamcomoespaçodeconstruçãodacidade,opteiporfazerum
relatoacercadofilmedemaneiraaressaltarosdepoimentosquetangenciemtais
aspectos.Caberessaltarqueofatodequeodocumentárioassumaaposiçãodecontar
ahistóriadasmulheresapartirdareproduçãodahistóriaoficialtambémconstitui
umaspectodeanáliseimportanteparaposicioná-loemrelaçãoàabordagemdo
corpofeminino.
A saga das candangas invisíveis (2008), de Denise Caputo
Ocurta-metragemdocumentárioAsagadasCandangasInvisíveis,realizadopela
jornalistaecineastaDeniseCaputo,nasceucomoumprojetodadisciplinade
DocumentáriodaFaculdadedeComunicação/UnB,ministradapeloprofessorMarcos
Mendes.Suaproduçãofoiiniciadaem2006econcluídaem2008.Ementrevistaao
programaLanterninha,daUnBTV(2015),adiretoracontaqueoprojetonasceua
partirdeseuinteresseemduastemáticasprincipais:opapeldasmulheresna
sociedadeenahistória;eaquestãodamemóriaedahistóriaoral.Dessaforma,
iniciouumapesquisaacercadaconstruçãodeBrasília,e,intrigadapelaescassezde
relatosacercadopapeldasmulheresnesseepisódiohistórico,iniciouumabusca
sobreaatuaçãodasmulheres,chegandoassimaoqueeladenominade“umdos
segmentosmaisinvisibilizados”nessanarrativa(DENISECAPUTO,2015a):as
prostitutasquevieramtrabalharnaconstruçãodeBrasília.
Aindanamesmaentrevista,Denisecontaqueseutrabalhoinicialdepesquisasedeu
pormeiodedissertaçõesproduzidasacercadotema,assimcomodeoutras
bibliografias.Apósessaprimeiraleitura,elaesuaequipeempreenderamalgumas
visitasaoNúcleoBandeiranteembuscaderelatosdepioneirosedeindicaçõessobre
ondeencontraressasmulheres.Segundodescreve,apesardaresistênciainicialem
tratardotemaporpartedealgunsmoradores,Deniseconseguiuchegaraalgumas
dessasmulheres.Aquelasqueconcordaramemcontarsuahistóriaaparecememseu
filme.(DENISECAPUTO,2015b)
Ocurta-metragemtemduraçãode15minutos,esuaestruturageralfoiarticulada
fundamentalmenteapartirdeentrevistas.Alémdasentrevistas,nasquaisos
personagensaparecemsemprenamesmasituaçãocênica,sãoincorporadasna
64
montagemimagensquedialogamcomotemaqueoraestásendotratadonas
entrevistas:imagensdaconstruçãodeBrasília,umtrilhodetrem,musasdocinemae
ascasasdaspersonagens.
Emsetratandodeumcurta-metragemdocumentárioqueadotacomoestrutura
fundamentalasentrevistasdeseuspersonagens,cabeaquiconsiderá-loapartirde
seuelementocondutor:asváriasvozesouvidasquevãonarraratrajetóriadas
prostitutasquevieramparaBrasílianaépocadesuaconstrução.Apesarda
intervençãoinevitáveldamontagem,quecompareceinclusivenaestratégiade
utilizarasimagensdearquivoeplanosdepassagem,oformatodeentrevistas
permitetrabalharaquestãodamemória,intençãoexplícitadadiretora.Parteassim
deumaestruturaedeumconteúdoquepermiteadentrarahistóriaoraldessas
personagens,afimdequeoexpectadorsejacapazdeconstruirumcamporeflexivoe
imagéticoacercadotema.Portanto,aoadentraressefilme,procuroindíciosdecomo
essecorpovivia,circulava,comochegaram,comodesapareceramasprostitutasque
participaramdaconstruçãodacidade,e,sobretudo,comoessecorpoévistoporelas
mesmas.
67
2. Modernidade, progresso e corpo-máquina
2.1. Filme: As primeiras imagens de Brasíl ia (1957) Direção:JeanManzon.Cinejornal,10’24”
Ofilmeseiniciacomumacartela:Êstedocumentáriotemaúnicafinalidadede
historiaremimagensosprimeirosmesesdevidadeBrasília.Oavisoparecetentar
evitarquequalqueroutraintençãomenosobjetivapossaseratribuídaaofilme.
Juscelinoabordodeumavião,olhapelajanela.Dajanela,elevêumaplaníciepovoada
porumaglomeradocomcasasesparsas.Anarraçãoemvoiceoveracompanhaessas
imagens:
DeBrasíliasepodefalarcomaspalavrasfelizesdoCardealArcebispodeSãoPaulo:“ComoanoivadoBrasil,árvoredavidanacional,plantadanoplanaltocentral.Ohomembrasileironãomaisarranhaaspraiascomooscaranguejos.”Brasília,umpolomagnéticoemGoiáséafinalarespostaaessacríticadedoisséculos.Ejáumacidadeprovisóriade10.000habitantesconstruídaporiniciativaparticular,cominversõessuperioresa500milhõesdecruzeiros,estende-seaoladodasgrandesobrasdogoverno.
Essaprimeirasequênciaintroduzcriadorecriatura:Juscelinoabordodeumavião,
fortesímbolodamodernidade,vêdecima,emvoodepássaro,aregiãoondeafutura
68
cidadeseráconstruídajásendoocupada.Asprimeirasimagenssubjetivasde
Juscelinosãodacidadeprovisória(CidadeLivre),enãodasgrandesobrasdogoverno
frutodoprojetodeLucioCostaparaacapital.Pareceimportanteafirmar,comessas
imagens,quearegiãojáestásendopovoada–hápessoasemBrasília,ondesóse
acreditavadeserto–,jáseefetivaaintençãodeocupaçãodoplanaltocentral–O
homembrasileironãomaisarranhaaspraiascomooscaranguejos;noentanto,a
narraçãotrataderessaltarqueessacidadeprovisória,cujaimagemédeumaaparente
“desordem”construtiva,foiconstruídaporiniciativaparticular,colocando-aassim
emoposiçãoàquiloqueserárealizadofuturamenteporiniciativagovernamental.
Apareceaquitambémumaprimeirametáforadacidadecomumafigurafeminina:
comoanoivadoBrasil,árvoredavidanacional,plantadanoplanaltocentral.Essetipo
deassociaçãoremeteàideiadeumcasamento,onascimentodacidade,noquala
mulher/Brasíliaapareceassociadaàgerminaçãodeumaárvoreplantadanoplanalto
central.
Logonasequênciaseguinte,aindaemvoodepássaro,épossívelveroiníciodasobras
dopalácioresidencial(PaláciodaAlvorada),conformedescreveonarrador:Opalácio
residencial,cujabelezadecorreapenasdesuasproporçõesseraprópriaestrutura,será
omarcodopontodevistatécnicoeartísticodacidadequesurge.Estáassimcolocadoo
planoaserlevadoacabo:opoderfederalseinstala,masnessecasoporumaobraque
émarcodopontodevistatécnicoeartísticodacidadequesurge,emoposiçãoàquela
feitaporiniciativaparticular.Omarcodessanovaarquitetura,querepresenta
tambémumnovotempo.OBrasilmodernosesobrepondoaoBrasilarcaico.
69
Oslongoscaminhosdanovacivilizaçãobrasileira:Brasília,airradiar-separaonorte,
paraocentroeparaosul.Emmeioaessafala,aindaemvoodepássaro,opalácio
residencialdálugaraimagensdalongaestradasendoabertaemumaplanície.Todo
umvastosistemacirculatóriodeumpaís,cujaimensidadeterritorialfazcomquea
construçãodeestradasvitaissejaumaépicaaventura.Comacâmeraagoraaoníveldo
chão,vemosdecostasdoishomensqueconversam:umdeles,depelenegraechapéu,
seguraumafolhagrandedepapel;enquantoooutro,cabeloscurtos,pelebrancae
camisasocial20,falaegesticuladiantedasestradasqueoscircundam,poronde
transitamváriostratores.Seguem-sealgumasimagensdemáquinasvistasdelonge,a
trafegarpelasviasquesãoabertas.Traçadososplanosdevidaoudemortepelos
capitãesdapacífica,masdurabatalhabrasileira,ospesadosengenhosdessaguerra
redentoraabrem,conquistam,subjugamoespaço.Acidadenovaestendeosseusbraços
àsirmãsmaisvelhas.
Estãoaliossoldadosdessadurabatalhabrasileira–engenheiro,operáriose
máquinas.Asmáquinaspassamentãoatomarmaioresdimensõesnatela,são
filmadasdepertoenquantomovimentamaterra.
20Trata-sedeBernardoSayão,engenheiroediretordaNovacap,encarregadodaconstruçãodarodoviaBelém-Brasília.ChegouaBrasíliaem1956,eapareceemumadasprimeirasimagensregistradasnosítiodeconstrução(vercap.1.5).BernardoSayãomorreuem1959,duranteaconstruçãodaBelém-Brasília,quandoumaárvoreemquedaoatingiu.
70
Máquinasgigantescasparaumgigantescomovimentodeterra.Asolidãoeconômicadoplanaltocentraldiminuicadavezqueumcaminhãopodepartircomasuacarga.SóaestradaentreBrasíliaeBeloHorizontetem730kmdeextensão.Eladeveráem18mesescolocaroRiodeJaneiroeSãoPauloemligaçãoasfaltadacomanovacapital,cujoeixomonumentaléconstituídoporumconjuntodeamplasavenidaseesplanadas.
Adurabatalhabrasileiraficaassimdefinida:subjugaroespaço,planificar,abrir
estradasqueestendamosbraçosdeBrasíliaàsirmãsmaisvelhas,cumprindooplano
deintegraçãonacional,acabandocomasolidãodoplanaltocentral.
Umasequênciadeimagensmostraagoraasquedasdeumacachoeira.Umhomem
paradoaoladodeumadelas,seguraumagranderégua,enquantooutrofotografa.
25.000cavalosserãoproduzidosporumausinaa3kmdacidade,queseráconstruídaem18meses.Somentenabaciadesterio,existeáguaemquantidadesuficienteparaduplicaroabastecimentoatualdoRiodeJaneiro.EmBrasíliaseformaráumlagomaiorqueaBaíadeGuanabara.
Umcampoagrícola,comcorredoresdeirrigaçãomostraocaminhodaágua,vários
homensneletrabalham:devidoàconformaçãodoterreno,osmananciaisqueservem
Brasíliapermitemirrigaçãoporgravidadedeváriasáreas,favorecendoa
transformaçãodosoloparaosfinsagrícolas.
Seguindoocaminhodaágua,vemosagoraumacalhaimprovisadaqueaconduzaté
umpequenocercadodemadeiracomumaplacaondeselê:BANHEIRO.Nacerca,
vemosdeforaalguémqueestádentropenduraraliumchapéudevaqueiro:um
banheirotosco,improvisadonocampo.Pelochapéu,ládentroseencontraum
71
nordestino.Sim,porqueàsvezes,quemvêchapéu,vêacara.Vemosentãoumhomema
tomarbanho,aáguaescorrefartamentepelabica.
Tomaatelaentãoaimagemdeváriosoperáriosacavarumalongavala.Naimagem
seguinte,elesempurramgrandesmanilhasdeferro,querolampeloterreno:tubos
parainstalaçãodausinapilotode600cavalosparaatenderàsemergênciasde
construção,antesdesecaptaraságuasdoParanoá.
Nessasequência,vemoscomoéimportanteressaltarnofilmeodiscursodo
abastecimentodeáguaedesuasaplicações.Nãosomenteparaumautilizaçãofutura
–aconstruçãodeumabarragemparageraçãodeenergia,acriaçãodolagoParanoá–
mastambémparaotempopresentedofilme,paraotrabalhodeconstrução–os
camposagrícolas,obanhodosoperários.Iniciando-secomasquedasd’água,que
demonstramaforçanecessáriaparaageraçãodeenergia,passandopeloscampos
agrícolas,pelopequenobanheiro,pelagrandeobraparaausinapiloto,asequência
querdeixarclaroquehááguaabundanteemmeioaodesertodoplanaltocentral.
Vemosagora,emumplanopanorâmico21horizontal,ocampodeumafábricade
tijolos,ondehomensempilhamomaterial.Nasequência,aimagemdeumcaminhão,
carregadodepeçasdemadeira,queatravessaacidadelivre:aindústriademateriais
21Numplanoemmovimentopanorâmico,acâmeragiraapartirdeseupróprioeixo,horizontalouvertical.
72
deconstruçãovaisedesenvolvendoanimadamenteemBrasília.Asmatériasprimas,
inclusivematerialcalcáriodealtoteorparacimento,sãoencontradascomabundância
naregião.Maisde100caminhõesentramdiariamentenacidade.Aqui,anarraçãotrata
dedeixarclaroqueamatériaprimanecessáriaparaaconstruçãodeBrasíliaestá
tantosendoproduzidaali,iniciandoodesenvolvimentodeumaindústrialocal,como
sendotrazidadefora,pormeiodosmaisde100caminhõesentramdiariamentena
cidade.Interessantequeaprimeiraimagemnosmostraaproduçãoemumaolariade
tijolos:poderiaserconcreto,ouaço,masotijolorepresentariaaquiuma
modernidadepossível,associadaàstécnicastradicionaisdeconstruçãoe,portanto,
maisfacilmenteapreendidapelopúblicocomopossibilidade.
Contrapondo-seàimagemdocaminhão,vemosagora,decostas,umacaravanade
pessoasquepercorreumaestradadeterra,montadosacavalo:avisãoinstintivado
povofazafluiraBrasíliaoperários,artífices,agricultores,comerciantes:ospioneirosda
grandemigraçãodofuturo.Esedigaqueahistórianãoregistraoutramarchade
conquistatãobemrecebida.Aoseaproximardogrupo,emplanosmaisfechados,
vemosasprimeirasmulheresaaparecernofilme.Sãoasúnicasimagensemplanos
maisfechadosqueofilmeoferecedessegrupo.Todaselascarregamcriançasnocolo:
nãosomenteoperáriosvêmparaacidade,mastambémasmulhereseseusfilhos,
famíliasque,seguindoumavisãoinstintivaempreendemumamarchadeconquista,a
grandemigraçãodofuturo.Aênfasenafigurafemininaematernalnessemomentodo
filmeparecenosquererdizerqueasfuturasgeraçõesdeBrasíliaestãogarantidas.
73
Emumaruadacidadelivre,aimagemdeumaplacaondeselêPARADADEÔNIBUSé
seguidapelaimagemdeumônibuscujoletreirodizBRASÍLIA.Porsuaportadescem
esobemvárioshomens,quevestemroupassimples,chapéusdepalha:Paraos
homensdolitoral,Brasíliaéumaideiamaisoumenosabstrata;paraeles,éapura
realidade.Nasequência,imagensdoaeroportodeBrasília.Umaviãoévistocruzara
pistadechegadaatravésdeumajanela.Homensvestindopaletósdescemdeum
avião:aprimeirametrópoleaserconstruídanaidadedaaviação.Rio/Brasíliano
máximode3horas;há60anos,quandosedemarcouasuaárea,acomissãofezem3
mesesamesmaviagem.
Ofilmeacabadepassarpelostrêsprincipaismeiosdetransporteparachegadaà
Brasília:acavalo,deônibusedeavião.Asequênciaéfinalizadacomograndetriunfo
dachegadadoavião,mas,aopassarporessasimagens,éirônicoperceberquemesmo
Brasíliasendoaprimeirametrópoleaserconstruídanaidadedaaviação,
permanecemaindaosmeiosdetransportemaisarcaicos,eaindahápessoasque
talvezdemoremosmesmos3meseslevadospelacomissãoparachegaràBrasília.
Chegamosagora,finalmente,averasobrasdearquiteturaemexecuçãonacapital.
Umaimagempanorâmicadohotelemexecução(BrasíliaPalaceHotel)éseguidapelo
planodeumoperárioqueencaixaumaimensavigadeaço,sustentadaporum
guindaste,naestruturametálicadoedifício.Seguem-seváriosplanosdoesqueleto
dessaestrutura.
74
Brasília,cidadedofuturo,terácomocertascidadesclássicasdaantiguidade,umamedidadegraçaarquitetônica.Nela,aidadedatécnicareencontraaidadedaharmonia,virtudesqueandaramseparadasnessestemposdeeclosãoindustrial.Acidadeestáassimfadadaaserummodeloparaomundo.Umhotelpara360hóspedes,feitodeestruturametálicadevoltaredonda,iniciadoemmarçode1957,deveráserinauguradoa3demarçode58,juntocomopalácioresidencial.
Juscelinovoltaàcena,dessavez,acompanhadodeIsraelPinheiro.Osdoisaparecem
emmeioaestacasdemadeira,noaltoandardeumadasobras.Elesconversam,
apontamparaosarredores.Sobemumaescadalateralechegamaotopodoedifício
emconstrução,caminhamporele:emcompanhiadosenhorIsraelPinheiro,o
presidentedarepúblicaacompanhaocrescimentodeBrasília,comfervordequemjávê
concretizadonoespaçoenotempotodososprojetos,todasasobrasfuturas,todoo
esplendoretodaavidadacidade.
ComoqueemumaimagemsubjetivadeJuscelinoeIsraelPinheiro,vemosagoraa
obradoPaláciodaAlvorada.Emmeioàsestacasefôrmasdemadeira,jáépossível
perceberascolunascaracterísticasdoedifíciosendoformadas:asoluçãodopalácio
residencialseorientoupelaescolhadosprincípiosdesimplicidadeepureza,que
marcaramnopassadooequilíbriodasgrandesobrasarquitetônicas.Voltamosentão,à
imagemdeJuscelinoeIsraelPinheiro,aindanotopodomesmoedifício,conversame
apontamemdireçãoaohorizonte.
Asprimeirasobrasdearquiteturasãocaracterizadaspelanarraçãocomoaretomada
dealgoquehaviaseperdidoemum“tempoantigo”(colocadodemaneiraabstrata):a
75
idadedatécnicareencontraaidadedaharmonia,virtudesqueandaramseparadas
nessestemposdeeclosãoindustrial.Acolocação,querefleteumaideiarenascentista–
buscarnaantiguidadeclássicaasproporçõesideais–écolocadademaneira
aparentementedespropositada,eacabaportransparecerumaespéciede“novo
renascimento”,umanovaformadedomíniodohomemsobreanatureza,superando
osjáexistentesavançosindustriaiseconciliando-osaumaharmoniaarquitetônica
totalmenteinovadora,masquerecuperaprincípiosdesimplicidadeepureza,que
marcaramnopassadooequilíbriodasgrandesobrasarquitetônicas.
ÉimportanteressaltarqueJuscelinosomentereaparecenofilmenessemomento,
observandosuasobrasnovamenteapartirdoalto–antes,doavião;agora,deum
edifício.AcompanhadodeIsraelPinheiro,osdoisfiguramcomograndesmaestros
daquelasrealizações,aquelesquetemodomíniodotodo.
Vemosagoraaimagemdaexecuçãodeumtelhado,apartirdedentrodocômodoque
elecobre.Astelhasestãosendoaindacolocadas.Acâmera,queapontaparacima,
começaadescerevemosumpadeiroqueretiraváriospãesdeumforno:opãofresco
éfeitoantesmesmoquesefaçaapadaria.
76
Emseguida,aimagemdeumparquinhodecriançascomumprédioaofundo:ogrupo
escolartemcapacidadepara320crianças.Passandoparaointeriordeumasala,
vemosumplanosemelhanteàqueledapadaria:umoperário,emcimadeumaescada,
prendeumlustredeiluminaçãoaoteto;acâmeradesceevemoscriançassentadas
emumasaladeaula:aindaseinstalavamosacessóriosdaescolaquandoasaulas
foraminiciadas.Porqueaculturanãopodeesperar.NãoseperdetempoemBrasília.As
atividadesaítêmdesersimultâneas.Asequênciaéfinalizadacomumplanoabertoda
sala,ondevemosaprofessoraquemostraafraseescritanoquadro:“Brasíliaéagora
anovacapitaldoBrasil”.Éasegundaveznofilmeemquevemosumamulher,agora,
nafiguradeumaprofessora.Nasaladeumhospital,algunsmédicosemtornodeuma
mesacomumpacientemostramumacriança,penduradapelospés:umrobusto
brasilianoinaugurouamaternidade.
Asduassequências–napadariaenaescola–vemdemonstraroritmoincessantedas
obras,que,noentanto,nãoimpedequeosserviçosbásicossejamgarantidospara
aquelesquealiestão:nãoseperdetempoemBrasília.Asimagensdascriançasna
escolaedonascimentodeumrobustobrasilianoparecemquerermostrarqueháuma
geraçãofuturaaserpreparada,umavidaqueseiniciaapesardasobras.Enovamente,
éemumasequênciaassociadaàscriançaseàgarantiadasgeraçõesfuturasqueo
corpofemininoaparece.
77
Numaimagemnoturna,vemosoesqueletodaestruturadeumedifícioemconstrução.
Épossívelverasfaíscasdasoldaquetrabalhaoferro:Otrabalhodesconheceanoite.
Oritmodastarefasaexecutarnãoopermite.Emumplanomaispróximo,vemos
operáriosjogaremparafusosincandescentesdeumparaooutro,eprendê-losà
estrutura:eessesoperáriospraticambaseballcomferroincandescente.Aqui,aimagem
dotrabalhonoturnodosoperários,evidenciandooritmofrenéticodasobras,aparece
amenizadapelaassociaçãodeumatarefacotidianadaconstruçãoaumadiversão,o
baseball.Umaformadetransmitirque,apesardasárduascondiçõesdetrabalho,
essesoperáriosofaziamcomprazer.
Háaquiumcorteparaamaquetedocongressonacional;acâmera,empanorâmica
vertical,mostradoishomensqueconversamemtornodamaquete,manipulando-a:
osarquitetosLucioCostaeOscarNiemeyer–aoprimeiro,coubeprojetareorientaras
obrasdeurbanismo;aosegundo,asobrasdearquitetura.Vemosagoraumasequência
deváriasmaquetes:umasuperquadraresidencial,oPaláciodaAlvorada,aIgrejinha.
Osdoistécnicoseartistas,justamenteadmiradosemtodoomundo,compõemcom
linhas,volumes,coreseespaçosasinfoniadeBrasília.
78
Emumplanoaberto,LucioCostatransitaentrepranchetasdeumagrandesala,sobre
asquaisvárioshomensdesenham:umaequipededica-seàartedefazercidades,
dentrodeperfeitassoluçõesdosproblemasurbanos.Coubeaosarquitetosuma
apresentaçãoobjetivadeseuofício,asimagensdasmaquetes,dosfuturosedifícios
queserãoconstruídosemBrasília.
Novamenteemumaimagemnoturna,vemosumhomementraremumapequena
casademadeira.Aluzdacasaestáacesae,atravésdeumajanela,vemosohomem
queacabadeentrarbeijarumamulherdentrodesuasala.
Brasíliajáexiste.Asfamíliasqueparalásedeslocaram,hojevivendocomsimplicidadeemummomentohistórico,irãoconstituiramanhãalegiãocomovidamentelembradadospioneiros,osprimeiroshomensemulheresquederamaoBrasilosprimeirosfilhosdeumanovaera.Ajovemcidadedoplanaltocentraléaestrelaguiadofuturo,ameninadosolhosdoBrasil.
Aimagemfinaldofilmeéumplanoabertodessasmesmascasinhas,eumcarropassa
emfrenteaelas,cruzandooquadro.Nessasequênciafinaléressaltadaaimportância
dafamília,daexistênciadeumageraçãoqueseiniciaemBrasília:Brasíliajáexiste.E
éessenúcleofamiliar–umhomem,suamulhereosfilhosqueirãogerarparaa
cidadedeamanhã–queestáaconstruirBrasília.
Asequênciafinalassocianovamenteocorpofemininoàmaternidade,àgarantidados
herdeirosdessaterra.Nãosomenteocorpodamulherapareceassociadoaessaideia,
79
mastambémanarraçãotrataderelacionarnovamenteBrasíliaaadjetivosfemininos
–ameninadosolhosdoBrasil.Curiosotambémqueaimagemdessenúcleofamiliar
apareçaassociadaaumacasaeumaruacomtraçosdacidadetradicionalbrasileira,e
nãodaarquiteturamodernistadospalácioseedifíciosapresentadospeloarquitetona
sequênciaanterior.Pareceaquiqueofilme,assimcomoemseuinícioaomostrara
CidadeLivre,tentacriarumafamiliaridadecompartedeseupúblicoalvo–os
trabalhadoresqueprocuraatrairparaaconstruçãodacidade.
80
2.2. Modernidade: um caminho inequívoco ao progresso?
OfilmedeJeanManzon,assimcomoboapartedesuavastaprodução,éconstruídoa
partirdeumanarrativafortementevinculadaasistemasinstitucionaisdepoder.O
lugardefaladaquelesquegovernamdápartidaaofilme,queassumeumpropósito
muitoclaro:transmitir,atravésdocinema,aimagemdaeficiênciadasações
governamentais.Essaimagemdeeficiênciaambicionacumprirumobjetivoainda
maior:mostrarumpaísqueviveintensamodernização,acaminhodeumfuturo
prósperoetransformador,noqualBrasíliaconstituiummarcoparadigmático.
AinserçãodaconstruçãodeBrasílianahistóriadoBrasiléprofundamentemarcada
poressavisãoparadigmática.Acidadeencarnadoispontosdeviradafundamentais:a
vanguardadomodernismobrasileiroqueadesenhou,transformando-aempontode
transiçãoparaumanovaexpressãoarquitetônicanacional,promessadeumanova
sociabilidade;eumgovernonacionaldesenvolvimentistaquepossibilitouasua
construção,transformando-aemmitopropulsordodesenvolvimentodopaís.
Acostumamo-nosadaronomedeparadigmaaessesmarcoscapitularesdahistória,e
herdamosessehábitodahistoriografiadaciência.Oprimeiroautilizarotermofoio
físicoefilósofoamericanoThomasKuhn.AEstruturadasRevoluçõesCientíficas,
publicadoporKuhnem1962,foiolivroacadêmicomaisdivulgadonoséculoXXe
tevemaisdeummilhãodecópiasvendidas.Graçasaodidatismodeseulivro,a
expressãomudançadeparadigmafoiincorporadaaosensocomum,aonosso
imagináriosocial,epassaaserutilizadaparafazeralusõesatransiçõesprofundas,
mesmoempráticasnãocientíficas.
Umadentretantasdefiniçõesdeparadigmanosdizqueelessãoformadospor“realizaçõescientíficasuniversalmentereconhecidasqueporumtempoprovidenciamodelosdeproblemasesoluçõesparaumacomunidadedepraticantes”(KUHN,1970:viii).Mudançasedesenvolvimentosnaciênciadão-seapartirdomomentoemqueumparadigmanãomaisconsegueexplicardeterminadosfenômenos.Emumcomplexoprocesso,antigasideias,práticaseteoriascientíficassãosubstituídasporoutrasmaisadequadaseeficazesnasoluçãodeumoumaisproblemasapresentados(KUHN,1970:92).(...)Apósamudançadeparadigma,ocientistaécomoquetransportadoparaoutromundo:“(...)depoisdeumarevoluçãooscientistasestãorespondendoaummundodiferente”(KUHN,1970:111)(CONDÉ,2005,p.129)
Essaleituradahistóriadaciênciapartirdeeventosrevolucionárioséumaideiaque
81
seestabelecenaemergênciadaciênciamoderna,eKuhnéherdeirodessatradição.
Segundoeleaciênciaésemprerevolucionária,etambémdescontínua,namedidaem
queumarevoluçãoouumamudançadeparadigmaprovocaumarupturaeuma
incomensurabilidadeentreaspartes–oquesepensavaantesedepoisdela.No
entanto,oconceitoderevoluçãonahistóriadaciêncianemsemprefoiadmitidoa
partirdanoçãoderupturaoudescontinuidade.
Revolução,nasRevoluçõesdasÓrbitasCelestesdeCopérnico,significasimplesmenteomovimentocircularerepetitivodoscorposcelestes,semqueaideiaderupturaestejapresente.Porém,aoinserir-senahistóriapolítica,revoluçãopassaadesignarruptura.Porexemplo,naRevoluçãoFrancesacomorupturacomoantigoregime.Assim,oconceitovoltaparaahistóriadaciênciajácomessesignificadoderuptura.(Cf.COHEN,1989,apud(CONDÉ,2005,p.132)
Aoolharparaalgumaspublicaçõesacercadamodernidade,vemoscomoanoçãode
paradigmaemKuhnapresentaafinidadescominterpretaçõeshistóricas,mesmonão
seaplicandodiretamenteaocampodahistóriadaciência.Tragocomoexemploo
livroModernidade:desacertosdeumconsenso(1994),deNelsonMelloeSouza,
publicaçãorecenteque,partindodapremissadequeháumababelconceitualcriada
emtornodotermo,buscacaminhosparadelineá-loemtermosfilosóficosehistóricos.
Oestudoanunciaasuaintençãodedesfazeraconfusão,opondo-seà“imprecisão
semântica”recorrentenosdiscursosacercadamodernidade.Ficaclaraasua
aproximaçãocomoconceitoderevoluçãoparadigmáticaquandoafirmaque
Pelaprimeiravez,emqualquerculturaletrada,amudançasocialinduziumutaçãonoparadigmaorganizacionaldavida.(...)Nassociedadespré-industriaisaestruturasocioeconômicajamaisfoialterada.Seusdiversosprocessosdemudançasocialrealizaram-sedentrodoparadigmada“Agrária”.Nelepermanecemporséculos;emalgunscasos,milênios.Coma“modernidade”amudançasocialproduzconsequênciasdistintas.Surgeumnovoparadigma,oda“Indústria”.(SOUZA,1994,p.14)
Paraoautor,háumaculminaçãodoprocessoindustrialeuropeu,natransiçãodo
séculoXIXparaoXX,queconstituiograndeparadigmaapartirdoqualsepodede
fatofalaremmodernidade.Passaadestilaracusaçõesaequívocoshistóricose
incongruênciasdediversosautoresquetrataramamodernidadedemaneira
diferente,eque,segundoele,caíramemarmadilhasteóricas,pecandoporexcessode
relativismo.ChegaaapontarcomoequívocaautilizaçãodotermoporBaudelaire:
Oneologismo“modernidade”surgiuemmeadosdoséculopassado.Umdos
82
primeiros,senãooprimeiro,ausá-lofoiBaudelaire22.Usou-omal,comosinônimopara“vidamoderna”,“modernização”e“modernismo”.Aconfusão,portanto,éontológica.Apalavranasceviciadaporquenasceantesdaprópriarealidadequelhedariasustentaçãosociológica.AotempodeBaudelaire,Marx,Dickens,Carlyle,tempodeindústriasiniciantes,praticamentenumúnicopaís,aInglaterra,redesferroviáriassurgindoesparsasaquieali,iluminaçãoagás,cidadespequenasderuasestreitas,poeirentasetortas,populaçãorala,economiaagrária,operaçõessemanestesiaquímica,transporteindividualacavalo,Igrejadominante,Inquisiçãoaindavivaadecretarpenademorteporquestõesmetafísicas,naviosàvela,torturainstitucionalizadaporsistemaspenaisaceitos,semrádio,semtelevisão,antibióticos,automóvel,aviões,águaencanada,comcidadesinteirassemsistemadeesgoto,nessestemposa“modernidade”estavaaindarelativamentelongedesurgirnoespaçosociocultural.OfenômenoqueBaudelairepercebia,acimadetudoporserpoeta,“sentia”,eraafluidezdatransiçãonoséculoXIX.Caminhava-seaceleradamenteparaamudançadeparadigma.(SOUZA,1994,p.19)
Portanto,comojáfoidito,suademarcaçãodoquesepoderiachamarde
modernidade,estacom“sustentaçãosociológica”,seiniciaapenasemfinaisdoséculo
XIXeprincípiosdoXX,ondesecaracterizaosurgimentodeumanovacultura,
decorrênciadoindustrialismodemassas.
Amodernidadesurgehistoricamente,provocandomutaçãoradicaldeparadigma,quandoaindústriadominaageraçãodoprodutobrutoporumladoepassaaseramaiorfontedeempregoporoutro.FenômenoperceptívelapenasentrefinaisdoséculoXIXeprincípiosdoXX,permitindoasociologiasurgirparacaptá-lo.Nuncaantes.(SOUZA,1994,p.35)
Entreossociólogosquecaptaramessatransformação,oautorcitaaobrade
FerdinandTonnies,ÉmileDurkheim,MaxWeber,GustaveLeBoneThorsteinVeblen.
Aquiloqueuniriaessesteóricosseriaofatodeadmitirqueestaríamosvivendoem
uma“épocahistoricamentesuigeneris,nãomaisfasedistintadeculturaantiga,mas
culturanova.”(SOUZA,1994,p.32–33)
Aoadmitiraexistênciadeumaculturaantigaquesecontrapõeaumaculturanova,o
autorpressupõeaincomensurabilidadeentredoisperíodosdivididosporuma
mudançadeparadigma.Causacertaperplexidadeadivisãofeitapeloautorquando
eleapontaasdiferençasentreumaculturaeoutra:
OOcidentesemprefoicristão,intoleranteparacomasoutrasreligiões,agrário,hierárquicoeritual.Anovaculturaécética,portantotoleranteparacomosincretismoreligiosoeventualmenteexistente,industrial-urbana,
22Refere-seaosensaiosHeroísmodavidamodernaeOPintordavidamoderna,escritosentre1859/60epublicadospelaprimeiravezem1863.
83
abertaemsuaestratificaçãosocialedifícilderitualizar-sedevidoàvelocidadedastransformaçõesquenãopermitemcristalizaçõesdecostumesecrenças.(SOUZA,1994,p.33)
Nãoéprecisograndeesforçointelectualparaperceberqueessacrençananova
culturaéinfundada,ou,nomínimo,idealizada.Ocaráterconservadoremessiânicodo
textodeSouzaajuda-nosaproblematizaressavisão.Estariaumanovacultura,
marcadapelamodernidade,homogeneamentedefinidapelostermosqueoautor
dispõe?Numaobservaçãosuperficialdomundoquenoscercaéfácilconstatarque
não,especialmentesedestacarmosamençãodoautoràsupostatolerânciacomo
sincretismoreligioso.Oautortomaaimprecisãodotermomodernidadecomoum
errodeabordagemasercorrigido,e,nessepercurso,tratademinimizarimportantes
contribuiçõesàconstruçãoteóricadamodernidade,comoaquelasdadaspor
BaudelaireeMarx.
VoltandoaofilmedeJeanManzon,aideiademodernidadequeofilmeprocura
mostrarécontaminadaporessaconstruçãoparadigmática:Brasíliarepresentaessa
mudança,essepontodeviradanahistóriadopaís,umcaminhoinequívocoao
progresso.Aparecenofilmeprincipalmenteassociadaàprosperidadenaindústria–
tantodaconstruçãocivilcomodosmeiosdetransporte;àexpectativadeascensão
social,refletidanaconfluênciademigrantesparaacapital,movidosporumidealde
umprósperofuturo;e,finalmente,àideiadequeaarquiteturabrasileiramodernista
viviaummomentodevanguardadiantedetodoomundo,equeissoestaria
representadonosedifícioseplanourbanísticodanovacapital.Brasília,portanto,
representariaumaculturanovasobrepondo-seaumaculturaantiga.
Éimportanteressaltarqueasideiasmodernistasimpressasnoprojetourbanísticode
Brasíliatambémprecedemdeumavisãoparadigmática.Éconhecidaaafinidade
profundaentreourbanismoquedesenhouBrasíliaeasideiasdeLeCorbusier.
SegundoMarshallBerman,oséculoXXconheceuvisõespolarizadasdavidamoderna:
porumladoumacerta“modernolatria”eporoutroumavisãocatastróficae
pessimista.ÀvisãodemodernismodaBauhaus,deGropious,deMiesvanderRohee
deLeCorbusier,Bermanassociaessa“modernolatria”,eatribuiaelesaconstrução
teóricadeuma“máquinaestética”.Essa“máquinaestética”,segundoBerman,vai
criartransformaçõesprofundasnoespaçourbanoenavidamoderna.Sobrepondo-se
84
aoambientequeseanunciaemfinsdoséculoXIX–aintensidadenotráfegoadvinda
daconcentraçãodepessoas,daintensidadedastrocas–ourbanismomodernovai
proporumanovaordem,quetemcomopreceitoprincipalevitaroconflito.
Aolongodequasetodooséculo(XX),espaçosurbanostêmsidosistematicamenteplanejadoseorganizadosparaassegurar-nosdequeconfrontosecolisõesserãoevitados.Osignodistintivodourbanismooitocentistafoiobulevar,umamaneiradereunirexplosivasforçasmateriaisehumanas;otraçomarcantedourbanismodoséculoXXtemsidoarodovia,umaformademanterseparadasessasmesmasforças.Deparamo-nosaquicomumaestranhadialética,emqueumtipodemodernismoaomesmotempoencontraenergiaeseexaureasimesmo,tentandoaniquilarooutro,tudoemnomedomodernismo.(BERMAN,1986,p.187–8)
LeCorbusierdescreveemseumanifestomodernistade1924–L’Urbanisme–uma
experiênciapessoalqueofezcrerqueotráfegoerainimigodobem-estardo
indivíduomoderno:expulsodaruapelotráfego,LeCorbusierconcluique“deixara
nossacasasignificavaque,umavezcruzadaasoleiradaporta,nósestávamosem
perigoepodíamossermortospeloscarrosquepassavam”(apudBERMAN,1986,p.
188).
ObruscomovimentoqueourbanismomodernistadeLeCorbusiervaifazeréassumir
quearuanãomaispertenceaopedestre,esimaocarro.Portanto,colocaoindivíduo
amovimentar-sedentrodocarroeconcebeespaçoscompletamentenovosqueassim
oconsidere.
Seasruaspudessemsimplesmenteserriscadasdomapa–LeCorbusierodisse,bastanteclaro,em1929:“Precisamosmatararua!”–,talvezessascontradiçõesnuncavenhamanosmolestar.Assim,aarquiteturaeoplanejamentomodernistascriaramumaversãomodernizadadapastoral:ummundoespacialmenteesocialmentesegmentado–pessoasaqui,tráfegoali;trabalhoaqui,moradiasacolá;ricosaqui,pobresláadiante;nomeio,barreirasdegramaedeconcreto,paraqueoshalospossamcomeçaracresceroutravezsobreascabeçasdaspessoas.(BERMAN,1986,p.191)
OplanourbanísticodeBrasíliaéfacilmentevisualizadonessaspalavras.Considerado
umadasrarasaplicaçõesdospreceitosdourbanismomodernoreunidosnaCartade
AtenasdeLeCorbusier,refleteafétransformadoradascidadesedasociedadeque
essespreceitospreconizavam.Elaspartemdoprincípiodequeocaosdavida
modernadeveserneutralizado,organizado,reconstituídoemumanovaordem
urbana.OqueBermanapontacomo“trágicaironiadourbanismomodernista”éa
destruiçãodavidaurbanaqueeleprópriopretendialibertar.
85
Aliados,portanto,aomodernismourbanísticodeseudesenho,atransferênciada
capitaldeveriasuperaresublimaroatrasodopaís,nãosomentedopontodevista
material,mastambémespiritual.Apósdoisséculosdeocupaçãolitorânea,Brasília
representaomomentoemqueopaísfinalmenteseinteriorizae,apartirdesse“polo
magnético”,conquistaterritórios“inexplorados”.Aconstruçãodasestradasaparece
comoforçapropulsoradodesenvolvimento.Asimbologiadamáquinaquecortaa
estradaemmeioaocerradorepresentaessedesbravamentodeterritório,deuma
batalhaaservencida,mastambémosímbolodeintegraçãonacional.
Aarquiteturamaterializaoavançotécnicoeculturaldopaís.NofilmedeJean
Manzon,asconsideraçõesacercadasobras,tantonanarraçãocomonasimagens–de
edifíciosemaquetes–,deixamclaraaintençãodemostrarqueelasrepresentamum
contrapontoaumatradiçãoconstrutivaanteriorque,apesardenãosertotalmente
evidenciada,apareceimplícitanasfalasdonarrador.
Todaessagamadeimagensefalaspositivasepromissorasemrelaçãoàcidade
formamocorpodeintençõesdofilme,que,emúltimainstância,querconvenceras
pessoasdequeBrasíliaépossível.Omundoaquiconstruídoédestituídode
contradições:éummundoondeotrabalhoininterruptoécomoumesportedivertido;
ummundoondeasmáquinasquecortamestradasapenaspromovemfelicidadee
prosperidade,adespeitodaquiloquederrubam.Éaideiadeumamodernidadeque
passanecessariamenteporumcaminhodeevoluçãoemlinhareta,transformadora
paraopaíseparaaquelesquenelaacreditam.
Noentanto,épossívelpercebertambémqueascontradiçõespresentesdesdeoinício
daconstruçãodeBrasílianãohaviamsucumbidoàforçadostratores.Apesardeo
filmenãotrazeràtonaaquestão,ficaclaroemalgumascenasqueascontradições
inerentesaoprocessodemodernizaçãopretendidopeloestadoestavampresentes:
osoperáriosquealichegamacavalooudeônibus,enquantooutroschegamdeavião;
asdurasjornadasdetrabalhoaqueeramsubmetidosostrabalhadores,queaindaà
noitepermanecemnaobra;acidadeprovisóriaemcontrapontoàcidadeplanejada
quenasce;e,principalmente,noquetangeofocodessetrabalho,todaaempreitadaé
propulsionadaporumaforçamasculina–Juscelino,seusarquitetos,seus
funcionárioseosoperáriosqueconcretizamessagrandiosarealização.
86
2.3. O corpo-máquina
OfilmedeJeanManzon,aodocumentar“asprimeirasimagensdeBrasília”,procura
abarcarasdiversaspersonagensenvolvidasnoprocessodeconstruçãodacidade:
JuscelinoKubitschek,seugrandefomentador;osengenheiros–BernardoSayãoe
IsraelPinheiro–braçosoperacionaisdeJuscelino;osarquitetos–LucioCostaeOscar
Niemeyer–mentescriativasportrásdainvençãodosedifíciosedesenhodacidade;
osoperários,grandemassanecessáriaàexecuçãodasobras;e,porfim,asmulheres,
necessáriasparaagarantiadefuturasgerações,amãequeirágerarosfilhos,ea
professora,quepassaconhecimentoaospequenosrebentos.Seriapossível
estabelecerrelaçõesentreaformacomoofilmecorporificaessaspersonagenseuma
ideiademodernidadeassociadahistoricamenteaocorpo?
Atransformaçãocrucialdosermodernoocidentalcomeçaaacontecerapartirde
umanegaçãodaexistênciamundanamedievaledeumaafirmaçãodointelectoeda
razãocomoformadeexistênciahumana.Ocorpo,nessesentido,passaaseruma
meraextensão,éobjetificadocomopertencenteàquelequeodominapelarazão,que
opossuimasnãooé,equepodeentãofazerdeleousoquebementender,aplicando
oquesuarazãopodeinculcar.Essatransformaçãoéfundamentalparaentendermos
umaformamodernadeserelacionarcomocorpo.
Ocorpomedieval,ouocorpoaindaenraizadoemtradiçõespopulares,nãoexistiaem
separadodohomem.Fazercorrerosangue,aindaqueempráticasmédicas,erauma
transgressão,eracomorasgaraaliançaentrecorpoealma.
OConcíliodeTours,em1163,proibiuaosmédicosmonásticosfazercorrerosangue.AprofissãomédicamudanoséculoXII,decompondo-seemdiferentescategorias:aqueladosmédicosuniversitários,clérigosmaishábeisemespeculaçõesdoqueemeficáciaterapêutica.Elesintervêmapenasparaosdoentes“externos”semtocarnocorpododoente.Aqueladoscirurgiões,quecomeçaverdadeiramenteaseorganizarnofinaldoséculoXIII,eagemnoâmbitodointeriordocorpo,ousandotransgredirotabudosangue.Sãofrequentementeleigos,desprezadospelosmédicos,porcausadesuaignorânciadosaberescolástico.(LEBRETON,2013,p.58–9)
Sepodemosencontrar,nodecursodahistória,algunsacontecimentossingulares
fundamentaisparaessatransformaçãonaformadeencararocorpo,podemoscitaro
desenvolvimentodamedicinaanatômica:éelaquevaicumprirefetivamenteessa
87
transgressão.AsprimeirasdissecaçõesoficiaisvãoocorrernoiníciodoséculoXV,na
ItáliadoQuatroccento.ApráticavaisebanalizarnaEuropadosséculosXVIeXVII,
tendocomoobrafundamentaloDecorporishumanifabrica(1543),deVesalius.Na
medidaemquesesubmeteocorpoaosabercientífico,admite-sequeelepodeserum
objetoseparadodoserhumanoqueoencarnou,eaísedáumarupturafundamental:
nãoseéumcorpo,massetemumcorpo.
ApartirdoséculoXVII,afilosofiamecanicistanaEuropaOcidentalpassaaevitaras
causastranscendentesnasreflexõesacercadanatureza,perdendoasuabase
religiosa,paraaproximá-lasàrazãodohomem.AastronomiaeafísicadeGalileuvão
introduzirumafraturaepistemológicaondeasfórmulasabstratasdamatemáticavão
refutarosdadossensoriaiseosentimentodeorientaçãodohomemnoespaço.A
natureza,portanto,esvazia-sedosseusmistériosparatornar-seumartefato
mecâniconasmãosdohomem.Oconhecimentodeveserútil,racional,despidode
sentimentoecapazdeproduzireficáciasocial.
Nafilosofia,opensamentodeDescarteséreveladordasensibilidadedeumaépoca,
mastambém,fundamentalparaaconstituiçãodaracionalidademodernaedo
dualismoentrementeecorpo.Descartesvaiescrever:“Ouniversoéumamáquinaem
quenãoháabsolutamentecoisaalgumaaconsideraranãoserasfiguraseos
movimentosdesuaspartes”(LEBRETON,2013,p.102).Ametáforamecânica
cartesianaatribuídaaouniversotambéméverdadeemsuaatribuiçãoaocorpo.
Descartesvaiestabelecerumestatutodesubordinaçãodocorpoàmente,opondo-os
emumaradicaldualidade:oindivíduoencontra-sedivididoemduaspartes,ocorpoe
amente,soldadospelaglândulapineal.EmseuDiscursodoMétodo(1637),Descartes
consideraumaradicaldualidade:amente,oua“alma”,éinteiramentedistintado
corpo.Aalmaseriaarepresentaçãodoeuesuaessênciaounaturezaconsistiria
apenasnopensar,nãodependendodequalquercoisamaterialparaexistir.Essa
dualidademente/corpojáhaviasidoantecipadanopensamentofilosóficodesde
Platão.Noentanto,Descartesvemreforçaraseparaçãoentrealmaenaturezanuma
oposiçãodesuperioridadedaprimeiraemrelaçãoàsegunda.Eessanaturezaincluia
naturezadocorpo.Arelaçãoqueopensamentoracionalmodernoestabeleceucomo
corpoencontrareflexosnohomemcartesiano,compostoporumacolagementreuma
88
almaquesóencontrasentidonopensar,eumcorpo,oumelhor,umamáquina
corporal,reduzidaaumasimplesextensão.
...everdadeiramentepode-semuitobemcompararosnervosdamáquinaqueeuvosdescrevoàstubulaçõesdasmáquinasdessasfontes;seusmúsculoseseustendõesàsdiversasengrenagenserecursosqueservemparamovimentá-las;seusespíritosanimaisàáguaqueosmove,cujocoraçãoéafonteeasconcavidadesdocérebrosãoosolhares.Alémdisso,arespiraçãoeoutrastaisações,quelhesãonaturaiseordináriasequedependemdocursodosespíritos,sãocomoosmovimentosdorelógiooudeummoinhoqueocursoordináriodaáguapodetornarcontínuo.(LEBRETON,2013,p.120)
MesmoseopondoaodualismoestabelecidoporDescartes,outrospensadorescomo
EspinosaeHumeadmitemmenteecorpocomoduascategoriasdistintasdeanálise,
aindaqueestabeleçamainterdependênciaentreelas.23Ouseja,afratura
epistemológicamodernaentrecorpoementepermanece,muitoemboraelaváser
tratadaapartirdesuainteração.Portanto,ocorpo,enquantocategoriaseparadado
serhumano,ecomosuaposse,éumainvençãomoderna.
Caberessaltarqueessaconcepçãopassadeantemãoporumanegaçãodeumcorpo
“grotesco”,comoafirmaLeBreton,ocorpopopular,aquelepresentenasfestas
medievais,noscarnavaisderua,queestãonocernedasociabilidade,principalmente,
noséculoXV.Nessasfestas,oscorpossemisturavamindistintamenteemruase
praçaspúblicas,constituindoumaefusãocoletiva,mediadapelocontatofísicodireto.
Essasociabilidade,levadaaoseuextremonasfestaspopulares,épartedocotidiano
dacidademedieval.SegundoAlainCorbin,osodoresdaParisnaprimeirametadedo
séculoXVIII,frutotantodaaglomeraçãodoscorposnoespaçopúblico,comodos
humoresprovenientesdelatrinas,mercados,etc.,vãodespertaravigilânciados
higienistas.Oconfinamentoeaaglomeraçãopassamaservistoscomosinônimode
doença,fetidão,e“apercepçãodosperigosdasemanaçõessociaislevaàdesconfiança
paracomamultidãopútrida,opovoeosanimaismisturados”.(CORBIN,1987,p.66).
Umanovasensibilidadeemrelaçãoaosodorespassaaseinstalarnamedidaemquea
necessidadedeindividuaçãoétambémcrescente.Aintolerânciaparacomoodordo
outrofazpartetambémdaconstituiçãodeumasensibilidademodernaemrelaçãoao
corpo.
23Verpp.122a124.
89
Ocorpogrotescoéformadoderelevos,deprotuberâncias,eletransbordadevitalidade,estámescladoàmultidão,indiscernível,aberto,emcontatocomocosmo,insatisfeitocomoslimitesqueelenãocessadetransgredir.Éumaespéciede“grandecorpopopulardaespécie”(Bakhtin),umcorpoeternamenterenascente:grávidodeumavidaanasceroudeumavidaaperder,pararenascerainda.(LEBRETON,2013,p.47)
Aconcepçãomodernadearquiteturavaisefundamentarnessatentativade
dominaçãodanaturezapelaaçãoracionalhumana.Anecessidadedemodernização
dascidadespassapelodesejodehigienizá-las,desepararsuasfunções,dedominaro
caos,deordenarofluxodoscorpos.Nessesentido,aarquiteturaacompanhao
desenvolvimentodasoutrasciênciasdesdeorenascimento,natentativadecriar
soluçõesdecontroledanaturezapelohomem,dedesenvolverdispositivosque
atendamàsnovasnecessidadesdedeslocamentoefixação,equetambémajudema
moldaraaçãohumana–corpórea–noespaço.
Aatividadedoprojetoemarquiteturasurgehistoricamenteapartirdaseparação
modernaentrecorpoeespaço.Atéarenascença,oarquitetoeraoconstrutor,eo
desenhoerautilizadoapenaspararealizaçãodecroquisduranteaobra.Apartirdo
renascimento,aarquiteturapassaaserconceituadaeentendidacomodisciplina
intelectualmenteelaborada,eoprojetopassaaserinstânciaessencialnaconcepção
arquitetônica–pensar,calcularedesenharantesdeconstruir.
Conceberconceitualmenteoespaçoimplicariaemconhecerprofundamenteas
relaçõesentreindivíduos,naturezaesociedade.SegundoArgan,éparteda
conceituaçãodarenascençaacrençadequeosantigosteriamestabelecidodeforma
maispurasuarelaçãocomanatureza,eissoestariarefletidonaformacomo
representavamsuasedificações:“...osantigoseramosmaioresconhecedoresda
natureza,poiseramaquelesquenanaturezaedanaturezadeviamextrairtodosos
elementosdesuavidaespiritual”24(ARGAN,1973,p.15).Comoessarelaçãonãoera
maispossívelaoindivíduomoderno,devidoàevoluçãodaciênciaedareligião,era
precisoresgataressemodelodeconstruireracionalizá-loàluzdamodernidade.A
renascençavaibuscar,portanto,naarquiteturadaGréciaClássica,arelaçãoentre
corpoeespaçoasertomadacomoidealeaserreproduzidacomomodeloválido.Essa
24Traduçãolivrede:“...losantigoseranlosmásgrandesconocedoresdelanaturaleza,puestoqueeranlosqueemlanaturalezaydeLanaturalezadebíanextraertodosloselementosdesuvidaespiritual”.
90
concepçãofoifundamentalparatodaaliteraturamodernaproduzidaacercada
arquitetura:aracionalidadeexistentenasteoriasdecomposiçãoeaplicaçãodos
elementosclássicos,jáémoderna.
Conceitualmente,éaquelamáquinacorporalcartesiana,comoumasimplesextensão,
queLeCorbusiervaiteremmenteaoelaborarseusprojetos,esemanifesta
principalmenteapartirdaadoçãodosistemademedidasporeleelaborado:o
Modulor.Essesistema,pensadoapartirdeumcorpohumanopadrão,deveriaaplicar-
seaoprojetocomoumtodo,desdeasmedidasdemobiliário,atéalturasdepé-direito
eproporçõesdefachada.ApalavraModulorécompostaapartirdemodule,ouseja,
unidadedemedida,esectiond’or(seçãoáurea),proporçãoclássicareproduzidapor
todaarenascençaeincorporadaporLeCorbusier.ApublicaçãoModulor1,de1948,
temcomosubtítuloEnsaiosobreumamedidaharmônicaàescalahumanaeaplicável
universalmenteàArquiteturaeàMecânicaModerna.Aoiniciarseusestudosacercado
Modulor,porvoltade1942,LeCorbusiereracontratadodaAssociaçãoNacional
FrancesaparaEstandardização(AFNOR),órgãoquetinhacomofunçãoauxiliara
reconstruçãodopaísnopós-guerra,eestabelecerumapadronizaçãodemedidasna
construçãocivil.Emumprimeiroestudo,LeCorbusiersolicitaaumdeseus
assistentes:
Tomeumhomemcomobraçolevantadocom2,20mdealtura,inscreva-oemdoisquadradossuperpostosde1,10m,coloque-oacavalosobreosdoisquadradoseumterceiroquadradoresultantelhedaráumasolução.Olugardoânguloretodevepoderajuda-loacolocaroterceiroquadrado.Comesteenredado,regidoporumhomeminstaladonoseuinterior,estouseguroquechegaráaumasériedemedidasquepoderãocolocardeacordocomaestaturahumana(obraçolevantado)eaMatemática.
Esseeraapenasumprimeiroestudoqueconsideravaumhomemcom1,75mde
altura.ApósapublicaçãodoModulor1,seguem-seumasériedeadaptaçõessugeridas
pormatemáticos,engenheiros,etc.,equesãoincorporadasaumnovosistema,
aperfeiçoadonoModulor2,publicadoem1950.LeCorbusierchegaentãoaum
padrãodefinidoapartirdeumhomemcom6pésdealtura,ou1,829m,
proporcionadodeacordocomaseçãoáureaeasequênciadeFibonacci.
OconceitodoModuloraparececomoumametáforadopensamentodeLeCorbusier
acercadarelaçãomodernistaentrecorpoeespaço,operandoemtermosde
91
concepçãoarquitetônicaaquelemesmopensamentomecanicistarelacionadoao
corpocartesiano.Considera-seumtipoparaocorponatentativadeseencontrar
proporçõesarquitetônicasideais,equesópoderiamderivardeumcorpocom
proporçõesideais–umhomemcom1,829mdealtura.Umcorpoidealizadoe
genérico.
Queassociaçõespoderíamosfazerentreessavisãomodernadocorpoeaformacomo
JeanManzoncorporificasuaspersonagensnofilmeAsprimeirasimagensdeBrasília?
Levandoemcontaoalinhamentodocineastacomasintençõespropagandísticasde
seuscontratantes,nãoerainteressantepsicologizaressaspersonagens,aprofundar-
seemsuascontradições,massimesquematizá-losdentrodeumalógicaque
favorecesseaintençãoinicial:atribuirposiçõesaessaspersonagensquedialogassem
comodiscursofavorávelàmodernizaçãodopaís.
Dessaforma,vemosaspersonagensposicionadas,emsuarelaçãocomoespaçoda
construção,apartirdeumacertahierarquia,refletidanaformacomoessescorpos
sãocolocadosemcena.TomandoprimeiramenteJuscelinoKubitschek.Eleéocorpo
altivo,pensante,omentorvisionárioqueobservaacidadesempreapartirdeum
pontomaisaltoqueosdemais(abordodeumavião,notopodeumedifício).Tantoo
seuolharapartirdoavião,comoaconversacomIsraelPinheironoaltodeumprédio
enquantoapontamparaohorizonte,mostramumhomemquedominaasuacriação.
Demaneirasimilarvemosposicionadososengenheiros,braçosoperacionaisdo
mentorJuscelino:BernardoSayãoaparecedoaltodeumaplanície,aolhareapontar
paraasestradasquesãoabertasportratores,enquantosupostamenteexplicaaoseu
subordinado–ooperário–asdiretrizesdoprojetoquedeveráseguir;poroutrolado,
IsraelPinheiroaparecejuntoaJuscelino,emumavisitaàsobras,eseusgestosdãoa
entenderqueestátransmitindoaopresidenteoandamentodasconstruções.Essas
duaspersonagenssãoassimcorporificadasemsuahierarquia:submetidasao
presidente,superioresaosoperários.
Jáosarquitetosaparecemencerradosnoespaçodoescritório.Nãoháqualquer
imagemqueosmostrenocanteirodeobras.Esseescritóriopoderiaestarem
92
qualquerlugar25.Dequalquerforma,essacolocaçãodosarquitetosencerradosem
seuescritório,àsvoltascomasmaqueteseplantasdeBrasília,reforçama
corporificaçãodelesnofilmecomomentescriativas,oseudomínioéodasabstrações
–oprojeto,amaquete.Elesrepresentamumcertoisolamentoemrelaçãoàrealidade
daconstrução–sãoamente,aracionalidadecriativa,opensamentoacercadacidade.
Osoperários,personagensqueaparecememmaiornúmeronofilme,são
corporificadosprincipalmenteemgrupo:agrandeforçabraçalquepossibilitaráde
fatoaconstruçãodacidade.Pormeiodeseuscorposémostradaaforçanecessária
paralevantarosedifícios,paraseempurrarumaenormetubulaçãoquedeverá
conduziraágua,pararebitarvigasdemetal,mesmoduranteanoite.Emgrupo
tambémsãomostradosachegarnacidade,sejadeônibusouacavalo.Hátrês
momentosapenasemqueosoperáriossãomostradosemprimeiroplano,
individualizados:noprimeiro,umoperárioquerecebeordensdoengenheiro,onde
ficaclaraaíasuasubordinação–éoprimeirooperárioapresentadonofilme;no
segundo,umoperárioapareceatomarbanhoemumbanheiroimprovisado,a
mostraraíqueexisteinfraestruturaparaqueessestrabalhadorestenhamcondições
devidadignasduranteasobras–nessemomentotambémooperárioécaracterizado
comonordestinopormeiodeseuchapéu,deformaacriaraliumaidentidadecomo
grandecontingentedemigrantesdessaregião;e,finalmente,umoperárioémostrado
emseuretornoparacasa,quandoencontrasuamulher,encenandoalianarrativada
famíliaquevaiconstruirofuturodeBrasília.
Ocorpofemininoémostradonofilmeapenasemtrêsmomentos:noprimeiro,
mulheresmontadasacavalo,carregandoseusfilhos;nosegundo,aprofessorado
grupoescolarlecionaparaseusalunos,crianças;eporfim,aesposaaguardao
operárioaochegaremcasa.Naprimeiraapariçãonofilme,seuscorposaparecem
associadosàmaternidade–amãeque,juntoaoutrasmães,carregamseusfilhosna
chegadaàBrasília.AnoivadoBrasil,mencionadananarraçãonoiníciodofilme,se
materializanafiguradessasmães.Nasegundaaparição,temosaprofessora.Muito
emboraelanãoapareçacomomãe,estáaliaoladodogrupodecrianças,seusalunos,
25ÉprovávelquesejaoescritóriodeLucioCostanoRiodeJaneiro,jáqueomesmoestevepresentenolocaldaconstruçãoapenasumavez,paravisitaaosítio.
93
afuturageraçãodeBrasília.E,porúltimo,afiguradaesposa,aquelaqueesperapelo
maridoemcasaànoite,apósasuajornadadetrabalho.
Emcontrapontoàformacomoocorpomasculinoéapresentadonofilme–ativoe
trabalhadornasobras;aquelequeolhaacidadedoalto;aquelequeidealizaacidade,
manipula-aatravésdemaquetes–ocorpofemininoapareceaquiresignadoaopapel
demãe,émostradocomoaquelequecarregaascrianças–nocoloounaescola–e
que,alheioaosacontecimentoseàatividadedohomem,espera-oemcasa.Seucorpo
éassociadoassimaoambientedoméstico,nãoparticipaativamentedaconstruçãoda
cidade.Mas,noentanto,paraqueacidadepossaprogredir,énecessárioqueele
estejaaliparagarantirosprimeirosfilhosdeumanovaera.
EsseesquemacriadoporJeanManzonposicionaaspersonagenscomocomponentes
deumaengrenagemnecessáriaparaosucessodaconstruçãodacidade.Ametáfora
docorpo-máquinafuncionaaquinãosomenteaplicadaacorposindividualizados,
mastambémaumesquemaracionalqueorganizaessescorposemtornodeum
objetivomaiorqueéamodernizaçãodopaís.Nãohácontradição,nãoháerro,nãohá
retorno:essaengrenagem,sebemarticulada,farácomqueopaíssigaoseucaminho
inquestionávelaoprogresso,tendoBrasíliacomopontodeinflexão.Maisqueuma
narrativaencerradaemdezminutos,ofilmedeJeanManzonnosmostraumlado
importantedahistóriaelaboradaacercadacidade,quetemmuitasafinidadescoma
históriaescritaqueseproduzianomesmoperíodo.Noentanto,aocoloca-lasem
imagens,elapermitequepossamosobservarcomoserevelamessasrelaçõesentre
corpoecidade,organizadassegundoesseesquema,eainda,aobservarqueamulher,
apesardepoucoaparecernahistóriaoficialdaconstruçãodeBrasília,temumlugar
definidonessaengrenagem.
95
3. Modernidade, contradição e corpo provisório
3.1. Filme: Brasíl ia, capital do século (1959) Direção:GersonTavares.Documentário,10’48”
Ofilmeseiniciacomascartelasdetítuloecréditossobrepostasàimagemdeum
mapadoBrasilColônia26,numageografiaimagináriadopaísnesseperíodo:grandes
rios,vegetaçãoabundante,habitantesnativoseatéanimaisaladoscompõemessa
cartografia.Amaravilhaderiquezasimaginadaspeloseuropeusaochegarnesse
território.Sobreessasimagens,emvoiceover,onarradoriniciasualocução:
Cumprindoumimperativoconstitucional,eefetivandoumpensamentoeumaaspiração
delongadata,opresidenteJuscelinoKubitschekestáconstruindoBrasília,anova
capitaldoBrasil.
26MapadePierreDescelliers,cartógrafofrancês,realizadoem1546.OriginalnaMapotecadoItamaraty,RiodeJaneiro.
96
Asrodasdeumagrandemáquinaemmovimentoemergemnatelapreta,acâmera
acompanhaseumovimentolateral;numplanoaberto27,vemosomesmotrator
operadoporumhomemdechapéu;numplanomédio28,vemososeurostoenquanto
dirigeamáquina.Nasequência,aindaemplanomédio,orostodeumhomemque
operaoutramáquina;emumplanoaberto,vemosamáquinaqueestehomemopera,
tendocomofundoumedifíciodeBrasíliajáconcluído;acâmerasemovimentaentão
emdireçãoàsentranhasdamáquina.Umsomdemotoracompanhatodaessa
sequência.Nessaintroduçãodofilme,homememáquinasãomostradosemumjogo
dealternânciaecomplementaridadequepersonificaamboscomoengrenagensa
executaraquiloqueanarraçãoexplicita:Surgindonoplanaltocentraldoterritório
brasileiro,Brasíliaestásendoconstruídasobreumaplanificaçãoaomesmotempo
orgânicaeracional...
Vemosagora,emprimeiroplano,oesqueletodaestruturametálicadeumedifício,
comacâmeraaoníveldochão.Anarraçãocontinua:...ematerializadacomoobjetivo
aposteriorideumatransformaçãoeconômicadoBrasil.Implantam-senodesertoos
germensdacivilizaçãodolitoral.Nessemomento,umatrilhainstrumental,eletrônica,
atmosférica,substituiobarulhodosmotoreseacompanhaaofundoanarração.A
27Enquadramentonoqualacâmeraestádistantedocorpofilmado,queocupaumpequenoespaçonoconjunto,constituindoumplanoqueajudaaambientarespaçoecorpo.28Enquadramentonoqualacâmeraestápróximadocorpofilmado,masaindadeixandoveralgodocenárioaoredor,constituindoumplanoqueaproxima-sedocorpoembuscadesuaexpressão.
97
câmerainiciaumlentomovimentopanorâmicopelaplaníciedeondeemergea
estrutura.Anarraçãoéinterrompida,eemseugiroacâmeraencontraumônibus,
queentraemquadro,pára,eporsuaportadescemtrêshomens.Atrilhaseacentua,
acompanhadaagoradosomdebatidas,marteladas,enquantoacâmeracontinuaseu
movimento.
Deixamosoônibusevemosaolongeumasequênciadeblocosdeestruturasmetálicas
(EsplanadadosMinistérios),umdelestomanovamenteoprimeiroplano;aofundo,o
CongressoNacional.Seugiroterminaemumguindaste,posicionadoemfrenteà
estrutura.Acâmeraacompanhaentão,emmovimentoascendenteesemcortes,o
mastrodoguindaste,chegandoatéseucume,ondeestápenduradaumavigametálica.
Anarraçãoéretomada:Entusiasmodedicadoaotrabalhocomum.Constrói-seum
futuroquesepodedefinirimprevisível.Nesseplanosequência,quecompletaumgiro
de180onaEsplanadadosMinistérios,asobrasdacapitalsãomostradasapartirde
umaarticulaçãoentrepessoasemáquinas–osoperáriosquedescemdoônibusno
inícioeoguindasteaofinaldoplano.
98
Vemosagora,defrente,oCongressoNacionalaindaemobras.AcúpuladoSenadojá
estáconcretada;aCâmara,aindaentreandaimeseestacas;astorres,emsua
estruturametálica.Naimagemseguinte,operáriosorganizamnochãoalgumasvigas
metálicascomaajudadeumamáquina,tendoaofundoaestruturadeumedifício.
Nenhumapedra,nenhumsulcoqueocupelugarquenãosetivessepensado.Acâmera
iniciaentãoummovimentoascendente,atéotopodastorresdocongresso.
Numanovaimagem,emcontra-plongèe29,entreastorresdocongresso,vemosum
homemcaminharemumdosandares,porsobreaviga.Osaglomeradosurbanos
foramcriadospelohomem.Doisplanosrápidosdeoperáriosquetrabalhamoferro,
nochão:Estaéacidadecriadaparaohomem.Ocortesecodeumamartelada.
29Posicionamentodacâmerasegundooqualumobjetoéfilmadodebaixoparacima;oseucontrário–plongèe–consisteemfilmaroobjetodecimaparabaixo.
99
Acâmeraagoraestábempróximaàestruturae,numtravelling30vertical,sobeao
longodeseusandarescomoummovimentodeelevador.Atrilhaeletrônicareproduz
oquepareceserumabatida,umecometálico.Décimosegundoandar,masaindamais
altoselançaráoaço.Oelevadorpára.
Nessassequências,agrandiosidadedosedifíciosdeBrasíliaéacentuadapelatrilha,
quecriaumaatmosferafuturística.Asestruturasmetálicaseaforçadoaçosão
contrapostasaotrabalhohumano,ressaltandotambémasintençõeshumanísticasdo
planoparaBrasília–acidadecriadaparaohomem–assimcomoassuasambições
estratégicas–oobjetivoaposteriorideumatransformaçãoeconômicadoBrasil–ea
racionalidadeempreendidaemseuprojeto–nenhumapedra,nenhumsulcoqueocupe
lugarquenãosetivessepensado.Aconstruçãoimagéticaressaltaessesaspectosa
partirdemovimentosdecâmeraensaiadoseprecisos:osplanosdebaixoparacima
(contra-plongée)ressaltamagrandiosidadedasobras;amovimentaçãopanorâmica
dacâmeraespacializaacidadenumaracionalidadeprevisível.Noentanto,anarração
falaemumfuturoquesepodedefinirimprevisível,assumindoumcertotomdecrítica
àsintençõesgeraisdoprojeto.
30Movimentosegundooqualacâmerasedeslocanoespaçopararegistrarumobjeto.Podeserlateral,quandoacâmerasemovimentahorizontaleparalelamenteaoobjeto;frontal,quandoacâmerasemovimentaperpendicularmenteaoobjeto;ouvertical–comoéocaso–quandoacâmerasemovimentaparacimaouparabaixo.
100
Emvoodepássaro,vemosaCidadeLivre,umaglomeradodensamentepovoado,com
largasruasdeterra,comummovimentointensodecarrosepessoas.Atrilhaque
ouvíamosnasequênciaanteriorseesmaeceaospoucos.Comacâmeraagoraaonível
dochão,vemosumaruadaCidadeLivre.Numlentomovimentolateral,pessoase
carroscirculam,vemosváriaslojas,letreiros.Atrilhamudabruscamenteparaosom
deumaviola.Noscanteirosdeobras,nascasasdemadeiradosacampamentos,na
cidadeprovisória,chamadaCidadeLivre,oscandangos,brasileirosvindosdetodasas
regiões,sãoosesforçadosrepresentantesdeumaverdadeedeumdestinoparaopaís.
Emcontrapontoàsimagensdasobrasdaarquiteturamodernista,essasequência
introduzocontextodevidadostrabalhadoresdacapital,avidaemsuacidade
provisória,ocotidianodaquelesqueconstroemacidade.Amudançabruscadetrilha
acentuaocontraste:umatrilhaeletrônicaparaafuturísticacidade,emcontrapontoà
modadeviola,paraoBrasilarcaico,provisório,ligadoaraízesregionais,onde
habitamosesforçadosrepresentantesdeumaverdadeedeumdestinoparaopaís.
Vemosagoraospésdeduaspessoas,umadefrenteparaaoutra:calçambotasem
estilocowboyevestemcalçajeans.Acâmerainiciaumtravellingvertical,apercorrer
ocorpodaspersonagens,queseguramfrutasnasmãos.Conformeacâmerasobe,
percebemossetrataremdeduasmulheres,decabeloscurtos,conversando:Nas
atitudes,sãoevidentesenaturaisaspretensõespioneiras.Aqui,ocineastaparece
querernosmostrarcomoessaspretensõespioneirasserefletemnovestuário,no
cortedecabelos.Aprimeiraimpressãoaovermossomenteospésdaspersonagens,
pelasbotasecalças,podeserdequesetratamdedoishomens.Omovimentoda
câmerabrincacomessaduplicidade,paramostraressepioneirismorefletidono
corpodessasmulheres.
101
Voltamosaocanteirodeobras,umhomemrebitacomumamáquinaaestrutura
metálica.Umoutroretiraorebiteincandescentecomumapinçaearremessapara
outro,queorecolhecomumfunil,repassando-ocomumapinçaparaumquarto
operário,queagorarebitaaestruturametálicacomumamáquina,juntoaomesmo
operárioquevimosinicialmente.Habilidade,destreza,domíniodatécnicademonstram
essesoperários.Ontemsimplescamponesesevaqueiros,ignoravamaexistênciadas
máquinas.Seguem-seváriosplanosdociclodotrabalhoderebitaraestrutura,os
operárioscaminhandoentreasvigas,penduradosàestruturametálica.Àsvezes,com
avidapagamopreçodaconquista.
UmnovoplanoabertodoCongressoNacional,atrilhaeletrônica,voltacommais
força.Umcaminhãocruzaoquadro,emsuaportaestáescritoNovacap,acâmera
deixaocongressoeacompanhaoseumovimentolateral.Ocaminhãosaidequadroe
vemosagoraosblocosdeestruturametálicadosministérios.Numaimagemapartir
dapartedebaixodarampadocongresso,umoperáriocruzaoquadroemcontraluz,
vemostambémandaimeseomovimentodaobra,aesplanadaaofundo.
102
Nummovimentopanorâmico,acâmeramostraosoperáriosquetrabalhamnacúpula
invertidaondeseinstalaráaCâmaradosDeputados,entreandaimeseferragens.
Protegidosporumacúpulaampla,sentar-se-ãoosfuturoslegisladoresdoBrasil.Ao
terminarseumovimentolateral,acâmerainiciaummovimentovertical,mostrando
novamenteaofundoosblocosdeestruturametálicadosministérios.
VoltamosparaumaruadaCidadeLivre,eatrilhanovamentemuda,demaneira
brusca,paraosomdeumaviola.Nãoparaesteoperosoaglomeradoderaçasede
coresserãoelaboradasasleis,poisestedesaparecerácomoiníciodavidadeBrasília,a
capitaldeamanhã.Seguem-seentãoalgunsplanosdosmoradoresdaCidadeLivre:
103
umgrupodehomens,emcontraluz,conversaemfrenteaumaloja;umhomemque
conversacomumamulherescoradaaumposte;acalçadadelojaseomovimentode
pedestres.Asmulheresaparecemnessasequênciaacompanhadasdehomens,
inseridasemumcotidianodacidade,esendocortejadasporeles.
Nessasduassequências,sãocontrapostosofuturoeopresentedacidade,como
excludentesumaooutro:oslegisladoresqueseinstalarãonacúpula,oraem
construção,nãolegislarãoparaopovoqueagoraocupaacidade.Elesnãosãoo
futuro.Enãosomentedepessoas,aquisefaladeumacidadesesobrepondoaoutra.A
CidadeLivre,resiliente,permanece,adespeitodaintençãodeprovisoriedade.
Novamenteestamosnocanteirodeobras,eumaimagempanorâmicamostraum
grandecanteiro,ondeferrossãodobrados,barracõesdeobraaofundo,muitos
operárioscirculamporali.Atrilhaeletrônicaretorna.Édagangueescuradasmãos
dostrabalhadoresqueestãosurgindoasjoiasdaarquiteturabrasileira.Gigantescos
movimentosdeterraforamrealizadosparaqueacidadesejaperfeita.Aimagemdeum
novocanteiro,tambémemmovimentopanorâmico,mostraedifíciosresidenciaisem
obrasaofundo,eemprimeiroplanobarracõesdemadeira.Constroem-seprimeiroos
edifíciosdestinadosaacolherosorganismosindispensáveisavidadeumanação.Os
técnicospossuemacomodaçõesprovisórias.
104
VemosagoraacapeladoPaláciodaAlvorada,jáconcluída.Acapelaconvidaao
chamadomísticodafé.Acâmerainiciaummovimentolateral,revelandoopalácioao
lado,tambémjáconcluído.Atrilhaeletrônicaseacentua.Noplanoseguinte,estamos
nointeriordopalácio,todomobiliado.Umhomemcaminhacruzandooquadroea
câmeraacompanhaseumovimento,eleatravessaagrandesala.OPalácioda
Alvorada,residênciadopresidentedosEstadosUnidosdoBrasil,jáseencontrapronto.
Sóbriaenecessáriadecoraçãodosinterioresacompanhaharmonicamenteaconcepção
estrutural.Váriosplanosmostramointeriordopalácio,comsuamobíliaeobrasde
arte.
105
Noavarandadodosegundoandar,doishomensolhamparaohorizonte.Acâmerafaz
ummovimentopanorâmico,mostrandoosarredoresdopalácio.Peloladodefora,a
câmerapasseiaaolongodafachadadopalácio,emumtravellinglateral,entrecortado
pelaspalmeirasdojardim.
Aconcepçãoplásticadenunciaumaunidadecriadoraedáatodaacidadeamarcacaracterísticadeumsótempo(grifomeu).TodososprojetosdosedifíciosdeBrasílialevamaassinaturadeOscarNiemeyer.Éasuaobradefinitiva.“Dogestoprimáriodequemassinalaumlugaroudeletomaposse,doiseixoscruzando-seemânguloreto,ouseja,doprópriosinaldacruz”Destasoluçãosimples,nasceuoplanodeBrasília.Autor,LucioCosta.
Acâmeramostraumhomemquelêumarevista,emfrenteàIgrejinha.Vemosnessa
cenaumpaineldeAthosBulcão,naentradadaIgreja,quehojenãomaisexisteA
câmeraacompanhaoedifícioemummovimentoascendente,atéotopodaigreja
ondeestáosinaldacruz.Emumplanoaberto,vemosafachadalateraldaIgrejinha,
concluída,masaindasemosazulejosdeAthosBulcão.Umoutroplanomostraa
frentedaigreja,homensemulherescirculamporali.
106
Foramapresentadasnessassequênciasasjoiasdaarquiteturabrasileirajá
executadas,frutodasmãosdostrabalhadores.Aparecemapósumaintroduçãoque
mostraasacomodaçõesprovisóriasdosoperários,emcontrapontoaosedifícios
destinadosaacolherosorganismosindispensáveisàvidadeumanação.Apesarda
constantealternânciaentreobraeoperários,aofilmaroPaláciodaAlvoradaea
Igrejinhasãoadotadosmovimentosdecâmeraqueacompanhameressaltama
composiçãoplásticadosedifícios–otravellinglateralnoPaláciodaAlvorada,a
panorâmicaverticalnaIgrejinha–eanarraçãotrataderessaltarseusatributos
técnicoseartísticos.Omovimentodaspessoasquecirculamnessesedifícioséquase
coreográfico.
VoltamosàCidadeLivre,novamentesobatrilhadamodadeviola.Vemosagoraum
grupodetrêscrianças,queolhamparaacâmera.Brasileirosdeamanhã.Paraeles,o
futuroreservaimprevisíveishorizontes.Seguem-seváriosplanosdocotidianona
CidadeLivre:umhomemescoradoaumaônibusconversacomoutropeloladode
dentro;umcavaloparadoemfrenteaumaloja;umhomementraemumônibuscujo
107
letreirodizTaguatinga;doismeninoscaminhampelaruacarregandobancosde
madeira;pessoaspercorremacalçadadaslojas;umaimagempanorâmicamostraum
grandeaglomeradodepessoasemumafeiraemfrenteaoedifíciodomercado;vários
planosdomovimentodepessoasnafeira.Nessesplanos,éevidenteadiscrepância
entreonúmerodehomensemulheresnocotidianodaCidadeLivre.Umadelas
circulaporumacalçada;outraatravessaarua;entreamultidãodafeira,vemos
passarapenasduasmulheresqueandamjuntas;asequênciaterminacomoplanode
umamulhernegra,comumguarda-sol,acompanhadadesuafilha.
Acâmeranosmostraagora,emtravelling,váriasmulheressentadasolhando
diretamenteparaalente.Masaqui,problemassériosquenãoconhecemaindaresposta.
Acâmeraterminaseumovimentonaportadoestabelecimentoaofundo,ondeestão
depédoishomenseumamulher.Todosolhamparaacâmera.
Vemosagoramulheresquelavamroupaàbeiradeumriacho,algumaslavamospés,
conversamentresi.Longedofragordasmáquinasedosmartelos,anaturezaauxiliaas
necessidadesdosquevivemopresente.
NessassequênciasdaCidadeLivre,aproximamo-nosmaisaindadaspessoasqueali
vivem,aimagemdosbrasileirosdeamanhã.Ograndeaglomeradodepessoasem
tornodafeira,ascriançasquecaminhamsozinhaspelasruas,asmulheresque,
sentadasladoaladoolhamparaacâmera,aimagemdaslavadeirassãoretratos
108
próximosdessarealidadecujodestinoéincerto,longedofragordasmáquinasedos
martelos.
Voltamosaocanteirodeobras.Osoperáriosdeixamotrabalho,seguematé
caminhõesqueoscarregamaosmontes.Váriosplanosdosoperárioscaminhando,
elespassamemfrenteàcâmera,oscaminhõesseguemapinhadosdeoperários.
Acabadootrabalho,Brasíliaperdeasuaprópriaalma.Emortaéemverdadetoda
cidadesemapresençahumana.Paracasacomansiedade,quealguémestáàespera.
Ofilmeterminacomimagensdealgunshomensemtornodeumafogueira,àbeirado
lago.Elestocamviolão,bebem,conversam;aolado,asilhuetadeumagrande
máquina.Amigos,umviolão,umafogueiraemúsicaparadizeradeusaodia
agonizante.Amanhã,estarámaispróximoofuturo.
109
3.2. Modernidade e contradição
OfilmedeGersonTavareséumadescobertarecente,econstituiemexemplarúnico
dentreosfilmescontemporâneosàconstruçãodacapitaleproduzidossobreela.
Tomandoocontextodeproduçãodofilmeeinserindo-onessasafrade
documentáriosqueaventavamoCinemaNovo,asuaanálisetorna-seimprescindível
paraumtrabalhoquebusqueosmeandrosdoprojetodemodernidadequeBrasília
inspirava.
Aestruturageraldofilmeéconstruídadeformaaressaltarocontrapontoentreo
Brasildofuturoquesepretendiacomanovacapital,eoBrasildopassadoquese
mostravalatentenocotidianodocanteirodeobras,naCidadeLivreenos
acampamentosdeoperários.AocontráriodofilmedeJeanManzon,cujodiscurso
procuraenaltecerumanovaculturaqueestavaporsurgirjuntocomacidadeea
sobreporumpassadoomissonofilme,Brasília,capitaldoséculotratadeexporesses
doistemposemcontradição.Éimportanteressaltarqueentre1957e59o
contingentepopulacionaldoDistritoFederalcresceusignificativamente31,fazendo
comqueascontradiçõessemostrassemdemaneiramaisevidente.
Ousoconscientedatrilhasonora–aoalternar-seentresonsfuturísticossobreas
imagensdacidademodernistaemconstrução,eumamodadeviolasobreasimagens
daCidadeLivre–ressaltademaneiraquasecaricataessecontrapontoentretempos.
Ouseja,ofilmedeGersonTavaresprocuraentenderamodernidadeencampadapor
Brasíliaapartirdesuascontradiçõesintrínsecas.MostraoquantoesseBrasildo
passadoaindaestariapresentenoBrasildofuturoquesepretendiaconstruir.
Portanto,aideiademodernidadeconstruídaemBrasília,capitaldoséculoquestionao
tratamentoparadigmáticodadoàhistória,presentenaabordagemdeJeanManzon.
Aoquestioná-lo,estánecessariamenteproblematizandoumacertadivisãodotempo
histórico.Essetempolineardarevoluçãoparadigmáticaconsideraahistóriacomo
umasucessãodeblocosestanques,divididospormurosquenãoadmiteminterseções
entreeles,umdecursoirreversível,queapontaparaofuturocomopontoculminante
31SegundooCensode1959,adensidadedemográficanoDistritoFederalevoluírade2,1hab./km2emjulhode1957para11hab./km2emmaiode1959.(RIBEIRO,2008,p.67)
110
deumatrajetória.
Umaleituraopostaaotratamentolinear,apontadoporReinhartKoselleckemseu
livroEstratosdoTempo(2014),consisteemenxergarotempohistóricocomo
recorrenteecircular:omodelocircularseriaatribuídoaosgregos,enquantoolinear,
aosjudeusecristãos.Segundooautor,ambososmodelossãoinsuficientes,poistoda
sequênciahistóricaécompostatantoporelementoslinearescomoporelementos
recorrentes.Koselleckpropõeumaabordagemque,segundoele,pretende“solapara
oposiçãoentreolineareocircular”:consideraostemposhistóricoscomo
constituídosde“váriosestratosqueremetemunsaosoutros,masquenãodependem
completamenteunsdosoutros”.(KOSELLECK,2014,p.19–20)
SegundoKoselleck,otermohistóriaemgregosignificaoqueosalemãesdenominam
deexperiência,eterumaexperiênciasignificaempreenderumaviagemde
descoberta.“Anarrativahistóricasósurgecomociênciaapartirdorelatodessa
viagemedareflexãosobreesserelato”.Ahistóriaseria,portanto,“aexpressãomais
puradeumaciênciadaexperiência”(KOSELLECK,2014,p.20).Osestratospropostos
peloautorestariamdivididosanaliticamenteemtrês,vinculadosaoqueeledenomina
vestígiosdaexperiência.
Oprimeirodelescorrespondeàconstataçãoexperiencialdasingularidade:sãofatos
que,vistoshistoricamente,representamreviravoltassingulares,ocorrências
surpreendenteseirreversíveisquealteramdemaneiraprofundaocursodahistória.
Aideiadeprogressotorna-sepossívelapartirdeumasucessãodesingularidades.
Admitindoqueassingularidadessãoapenasumapartedaconstruçãotemporal,um
segundoestratoacomplementa:arepetição.Esseestratoestávinculadoa
procedimentossimplesecotidianos,esuarecorrênciaseriaapré-condiçãoparaa
ocorrênciadesingularidades.Koselleckseutilizadoexemplodafalaedalinguagem
paraexplicá-lo:“mesmoquemdesejadizeralgonovoprecisaseexpressarna
linguagemexistente”.(KOSELLECK,2014,p.22).Repetiçãoesingularidadese
complementamnanarrativadostemposhistóricos.
Aquisurgeumfenômenoquetornatãointeressanteahistória:nãosóacontecimentossúbitosesingularesproduzemmudanças;asestruturasdemaiorduração–quepossibilitamasmudanças–parecemestáticas,mas
111
tambémmudam.Oproveitodeumateoriadosestratosdotempoconsistenasuacapacidadedemedirdiferentesvelocidades,aceleraçõesouatrasos,tornandovisíveisosdiferentesmodosdemudança,queexibemgrandecomplexidadetemporal.(KOSELLECK,2014,p.22)
Aessesdoisprimeirosvemsejuntarumterceiroestrato:atranscendência.
Fundamenta-senaconstataçãodequehátemposhistóricosquetranscendema
experiênciadeindivíduosegerações.Sãotranscendentesnãoporreferirem-seaum
sentidonãomaterial,masporconstituíremexperiênciasqueseestendemporvárias
gerações.Seriamexemplodessasexperiênciasacontínuareproduçãobiológica,
verdadesreligiosasoumetafísicas,quesetransformamemritmostãolentosqueuma
sógeraçãonãoteriaapercepçãoclaradesuasmudanças.
Koselleckvaiolharparaamodernidadeapartirdessanoçãotemporalcompostade
estratosinterpostos.Paraele,otermomodernidadeseentranhouemnossalíngua
coloquial,aproximando-sedeumasinonímiadonovo.Dessaforma,segundoa
periodizaçãoeurocêntricadotempohistóricoemidades–Antiga,Média,Modernae
Contemporânea–aquelasantecedentesàModernanãoseriamnovas.ParaKoselleck,
acategoriadonovofoiindevidamenteatribuídacomoexclusivadamodernidade.
Aventaassimacontrovérsiadessadivisãoemidades,apesardeseuefeitodidático:é
precisoadmitirque,emtodaselas,onovoinstaurouasuapotênciarealizadorae
transformadora.
Sendoassim,onovo,ouessatransformaçãosingularnodecursodotempoprecisa
tambémserrelativizadoapartirdasestruturasderepetiçãoedetranscendência,
admitindoqueessaobservaçãotambémpossibilitaprognósticostemporais.Ouseja,o
singulartambémestáinseridodentrodeumacadeiaderepetiçõesquelhepermite
acontecer,emesmoenquantonovo,poderáserprognosticado.SegundoKosseleck,é
essaaexperiênciatemporalcomaqualohistoriadorserelaciona.
Noentanto,essaformadelidarcomaexperiênciatemporalemKosellecknãoconduz
aumatotalaboliçãodasdivisõesemtemposhistóricos.Osestratospermitemuma
interpolaçãotemporal,segundoaqualéprecisoestaratentoaofatodeque,ao
falarmossobreumeventotransformadornopresente,estamostambémaprocurado
queháneledepassadoedefuturo.
112
Dessaforma,asestruturastantoserepetemcomosetransformam,edependendoda
velocidadedasmudanças,osperíodospodemsercaracterizadosdemaneira
diferente.SegundoKosseleck,oquepoderiamarcaroiníciodeumanovapercepção
modernaéque,apartirdeumdadomomento,apercepçãodasmudançaspassoua
serpercebidademaneiramaisacelerada,comonuncavistoantes.
Registremosentão:deacordocomapercepçãoquaseunânimedoscontemporâneos,aaceleraçãodoprocessopolíticodeuinícioànossamodernidade–muitoantesdearevoluçãotécnico-industrialimporasaceleraçõesaodiaadianormal.Issosignificaque,desdeentão,asantigasdoutrinaspolíticaseseusinventáriosdeexperiênciashistóricasavançamparaumnovoestadofísicoepassamasofrerumamudançaestrutural.Apossibilidadedeperceberdemodoimediatoessamudançaestruturaléprovavelmente,acaracterísticadamodernidade.Amudançaestruturalsetransformaemevento.(KOSELLECK,2014,p.221)
Oquepoderiaentãoserreconhecidocomoumamudançaestrutural(ou
paradigmática)éaquivistocomoumevento,reforçandoaideiadequeahistóriaé
compostaporestratosdistinguíveisquemudamemvelocidadesdiferentes.Segundo
Kosellecképartedotrabalhodohistoriadoridentificarosdiversosestratosesuas
respectivasvelocidadesdemudança.Dessaforma,poderiam
...redefinirasépocastemporaisquefazemjusàmodernidade,massemnecessidadedeexcluirasoutrasépocasdanossahistóriacomumcomoalgocompletamentenovo.Sequisermossaberquãonovaéanossamodernidade,precisamossaberquantosestratosdahistóriaantigaestãocontidosnopresente.(KOSELLECK,2014,p.221)
Essaabordagemdotempohistóricopermitequepossamosolharparaamodernidade
admitindoasimprecisõescomoconstitutivasdesuaexperiência.Nãosetratade
negarqueamodernidadeprovocoutransformaçõesdemaneiraprofundanomundoe
nonossomododevivenciá-loetransformá-lo.Mas,passadomaisdeumséculoe
meiodesdequeBaudelaireseutilizoupelaprimeiravezdotermo,anoçãodesse
processocomoumcaminhoinequívocoaoprogressoéapenasumaparteda
compreensãodessasmudanças,queatendeadiscursosdeterminados–namaioria
dasvezes,ideológicos.
MarshallBermanemseulivroTudoqueésólidodesmanchanoar:aaventurada
modernidade(1986),vaibuscarnosprimeirosmodernos–Baudelaire,Marx,Goethe,
113
Dostoievski–“descortinaralgumasdasdimensõesdesentido,(...)exploraremapear
asaventurasehorrores,asambiguidadeseironiasdavidamoderna”(BERMAN,
1986,p.11).OtítulodolivroconsisteemumafrasedeMarxextraídadeumtrechodo
ManifestodoPartidoComunista:
Todasasrelaçõesfixas,enrijecidas,comseutravodeantiguidadeeveneráveispreconceitoseopiniões,forambanidas,todasasnovasrelaçõessetornamantiquadasantesquecheguemaseossificar.Tudoqueésólidodesmanchanoar(grifomeu),tudooqueésagradoéprofanado,eoshomensfinalmentesãolevadosaenfrentar(...)asverdadeirascondiçõesdesuasvidasesuasrelaçõescomseuscompanheiroshumanos.(apudBERMAN,1986,p.21)
AfrasedeMarxédetentoradeumsentidoquevaipermearaóticadoautoracercada
modernidade.Muitoemboraadmitaqueháalgocompletamentenovosurgindo,para
Marxamodernidadeseauto-definecomoesseprocessodeconstanterenovação,ao
longodoqualnãosepode“pisarduasvezesnamesmamodernidade”.Sermoderno
significavivenciarumambientedeaventura,detransformaçãoconstante,de
crescimento,mastambémdaconsciênciaiminentedeseupotencialautodestrutivo.
Aodenunciarqueanoçãodemodernidadeesteve,aolongodoséculoXX,
erroneamenteassociadaàsideiasdemodernizaçãoemodernismo,Bermanvai
procurarresgataressainterdependênciaentreasforçasmateriaiseespirituais,entre
indivíduoeambientemoderno,que,segundoele,estevepresentenãosomentenos
escritosdeMarx,mastambémemBaudelaire,ambosnoséculoXIX.Éimportante
ressaltarqueBermanescrevenosanos1980,eficaclaraasuavisãodeque,apartir
dasegundametadedoséculoXX,correntesdepensamentocomoopós-modernismo
eoestruturalismo,quesepretendemsucessorasdamodernidade,esqueceram-sedo
espíritodemodernidadepresentenoséculoXIX,especialmenteemBaudelaire,que
emmuitoconvergecomoqueessascorrentesaventavamcomonovidade.
Bermandivideopercursohistóricodamodernidadeocidentalemtrêsfases:uma
primeiraquevaidoséculoXVIatéofinaldoséculoXVIII,períodonoqualaspessoas
estãoapenasexperimentandoavidamoderna,eosensodemodernidadeaindaé
difuso;umasegundafasequeseiniciacomaRevoluçãoFrancesa(1790)evaiatéo
séculoXIX,daqualemerge,abruptamente,umpúblicomoderno,quepartilhado
sentimentodeviveremumaerarevolucionária,masqueaindavivenciaumambiente
114
quenãoémodernoporinteiro(édessasensaçãodeviveremdoismundosque
emergeadicotomiamodernização/modernismo);efinalmenteumaterceirafase–o
séculoXX–naqualoprocessodemodernizaçãoseexpandepelomundo,o
modernismosedesenvolveatingindo“espetacularestriunfosnaarteeno
pensamento”,eosdoisprocessosatingemoápicedesuadicotomização,cadaum
delesreivindicandoparasiosentidodamodernidade.
Bermantrataderessaltarque,aocontráriodoqueafirmaSouzanocapítulo
anterior32,mesmoduranteaprimeirafaseamodernidadejáseanunciava,muito
emboraoambienteprevalecesseessencialmentemedieval.Essaprimeirafaseé
caracterizadaprincipalmentepelomovimentodesaídadocampoemdireçãoàs
cidades.Essemovimentoprovocaumamudançadesensibilidade,namedidaemque
essesindivíduospassamavivenciarexperiênciasqueasmaioresconcentrações
populacionaisprovocam.Bermanvaisevalerdefigurasliteráriasparailustraressa
primeirafase.Rapidamentecitada,ANovaHeloísa,deJeanJacquesRousseau,
apresentaumherói,Saint-Preux,querealizajustamenteessemovimentoexploratório
docampoparaacidade.
Eleexperimentaavidametropolitanacomo“umapermanentecolisãodegruposeconluios,umcontínuofluxoerefluxodeopiniõesconflitivas(...)Todossecolocamfrequentementeemcontradiçãoconsigomesmos”,e“tudoéabsurdo,masnadaéchocante,porquetodosseacostumamatudo”.Esteéummundoemque“obom,omau,obelo,ofeio,averdade,avirtude,têmumaexistênciaapenaslocalelimitada”.Umainfinidadedenovasexperiênciasseoferecem,masquemquerquepretendadesfrutá-las“precisasermaisflexívelqueAlcibíades,prontoamudarseusprincípiosdiantedaplateia,afimdereajustarseuespíritoacadapasso”(BERMAN,1986,p.18)
Aoanunciaressesnarradoresquejápercebememseuambienteastransformações
espaciaisesociaisqueamodernidadecomeçaaprovocar,Bermanestáassumindo
queesseprocessohistóricodetransiçãodamodernidadenãoacontecesomentepor
meiodetransformaçõesabruptas,masestásendocaptadopelasensibilidadedeuma
época,mesmoantesdaparadigmáticaRevoluçãoIndustrial.Relacionandoessa
leituratemporalaosestratosdetempodeKoselleck,poderíamosdizerquehácertas
rupturasnosestratosderepetição–ocotidianopré-industrial–queacontecemde
maneiramaislentaequesãoespéciesdeprognósticosdeacontecimentossingulares
32Verpp.81a83.
115
quevãopromover,aísim,transformaçõesmaisabruptas.Ouseja,épossívelperceber
quealgoestáparamudarradicalmenteeessatransformaçãojáseanuncia.
Nasegundafasedamodernidade–oséculoXIX–apaisagemcomeçaaser
modificada,eoambientemodernomostrasuasimplicaçõesnavidacotidiana:
...engenhosavapor,fábricasautomatizadas,ferrovias,amplaszonasindustriais;prolíficascidadesquecresceramdodiaparaanoite,quasesemprecomaterradorasconsequênciasparaoserhumano;jornaisdiários,telégrafos,telefoneseoutrosinstrumentosdemediaquesecomunicamemescalacadavezmaior;EstadosNacionaiscadavezmaisforteseconglomeradosmultinacionaisdecapital;movimentossociaisdemassa,quelutamcontraessasmodernizaçõesdecimaprabaixo,contandosócomseusprópriosmeiosdemodernizaçãodebaixopracima;ummercadomundialquetudoabarca,emcrescenteexpansão,capazdeumestarrecedordesperdícioedevastação,capazdetudoexcetosolidezeestabilidade(BERMAN,1986,p.19).
Énessafaseemqueosmodernistasvãoexploraresseambientetantocomofontede
seusataqueserejeições,comodesuasdescobertasnocampodasartesedo
pensamento.Figuraemblemáticadesseperíodo,Baudelairevaiseesforçarpara
transmitiraosseuscontemporâneos“umaconsciênciadesimesmosenquanto
modernos”.
Baudelairesepermitiuserprofundamentecontraditórioemrelaçãoaesseambiente
denovidades.Dividia-seconstantementeentreoelogioeufóricodavidamodernaea
suamaisprofundarecusa.EssacontradiçãodemonstraoquehaviaemBaudelairede
maisreveladordoprópriosentidodamodernidade:umprocessodifusoedifícilde
determinar,sendoaefemeridadeasuacaracterísticamaislatente.Baudelairevai
conclamaroinstante,oartistaquesefixaemseutempopresente.Aoquestionara
fixaçãodaculturafrancesanastradiçõesclássicas,afirmaque“todomestreantigo
temsuaprópriamodernidade”,esvaziando-adetodooseupesohistórico.Baudelaire
reconheciaonovo,amodernidadecomoumadisposiçãopresentedosujeitoque
encaraoseutempoeprocuratransformá-lo.
OscomentáriosdeBermanacercadaobradeBaudelaireoferecemumpanoramade
comoépossívelenxergar,naobradoartista,ostraçosdessacontradição,queorase
revestede“modernolatria”,oradetotaldescrença.EmOpintordavidamoderna
(1859-60),Baudelaireprojetaocenáriodemaravilhasdoambientemoderno,vistoa
116
partirdaobradeumpintordeseutempo–ConstantinGuys.Baudelairefaladauma
esfuzianteeuforiaqueoindivíduomodernosenteaosecolocarnomundo,aose
depararcomumnovoedifício,umanovamáquina,umanovavestimenta.
Assimelevai,corre,procura.Oquê?Certamenteessehomem,talcomoodescrevi,essesolitáriodotadodeumaimaginaçãoativa,sempreviajandoatravésdograndedesertodehomens,temumobjetivomaiselevadodoqueadeumsimplesflâneur,umobjetivomaisgeral,diversodoprazerefêmerodacircunstância.Elebuscaessealgo,aoqualsepermitiráchamardeModernidade;poisnãomeocorremelhorpalavraparaexprimiraideiaemquestão.Trata-se,paraele,detirardamodaoqueestapodeconterdepoéticonohistórico,deextrairoeternodotransitório.Selançarmosumolharanossasexposiçõesdequadrosmodernos,ficaremosespantadoscomatendênciageraldosartistasparavestiremtodasaspersonagenscomindumentáriaantiga.(...)Evidentemente,ésinaldeumagrandepreguiça;poisémuitomaiscômododeclararquetudoéabsolutamentefeionovestuáriodeumaépocadoqueseesforçarporextrairdeleabelezamisteriosa.AModernidadeéotransitório,oefêmero,ocontingente,éametadedaarte,sendoaoutrametadeoeternoeoimutável.(BAUDELAIRE,1988,p.173–4)
Poroutrolado,Baudelairejáhaviamostrado,emseuensaiosobreaExposição
Universalde1855–Métododecrítica.Daideiamodernadeprogressoaplicadaàs
BelasArtes.DeslocamentodeVitalidade–asuamaisprofundaaversãoàcrençano
infalívelprogresso:
Seumanaçãoconcebehojeaquestãomoralnumsentidomaiscomplexodoqueentendianoséculoprecedente,háprogresso,issoéevidente.Seumartistaproduznesteanoumaobraquemanifestamaissaberouforçaimaginativadoquedemonstrounoanopassado,certamenteeleprogrediu.Seosvívereshojesãomaisbaratosedemelhorqualidadedoqueosdeontem,issoéumprogressoincontestávelnaordemmaterial.Mas,porfavor,ondeestáagarantiadeprogressoparaofuturo?Poisosdiscípulosdosfilósofosdovaporedosinflamáveisquímicosaentendemassim:oprogressosólhesaparecesobaformadeumasérieindefinida.Ondeestáessagarantia?Elanãoexiste,afirmo,anãoseremnossacredulidadeeemvossafatuidade.(BAUDELAIRE,1988,p.36–7)
OqueBaudelairevaidenunciar,segundoBerman,éessaprofundacisãoentre
progressomaterialeprogressoespiritualqueoambientemodernopromove–“uma
confusãoquepersisteemnossoséculoesetornaespecialmenteexuberanteem
períodosdeboomeconômico”.Essavisãoacabacriandoafiguradeumartistaquese
voltaparasimesmo,apontandoacrençaemumprogressomaterialcomodanosasao
seuespírito.
Condenadocontinuamenteàhumilhaçãodeumanovaconversão,tomeiumagranderesolução.Parameverlivredohorrordessasapostasiasfilosóficas,resignei-meorgulhosamenteàmodéstia:contentei-meemsentir,
117
volteiabuscarumrefúgionaimpecávelingenuidade.Peçohumildementeperdãoporissoàsdiversasespéciesdeespíritosacadêmicosquehabitamasdiferentesoficinasdenossafábricaartística.Foiassimqueminhaconsciênciafilosóficaencontrourepousoe,pelomenos,possoafirmar–namedidaqueumhomempoderesponderporsuasvirtudes–queagorameuespíritogozadeumaimparcialidademaisfecunda.(BAUDELAIRE,1988,p.33)
Nessecontextodecríticaaoprogressomaterialéquevaiseinserirasuarecusaà
fotografia,evidenteemseuensaioOpúblicomodernoeafotografia(1859):o
verdadeiroqueafotografiasepropõeamostrartorna-seo“inimigomortaldaarte”.
Apoesiaeoprogressosãodoisambiciososquesedetestamcomumódioinstintivoe,quandosecruzamnomesmocaminho,éprecisoqueumsesubmetaaooutro.Sepermitirqueafotografiasubstituaaarteemalgumasdesuasfunções,embreveelasuplantará–ouacorromperá–completamente,graçasàaliançanaturalqueencontraránaestupidezdamultidão.(BAUDELAIRE,1988,p.73)
Todaessanegaçãoaoprogressomaterialaoredordoartista,assimcomoareferência
à“estupidezdamultidão”,écontraditóriacomaprópriaobradeBaudelaire:um
artistacujapoesiaeraescritasobrearua,avidacotidianae,principalmente,noturna
deParis,osbares,cafés,etc.NopróprioensaioOpintordavidamoderna,Baudelaire
conclamaoartistaa“casar-secomamultidão”,eledeve“adentraramultidãocomose
estafosseumimensoreservatóriodeenergiaelétrica”ou“umcaleidoscópiodotado
deconsciência”.NestasmetáforascriadasporBaudelaire,oartistaoperacomoum
recriadordasforçastecnológicasmodernas.
Emumadesuaspoesias–Osolhosdospobres(SpleendeParis,no.26,1864)–
podemossentirdemaneiramaisforteessainteraçãoentreoindivíduoeoambiente
modernoemtransformação.Opoemadescreve,naspalavrasdonarrador,uma
queixaemrelaçãoàsuaamada,diantedaqualsesentedistante.Oacontecimentoque
provocaessedistanciamentotomalugar“emfrenteaumnovocafé,naesquinadeum
novobulevar”ondeocasalestásentado.Ali,emmeioaodeslumbrantecafé,que
pontuaonovobulevar,ocasalapaixonadoésurpreendidoporumafamíliadepobres,
queobservaembevecidaasmaravilhasdoreluzenteestabelecimento.Adistância
entreocasalseevidencianomomentoemqueonarradorpercebeaindiferença,eaté
orechaço,desuaamadaemrelaçãoàquelafamília,enquantoestesesente
incomodadodiantedasituação:“mesentiaumtantoenvergonhadodenossas
garrafasecopos,maioresquenossasede”.
118
Oambienteondesedesenrolaacenaéreveladordacontradiçãoqueamodernização
dascidadespassaaevidenciar:osbulevaresparisiensesdametadedoséculoXIX,
frutodasintervençõesdeHaussmann,modificavamprofundamenteoambienteda
cidade.AfamíliadepobresdescritaporBaudelairerepresentavaocontingente
populacionalquehaviasidoexpulsodosantigosbairros,devastadospelaabertura
dasgrandesavenidas,equeagoravagavapelasruasdeParis.Aqui,amodernização
dacidadeabreumaferidaquetrazparaosolhosdoindivíduomodernoasua
evidentecontradição.
EmAperdadohalo(SpleendeParis,no.46,1865),Baudelaireconfrontaopoeta
diretamentecomadinâmicadanovacidade,agoraentrecortadapelosbulevares.Em
meioaonovoritmoqueobulevarimpõe,Baudelaireobrigaopoetaaatravessá-lode
umacalçadaaoutra,interpeladopelointensotráfegoeprocurandotransporolodaçal
demacadame(opavimentodemacadamequerevestiaosbulevarestendiaaficar
enlameadonosperíodosdechuva).Nessatravessia,opoetadeixacairoseuhalo,e
nãoconseguemaisrecuperá-lo.Aodeixarqueosímbolodasacralidadedoartistacaia
emmeioaotráfego,Baudelaireestádestituindoaartedetodooseucaráter
transcendenteetrazendo-aparaomeiodamultidão.Oartistaaliprecisaadaptar-sea
essenovoritmo,apoesianãoestáemseuhalo,masnomovimentoqueocorpodo
artistaprecisafazerparaseadaptaraosnovosritmosdacidadeedavidamoderna.
AsvisõesdeBaudelaireacercadavidamoderna,aindanoséculoXIX,são
surpreendentementeatuais–comexceção,claro,desuavisãopessimistaemtornoda
fotografia,que,apesardereacionária,explicitaoembateentreoverdadeiroeaarte
queestáemsuagênese.Nãosepodeolharparaosescritosdoartistaembuscade
umasódefiniçãodamodernidade.Eletransitaporumcaleidoscópiodedefinições,e,
apesardeautocontraditórias,cabemtodasdentrodesseprocessodifusoeirregular
queéamodernidade.Baudelairevaiserumafiguraque,segundoBerman,conseguiu
reunirasforçasmateriaiseespirituaisdavidamoderna:modernismoemodernização
sãoinseparáveisemsuaobra.
Comojáfoidito,Bermanconstataque,emsuaterceirafase–oséculoXX–,a
modernidadeatingiuumestágionoqualessainterdependênciaentreforças
materiaiseespirituaisdavidamodernafoiesquecida.Umaprofusãodedisciplinas
119
científicasemanifestaçõesartísticasquenemsequerexistiam“produziuuma
assombrosaquantidadedeobraseideiasdamaisaltaqualidade”duranteoséculoXX.
Noentanto,dentrodessaprofusão,opensamentoacercadamodernidadeviveum
achatamento,deixamosdereconheceraconexãoentreanossaculturaeanossavida,
eamodernidadepassaasemostrarestanquecomoum“monólitofechado”,oravista
apartirdeum“entusiasmocegoeacrítico”,oracomo“condenadasegundouma
atitudededistanciamentoeindiferençaneo-olímpica”.AquiBermansereferetanto
àscorrentesdecríticadamodernidadequepassamatomarcorpoprincipalmente
apósaSegundaGuerra,comoaposturasmaisradicaisdeafirmaçãodomodernismo,
queecoamnaprimeirametadedoséculo.Écuriosoobservarcomoessesdois
posicionamentosreuniam-seemBaudelaire,masque,apartirdoséculoXX,vai
reverberaremnovoshalosacoroarasforçasmateriaisdamodernidade,travestidas
demodernismo.
Bermancitacomoexemploodiscursodosfuturistasitalianos,defensoresda
modernidadepréPrimeiraGuerra,queopunhamradicalmentealiberdadeda
modernidadeàprisãodatradição:
Peguemsuaspicaretas,seusmachados,seusmarteloseponhamabaixoasveneráveiscidades,impiedosamente!Vamos!Ateiemfogonasestantesdasbibliotecas!Desviemoscanaisdeirrigaçãoparainundarosmuseus!(...)Deixemqueelesvenham,osalegresincendiárioscomseusdedosembrasa!Aquiestãoeles!Aquiestãoeles!(BERMAN,1986,p.26)
Essaavalanchepropostapelosfuturistas,seconsideradacomometáforadasforçasde
modernizaçãoedeprogresso,somenteacontecemediantea“altoscustoshumanos”.
Oqueaconteceatodasaspessoasqueforamtragadasnessasmarés?Suaexperiêncianãoestáregistradanaimagemfuturista.Aoquetudoindica,algumasdasmaisimportantesvariedadesdesentimentoshumanosvãoganhandonovascoresàmedidaqueasmáquinasvãosendocriadas.(BERMAN,1986,p.27)
Bermanassociaessapaixãopelamáquinaeessedistanciamentodopovotambémao
modernismodaBauhaus,Gropius,MiesvanderRoheeLeCorbusier:sãoelesquevão
criarosnovoshalosdoséculoXX.Comojámencioneinocapítuloanterior,os
preceitosdaarquiteturamodernadifundidosporLeCorbusiereaarquitetura
modernistabrasileirafeitasobsuainfluência,vãoconstituiresseespectrodo
modernismovoltadoparasimesmo,queBermamchamade“modernolatria”.
120
Cabeperguntarcomoessecorpodeideiasacercadomodernismonaarquiteturaeno
urbanismo,herdadasdomodernismoeuropeudaprimeirametadedoséculoXX,vão
impactarumpaíslatino-americanosubdesenvolvidocomooBrasil.SegundoJames
Holston,omodernismosevoltaparaospaísesemdesenvolvimentodaseguinte
forma:
Confrontandoosefeitosdeletériosdocapitalismosobreavidaurbana,tantonascidadesmetropolitanascomonascoloniais,osmodernistaslevantaramaquestãododesenvolvimentourbanonaÁfrica,ÁsiaeAméricaLatina.Comseusprojetosparaconstruirnovascidadesnessasregiões,parareconstruirvelhascidades,eparareorganizaroambienterural,propunhamcomefeitoqueospaísesemdesenvolvimentopudessemsaltardaidadedapedraparaaeradamáquina,docolonialismoparaumanovaordemsocialcoletiva(qualquerquesejaasuadefinição),doisolamentoparaaintegraçãoregionaleplanetária–semprecisarimitarodesenvolvimento(istoé,ocaos)daEuropaurbana.(HOLSTON,1993,p.89)
Nesseprojetoestavaimplícitaacrençadequeourbanismomodernistaofereciauma
soluçãoprontapara“salvaromundosubdesenvolvidodocaosedasiniquidadesda
revoluçãoindustrialeuropeia”.Seguindoomodelosoviético,aconstruçãodessas
novascidadesrequeriaumaforteintervençãoestatal,condiçãoespecialmente
propíciaempaísessubdesenvolvidoscomooBrasilpelofatodenãoexistiruma
burguesiasuficientementeconsolidadaapontoderesistiràsdesapropriaçõesde
terraqueoestadodeveriapromover.Alémdisso,essespaísescontavamaindacom
“generosaofertademão-de-obrabarata,evastasregiõesvaziasqueprecisavamser
povoadaseintegradasemumprojetodeconstruçãonacional”.
HolstonpartedoprincípioquehaviaemBrasíliaumaconvenienteafinidadeentrea
modernizaçãodopaíspretendidaporJuscelinoeomodernismodesuaarquitetura:
ambasconcordavamqueeraprecisoapagarumpassadoereescreverosnovos
símbolosdamodernidadebrasileira.Noentanto,segundoHolston,oprimeiro
equívocodoprojetomodernistaéque“emboratenhasidoconcebidaparacriarum
tipodesociedade,Brasíliafoinecessariamenteconstruídaehabitadaporoutra–pelo
restodoBrasil,quesepretendianegar.OdesenvolvimentosocialdeBrasíliaé
impulsionadopelastensõesecontradiçõesentreasduassociedades”(HOLSTON,
1993,p.30).
NofilmedeGersonTavares,vemosqueesseBrasildopassadojáocupavaocanteiro
deobrasdacapital.Sabemostambémqueessaspessoasnãoretornaramàssuas
121
cidades,comoerapretendidoàépoca,masalipermaneceram,reivindicandoinclusive
aconsolidaçãodaCidadeLivre(hojeNúcleoBandeirante).Assim,aonegaresseBrasil
dopassadooprojetodeBrasílianegavaoprópriosubdesenvolvimentodopaís,cuja
característicalatenteéasuaprofundadesigualdadesocial.
ÉcuriosoobservarcomoGersonTavaresregistraessasradiantescriaçõesda
arquiteturamodernista:comencantamentoereverência.Osplanosnosquaisé
descritaaarquitetura–concluídaounão–tratamderessaltarosseusaspectos
plásticosmaisevidentes:avastidãodaesplanadadosministériosvistaemumgirode
180o;ahorizontalidadedoPaláciodaAlvoradareforçadapelotravellinglateral;a
panorâmicaverticalparamostraracruzquecoroaacoberturadaIgrejinha;a
verticalidadedoedifíciodoCongressoNacionalnasubidadoelevador;apanorâmica
quemostraacúpuladaCâmaradosDeputados.Movimentoscoreográficosparauma
cidadecoreográfica.Umatrilhafuturísticaparaapromessadeumfuturoimpressana
arquitetura.
Emcontraponto,aofazerimagensdaCidadeLivre,Gersonposicionasuacâmeraao
níveldochão.Olhaparaaruaemsuaescalamaishumana:apenasoplanoaéreo,
comoquepartindodoaltodocongresso,ésuaimagemdeapresentaçãoe
contextualização.Gersonfilmaaspessoasdeperto,ematitudescotidianas,elassão
identificadaspelacâmeraemsuaindividualidade,emcontrapontoaomodo
esquemáticocomoJeanManzonmostraostrabalhadoresemseufilme.Sãocorpos
vividos,cujoolharmuitasvezesédirigidoincisivamenteparaacâmera.Elessão
corporificadosnanarrativadeGersonTavaresnãoapenascomoengrenagensdeum
mecanismo,mascomovidapulsante,presençaaomesmotemponecessária,
incômodaelatentenocanteirodeobrasdeBrasília,expondoasentranhasdeum
processodemodernidadequenãosepodeencerrarapenasnasimagensdesua
arquitetura.AfamíliadepobresdeBaudelaireestavaali,nocanteirodeobras,a
encarar-nosatravésdacâmeradeGersonTavares,apresenciaroresplandecente
futuroqueseanunciava;noentanto,sabendoquedelenãopoderiafazerparte.
122
3.3. O corpo provisório
AoassistiraofilmedeGersonTavares,JuscelinoKubitscheksurpreende-seaonãose
vernatela:nemcomoimagem,nemcomocitação.Masnãosomenteelefoiexcluído
danarrativadeGerson:LucioCostaeOscarNiemeyercomparecemapenasna
narração.Nenhumengenheiro,nenhumpolíticoimportante,nenhumatordahistória
oficialfoipersonificadoemseufilme.Oscorpospresentesemsuamise-en-scènesão
exclusivamentedehomensemulheresquetrabalhavamehabitavamacidadeque
estavapornascer.
Oquenosdizessaconstrução?Dopontodevistadoprópriocinema,tratava-sede
trazerparaoprimeiroplanoaspersonagensdessacontraditóriamodernidade
brasileira,personagensdeumBrasilarcaicoquesetentasobrepor,masque
permanece,resisteedinamizaanovacidade.Dopontodevistadaépoca,aindase
acreditavaqueaintençãoinicialdeexpulsãodaquelaspessoasdefatosecumpriria.
Então,eraprecisodenunciaressapresença,registrá-laemtodaasuaforça,latênciae
provisoriedade.
Ocorpodessaspessoaséfilmadocomoumcorpoquenãopertenceaessacidade.A
suapresençaécontingente:suarelaçãocomosedifíciosdanovacidadesedá
unicamentepelotrabalho.Aofinaldodia,voltamparacasa,ouseguemparauma
fogueiraàbeiradolago.Éumcorponegadoporessaarquitetura,assimcomooerao
corpodafamíliadepobresnobulevardeHaussmann.Évistotransitoriamentecomo
umcorpo-máquina:ocorpodooperárioqueincansavelmentedevetrabalharparaa
conclusãodasobras.Aofinaldodia,reveste-sedesuaidentidade,desua
musicalidadeprópriaàbeiradafogueira.Mesmoencarnadoemsuas
particularidades,essecorpoviveumaexperiênciaprovisória,diantedofuturoincerto
queosreservaapósofimdagrandeempreitada.Mas,emtodaasuaprovisoriedade,é
umcorpoquevaicontestarenfaticamenteanoçãodequeestáalisomenteaoperara
engrenagemdaconstrução.
Ametáforadocorpo-máquina,levadaacaboporDescartes,ecrucialpara
conceituaçãodeumcorpomoderno,foiquestionadaporalgunsfilósofos
subsequentes.EspinosaescreveusobreométodocartesianoemPrincípiosda
123
FilosofiaCartesiana,de1663–vinteeseisanosdepoisdeDiscursodométodo.Apesar
deosescritosdeEspinosateremumafunçãoexpositivadastesesdeDescartes,no
apêndicePensamentosMetafísicos,ficaclarooafastamentoqueEspinosaassumedas
tesescartesianas.ParaEspinosa,Deuséumasubstância,constituídaporatributos
infinitos,dosquaisnósconhecemosdois:opensamento(mente)eaextensão(corpo).
Assim,afirmaqueDeusétambémmatéria,natureza,enãosomenteumespírito
perfeito,comoemDescartes.ParaEspinosa,“emDeusaessêncianãosedistingueda
existência,poissemaexistênciaaessêncianãopodeserconcebida”(SPINOZA,1983,
p.24).Asubstânciainfinita–Deus–temcomoatributostantoaextensãocomoo
pensamentoeétantocorpóreacomomental.Dessaforma,ocorpoespinosanonãoé
umaverdadeouumentedefinido,seuslimitesecapacidadessópodemser
determinadosemfunçãodesuainteraçãocomosdemaisatributosdasubstância.
CabeaquiacolocaçãodeMarilenaChauí,acercadeEspinosa,noprefáciodaediçãoOs
Pensadores:
Arelaçãoentreaalmaeocorponãoéadaaçãoedapaixão–aalmaativaeocorpopassivo;nemaobscurarelaçãocartesianadeumaaçãorecíprocadocorposobreaalmaevice-versa.Arelaçãoespinosanaéumarelaçãodecorrespondênciaoudeexpressão.Espinosafogedeumaexplicaçãodetipomecanicista:ocorponãoécausadasideias,nemasideiassãocausadosmovimentosdocorpo.Almaecorpoexprimemnoseumodopróprioomesmoevento.(SPINOZA,1983,p.14)
Décadasdepois,DavidHumetambémvaiseoporaopensamentometafísicoe
teológicodeDescartesemseutextoInvestigaçãosobreoentendimentohumano
(1748).Partindodeumempirismoradical,Humeafirmaqueopensamentose
encontra“encerradoemlimitesmuitoestreitosetodoopodercriadordamentese
reduzàsimplesfaculdadedecombinar,transpor,aumentaroudiminuirosmateriais
fornecidospelossentidosepelaexperiência”.(HUME,1984,p.138)Nossasideiassão
unicamenteproduzidasapartirdas“questõesdefato”,daspercepçõesdecausae
efeitoquetemosdascoisasaonossoredor,oquenoslevaaaferir,porprincípiosde
conexão,relaçõesde“semelhança”,contiguidadeecausação,sempreprovocadospela
presençadeumobjetoaosnossossentidosouanossamemória.Dessaforma,o
pensamentoemHumenãoexisteemseparadodanossarelaçãocorpóreacomo
mundo.
124
Essasvisões,apesardenãosesobreporàfraturaepistemológicaproduzidapelo
pensamentomecanicista,vãoterrebatimentosdiretossobreasmodernasciênciasdo
séculoXX,entreelas,asciênciassociais.Encarandoaexistênciacorporalhumana,as
ciênciassociaisvãoseutilizardocorpoenquantocategoriasimbólicaeobjetode
análisequepermiteumamelhorapreensãodopresente.
Seráqueessasciênciasnãolevaramàprópriasubversãodanoçãodecorpo?Umasubversãoquaseinvisível,masdecisiva,temavercomoabandonodasoberaniatradicionalmentereconhecidaàconsciência,aqueledeslocamentoamplamentedesencadeadopelossociólogosepsicólogos,ignorandoasvelhasmetafísicaseseuconfrontoentrecorpoeespírito,recusando-seadesignarapessoaunicamenteporsuavontade.Atitudesecomportamentostomamaíumsentidototalmenteinédito:gestos,tensõesfísicas,posturasdiversastornam-seoutrostantosindícios,porexemplo,paraumapsicanálisesensívelàsmanifestaçõesínfimaseexpressõesanódinas.(...)Ocorpopodeconduzirsuaconsciênciaemvezdeserseuobjeto.Derepente,oestudodessecorpoedeseusatosrevelademododiferentedoquerevelavaatéaqui:considerarporexemploqueexisteumainteligênciadomovimentoforadotrajetoclássicoquesubordinaomotorà“ideia”,eestudademododiferenteaspráticas,éestudardemododiferenteasmaneirasdefazeredeexperimentar.Enfim,éteremvistarecursosdesentidoexatamenteondeelespareciamnãoexistir.(CORBIN;COURTINE;VIGARELLO,2012,p.10)
DavidLeBreton,emseulivroSociologiadocorpo(2007),constróiumpanoramade
comoasciênciassociaistemlidadocomocorpodesdeoseusurgimentocomo
disciplinanoséculoXIX.Segundoele,ocorpoéafronteiravivaquedelimitao
indivíduoemrelaçãoaosoutros,aquelequedefineasoberaniadapessoa.A
constituiçãodocorpomodernoimplicano“isolamentodosujeitoemrelaçãoaos
outros(umaestruturasocialdotipoindividualista),emrelaçãoaocosmo(as
matérias-primasquecompõemocorponãotemqualquercorrespondênciaemoutra
parte),eemrelaçãoaelemesmo(terumcorpo,maisdoqueseroseucorpo)”.(LE
BRETON,2013,p.9)
Fenomenologicamente(...)ohomeméindiscerníveldasuacarne.Estanãopodesermantidaporumapossecircunstancial;elaencarnaoseuser-no-mundo,aquilosemoqueelenãoseria.Ohomeméessenão-sei-o-queeessequase-nadaquetransbordaseuenraizamentofísico,masnãopoderiaserdissociadodele.Ocorpoéamoradadohomem,seurosto.Momentosdedualidadeemumavertentedesagradável(doença,precariedade,deficiência,fadiga,velhice,etc.)ouemumavertenteagradável(prazer,ternura,sensualidadeetc.),dãoaoatorosentimentodequeseucorpolheescapa,dequeexcedeaquiloqueeleé.Odualismoéoutracoisa;elefragmentaaunidadedapessoa,amiúdeimplicitamente,resultaemumdiscursosocialquefazdessesepisódiosdedualidadeumdestino;eletransformaoexcessoemnatureza,fazdohomemumarealidadecontraditória,ondeapartedocorpoestáisoladaeafetadaporumsentido.(LEBRETON,2013,p.240–41)
125
LeBretonassumeocorponãocomoumatributodapessoa,mascomoolugare
tempoindistinguíveldeumaidentidade.Ocorposeriaumaficção,culturalmente
eficienteeviva.Elenãoexisteemestadonatural,estácompreendidonatramasocial
desentidos,efuncionaparaasociologiacomoummito:elecristalizaoimaginário
social.Paraele,estudarocorpoécompreendersistematicamenteaslógicassociaise
culturaisqueocompõe,osimagináriossociaisqueserelacionamaele,eoseureflexo
noespelhosocial.
Emumatentativasimplificadadetraçarumpanoramahistórico,LeBretondefine
trêsprincipaispontosdevista,relacionadosaocorpo,quepersistemnasociologia
desdeoseusurgimento.Umprimeiroeledenominadesociologiaimplícitadocorpo,
quecaracterizaoiníciodasciênciassociais,equesedesenvolvedeacordocomduas
linhasdeanálisediretamenteantagônicas:umaencaraocorpocomoprodutodas
condiçõessociais;outra,ascondiçõessociaiscomodeterminadaspelascondições
corporais(biológicas).Éassimdenominadaimplícitaporquesecaracterizaporuma
incertezadequeocorpopoderiaserobjetodeestudoespecíficodasciênciassociais–
aoinvésdamedicinaoudabiologia.Éapsicanálise,maisespecificamenteFreud,que
vairomperessarelaçãopuradocorpocomumaorganicidade,transformando-oem
umaestruturasimbólica.
UmsegundopontodevistaLeBretondenominadeumasociologiaempontilhado,que
proporcionasólidoselementosdeanáliserelativosaocorpo,masnãotratade
sistematizá-los.ComeçaatomarlugarnatransiçãodoséculoXIXparaoXX,epassaa
considerarocorpocomoproduzidopeloserhumanonasuainteraçãocomosoutros
enasuaimersãonocamposimbólico,subordinandoassimofisiológicoàsimbologia
social.Osestudosnessafasedãomargem,entreoutrosdesdobramentos,àetnografia.
Finalmente,umaterceiraperspectivaseriaadeumasociologiadocorpo
propriamentedita,queseinclinamaisdiretamentesobreelecomoobjetodeestudo,
estabelecendológicassociaiseculturaisquetêmocorpocomoelementocentral.
Essesestudospassamatomarespaçoprincipalmenteapartirdofinaldadécadade
60.Nesseperíodo,umnovoimaginárioacercadocorpocomeçaasedifundirna
sociedadeocidental:umcorpoqueprecisaserlibertodesistemastotalizantes–tanto
docapitalismoliberaldoocidente,comodostalinismodooriente.Proliferam-seos
126
estudosacercadacorporeidadeenquantocondiçãodeexistênciadoserhumanoem
sociedade,nummovimentoque,partindodanegaçãodeidentidadestotais,busca
nosmodosdeexpressãodoscorpososatributosdeidentidadesespecíficas,
constituídassocialmente,tantopeloindivíduocomopeloseuespelhamentonooutro.
Nessesentido,háaquiumaatualizaçãodocorpomoderno–queconquistasua
autonomiaemrelaçãoàmente–paraatuarcomofatordeindividuaçãoque,em
últimainstância,vaiexpressarsuasdiferenças.Nesseperíododosestudosculturais,
avançamofeminismo,omovimentonegro,eoutrosgruposidentitáriosna
reivindicaçãodequeaespecificidadedeseuscorpossejareconhecida,estudada,e,
acimadetudo,consideradanasociabilidadeenaconstituiçãodessecorpovivido,
entranhadonaexperiência.Nocasodofeminismo,apartirdomomentoemquese
questionaanoçãodequehomensemulheressãopartedeumamesmaidentidade–a
humanidade–,adiferençasexualseimpõenãosomentecomoumdadobiológico,
mascomomanifestaçãodeidentidadessexuaisedegêneroconstituídashistóricae
socialmente(HALL,2006).
Adualidadequepromoveoestatutodepossedocorpo,afastando-odeum
pertencimentoaocosmoparaaproximá-lodanoçãodeindivíduo,éamesmaquevai
fazercomque,nessaterceirafasedamodernidade–oséculoXX–,ocorpopassea
existirenquantoexpressãodediferenças.Enquantoomodernismonaarquiteturavai
encararocorpoapartirdametáforamecânicaedesuascomposiçõesideais,a
modernizaçãovaidarpropulsãoparaumaconstantenecessidadedeadaptaçãoede
controlesobreocorpo–ocorpopassaasermoldadopeloindivíduoparaadaptar-se
àstransformaçõesdoespaçosocialqueocerca.
Aoaproximarmo-nosdaspersonagensnofilmedeGersonTavares,percebemosque
háumabuscapelacompreensãodessecorpocomoumcorpoarraigadoàexperiência,
umcorpovivido.Aconvergênciaqueofilmepromove,equeécaracterísticado
CinemaNovo,éaquelaentrehistória,espaçoeindivíduo,resultandonumcorpo
expressonatelaqueé,emcertamedida,resultadodessadinâmica.Noambienteda
construçãodeBrasíliavisívelnofilme,essecorpotransitaentreaidentificaçãocomo
ambientedaCidadeLivreeafaltadevínculocomacidadequeestáporsurgir.Essa
faltaéexpressaaquijustamentepelaoposiçãocomovínculoestabelecidonamise-en-
127
scèneentreessecorpoeoespaçoprovisóriodaCidadeLivre.Noentanto,porser
provisório,sabemosqueaqueleespaçonãoéconstitutivodessecorpo–essaspessoas
vieramdasmaisdiversaspartesdopaís,ealiestãoemsituaçãointermitente.O
vínculo,mesmoqueexista,éprovisório:emviasdesedesfazeroudesefortalecer.Éa
vivênciadaprovisoriedadequeconstituiocorpodofilme.
Aprimeirasequênciadofilmemostramáquinasetrabalhadorescomoquepartede
umamesmaforçanecessáriaparaerigiracapital.Assequênciasseguintesdescrevem
osedifíciosemconstruçãoe,aofinaldasequência,anarraçãodiz:Osaglomerados
urbanosforamcriadospelohomem.Estaéacidadecriadaparaohomem.Aquifica
explícitaapeculiaridadedeBrasíliaemrelaçãoaosdemaisaglomeradoshumanos:
estessãocriadospelohomem,aquelequeahabitaeapartirdessacondição,a
constróieconstitui;Brasíliaéumacidadecriadaparaohomem,umhomemqueviráa
habitá-lanofuturoquesepodedefinirimprevisível.
Aprópriarelaçãodosoperárioscomoseuofícioémostradaapartirdesua
provisoriedade.EmmeioàscenasemqueGersonfilma,deperto,operáriosque
rebitamaestruturametálica,noaltodeumedifício,anarraçãonosdiz:Habilidade,
destreza,domíniodatécnicademonstramessesoperários.Ontemsimplescamponesese
vaqueiros,ignoravamaexistênciadasmáquinas.Àsvezes,comavidapagamopreçoda
conquista.Aqui,háumasíntesedaaventuratransitóriavividaporessesoperários:
conheceramáquina,dominá-laeassumiroriscodeentregar-lheaprópriavida.
Embuscadessecorpovividoe,aomesmotempo,provisório,Gersonseaproxima
tambémdaspersonagensfemininasdessatrama.Asmulheresaparecem
corporificadasnofilmecomopartedocotidianodaCidadeLivreevistasapartirde
interaçõesdiversas.Aprimeiraapariçãosurgecomoindicativadeumcorpoque
aderiuaumcertopioneirismonovestuário,nocortedecabelo:mulheresusando
calçascompridasebotas,cabeloscurtos.Poroutrolado,nascenasdecotidiano,as
mulheresaparecemusandolongosvestidosrodados,eemdoisplanosaparecem
acompanhadasdehomens,comoquesendocortejadasporeles.Hátambémacena
quemostraogrupodemulhereslavandoroupasnoquepareceserumpequeno
córrego,porsobreaqualanarraçãodiz:longedofragordasmáquinasedosmartelos,
anaturezaauxiliaasnecessidadesdosquevivemopresente.Percebemosque,
128
diferentedoqueacontecenofilmedeJeanManzon,asmulheresnãosãoenxergadas
aquicomopersonagensdestinadasacumprirumpapel.Elassãomostradasassim
comoseuscorposseapresentam:oraousadas,oracortejadas,oraresignadasà
funçãodemanterlimpasasroupasdosoperários,oraapenasaesperadealgo.
Oplanoquemostraessasmulheresàespera,aolharparaacâmera,sentadasemum
batentepodeconstituirumaimagempreciosa:talvezoúnicoregistrovisualquese
temconhecimentodasprostitutasquevieramparaBrasílianoperíododesua
construção.Essafoiaminhaimpressãoaoassistiraofilmepelaprimeiravez,
principalmentepelaformacomoGersonolhavaparaaquelasmulheres,isoladamente
dentrodatrama,sobanarrativadeestaremaliproblemassériosquenãoconhecem
aindaresposta.Algumtempodepois,aolerumartigodeRafaelLunaFreiresobreo
filme,encontrooseguintecomentário:
Emboradeformanãoexplícita,Brasília,capitaldoséculosurpreendepormostrarclaramentenessasequência–massemmençãonanarração–nãoapenasoscandangosquemigraramparaconstruiracapital,praticamentetodoshomens,mastambémasprostitutasquehabitavamasentão“cidadesprovisórias”.Eraigualmentedosuoredocorpodessasmulheres,lavadosaoarlivre,queseerguiaanovacapitaldoBrasil.(FREIRE,2016,p.22)
131
4. Modernidade e corpo feminino
4.1. Filme 1: Poeira e batom no Planalto Central (2010) Direção:TâniaFonteneleeTâniaQuaresma.Documentário,58’48”
* Algumas considerações acerca do fi lme
Amontagemdofilmeéconstruídaapartirdetrechosdasentrevistasconcedidas
pelasmulheres,entremeadospormaterialdearquivo–entrefotografiaseimagens
emmovimento–inseridosdemaneiraailustrardiretamenteosfatosrelatadosnos
depoimentos.Porexemplo,seumamulhernarraachegadadaComissãoPoliCoelho,
suafalaéintercaladacomimagensdessacomissão.Demodogeral,apesardeser
perceptívelqueofilmeprocuraagruparosdepoimentosemtornodetemascomuns,
porvezesessestemassãodispersos,demaneiraqueumaentrevistasesegueaoutra
muitomaisporpequenasassociaçõesdeconteúdo–amençãoaumlugarouaum
personagem,porexemplo–doqueporumaestruturadefatocapitular.
Seriapossíveldizerqueofilmepodeserassistidotantodemaneirafragmentada–é
essa,porexemplo,aapreensãoquesetemdelequandoagregadoàexposiçãoem
galeria–comodemaneiracontínua,semprejuízonaapreensãodeseuconteúdo.
Trata-sedeumfilmequesedestacapelaquantidadedemulheresentrevistadasepela
diversidadederelatosquetrazàtona,maisdoqueporadotarumalinhanarrativa
quepossaserconsideradacomofatorpreponderantenaanálise.
Portanto,levandoemcontaessascaracterísticas,opteiporfazerumaleituraque
priorizasseostemastratadoseaformadeabordagemdosdepoimentosarticulados
comasimagensdearquivo,emdetrimentodeumaleituraquerespeitassealinha
temporaldofilme.Noentanto,nãodigocomissoquenãoháumaestruturainício-
meio-fimquenãodevaserlevadaemconsideração:ofilmeapresentaumprólogo,
umaintroduçãoeumfechamentoperceptíveis,eostemaselencadosabaixo
respeitam,demaneirageral,asequênciaadotadanamontagem,comexceçãode
algunsdepoimentosqueforamdeslocados.
132
Caberessaltarqueforampriorizadosnestaanálisemomentosdofilmeque
permitissemumaleituradarelaçãoqueocorpofemininoestabelecia,pormeiodas
imagenserelatos,comBrasíliaenquantoprojetodemodernidade,principalobjeto
dessetrabalho.Sendoassim,váriosdepoimentosforamdescartadostendoemvista
quenãoofereciamcampoparaessaexploração.Foidescartadotambémotrechodo
filmequetratadoperíododaDitaduraMilitar,jáquetalepisódioestáforadorecorte
temporalehistóricoadotadoparaestetrabalho.Seguimosentãocomaleiturado
filmeapartirdosseguintestópicos:Prólogo;Introdução;FatosRelacionadosàhistória
oficial;ChegadaemBrasília;Brasíliacomoespaçodeemancipaçãofeminina;Omundo
dotrabalho;Relaçãohomem/mulhernoespaçopúblico;Prostituição;eConclusão.
Prólogo
Ofilmeseiniciacomumanarraçãoemvoiceoverenquantosãomostradasascartelas
dospatrocinadores:Brasíliaéamulherquetevecoragemdeirparadentrodopaíse
fazeropaísflorescer.UmametáforaentreBrasília,amulhereoflorescerdopaísquea
mudançadacapitalrepresentaria.
Seguem-sealgumasimagensdocerrado,suavegetação,floresecachoeiras,enquanto
umamulhercanta,emvoiceover:Emmeioàterravirgemdesbravada/namais
esplendorosaalvorada/Sorricomoumsorrisodecriança/Umsonhotransformou-se
emrealidade...
133
Nasequência,ajábemconhecidaimagemaéreadocruzamentodoseixosquemarcou
aimplantaçãodacidade.Amúsicasegue:Surgiuamaisfantásticacidade...Na
próximaimagem,amãodeumamulheridosaseguraumapequenafotografia.Nela
vemosumhomemeumamulherqueposam,abraçados,emfrenteàscolunasdo
PaláciodaAlvorada;nocantodafoto,escritoemcaneta,épossívelleradata:1958.A
músicaconclui:Brasíliacapitaldaesperança!
NessaprimeirasequênciadePoeiraeBatom–queaquiconsideramoscomoum
prólogo–percebemosalgunselementosimportantesqueintroduzemotomdofilme:
primeiro,aassociaçãopoéticaentreBrasíliaeamulher,queconduztambémà
relaçãocomaflor,asementeplantada,oflorescerassociadoaofeminino;segundo,o
HinodeBrasília,cantadoemoff,trazamensagemdosritosoficiais,queprocuram
enaltecerasbelezasdacidadeeoheroísmodoseusurgimento;e,porúltimo,afoto
seguradaporumamulheridosa,mostraasuamemóriaassociadaaumcompanheiro,
amemóriadeumavidaadois,amulheracompanhadadohomem,tendoa
arquiteturamodernadeBrasíliacomopanodefundo.
Essestrêselementospossuemimportânciafundamentalparaoentendimentode
comoaquestãodegêneroserátratadaaolongodofilme.Nãoserápelanegaçãoda
históriaoficial–ousodohinoéadenúnciaprimeira–,nãoserátampoucopela
negaçãodosconvencionaispapeisdegêneroassociadosàmulher–arelação
metafóricacomaflor,opapeldeesposacomoprimeiroespelhodomundosocial.
Trata-sedeenalteceramulher,homenageá-la,reunirumaquantidadesimbólicade
personagensquetiveramoseupapelnaconstruçãodeBrasíliaedar-lhesvoz.
134
AprimeirapersonagemquenosapareceéLadirCarlosdeAlarcão,enfermeira.Sua
falaintroduzaassociaçãopretendidacomotítulodofilme:Nósfomosacostumadas
comapoeiraecomalama.Porqueagentetomavabanho,passavaumpó,umbatome
vinhané.Acarteladetítuloéaanimaçãodeumafotografia,ondeumamulher,
carregandosuabagagem,seaproximadeumônibuscujoletreirodizBRASÍLIA.
Acima,vemosotítulodofilme:Poeira&BatomnoPlanaltoCentral.
Introdução
Aseguir,asprimeiraspersonagensdofilmerelatamfatosconcernentesàsideias
mudancistasquederamorigemàBrasília:OrbellaLobo,professora,éfilhadeumdos
membrosdacomissãoCrulz;GuiomarCâmaraacompanhouomaridonacomissão
PoliCoelho;afamíliadeIsisGuimarães,tabeliã,hospedouacomissãoPoliCoelhoem
suafazenda;PalmerindaDonato,escritora,relataaestóriaemtornodafalade
ToniquinhonocomíciodeJatahy,etemseurelatointerpeladopelodeJuscelino
Kubitschek,emumregistrodearquivo;GlauciaMarina,paisagista,explicaoporquê
donomecatetinhoparaaresidênciaoficialdeJuscelino.Emtodosessesrelatos,as
mulheresseposicionamàpartedosfatosrelatados,nenhumadelaséprotagonista
dashistóriasquecontam:ousãofilhas,ousãocasadas,ouapenasobservadorasdos
fatoshistóricosnarrados,protagonizadosporhomens,capítulostidoscomo
fundamentaisparaoentendimentodahistóriadaconstruçãodeBrasília.
135
Emmeioaessesdepoimentos,ofilmetrazimagensdearquivo,fotografiasou
filmagens,demodoailustrarosfatosrelatados.Asmulherespodemservistasnessas
imagenssomenteemdoismomentos:narecepçãodacomissãoPoliCoelho,emuma
fazenda,duasmulheresacompanhamosdemaishomensnoscumprimentosà
comissão;enasimagensdavisitadamesmacomissãoaomarcodafuturacapital,
duasmulheresposamaoladodosmembrosdacomissãoparaumafoto.Emboraessas
imagensondeasmulheresaparecemnãorecebamqualquerênfasenamontagemdo
filme,elasilustrambemopapelfigurativoquetêmnoregistrodessesfatos.
AescritoraPalmerindaDonatovoltaaaparecer,efalasobreoconvitequerecebeude
DonaSaraKubitschekparaaprimeiramissarealizadanacapital.Seurelatoé
acompanhadoporfotografiasdamissaepelotrechodeumcinejornalquemostraa
chegada,noaeroporto,daspessoasquevieramparaoevento.Nessasimagensé
possívelverumnúmeromaiordemulheres,inclusivefreiras.Mulheresbemvestidas
acompanhamhomensbemvestidosquechegamnoaeroporto,ePalmerinda
acrescentaumacuriosidadesobreosapatoquecomprouparaviraoeventoeque,
porfim,ficouendurecidopelolamaçaldaáreaondeamissafoirealizada.
136
Énotávelque,emumeventoreligioso,apresençafemininatenhasidomarcantee
desejadapelosveículosoficiaisdedivulgação.Éumforteindicativodequeapresença
femininanoseventosoficiaisdaconstruçãoerarequisitadademaneiraritualística.
Afalaqueseseguecelebraessapresença,ilustradaporimagensdeaeromoçasede
umamulherqueapontaparaoplanourbanísticodacapital:
EuachoquesenãohouvessemmulheresemBrasília,Brasílianãoteriasidoconstruídacomofoi.Nãoéqueasmulheresfossemprasobras,fossemmexercombetoneira,pegarmartelo,baterprego,nãoéisso.Elasdavamaretaguarda(grifomeu)semaqualoshomensnãofariam,entende.(HelenaMariaViveiros,escritora)
Fatos relacionados à história oficial
Ofilmeprocuracontemplar,pormeiodosrelatosdessasmulheres,algunsmarcos
históricosdaconstruçãodeBrasília,alémdaquelesjámencionadosnaintroduçãodo
filme.Dificilmenteaabordagemédiferentedaquelaquejávimos:asmulheres
relatamosfatosapartirdeumolharexterno,sãoobservadoras,e,namaioriadas
vezes,apenasreproduzeminformaçõesquejáforamdisseminadaspelaescritaoficial
dahistóriadeBrasília.
ACaravanadaIntegraçãoNacionalérelatadapelaprofessoraCoseteRamos;amorte
deBernardoSayão,pelasuafilha,afuncionáriapúblicaLiaSayãodeSá;osonhode
DomBosco,pelapedagogaMariaMaura;e,finalmente,ainauguraçãodacidade
aparecenosrelatosdadonadecasaMárciadeSouza,daprofessoraecineastaMaria
Coeli,daprofessoraCoseteRamosedagerentedecasadeencontros33,Ione3433Caberessaltaraquioeufemismoutilizadoparadenominar,nascartelasdofilme,aquelaqueseriagerentedeumacasadeprostituição,queserácomentadomaisadiante.
137
Rodrigues.Asimagensdearquivorelacionadasaessesdepoimentosnãomostram
mulheres,comexceçãodaquelasrelacionadasàinauguração.
Entãoeucompreiumvestidoazulelistradodebranco.Ecompreiumóculos.Eaíteveafestaládainauguraçãoeeufui.Aífuiemcimadocaminhão.Aíquandoeuchegueilá,eutavadeóculosescuro,todacheiadedengo,sabe.Aíeufui,aíeupeguei,tireimeuóculos,etodomundoolhavapramimeria.Eeufalei,quediabo,quequeéisso,olheitavatudocerto.Todomundoolhava,ria,masriamesmo,naminhacara.Aíeupeguei,fuilánobanheiro,olheinoespelho,eutavatodaamarelaecomoóculosaquibranquinho.(MariadasNevesMorici,professora)
Meuprimeirovestidodebaile,olhasóqueglória,imaginaseeuiaesquecer.Umvestidocorderosa,derendafrancesa,lindo,maravilhoso.AíeuboteiovestidoequandoeuchegueieufuirecebidanoPaláciodoPlanaltopelopresidenteJKeDonaSara.(CoseteRamos,professoradoCaseb)
Nasimagensqueilustramainauguraçãovemosmulhereschegaremàcerimôniaem
cimadeumcaminhão.Emumaimagemgeraldosalão,vemosmulheresemvestidos
debaile,eéperceptívelqueháummaiornúmerodehomensquedemulheres.Em
umaúltimaimagem,vemosJuscelinoposaremumafoto,ondeestáaocentro,ladeado
pormuitasmulheresemseusvestidos.
34AgrafiadonomedeIoneRodrigueséapresentadanacarteladeidentificaçãodePoeiraeBatomcom“I”,ediferentementeemAsagadascandangasinvisíveis,ondeégrafadocom“Y”.Opteiporassumir,emcadaanálise,agrafiarelatadaporcadafilme.
138
Sobreosrelatosdacerimôniadeinauguração,éimportanteressaltarqueháuma
abordagemmuitosemelhanteàreferênciadaprimeiramissa:aimportânciada
presençaritualísticadamulheremeventosoficiaisdevisibilidade,quepodeser
percebidatambémnasimagens.NafotodeJuscelino,podemosimaginarqueo
fotógrafotentoureuniraspoucasmulheresquealiestavamparaposaraoseulado.
Nosrelatos,asmulheresrecordamosvestidosusadosnaocasião,oglamourdo
evento,apreparaçãoparaservistaempúblico.Novamente,temosorelatodeuma
curiosidadesobreapreocupaçãocomavestimenta,queretomaadicotomiaproposta
comotítulodofilme–estarbemarrumada,massujadepoeira.
AfiguradeJuscelino,protagonistadessahistóriaoficial,tambémécitadae
reverenciadaemalgunsdepoimentos:
Eleeramuitopopular,eraumapessoaassimmaravilhosa,ascriançaeramdoidasporele.(MariaAparecidaLeite,auxiliardeenfermagem)
Meusparentesvinhampracá,nósentrávamosatélánoPaláciodoGoverno,doJuscelino,agenteentravaaténoquartodele.Elepermitiaqueagenteentrasselá,sabe.OmeupessoalládeCuritibaficavaencantado.(EstherGumsXavier,professora)
Chegada em Brasília
Osrelatosdechegadailustramsituaçõesmuitodiversas,tantoemrelaçãoàs
motivaçõesparaavinda,comoaospercursosquetraziamessasmulheresatéaqui.É
comumaosrelatosamençãoàmotivaçãofinanceira,àexpectativademudardevida,
sejapeloiníciodeumnovoempreendimento,sejapelapossibilidadedeumemprego
público.Ofilmeprocuraressaltar,principalmente,opioneirismodasmulheresque
vieramembuscadetrabalhoemelhoriadevida,semdesconsiderar,noentanto,que
vinhamemmenornúmeroemrelaçãoaoshomens.
AparticipaçãodasmulheresnaconstruçãodeBrasíliafoideumagrandeimportância,porquevieramprimeirooshomens,entãoasmulheresquevieramnoinícioerammuitopoucas.Etinhamoutrasqueestavamnafrentecomoteveengenheira,teveummontedemulheres,quenaépocanãoeraumacoisamuitocomum.Eudigosempre,elasnãoeramdaépoca,elaserammaisàfrentedaépoca.ANeivamesmo,elaveiopraBrasíliaprasermotoristadecaminhão.(LiaSayãodeSá,FuncionáriaPública)
Eueramotoristadecaminhão,tinhaumavida,qualquerpessoa,qualquermulher,quegostadetrabalhardeviaatéinvejar.Deumdiaprooutro
139
descortinouavida,comeceiavereouvirosespíritos.(TiaNeiva,LiderEspiritual,gravadoparaasérieOsPioneiros,1983)
Asprofessoras,emespecial,foramselecionadasemumconcursoparaaprimeira
escoladeBrasília,conhecidacomoCaseb(siglaparaComissãodeAdministraçãodo
SistemaEducacionaldeBrasília).Muitasdelasouvieramsozinhas,outraziama
famíliaatrásdesi,invertendoalógicacorrentedequeasmulheresvinham
acompanharosmaridostrabalhadores.
Houveumconcursoparaosprofessoresvirempracá.Eutivesortequeeufuidasprimeirasemmúsica.Fuilogochamada,oprimeirocolégioqueteveaquifoiocolégioCaseb(NeusaFrança,professoradoCaseb).
EeumoravaemBeloHorizonte,entãotinhasaídoanovidadedecomeçaraconstruir...amudançadacapital,doRiodeJaneiro,para...aindanãosabiaolugar,masdeviaserouemMinas,comoaspessoasqueriamné,ouaquiemBrasília.Entãonestaocasiãoeuresolvi,semnemmesmofalarcomomarido,queelemandasseamudançaquenósíamosmudardeBeloHorizonte.EassimnósmudamosaquipraBrasília.MoreinoNúcleoBandeirantenaprimeiraavenida,nãotinhaaindanada.Enósentãoconseguimosumacasademadeira,muitosimples,maseragrande.SónessaminhacasanoNúcleoBandeiranteéquetinhaágua.Nasoutrasnãotinha.(MariadasNevesMorici,professoradoCaseb)
Alémdasprofessoras,outrasprofissionaisvinhamparaBrasíliaatraídaspelas
oportunidadesdetrabalho,comoenfermeiras,engenheiras,médicas,comerciantes,
agricultoras35eprostitutas36.Algumasdelasrelatamavindaacompanhadasdos
maridos,mastodastransparecemoespíritodeaventuradoqualeramimbuídasao
empreenderamudança.
Brasíliasurgiupramimcomoumaesperançadevidaporqueeu,garotaainda,jovem,querendomudardevidaeoBrasiltavamuitoatrasadoprecisandodemelhorar,surgiuaaprovaçãodeBrasília,começouentãoaconstrução.(BraulinaMendes,funcionáriadaNovacap)
AprimeiranotíciaquetiveemBrasíliaeumoravaemSíriaainda.Eumeencantei,eusouaventureira.Saídaminhaterracom19anospracasarcomumjovemigualeu,pravimproBrasildeumavez,temqueseraventureiro,né?(SalanKozac,comerciante)
OaviãoquevinhadaGuianamepegouemMacapáeeuvim.QuandochegouaquiemBrasília,elesobrevoouBrasília,efalou:olha,aquiseráafuturacapitaldoBrasil.Aíeuolheiassim,sótinhaaquelaterravermelha,né,os
35RepresentadasaquipelasjaponesasqueforamestimuladasporJuscelinoavirparaBrasíliacultivaraterra.
36Apesardenãohaverentrevistascomessasprofissionais,háumrelatodajámencionadagerentedecasadeencontro,IoneRodrigues.
140
esqueletosdosministérios...Eufalei:épraquiqueeuvenho!(ZeniMoreira,funcionáriadaNovacap)
Euchegueiaquiantesdainauguração,eolheiassim,tudomuitoseco,nãotinhafolhasverdes...Noaeroportoeuescreviumpoemasobreisso:buscooverdedasfolhasnumabuscasemfim/masoqueeubuscoporcertoéoverdedentrodemim.(LilianPortugal,professoradeteatro)
Eraumnegócioassimestranhíssimopramim.Cadaladoqueeuolhavaeracoisasubindo,construindo,oslacerdinhas37voando,eraassimfantástico,eraumaaventura.Euacreditoquenaquelaépocaaté1964,Brasíliaeraoparaíso,eraaliberdade,eraocampofértilpravocêrealizarqualquerprojetodevida.(GoldaPietricovsky,funcionáriapública)
Asmulheresnordestinas,quevinhamdepau-de-arara,relatamascondiçõesde
transportequeenfrentavam:
Brasíliaeramuitofaladanonordeste,né,eusoudonordeste,soudointerior,eeradepraxepessoasvirempracápraajudarnaconstruçãodeBrasília.EramcaminhõesecaminhõesquevinhamládonordestevindopracácompessoaspratrabalharemaquinaconstruçãodeBrasília.(MariaInêsFontenelleMourão,professora)
VimdeCurraisNovos,noRioGrandedoNorte,depau-de-arara.Umalonacobreocarro,né,etembancosassim,agentevaisentando,vaisentando,atécompletaraquelecaminhãodegente,ojoelhoencostandonascostasdooutro.Meninovemnocoloali,espremidinho.Eumesmovinhagrávida,né,umbarrigãoquesóvendo.Quandochegavanolugarqueagentedesciatodomundoassim,nomato,pertodeumcórrego.Quemtraziacomidapronta,davaumjeitodeesquentar,esubianovamente.Terminamosaviagemcom10dias.(JosefaCarmelita,lavadeira)
Mesmoqueemmenornúmero,osrelatosdemulheresquevieramapenas
acompanhandoosmaridostambémaparece:
EufuiaFriburgoeláeuconhecimeumaridoquetrabalhavanoBancodoBrasil.Nósprocuramosumanovamoradia.Opaidelenoprincípiodoano57telefonoupromeumaridoedisse:escuta,eulinojornalquevaiabriragênciaprovisórianoNúcleoBandeirantedoBancodoBrasilondevaiserconstruídaanovacapital.Umavidanovaquenósqueríamoscomeçareumacapitalnovaseconstruindo,esecombinava.(GerdaGumprich,dolar)
37 Nome dado aos funis ou correntes de vento que se formavam com frequência na época daconstrução, levantando poeira emmeio às obras. É uma referência a Carlos Lacerda, um dos maisfortesopositoresdeJuscelinoedaconstruçãodeBrasília.
141
Hánessesrelatosumaclaraintençãoemressaltaroperfilempreendedore
aventureirodessasmulheres,aproximando-odoespíritodoqualeramimbuídosos
homens,quevieramemmaiornúmero.Noentanto,asimagensdearquivoque
ilustramessesdepoimentosmostrampoucasmulheres:elasaparecem
principalmenteemfotografias,oraposandoaoladodomaridoedafamília,oraem
grupo–nocasodasprofessoras–masacompanhadasdeumhomem,sendoquea
únicamulheraaparecersozinhaéTiaNeiva,posandoaoladodeseucaminhão.
Muitosdepoimentossãopreenchidoscomimagensaéreasdaconstrução–quandose
faladapaisagemqueaquiencontravamaochegar–,imagensdepessoascarregando
malasnasruasdaCidadeLivre,todoshomens,ouimagensdospau-de-arara,que
tambémmostramsomentehomens.Háalgumasquemostrammulheresnesses
caminhões,massãofotografiasmeramenteilustrativas.Éperceptívelpelaqualidade
142
daimagem,tiposderoupaemodelodecaminhãonãotrataremdoperíododa
construçãodeBrasília.
Brasília como espaço de emancipação feminina
Aliadodecertaformaaodiscursodaaventuraedoespíritodeempreendedorismo
quemoviaasmulheres,ofilmeprocuranosdepoimentosumarelaçãoentreavinda
paraBrasíliaeabuscaporumacertaemancipaçãofeminina.Essaemancipaçãose
traduznumsentimentomotivadordamudançaparaacidadeemconstrução,como
numcertoespíritoquecontaminavaaquelasqueestavamparticipandoda
empreitadamoderna.
Naquelaépocasermulhereraumacoisamuitodifícil.Lembrandoquenósestamosnofinaldadécadade50pra60,queéquandocomeçouaemancipação,dizem,aemancipaçãodamulher.Entãoquemeraarrojadacomoeufuinaquelaépoca,sairdacasadosmeuspais,beminstalada,comempregofixo,universitária.Eeuiriaentãonocaso,paraocentrodopaís,paratrabalharaqui,apósseleção.(TherezinhadeJesus,professoradoCaseb)
AquiemBrasíliaeuaprendiaserindependente,serumamulherassimquepodiaexpressarnomeiopolítico,nomeiosocialdosempresáriosqueestavamemBrasília,eupodiachegarpraeleereivindicardireitospraempregadosdeles,entendeu?(AliceAndradeMarciel,enfermeira)
143
Asimagensassociadasaessasfalasmostrammulheres,incluindofreiras,presentes
emeventospúblicosdenotoriedade,fotografadasaoladodehomens,descendode
aviões,caminhandopelarampadoCongressoNacionaleemumcoralfemininoque
participadeumarecepçãonoaeroporto.Emboraassociadasafalasquetratamde
umabuscaporemancipaçãoeindependênciadamulher,asimagensmostram-nas
sempreacompanhadasdehomensimportanteseemeventosdenotoriedade.Ainda
nessasituação,chamaaatençãoaimagemdeumquartetodemulheres:aprimeira
estávestidadebaiana;asegunda,demiss;aterceirausaóculosmodernoseum
vestidocujaestampareproduzodesenhodascolunasdoAlvorada;eumaquartacom
roupadeestudante.Maisumavez,exemplosdecomoapresençafemininaem
eventosdenotoriedadeaconteciademaneiraritualística,e,nessecaso,asmulheres
aparecemfantasiadasemarquétiposfemininosparacumpriressepapel.
144
Emdepoimentoúniconofilme,umaprofessorachamaaatençãoparaoreflexode
umacertamodernidadenocorpodessasmulheres,naformacomosevestiameeram
vistasnoespaçopúblico:
Eufiqueibastantesurpreendidacomasnordestinas,porexemplo,oucomasmineiras,ouaspaulistasquechegavamdecalçacomprida.Gaúchanãousavacalçacomprida.Eeuaderiaisso,acheiumacoisafantástica,maravilhosa.(TherezinhadeJesus,professoradoCaseb)
O mundo do trabalho
Emboraotrabalhodessasmulheressejamencionadoconstantementeaolongodo
filme,algunsdepoimentosrelatamfatosdiretamenteassociadosaessecotidiano.São
entrevistadasprofissionaisdeatuaçãomuitovariada:telefonistas,médicas,parteiras,
lavadeiras,costureiras,calculistas,comerciantes,cozinheirase,principalmente,
professoras.
Nota-senosrelatosumanecessidadedeimprimirqueoempenhodedicadoao
trabalhoeraomesmoqueodoshomens,aqueledoespíritopioneiro,queimplicava
emlongasjornadasdetrabalhoparaqueaobraestivessedefatoconcluídanoprazo
previsto.
Opovotrabalhava24hspordia,numtinhahora,ninguémsepreocupavaemganharhoraextra,emtrabalharmais,sabe...queriaeratrabalhar,queriaveraobra.EntãoBrasíliaera24hs,né.(GeorginaJaneteCâmara,telefonista)
IlustrandoodepoimentodeGeorgina,noentanto,vemosimagensdeumcanteirode
obras,ondesomentehomenspodemservistos.Odepoimentoquesesegue,da
professoraCoseteRamos,fazumaassociaçãoentreotrabalhodoshomensedas
mulheres:primeiro,segundoela,elesseriamomotivodavindadessasmulherespra
Brasília;segundo,estandoaqui,algumasoptaramportambémtrabalhar.Outras
mantiveram-senacondiçãodeesposa.
Asmulheres,euvejoassim,doisgruposbemdistintos:umgrupoqueveioacompanhandoomaridoeficoumeioàmargem;mashouveoutrogrupodemulheresqueforammexercomflores,queforammexercomcabeleireiro,queforammexercomagrimensura...Entãoessasmulheresseengajaram.Elaschegaramtrazidaspelosmaridos,maselasnãoficaramparadasesperandoomaridoandarnão.Elascomeçaramasemexer:não,nãovouficarparadanoespaçonão,vouentrarnaluta.Eforampraluta.Aquantidadedeprofessorasquelargaramosmaridosesemandarampra
145
Brasília,eficaramaqui,eosmaridosforamembora,eelasficaramaqui,permaneceramcomosfilhos.Muitocorajosas,umgrupograndedemulheresmuito,muitocorajosas.(CoseteRamos,professoraCaseb)
Hádepoimentosdealgumasmulheresquemantinhamseutrabalhoassociadoao
trabalhodosmaridos.
Mamãetrabalhavaànoite,quaseanoiteinteira,emcimadumapranchetafazendoamediçãodasfazendas,ajudandomeupai,porqueelesaíaprocampoeelaficavaemcasa.Entãoelapassavaotempotodofazendoessesmapasedatilografando,naquelaépocanãotinhacomputador,pradesapropriarasterras.DaíéquevocêpoderiadarocomeçoentãoaBrasília.(GláuciaMarina,paisagista)
ChegamosnaCidadeLivre,meumaridojátinhafeitoumacasinhapranós.Nósbotamosumarmazémporquenósqueríamostrabalhardetudo.Entãoeuficavanaporta,falava,vamoentrar!,elesentravamnãodeixavaninguémsairsemcomprar.Umcafezinho,umaágua,umafruta,comecei...cativamososfregueses.(SalanKozac,comerciante)
Algunsdepoimentosevocamtambémopapeldasmulherescomocompanheirasdo
homem,aimportâncianofatodeacompanhá-loseapoiá-los.Amulheraparece,nesse
depoimentocomoparcerianecessáriaaosucessodohomem.
Olha,naquelecomeçoprincipalmente,asmulhereseramsóparceirasdoshomens.Agentepercebiaqueoshomensqueestavamsozinhos,orendimentonãoeraomesmo.Euvimuitasvezesdiscussõesassimdopadreorientandolá,porexemplo,doesposobuscaraesposa,né.(MariaMaura,pedagoga)
Aquelasqueseempenhavamemtarefasdeprimeiranecessidade–cozinheiras,
lavadeiras,parteiras,médicas,enfermeiras,etc.–descrevemjornadasdetrabalho
extenuantes,masqueseriammuitobemrecompensadaspeloretornofinanceiro.
OseuAntôniopediu,disse:Luiza,nãovaiemboradaquiagora,queminhamulhervaiganharneném,enãotemninguémaqui,nãotemmulher–nãotinhaquasemulheraqui,né–aquinãotemninguém.Eudisse,entãotábom,masoqueéqueeuvoufazeraqui.Eledisse,nãoeuvouarrumarunshomenspravocêdarcomida.Aíarranjouassimnasfirmasporaliumas10pessoas.Eucozinhavacarne,verduraefeijão.Tinhaunsfogõesredondoassim,comumnegócionomeioassimqueelesbotavaquerosene,noNúcleoBandeirante.Eramuitoassimdegente,euvimfizumbarracolánainvasãodoIAPI,quemeumaridofezumacasagrandeecomeçouavirnordestino,sótrabalhavapradarcomidaaessepovo.(LuizaFerreira,auxiliardeenfermagem)
LánoNúcleoBandeirantetodomundoalitrabalhava.Tinhagentequepegavaaroupadospolicialeviviadaquilo,pralavar.Era6conto,eunãomelembroonomedodinheiro.Eulavavaroupa(risos)ládomeuirmãoedopessoalqueerapramimganhardinheiroqueeutinhaquemandarodinheiroproPiauí,poxa,eutinhaquetrabalhar,era...Cêlavavaaquele
146
montederoupa,apolíciatedava6.000réis,eradinheirodemais.Eumandavanumseiquantopraminhaterraeaindaficavacomdinheiro.Eeusóandavabonita,euiaaocinema,comiabem,sobravadinheiro.(HildaRibeiro,auxiliardeenfermagem)
Eutrabalhavalavandoroupaparaospeão.Queaquitinhaempregopraquemtinhaestudo,vinhadelonge,quemnãotinha,ialavarroupa,iadarcomidaparaospeão,fazermarmita.Eraosmonte,eratodosantodia.Eulevantavadenoite,trêshorasdamanhãeulevantavapralavarroupa,esfregar,faziaumforronomeiodoquintal,botavaumavasilhagrandeassimpraferver,quesólimpavafervida,porqueeramuitapoeira,àsvezeseraatédeóleo.(JosefaCarmelita,lavadeira)
Em58,59,60nainauguração,em3anoseufiztantospartosqueeunãoseiquantosforam.Atendianosacampamentoseeralongeprasairdeumaconstruçãopraoutraconstrução.Eeucomabolsadeparto,porqueeulevavaatéáguafervidapradarobanhozinho,chegavalánãotinhaáguaàsvezes,entãoeraluva,oinstrumentalcirúrgicoeáguaeremédiodosolhosdoneném,tudotinhaquelevar.Entãoeufuimaisútilvindopracádoqueeuimaginei.(CacildaRosaBertoni,enfermeira-parteira)
Praláerademadeira.EraoIAPInaquelaépoca,queatendiaosempregados,osfuncionáriosdasobrasné.Naverdadeosprimeirostemposnãohaviaconsultório,erasóparto,erapartoatrásdeparto.Chegueiemumaocasiãoafazer20partosnumanoite.Otrabalhodasmulheres,vamosdizer,foiumtrabalhomuitointensivo,porquesetrabalhavadiaenoiteeohospitalnãotinhaestrutura,nãotinhanada.(JuremaChabalgoity,Médica)
Eramuitadificuldade,né,agentetinhaquelavarroupapraajudarsustentaromarido,igualfoimeucaso.Queeleganhavamuitopouco.Eudoenteainda,eueramuitodoente.Masvenci.(CelinaQuitériaZeferino,lavadeira)
Osdepoimentosdasprofessorastratambasicamentedascondiçõesdetrabalho,dos
númerosdealunosquerecebiamedoreconhecimentodemonstradopelosmesmos.
Oensinoeraumautopia,eraJuscelino,eraDarcyRibeiro,eraAnísioTeixeira,sósefalavanisso.(MariaMartaCintra,professora)
EudavaaulanoCASEBnosdoisturnos:de8aomeiodia,eutinhademeiodiaàsduaspraalmoçar,quinzeprasduaseucorriapracomeçarooutroturnodatarde.Entãoeuficavaemdoisturnos,quarentahorasporsemana.Sábado,osalunosqueriamdarauladepiano,entãoeupraticamenteficavaosábadorepletodealunosdepiano,demanhãànoite,eusótinhaodomingopradescansar.Entãoaminhavidacorreuassim.(NeusaFrança,professorademúsica)
Aprimeiraescolaclasseeranoacampamentodosengenheiros,elachamaEscolaJúliaKubitschekporcausadamãedonossopresidente,né,puseramonomenaescola.Eramuitobemorganizada,eradedoisandares.Servíamoslanche,porqueerapropósitodospioneirosdeeducaçãodeBrasíliademudaramaneiradoensinonoBrasil,entãoquiseramcomeçarporBrasília,queeraparaacriançaficarodiatodonaescola.Quaiscriançasquefrequentavam:desdefilhosdemédicos,atéosfilhosdosempregados.Entãoeumeoferecipraensinarosjaponesesafalarportuguês.Tinhajaponesesaté7anoseidosostambém.NoNúcleoBandeirantetinhaummercadinhoquevendiatudo,verdura,todosostiposdeverdura,fresquinha
147
agenteialáelestinhampegonooutrodianachácara.Entãoeucompravamuitolá.Aíeuchegueilánumalojaenemviqueohomemerajaponêsecompreialface,couve,compreitudoquetinhadireitoedepois...–Quantoé,quantoqueeutenhoquelhepagar?–Nãoprecisapagarnada,jápagou,vocêprofessormeu.(MariadasNevesMorici,professora)
AquiemBrasília,osprofessoresnoslevavamparaocerradoeaprofessoradebiologiamostravaasplantasedizia:oquequevocêsveemdiferente?Asplantasdocerradosãocheiasdepelos,ascopasdasárvoressãopequenas,masasraízessãoenormes.HouveumgrandeconcursonoRiodeJaneiro,noMaracanã,ondemaisde1000professoresfizeramumconcursopravirpraBrasília.EntãoforamescolhidososmelhoresprofessoresdoBrasil.EntãonóstivemososprofessoresquenosensinaramalutareaentendercomoéqueeraumacidadecriadanoséculoXX.(MariaCoeli,professoraecineasta)
Aodescreveremsuasjornadasdetrabalho,asimagensutilizadasmuitasvezesnão
constituemimagensdearquivo,sãoreproduçõesatuais,comoporexemplo,no
trabalhodaslavadeiras.Sãopouquíssimasasimagensdearquivoquemostramde
fatoessasmulheresatuandoemsuasprofissões,e,dentreelas,amaioriamostra
professorasrodeadasdeseusalunos.Foraasprofessoras,umafotografiachama
atenção:mostradapelamédicaJuremaChabalgoity,elaaparecedepé,aoladodeum
médicoqueestásentadoescrevendoemumamesadeconsultório,oqueseriauma
recordaçãodaqueleperíodo.Jurematemasmãosparatráscomoseaguardasseuma
resolução:háaliumatensãonasuaposturacorporal.Porqueessamulhernãoé
fotografadaemseupróprioconsultório?Seriaelasubordinadaaessehomem?
148
Relação homem/mulher no espaço público
Logonoiníciodofilme,chamaatençãoodepoimentodeIrmãOlga,concedidoparaa
sérieOsPioneiros(1983)eincorporadaaodocumentário.Seurelatoacenaparao
conflitonarelaçãohomem/mulhernoambientedaconstruçãodeBrasília:
Derepentemesentichamadaparaumavocaçãodiferente,avocaçãoreligiosa.Etavacomeçandoaconstrução,bemnocentrodoBrasil,dafuturacapitaldopaís.EufuiindicadacomoapessoaquesatisfaziaasnecessidadesdotrabalhodacongregaçãoemBrasília.Entãoficoucombinadoquenodia15desetembroasirmãspoderiamvirqueoalojamentojáestariapronto.Eeuperguntei:senósvamostrabalharcomoscandangos,porqueentãonãovamosmorarnavilaoperáriajuntocomeles?EdisseramqueaadministraçãodaNovacapnãoachoumuitobomporquequeriaqueasirmãstambémtrabalhassemjuntoàssenhorasquejáexistiam,dinamizandomaisaAssociaçãodasPioneirasSociaisquetinhasidocriadanoRioporDonaSara,etinhasidorecémcriadoumnúcleoemBrasíliacomapresidênciadaDonaCoracy,esposadodoutorIsrael.Equetambémmorandomuitoaliasirmãsiamserassediadasdiaenoiteerealmentenãoiriamaguentar.(grifomeu)Maseucontinueipensandoqueoidealteriasidoisso,agentesededicarinteiramentecomapopulaçãocomquemagentedeviatrabalhar.(IrmãOlga,gravadoem1983,sérieOsPioneiros)
Noentanto,quandootemaéretomadodemaneiradiretaemoutrosmomentosdo
filme,háclaramentedoisgruposcomdiferentesmanifestações.Oprimeiroassume
umtompacificador,evocandoaharmoniaeoespíritodecolaboraçãoexistenteentre
homensemulheres.
SermulheremBrasílianaquelaépocaeracomosevocêfosseumbotãoderosasperfumadoalinaquelelugar,alinapresençadeles,sabe?Porqueelesadmiravamesentiaaalegriadeteroperfumedeumafloraliporperto,né.Oqueseriadessestrabalhadores,senãotivesseessasmulheresalidispostasatrabalhareasuaralitambém.Eutenhomuitoorgulhodeserpioneira.(BraulinaMendes,funcionáriadaNovacap)
Eeraomaiorrespeitodaparóquia.Nósdormíamos,asmulheres,comaportaabertadoalojamento.Nuncaentrouláumbandido,nuncavocêouviufalaremestupro,qualquercoisaeratudobonitinho.Eumesentiaseguranacidade.IaproMinasBrasília,prapiscina.Eufuiaprimeira...pócontar?...EufuiaprimeiramoçaemBrasíliaqueuseibiquíni.(ZeniMoreira,funcionáriadaNovacap)
Sentiamaravilhosa,poderosa.Porquenuncaninguémmeafetou,nuncaninguémmemaltratou,nuncaninguémmeabordou,nunca,nunca,nunca.Quemfaladoscandangos,porqueelenãoconheceoscandangos.(SalanKozac,comerciante)
Haviamuitorespeito,agentedesciaaquelaAvenidaCentral,queantigamenteeraaAvenidaCentral,vocênãoouvia,ninguémsoltavapiadinha.(GeorginaJaneteCâmara,telefonista)
149
Nuncaouvifalaremviolênciasexual,emassédiomoral,nada.Nóspegávamosascaronascomosedafamíliadosmotoristasnósfôssemos.(MariaMartaCintra,professora)
Osegundogrupoapontaparaapresençalatentedesseconflitonocotidiano,noato
mesmodecircularpelaregiãodaconstrução.
AntigamenteoquefalavamdeBrasíliaeramaspiorescoisas.Queoshomensvinhampracá,masnãopodiamtrazerafamíliaporqueasmulherestinhamqueserviraoutroshomens.Coisasassim...horríveis.(LeocádiaParadela,professora)
Massemprequandosaíamosjuntos,comaminhairmãecomomeucunhado,erasemprecomaquelacautelademuitocuidadoconoscopranãoaproximarmososhomensqueeramunsdevoradores!Oshomensqueexistiamaquieramunsdevoradoresatrásdemulheres,né.Porqueelesvinhamsemfamília.(JandiraFrança,dolar)
Nessesdoisblocosdedepoimentosforamutilizadasapenasduasimagensdearquivo.
ElasilustramafaladeBraulinaMendes,aquelaqueserefereàmulhercomoum
botãoderosasperfumado,emostrambelasmulheresque“desfilam”emmeioaos
homensnarua.
Emumdepoimento,aparecetambémarelaçãocomaprocuraporcasamento,outra
evidênciadadiscrepânciaentreonúmerodemulheresedehomens.
Eulembroéque...nóstrazíamosempregadadeGoiânia,pramamãe...teveumaquenemdormiuemcasa,jáarranjouumcasamento.Entãotodaempregadaquevinhaeraum,doisdias,saíacasada.(GláuciaMarina,Paisagista)
Háaindaalgunsdepoimentosque,apesardenãotratardiretamentedarelação
homem/mulhernoespaçopúblico,evocamumespíritodeuniãoentreaquelesque
vivenciavamaconstruçãodeBrasília.
150
AsprimeirasimpressõesqueeutiveemBrasíliafoidauniãodetodosporquesevocêtivesseparadanabeiradadacalçada,epassasseumcarro,elesparavameofereciamumacarona.(SoniaVasconcelos,empregadadaCaixaEconômica)
Oespíritomesmodepioneiro,deajudarumaooutro.Euachoquenão...nãotinhaegoísmonemnadadisso,né...nomínimoeunãosentianadadisso.(GerdaGumprich,dolar)
Umbandodemenino,eraumacidadecommuitajuventude,porqueosqueacreditaramemBrasíliaeramjovenscasaisquevierampracá,né,pracidade,comomeupaieminhamãe,comumbandodefilho.(IaraPietricovsky,antropólogaeatrizdeteatro)
NósíamosfazercompranaCidadeLivrenossosfilhosficavamcomosoperários,noPaláciodaAlvorada.Eelestomavamcontadosnossosfilhos.Entãoauniãoentrehomensemulhereseramuitolegal,viu,muitomesmo,degranderespeito.(WandaClementinaCorso,professoraelídercomunitária)
Muitoemboraanarrativaadotadaprocurecolocarosdoisladosdasituação–deum
lado,atensãogeradapeladiscrepânciaentreonúmerodemulhereseonúmerode
homens;deoutro,atentativadeimprimirumasituaçãoharmônica,ondeoespírito
pioneiropacificavaqualquerpossívelconflito–sãomaisnumerosososdepoimentos
queprocuramesteúltimoenfoque.
Prostituição
Otemadaprostituiçãoéabordadonodocumentáriologoapósosdoisblocosde
depoimentosquetratamdarelaçãohomem/mulhernoespaçopúblico,citadosacima.
Sãomencionadasduasregiões–aPlacadasMercedeseaVilaParafuso–comolocais
ondeaprostituiçãoeraexercida.Hátrêsdepoimentosacercadotema,detrês
mulheresnãoprostitutas,sendoqueumadelaséIoneRodrigues,identificadana
legendacomogerentedecasadeencontros,umeufemismoparaoqueseriaagerente
deumacasadeprostituição,ouainda,cafetina.Nenhumaprostitutafoientrevistada
nodocumentário.
APlacadasMercedes!Aondeera...possofalar?...acasadasprostitutas.Alinoparafusomesmosótinhaeraomulheril,né,etodomundoiapralá,oshometudoiapralá.Eraaquelacoisadoida,tudopralá.Maseradividido,elaseramimpedidadevirpracáproNúcleoBandeirante.ElassófrequentavaaVilaParafusoeaPlacadaMercedes.(HildaRibeiro,auxiliardeenfermagem)
151
PorquePlacadasMercedes?PorquehaviaumaplacamuitograndedaMercedesBenzequandoagentechegavaláeraassim...eramuitofeiooqueeuvia...porqueelassentavamdequalquerjeito,ejátodasjáesgotadasdanoite,né.(GláuciaMarina,paisagista)
Asmulherdacasaqueeutrabalhavaeramulhereselegante.Tinhaosdiasdelavestirlongo.Eoutra,nãopodiacalçarsapatobaixosemmeia,sósapatoalto,commeia.Usavamuitasaia,muitablusa.Nosdiasdelongoeuusavatambémolongoprafazerpartené.Porqueagerentedacasatinhaqueandarelegante,né.Tinhamulherestrangeira,tinhamulherdetodolugardomundo.Oshomemeradefila,minhafilha,emuitohomemmesmoné.Eagenteiaatéodiaamanhecer.(IoneRodrigues,gerentedecasadeencontros)
Nosdoisprimeirosdepoimentosháumatentativadeseparar,pordefiniçãoepor
território,asprostitutasdasnãoprostitutas:amençãodeHildaRibeiroàseparação
territorial,elaseramimpedidadevirpracáproNúcleoBandeirante,assimcomoa
referênciadeGlauciaMarinaàregiãodaPlacadasMercedescomoumlugarfeioonde
asmulheressentavamdequalquerjeito.Essaúltimadescriçãocontrastamuitocomo
depoimentodeIone,queserefereaobordelcomoumlocaldemuitoglamour,onde
asmulheresestavamsempreelegantes.
Novamente,nãoháimagensdearquivoquemostremessasmulheres.Aúnica
imagemutilizadaéafotografiadeumalongafiladehomens,emreferênciaao
depoimentodeIone,quandoeladiz:oshomemeradefila,minhafilha,emuitohomem
mesmoné.Eagenteiaatéodiaamanhecer.
152
Conclusão
Osdepoimentosfinaisdofilme,entreosquaisseincluiumafaladadiretoraTânia
Fontenele,culminamemumaodeàBrasília.OdepoimentodeTânianosdáa
entenderasintençõesdarealizadoraeoseuenvolvimentopessoalcomotema.
Agentejáouviuquase50mulheres,entãotododiaéumaemoçãomuitogrande,porqueouvindoashistórias,euestououvindoaminhahistória.Alémdeserummomentohistóricoextraordinário,todomundoéunânimeemdizerqueapesardasdificuldades,daterra,dalama,dosbarraquinhos,maseraummomentodetantaesperança,detantaalegriaquesuperavamtudo.(TâniaFonteneleMourão,coordenadoradoprojeto)
Asúltimasfalasevocamapaixãopelacidade,oreconhecimentodosseuscriadores–
quesãoosúnicosqueaparecemnasimagensdearquivo–easensaçãodedever
cumpridodiantedosucessoqueaempreitadarepresentouparaopaís.
Nóstemosaquiumaqualidadedevidadiferente.Eessaabertura,esseverde,essecéumaravilhoso,sótemaoferecerdebompraquemvem,né.Achoqueapessoatemquevireamaranossacidade.(CleusadeOliveira,radialista)
Quemconheceahistória,deveterBrasílianocoração,comosímbolodonossopaísqueéimenso,equemereceuessagrandecapitalquenãoexistenomundoigual,cujaarquiteturadeNiemeyer,oprojetodeLúcioCosta,aquelesprimeirosgrandesnomesqueaquiestiveram,BurleMarx,merecemnossareverência.Entãoeuachoquetodobrasileirodevetermuitoamor,mesmoaquelesquenãoestãomorandoaqui,eucreioquedeveriamvalorizaraomáximoaconstruçãodessacapitalquesaiudepertodomar,queera,pravirparaocoraçãodoBrasil.(NeusaFrança,professorademúsica)
EuqueviBrasílianascer,euquevitodaagestação,depoistransformandoemmulher...euvitudoisso...valeuapena.(WandaClementinaCorso,professoraelídercomunitária)
Eofilmeterminadamesmaformacomoseinicia:numdepoimento,ametáforaentre
Brasíliaeamulher;masnãoqualquermulher,umamulherarrojada,modernacomoé
Brasília.
Brasíliapramiméumamulher...éumamulherde50anos,éumamulheremancipada,éumamulhercommuitascontradições,né,maséumamulherqueseafirma,equeelainfluencia,dopontodevistadecomportamento,oBrasileomundohoje.(IaraPietricovsky,antropólogaeatrizdeteatro)
SobemoscréditosfinaisenquantoaprofessoraNeusaFrançacantaoHinodoDistrito
Federal.
153
4.2. Filme 2: A saga das candangas invisíveis (2008) Direção:DeniseCaputo.Documentário,15’05”
Ofilmeseiniciacomumaimagemdeausência:acâmeraemtravellingpercorreuma
cidade,umbairronãoidentificado.Existealialgodeumacidadeabandonada:ruasde
terrabatida,casascomparedesemurosmanchados,remendados,rachados,portase
janelasfechadas,quandonão,preenchidascomtijolos.Nãoháumapessoasequera
circularporali.Emumdadomomento,umrelato,emvoiceover,iniciauma
apresentaçãodolugar:AquichamavaVeneza...Veneza...antigamentechamavaVeneza,
né...Adecoraçãoaquieralinda,eratodaencortinada,todacheiademesas,cadeiras.
Veneza...quelugarseriaesse?Umlugarondeadecoraçãolinda,encortinada,deum
outrotempocontrastacomaimagemdeabandonoquevemosnatela.Prosseguimos
eanarradoraagoranoséapresentada:Yone38,seunomeemumalegenda.Uma
senhoranegra,cabeloscurtosegrisalhos.Elaprossegueseurelato:Tinhaluznegra,
tinhaestátuapratudoquantoeraladoaqui...ah,eraumabelezaaqui,erauma
38AgrafiadonomedeYoneRodrigueséapresentadanacarteladeidentificaçãodeAsagadascandangasinvisíveiscom“Y”,ediferentementeemPoeiraeBatom,ondeégrafadocom“I”.Opteiporassumir,emcadaanálise,agrafiarelatadaporcadafilme.
154
maravilha!OrelatodeYonenoslevaimediatamenteaimaginaresselugarque,como
denunciaocontrasteentreimagensepalavras,nãoexistemais.
Surgeentãoumasegundanarradora:Auda,umamulhermaisjovem,aparentando
meiaidade,cabeloslongosecastanhos,vozarticulada.
Alembrançaqueeutenhoeraassim,decoisaassim,bemenfeitada,assim,umpoucodeexageropranossaépoca,praquelasmoças,praquelasmeninasemoçasqueeradomeuconvívio.Entãoagenteficavaachandoqueeratudoexagerado:obatom,aroupané,umpoucomaisdedecote,babados,flores,coresfortes,acharreteassim,eulembrodecharretecomcavalobranco,eulembroassimde...elacomasaiamuitorodadasobreobancodacharrete...(AudadeLima)
Auda,comoseurelatodeixatransparecer,nãoeraprostituta.Observavaessas
mulheresdelonge,juntoàsmeninasemoçasdeseuconvívio.Seuolharconstróium
mundodemuitabeleza,umabelezacompostadeexagerosquecontrastavacomoseu
universo.Seurelato,seuentusiasmo,aofalardessasmulheres,colocam-nasem
posiçõesopostas:doisgruposdemulheresporalicirculavam,eumerabemdistinto
dooutro,pelaformacomoseapresentavamnoespaçodarua.Aimagemdacharrete,
construídaporAuda,nostransportaparaesselugardeoposições.
155
Yonevoltaafalarconosco:Vocêentravaassimpareciaquetavaentrandoaténum
salãodebaile,numsabe...quetinhaumsalãomuitograndeaqui.Seguem-seimagens
desuacasa,umacasaondenãosevêqualquerindíciodosalãodebaile,massim
paredesdescascadas,opendentedeumpratodeplantasvazio,umacadeiravaziaem
meioaosalão,umacercademadeiracomumaportaaberta.
UmcortenoslevaaimagensdeBrasíliasendoconstruída:caminhõescheiosde
homenspercorremasviasdacidadeaindaemconstrução.Várioscaminhões,
enfileirados,imagemrecorrentenanossamemóriaacercadaconstrução.Nenhuma
mulheraparecenasimagens.
Segue-seorelatodeumnovonarrador,Francisco:Naquelaépocaasmulher...mulher
eramuitodifícil,nossasenhora,sótinhahomem,sóerahomemmesmo.Àsuafala,
complementaJoséPerdiz,umquartonarrador:
Elesnãopermitiamqueoshomens,queosmaridostrouxessemasmulher...pranãoatrapalharaconstrução.Elesachavamqueiaatrapalharaconstrução,porquetinhaquetrabalharumamédiade18,16horaspordia,eocaracasadoamulhermuitasvezescriacaso:“queé,cêtádandomaisvalornaobradequênimim?”(JoséPerdiz)
156
EmmeioàfaladePerdiz,sãomostradasimagensdaconstruçãodeBrasília,e
novamentesomentehomensaparecemali.Operáriosdaconstruçãonocanteiro
remexematerra,concretamlajes,misturamoconcreto.Umailustraçãodafalade
Perdiz:ocenáriodaconstruçãotomadoporhomensemtrabalhodiário.
Sãointroduzidasaseguirmaisduaspersonagens:NoemeAlveseNoemeLuis.
(Risos)Euvimnumcaminhãodegasolina,naprimeiravezqueeuvim,né.Depois,aminhamãemoravaaquiemGoianápolis,eeuvinhade2em2meses.Vinhadecarona...vinhadecarona...namoravaomotoristanaestrada,namoravané...(risos).Ficavadeitadinha(risos).Naqueletempoeueranovinha,bonitinha.Eutinha22anosnaquelaépoca,novinhané…peitindurinho,tudoné…(risos)(NoemeAlves)
Ah,onegóciofoisofrimento,minhafia,porquechegavanumacasa,erademenorpratrabalhar...“não,nãoserve”.Chegavanumambienteondeeuqueriaficar,tambémnãopodia,erademenor,tinhaqueestarsempre
157
correndodapolícia.Quandoapolíciapintava,tinhaqueesconder,debaixodecama,debaixodequalquercoisa,tinhaquemeesconder,nãopodiamostraracara,queeueramuitonovinha.Efoidose,menina,otremnãofoimolenão.(NoemeLuis)
Apresentam-se,finalmente,asprotagonistasdofilme:prostitutasquevieram
trabalharnaconstruçãodeBrasília.Seusrelatosiniciaisfalamdesuachegada,os
primeiroscontatoscomaquelelugar.Lugaressequesemostrapelasdificuldadesem
chegaresobreviveraele:seprostituirparaconseguircarona,seesconderdapolícia.
Ailegalidadeeanecessidadegerandoospercursosesituaçõesqueessasmulheres
vãoviver,localizando-asàmargemdeumprocesso,escondidasdahistória.Afalade
Perdizquesegueconcretizaessaimpressão:Sóqueessashistóriasdessasmulher
nuncavininguémcomentar.Nememjornal,nememtelevisão,nemnada.
Nasequência,imagensdeumtrilhodetrem,vistoquasequerenteaochão.Aofundo,
aolonge,umamulhercaminhasegurandoumamala,seguindoocaminhodotrilho.
Contextualizadoestáentãootítulodofilme,queentraemseguida:Asagadas
candangasinvisíveis.
Asdiversõeseraresumidooseguinte:tinhasóduasclasse,ooperáriopropriamenteditoeosengenheiro,osadministradordeobra,osprojetista,engenheirodeobra,mestredeobras.Essagamadeengenheirosedoutorados,elestinha...adiversãodeleseranoúnicoprédioquetinhadealvenariaqueeraumhotel,pertodoPaláciodaAlvorada,quedepoispegoufogo.Alitinhaumaboate,oucoisaparecida,aíelesiampralieànoitetinhaunscabaréquefoimontadosópraeles,vinhasómulheresescolhidaqueelesbuscavaemBeloHorizonte,SãoPaulo,RiodeJaneiro,Goiânia.Eotrabalhadornãotinhaaondesexualmente...ondeir.EletinhaqueirpraLuziâniaoupraFormosa.Masquandoaconteciaafolhadepagamento,queelesiam,davafalhadeserviço.Ecommuitocustoelesconvenceu...naépocaquemgovernavaBrasíliaeraoIsraelPinheiro...eaíeleconcordouemmontarocabarédepoisdaestradadeferronoNúcleoBandeirante.Ealifoimontado.(JoséPerdiz)
158
AimagemdotrilhodetremvoltaaaparecerdescritanorelatodePerdiz:depoisda
estradadeferrofoiimplantadaazonadascasasdeprostituição.
Ficavaseparadodafamília,né.Acidadeficavadeumlado,tinhasóumapartezinhaassimmaisoumenosdeuns100metrosdeseparaçãoné.Masaísóeracasané,sómulher,sómulher.(FranciscoAlves)
Sentiapreconceitodoladodasfamíliané.Queasfamílianumpodiaverumamulhernaruaqueelasmesmaligavaprapolícia“afulanatánarua”,“afulanatáassim”,“afulanatánafarmácia”,“fulanatánoaçougue”,“fulanatádessejeito”.Nãoseiondequeelasconseguianomedaspessoas,masconseguia.Ligava,járeclamava,apolíciavinhaerecolhiaagente.Numpodiaporcausadisso.Eramuitochato.(NoemeLuis)
Acidadeapareceaquidivididanãosomenteporumtrilhodetrem,mastambémpor
umavigíliaconstantedequempoderiacircularpelaCidadeLivre.Umobservatório
moral,doqualparticipavamhomensemulheres,estipulavamoslimitesparaquem
eradignoounãodeestaremestabelecimentosdacidade.
Aquelehotelzãoassim,tudodetábua,ocorredorzãoassimó.Aítinhaunsquartinhoassim,osquartinhocabiasóacaminhasó,cabiamuitomalacama,eumamesinhaassimó.Eratábuamesmo,queeraprovisórioné.(NoemeAlves)
Aíquandosaíaopagamentoaquiloaliviravauminfernoné,todomundoiapralá.Eessemecânicoquetrabalhavaconoscoficavaforçandopramimirlá,eufalava,fulanoeutônoivo,numtenhointeresseemirpracabaré.Elefalou“não,euquero...procêverasloucura,asloucura!”.Aíumdiaeufuicomele,numsábado.Elogonaentrada,umacasacomumafilade50homens,eufalei,“elestãocomprandooquêaí?”.Elefalou“nada,elestãoesperandoavezdelesprairproquartocomasmulherné”.Elefalou,“masesseépequeno,vamonooutrolá”.Aíeucontei,erauns300homensemfila.Tinhaumportãozinho,ocaraficavaalieamulhergritavalá“tôlivre”.Ocaraabriaoportãozinho,ocaraentrava.Daíumpouquinhooutra,“eutôlivre”,abria,entravaoutro.Sóqueelesaíaporoutraportadofundo.Elesentravaporaquiesaíaporlá.Eafilaiaandandoali,praticamenteanoiteinteira.(JoséPerdiz)
159
EmmeioàfaladePerdiz,aimagemdeumafiladehomens,àesperadaentradano
bordel,extraídadofilmeConterrâneosVelhosdeGuerra(1990),deVladimirCarvalho.
AdescriçãodeNoemeAlvesdaqueleespaçoíntimo–obarracãodemadeira,o
tamanhodosquartos,etc.–éumaimagemdememória,nãoháilustraçãoparaela.A
imagemdafiladehomensmostraoquesepodiavernoespaçopúblico,oquese
podiaalcançardaruaequedemarcavaafunçãodaquelelugar.
Emseguida,vemosimagensdeNoemeLuísaosemaquiaremseuespelho.Imagens
deseuquarto,suacamafeita,umapenteadeiracomsuascoisas.Esseespaçoíntimo,o
quartodesuacasahojeemdia,éaimagempossíveldaintimidadedessamulher.
Aíquandoerafinaldesemanaenchiaaquelescaminhãodepião,desoldado,detudoedespejavatudolánomeidarua.“Ficaaí,sevira,detardenósvemapanhar”.Ali,minhafilha,onegóciopegava,onegócioficavafeio.Eraumafilamesmo.Fedorentoasuvaco,fedorentoasuor,fedorentodetodojeito,masnãotemjeito.Nãotinhapraondecorrer,fazeroquê,tavaalipraquilo(risos).(NoemeLuis)
Entãoláeuconsertandocama,queeracamaquebradaquenãoacabavamais,efuiconversandocomasmulheresqueficavamali.EessameninadeGoiânia,euconversandocomelaecomasoutras,elafalou“olha,aloucura,vocênãoimagina.Nodiadopagamentopassavaemcimadagentede80a120homens”.(JoséPerdiz)
Aítinhadiaqueagentetinhaquepedirlicençapradonadacasa,quenãoaguentavamais.Aquelaspartesdagenteinchava,nãotinhamaiscondições.Elasdavaumapomadapragentelá,“40minutos,ficareservadapralá”,aídavaaqueles40minutosvoltavadenovo.Maserade60,dependiadoqueaguentava,nãotinhabasenão.Alitinha...atéahoraqueaguentasse.Senãoaguentassetinhaqueavisar.(NoemeLuis)
Nessasfalas,adescriçãodarotinadetrabalhodessasmulheres,ascondiçõesaque
eramsubmetidas:umaequaçãodetempo/dinheiro/eficiênciaaplicadaaocorpo
dasmulheres.AfaladeNoemeLuistambémcolocademaneiraclaraquehaviauma
hierarquiadetrabalho,essasmulheresestavamsubmetidasàsordensdeuma
superior,adonadacasaditavaasregras,quemdeveriaequantotempodeveriam
160
trabalhar.Mesmoemcondições“ilegais”,asregrasestavamestabelecidas:nãotinha
praondecorrer,fazeroquê,tavaalipraquilo.
Umaquebranofilme.AimagemdaentradadocinemadaCidadeLivreéseguidapor
fotosdemusasdosanos1950/60:BrigitteBardot,AudreyHepburn,LeilaDiniz,
JeanneMoreau,TuesdayWeld,SophiaLoreneNatalieWood.Emmeioaessas
imagens,entraafaladeAuda.
Narealidade,elaspassavamnaavenida,e,aosmeusolhos,aquilotudoeracomoumpersonagem,quesaiudocinema,quesaiudofilmeetavaalinaminharealidadené?(AudadeLima)
Eànoiteasmulhereserammuitolinda,todasvestidasdelongo,né,calçadadesapatoalto,meias…ninguémpodiairprosalãosemmeia,nemosapato,brilhandonopé.Porquesapatotorto,mulhernãofaziasalanão,né…enemvestidoassim,malvestidatambémnão.Eaquieramuitobonito,sabe,vinhagentee…vinhaospolíticostambém,vinhamuitoaqui,vinhamuitodeputadoaquiné…comoJuscelino,né.Juscelinofrequentouaqui,sentadoaquiondeeuestou,né.Aquitinhaumamesagrandeaqui.Eeleveiomuitasemuitasvezesaqui,ossegurançastudoficavamláforaesperandoele,né.Porqueeletambémnãoligavapranadanão,eleeramulherengo,né…nãoligavapranadanão.Eeletinhaconhecimentoné,comadonadacasa,agentetratavaelemuitobemné…umpresidente,cêjápensouumpresidentenacasadagente?Ah,cêtálouconé!(YoneRodrigues)
Tinhamuitosalãodecabelolásabe,salãodebeleza,entãoasmulherandavamuitobemarrumada,cabelãoassim,sabe.Muitobemarrumada,tudolimpinha.(NoemeAlves)
Nãopodiarepetirroupa,né,aroupatinhaquesersemprenova.Porexemplo,euvestiessaroupaaquihoje,amanhãnãopodiausarmais.Eadespesaficavacara.(NoemeLuis)
DetodoladodoBrasiltinhamulheraqui,tinhadoexterior,tinhacubana,tinhaduascubanaaqui,queagentenementendiaalínguadelas,nemdefrancêsnemnada,precisavadeumapessoaprasaberfalarprapodertransmitirpragentequeagentenãosabia.Conversavapelosinal.Mulhereslindas,sóvendo,né.Mulheresmuitobonitas.(YoneRodrigues)
161
Tinhaumasmulheresmaisbonitasqueeramaiscara,outrasmaisfeiaeramaisbarata.(risos)Asmaisnovaseramaiscara...(FranciscoAlves)
Emcontrapontoàsituaçãoapresentadanasfalasimediatamenteanterioresaessas,
quedescreviamospercalçosdarotinadetrabalhovividaporessasmulheres,esses
relatosconstroemumaoutraimagem:adecomoessasmulhereseramvistasno
espaçopúblicoenosalãodascasasdeprostituição.Naverdade,retoma-seaquia
imagemmentalqueintroduzofilme,incorporadanaquelemomentopelasfalasde
AudaeYone.Aassociaçãocommusasdocinema,apresentadasnasfotos,reforçaum
estereótipoqueglamourizaaprostituta.Essavisãoestáimpregnadanovamentenas
falasdeAudaeYone,mulheresqueobservamaprostitutadeumolharexterno:uma,
ameninaqueviveunaCidadeLivre,masquepertenciaaumoutrogruposocial;
outra,afuncionária,porassimdizer,deumacasadeprostituição,queexerciaum
papelordenadorecontroladornogrupodasprostitutas.Caberessaltarquesomente
nestaúltimafaladeYoneépossívelaferirqueelanãoeradefatoumaprostituta.
Apesardefalarapartirdeumaóticadequemviviaarotinadascasasdeprostituição,
Yonerefere-seàsprostitutasemterceirapessoa,assimcomoàdonadacasa.
Portanto,épossívelintuirqueelatrabalhavaali,desempenhandoumafunçãoque
nãoficaclaranofilme39.Assumindoesselugardefala,Yoneglamourizatambéma
imagemdosfrequentadoresdolocal–políticos,inclusiveJuscelinoKubitschek–,e
todoocenárioemtornodesseuniverso,incluindoaformacomoasprostitutasse
apresentavamaosclientes.Jánasfalasdasduasprostitutas,vemosamesmaquestão
vistaporumoutroângulo:estarbemvestida,bemarrumadaeraumrequisitoparao
negócio,paraavendadoserviçosexual.Eraprecisoseapresentarbemesemostrar
atraenteparaosclientes.Porúltimo,temosavisãodocliente,quecolocaaquestão
dosvaloresatribuídosaoserviçocomodiretamenterelacionadosàaparênciadessas
mulheres:asmaisbonitaserammaiscaras,asfeias,maisbaratas.
Tinhaassimumatabelacomaentradadoquarto,tinhaastabela,tanto,tanto,tanto...querquefalaquanto?(risos)Não,numpodefalar,né?Então,tinhaumtantoné,eumtantopraelas,umtantopracasa,quejádeixavanacopa,né.(YoneRodrigues)
Aporcentagemalieraoseguinte:étantodechave,eelesproibiaagentedefalar.Naquelaépocaera15cruzeirosdachave,15damulher.Masaqueledamulher,elajátinhaquedeixar5queeraprasoutrasdespesas,oálcool,o
39NofilmePoeiraeBatom,comojávimos,YoneécitadacomoGerentedecasadeencontros.
162
sabonete,ousodobanheiro.Tiravaaquelaporcentagempraeles,queerapranãoficardegraça,praelesnãoterprejuízo.Amulherpodiater,maselesnão.Eracomplicado.Umavidamuitohumilhante,querdizer,alémdevocêestarlá,trabalhandopravocê,cêtemquetrabalharpradona.Eladáocafé,dáoalmoço,dáajanta,aindatemquedividiroqueganhacomelas.(NoemeLuis)
Adonadacasaobrigavaamulherafazersalalá,elatinhaqueficarfazendosalalá,beber,pradarlucropraeles,né.(FranciscoAlves)
Essasfalasexplicitamcomosedavaacobrançaeadivisãododinheiroarrecadadona
casa,segundoaqualasprostitutasprecisavamcederparaacopaoupagarataxada
chaveoequivalentea50%dodinheirorecebidopeloserviço,aindasomadoàs
demaisdespesas,restandoaofinalapenasumterçoparaaprostituta.Emmeioàfala
deNoemeLuis,vemosimagensdelaemsuacozinha,entrevistapelacortinadaporta.
Vemosapenassuasilhueta,aimpressãodeestarescondida,reclusa.Essaimagem
entranomomentoemqueapersonagemdescreveumavidamuitohumilhante...,
parecendoquererestabelecerumarelaçãoentreessafigurareclusadaimagem,ea
suaresignaçãoàsituaçãodescritanafala.
Emseguidavemosnovamenteumaimagemdotrilhodetrem,dessavezvazio,eavoz
dadiretoraéouvidapelaprimeiravez:
(DeniseCaputo:EcomofoiofinaldaZonalá?)Cabô,todomundosaiufora,cabô(incomp.)eseapolíciapegassequalquermulhernaruaprendia,umbocadofoipraPapuda.Cabôenãotevemaiscolherdechápraninguémnão.Cabô,apolíciafezmuitacovardia,aGEB,oexército,sabe..enchiaoscaminhãodemulhersabe,elevavapraAlexânia,deixavalánaestrada…umbocadolevoupraLuziânia,muitaamigaminhafoi…elesbatiamdemais,sabe…foimuitacovardianaquelaépoca.(NoemeAlves)
Foideumahorapraoutra.Ojuizmandoufecharejáentroucomostratorderrubandotudo.Foisóumprazode24h…“saidebaixo,vamoderrubar”.Passouotrator,ostremeratudodemadeirané?Foimoendotudoali,acabou.“Evocêsdesapareçam!”Cadaumtevequecaçarseudestino,euvimpracá,outrasforampraLuziânia,outrasforampraCristalina,outrasforampraFormosa,outraspraGoiânia…esumiutudo.Desapareceuumadaoutra.(NoemeLuís)
Assim,damesmaformaqueforamtrazidas,asprostitutasforamexpulsas.Após
cumpriremoseupapeldeapaziguarosânimossexuaisqueinquietavamos
trabalhadoresnaconstruçãodacidade,e,tendoestasidoinaugurada,azonafoi
extirpada.Osdepoimentosdasprostitutasdemonstramaviolênciaeaintolerância
comqueforamrealizadasessasexpulsões,queseguiamaregradasremoçõesfeitas
apósainauguraçãodeBrasília,cujoprincípioeraomesmo:manterlongedacidade
163
qualquerindíciodoBrasildopassadocomoqualoprojetodecidadepretendia
romper,qualquerinterferênciaaoprojetomodernodecidadeedepaísque
impregnavaodiscursodanovacapital:Evocês,desapareçam!
Umasficourica.Outras,tudoqueganhou,queimava.Eeufalei,“ômas...eoquequeganhoucomisso?”Eela,“olha,euporexemploeutôbemdevida,játenhoalgunsapartamentos,tenhocasaprópria,tômepreparandoprasairdessavidaeformarminhafamília.Depoiseuvoufazerumtratamentodesaúdemuitobemfeitoearranjarumcasamento,porqueissonumévidanão.Issoémuitotriste,émuitosofrido,equandoagenteencontravaalgumcompanheirodebomcaráter,masmuitasvezestinhaunsignorantesqueàsvezesatébatianagentené”.(JoséPerdiz)
Quandoeulembrodaqueletempoeudigo“meusenhor,comofoiqueeusuportei,comoéquedeupravencer”.(NoemeLuís)
Eelaseramrealmentemulheresdiferentes,masassim,aosmeusolhosné,aquelacriançadaquelaépoca.Hojeeuconcluoquerealmenteelastinhamqueserumpoucodiferentesporqueelasjáfaziampartedeumavidadiferente.Jáerampioneirastambém,candangastambém,alinoseutrabalho.Hojeeutenhoomaiorrespeitoporessasmulheresquevieramtambémaventurarnessaépoca.SeaventuraramaviraBrasília,aviverumavidaassimdifícil,né,porqueimagina...(AudadeLima)
Asfalasconclusivasdofilmetentamdisporsobreodestinodessasmulheres–umas
ficourica;outrastudoqueganhou,queimava;sobreamemóriaemotivaqueguardam
desseepisódiodesuasvidas–comofoiqueeusuportei?;eofilmefinaliza,assimcomo
seiniciou,comapalavradeumaobservadoraexterna:(elas)jáerampioneiras
também,candangas(...).Hojeeuguardoomaiorrespeitoporessasmulheresque
vieramtambémaventurarnessaépoca.Apesardenamemóriadessasmulheres
persistiremasimagensdodurotrabalhoaquesesubmeteram,énecessáriolembrar-
sedelasapartirdaperspectivadafiguraheroicadocandango.
164
4.3. O corpo feminino: entre santa e puta
Arespeitodosdoisfilmesqueacabodedescrever,cabecolocarumaquestãoinicial:
nãoépossívellerapartirdelesumcorpofemininomaterializadounicamentenas
imagens.Hánosdoisumaarticulaçãoentreamemóriaeimagináriopresentenos
relatosdessasmulhereseomaterialdearquivoacercadaconstruçãodeBrasíliaque
éexpostonosfilmes.Dessaforma,abuscaqueessasnarrativasincitaméadeum
corpodescritoeambientadonosrelatosdaspersonagens,alternativaparaquese
possaenxergaroutrasnuancesdeumcorpotãopoucoregistradonalarga
documentaçãoaudiovisualacercadaconstruçãodeBrasília,produzidasporhomense
protagonizadasporeles.
Aentrevistanodocumentáriobrasileiropassaaserumaconstantemaiorapartirda
décadade1990,muitoinfluenciadopeloformatojornalísticoetelevisivo.Elasetorna
oprópriocorpodaobra,emtornodoqualodocumentárioéestruturado,muitas
vezesentremeadaporimagensqueserelacionamcomosdepoimentos.Mas,no
documentário,aentrevistanãoseprestasomenteacoletarinformações.Oatode
perguntaredeouvirtorna-seumaestratégiapolíticadodocumentário:fazpartedo
queacríticaBeatrizSarlochamade“viradasubjetiva”,
...quesemanifestatantocomotendênciaacadêmicaquantonomercadodebenssimbólicosesepropõeareconstituir“atexturadavida”,averdadecotidianacontidanarememoraçãodaexperiência,apromovertantoavalorizaçãodaprimeirapessoacomopontodevista,quantoareivindicaçãodeumadimensãosubjetiva.(...)“Umverdadeirorenascimentodosujeitoqueseacreditavamortonosanos1960e1970”.(SENRA,2010,p.113)
Ummovimentodedevoluçãodapalavra,deconquistadapalavraededireitoàpalavraseexpande,reduplicadoporumaideologiada“cura”identitáriapormeiodamemóriasocialoupessoal.(SARLOapudSENRA,2010,p.113–14)
Namedidaemqueosdoisfilmessepropõemaummesmoobjetivogeral–resgatara
memóriadasmulheresnaconstruçãodeBrasília–,esendotambémpioneirosnesse
intuito(aindaosúnicos),compõemumpanoramaaudiovisualinteressanteacercade
aspectossubjetivosdessahistória.Noprimeiro–PoeiraeBatom–osdiversos
depoimentosprocuramtecerumlargopanoramadessaspersonagens:mulheresde
diferentesclassessociais,profissõeseorigensdãooseutomdahistória.Jáosegundo
–Asagadascandangasinvisíveis–procuraaprofundaraindamaisaquestãoda
165
invisibilidadedamulhernahistória,aoapontarparaumsegmentoespecífico–odas
prostitutas–,quenosparecetersidovítimadeumaconstantetentativade
camuflagemaolongodaescritadahistóriadeBrasília.Foitratadocomumentecomo
fenômenoouchagasocial,destituindooscorposdessasmulheresdesua
individualidadeesubjetividade:nãosetinhaconhecimentoatéentãodequese
tivessedadovozaessasmulheresparaqueelasmesmaspudessemdescreverasua
vivênciadoperíododeconstruçãodeBrasília.Comomencioneinaintroduçãodeste
trabalho,mesmoapesquisadeJoelmaRodriguesquetratadiretamentedoassunto,
acabaporabordaraquestãodaprostituiçãocomofenômeno,e,mesmopartindoda
críticafeminista,aonãoincorporarafaladessasmulheres,generaliza-as.Nopróprio
PoeiraeBatom,aabordageméamesma,nenhumaprostitutaéentrevistada,orelato
maispróximoquetemoséodeYoneRodrigues,cujafunçãoéeufemisadana
referênciaàsuaprofissãocomogerentedecasadeencontros.
Dadasessasquestões,oqueimportaperguntaraessesfilmes,paraefeitosdoque
buscaessetrabalho,écomoasprópriasmulheresvãoreconfiguraressecorpo
femininonahistóriadaconstruçãodeBrasília,pormeiodasdescrições,estórias,
visõesquesomenteelaspodemnosoferecer.Ficaclaroaolongodosdoisfilmesqueé
impossíveldissociarosdiscursosdahistóriaoficialdoimaginárioconstruídopor
essasmulheres,eque,tantoanarrativapropostapelascineastasemtornodotema
comoosprópriosdepoimentosestãoimpregnadosdela.Mesmoassim,procuroaqui
pelasnuancesdessecorponarradoemprimeirapessoa,articuladoscomasimagens
dearquivoquedãosuporteaosdepoimentos.
Dessaforma,aoolharparaessesdoisfilmesproduzidospormulheres,épreciso
tambémprocurarnessafacetadanarrativacinematográfica–dodocumentáriode
entrevista,dabuscapelamemória–,outrasnuancesdarelaçãoqueocorpofeminino
estabeleceucomamodernidadenaconstruçãodeBrasília,jávistanosfilmes
anteriores,nasrepresentaçõesmasculinasquedelesefez.Trata-setambémde
questionaramaneiracomoessecorpofemininofoivistoporessescineastas,e
procurarnanarrativafemininadabuscapelamemóriaperdida,tantoostraçosde
pregnânciadessavozmasculinanonossodiscursosobrenósmesmas,comonos
traçosdeumesforçoporsereinventar.
166
Umhomemnãoteriaaideiadeescreverumlivrosobreasituaçãosingularqueocupamosmachosnahumanidade.Sequerodefinir-me,souobrigadaadeclarar:‘Souumamulher’Essaverdadeconstituiumfundosobreoqualseergueráqualqueroutraafirmação.Umhomemnãocomeçanuncaporseapresentarcomoumindivíduodedeterminadosexo:quesejahomeménatural.(BEAUVOIR,1970,p.9)
“Tudooqueoshomensescreveramsobreasmulheresdevesersuspeito,porqueelessão,aumtempo,juizeparte”,escreveunoséculoXVII,PoulaindelaBarre,feministapoucoconhecido.Emtodaparteeemqualquerépoca,oshomensexibiramasatisfaçãoquetiveramdesesentiremosreisdacriação.(BEAUVOIR,1970,p.15–16)
Dentrodaliteraturaproduzidaporhomensacercadamodernidade,recorroauma
dasfigurasliteráriasmaisutilizadasparafalardohomemmoderno,oudodesejode
desenvolvimento,–oFausto–equepodesuscitartambémumainterpretação
interessanteacercadecomoamulherfoivistapelohomemnesselargoedifuso
processoqueéamodernidade.Bermanrecupera,emTudoqueésólidodesmanchano
ar,oFaustodeGoethe,ededicaumcapítulodeseulivroaele.Goethecomeçaa
escreveraobraporvoltade1770,econtinuaaté1831,ouseja,iniciaaobraemum
períodoondeas“condiçõesmateriaisesociaisaindasãomedievais”,e“terminaem
meioàsconturbaçõesespirituaisemateriaisdarevoluçãoindustrial”.(BERMAN,
1986,p.45)
Faustoémovidoporessedesejodedesenvolvimentoque,paraGoethe,estáatrelado
aoidealculturaldeautodesenvolvimento:“oúnicomeiodequeohomemdispõepara
setransformar(...)éaradicaltransformaçãodetodoomundofísico,moralesocial
emqueelevive.”Trata-sederompercomovelhomundo,transformá-loparadaí
transformarasimesmo.ApartirdesuauniãocomMefistófeles(odiabo),Fausto
consegueosrecursos,amobilidadeeaautoconfiançadequenecessitaparaseguir
suajornada.
ParaBerman,notrajetoembuscadoautodesenvolvimentopercorridoporFausto,há
umasimbiosedepoder–dinheiro,corpo,espírito–queémotivadoradasua
empreitada,masquenãoseresumeaumamerarepresentaçãodaeconomia
capitalista.Alémdedinheiro,essepoderéprincipalmentepropulsorde
desenvolvimento,envolveumacrençanaforçaindividual,numaenergiahumanaque
écapazdemoveromundo.Mefistófeles,aooferecerseiscavalosaFaustoestá
principalmentefalandodevelocidade,muitomaisdoqueriqueza.Avelocidade,
167
segundoBerman,geraumaforçanitidamentesexual,erelacionadaàmasculinidade,
queestánocernedopoderdemudança,demovimentar-separatodososladoscom
rapidezedeterminação.
ImbuídodessasensaçãodepoderéqueFaustovaiconhecerGretchen,moradorade
umapequenacidade:oencontroentreumasensibilidadeedesejomodernos,euma
personagemaindaatreladaaestruturassociaistradicionais.Elesevêatraídopor
tudooqueelarepresentademaisbeloequeelehaviaabandonadonomundo:sua
inocência,simplicidadeehumildadecristã.Elasevêrepentinamenterodeadapor
presentes,providenciadosporMefistófeles,eéevidentequeaquiloteráumimpacto
emsuavida,fazendocomqueelasejavistademaneiradiferenteporaquelesquea
rodeiam.“Nuncaninguémlhedeunada;elacresceupobre,tantodeamorcomode
dinheiro;nuncapensouemsicomomerecedoradepresentesoudasemoçõesque
presentessupostamenteimplicam”.(BERMAN,1986,p.61)Assim,Gretchensevê
diantedapossibilidadedesetornardiferente,ecrescenelaodesejodese
desenvolver.Gretchenpassaaacreditaremsuasnecessidadespróprias,eétomada
por“umanovaespéciedeauto-respeito”.Noentanto,aoconfrontaressenovo
sentimentocomoseumundo,comaquelacidadeprovinciana,Gretchenpersonifica
emFaustoapossibilidadedemudança.Issooassustaeeleaabandona.
Faustoseassustaaoobservarseucrescimento;elenãosedácontadequeéumcrescimentoprecário,poiscarecedesuportesocialenãotemqualquersimpatiaouconfirmaçãoanãoserdapartedopróprioFausto.Aprincípio,odesesperodelasemanifestaatravésdapaixãodesenfreada,eelesedelicia.Porém,empoucotempooardorseconverteemhisteria,paraalémdoqueelepodecontrolar.Eleaama,masnocontextodeumavidaplena,compassadoefuturo,eemmeioaumlargomundoqueestádecididoaexplorar;paraela,oamorporeleignoraqualquercontextoeconstituiseuúnicoapoionavida.Forçadoaenfrentarointensodesesperodasnecessidadesdela,Faustoentraempânicoeabandonaacidade.(BERMAN,1986,p.62)
Atormentadopeloseuprópriodesejo,Faustoseretiraemumafloresta,buscao
isolamentonanaturezaparafugirdasperturbaçõesqueseusinstintoslhecausaram,
esevêtomadopelosentimentodeculpa.Imersonessesentimento,Faustochegaà
conclusãoque,porGretchen“terlhedadotudoquepodiadar,despertouneleum
apetitequeelanãoécapazdesaciar”.Imbuídodessacerteza,Faustoprocuraum
ritualsabáticoonde“desfrutademulheresincomparavelmentemaisexperientese
despojadas;drogasaindamaisinebriantes;estranhasemaravilhosasconversações
168
quevalemporverdadeirasviagens”.EnquantoFaustoprocuravadissolverasua
culpa,Gretchenhaviasucumbido:ovelhomundodesabarasobreela.Grávidae
julgadapelosseusvizinhosefamíliacomotraidora,acabacondenadaàmorte.
ApersonagemGretchennomitodoFaustorevelaumamulherque,emcontraponto
aohomemmoderno,continuapresaàsvelhasestruturas:nãolheéconcedidaa
mesmaliberdadedequedispõeFausto,nãoestãodisponíveisparaelaosmeios,o
podereaautoconfiançanecessáriosparapromoveressa“radicaltransformaçãode
todoomundofísico,moralesocial”emquevive.
Umamulherpobre,atreladaàfamília,nãotemqualquerliberdadedemovimento.Estádestinadaaver-seàmercêdoshomensquenãotemcomiseraçãoporumamulherquenãoconheceoseulugar.Noseumundofechado,loucuraemartíriosãoosúnicoscaminhosàsuadisposição.(BERMAN,1986,p.66)
OencontrodeGretcheneFausto–queéoencontroentreasestruturasdeumvelhoe
umnovomundo–colocademaneirasingularesseembateentreaspequenas
comunidadesquecomeçamasedesestruturarcomamodernidade.Mas,
principalmente,colocademaneiraclaraqueháquestõesdegêneroeclassequese
interpõemaesseprocessodedesenvolvimentoquechamamosdemodernidade.
GretchenvêoseudesejoporFaustoeporumnovomundoruirprincipalmentepor
suacondiçãodeclasseedemulher,ondeasvelhasestruturasatuamcommuitomais
força.BermanobservaaindaemsualeituraqueGretchenparecesermovidaporuma
aceitaçãoautodestrutivadeseudestino,comoseeladesejassesercondenada:“ela
estátentandoiralémdaslimitadasfronteirasdafamília,daigrejaedacidade,um
mundoondeadevoçãocegaeaautocastraçãosãoosúnicoscaminhosdavirtude”.O
queéapontadoporBermancomoum“desejodesercondenada”podeserentendido
comoaincorporaçãodoauto-sacrifíciocristãocomovirtude,principalmente
feminina,econstituintedessasubjetividade.Gretchensabequenãolheédadaoutra
escolha,equesuacondiçãofeminina,dentrodessevelhomundo,está
necessariamenteatreladaaessaaceitaçãodaculpa,dopecadooriginal,doqualnão
podeselibertaranãoserpelaredenção.
OconflitoentrevelhoenovomundonoFaustodeGoethenosdáaveras
transformaçõesdamodernidadenãoapenasnavisãodosvencedores,mastambém
169
daquelesquesãovencidosporelas,evidenciandoacrueldadequeasacompanha,
impulsionadaspela“destruiçãocriativa”deMefistófeles.ApersonagemdeGretchené
particularmenteimportanteparaessetrabalhojáqueposicionaamulher–doponto
devistamasculino–nesseprocessodaprimeiramodernidade,eéemblemáticoque
elaapareçanaconstruçãodeGoethejustamentecomopersonagemarquetípicadesse
velhomundo.Curiosotambéméopapelquedesempenhamasmulheresfeiticeirasdo
ritualsabático–incomparavelmentemaisexperientesedespojadas–quevãosaciaro
desejodeFausto,umoutroarquétipofemininoaserlevadoemconta.Apartirdesses
doisarquétipos–porumlado,amulhercristã(ousanta,oudefamília),implicadaem
fortesestigmassociaisacercadeseupapelnomundo;eporoutro,amulherdespojada
(ouputa,comopoderíamoslerhoje,semeufemismos)tambémimplicada,mesmoque
poroposição,nosmesmosestigmas–sãopontasdeumapolaridadeentreasquaiso
corpofemininovaitransitaremsuasrepresentaçõessociais.Essapolaridadevai
permeartodaaexistênciahistóricadasmulheres,implicandonaconstituiçãodesua
subjetividade,desuavisãodesimesma,edeseucorpo,crucialparaoentendimento
decomoamodernidadevaiatuarsobreocorpofeminino,tantonoquetangeasua
interdição,comonoseudevirenquantoexistênciasocial.
UmadistinçãosimplóriaquesepodeaferirapartirdaleituradoFaustoéadequeo
corpofemininonãovivenciaamodernidadedamesmamaneiraqueomasculino.A
oposiçãoentreFausto(omoderno)eGretchen(otradicional)sãotambémreflexosde
umaconstruçãodaracionalidademodernaapartirdedualidades.Comovimosem
Descartes,adualidadecorpo/menteéfundadoradessaracionalidade,eteveosseus
rebatimentosemdiversasoutraspolaridades.DeacordocomElizabethGrosz,
Arelaçãomenteecorpoéfrequentementecorrelacionadaàsdistinçõesentrerazãoepaixão,sensatezesensibilidade,foraedentro,sereoutro,profundidadeesuperfície,realidadeeaparência,mecanicismoevitalismo,transcendênciaeimanência,temporalidadeeespacialidade,psicologiaefisiologia,formaematéria,eassimpordiante.(GROSZ,2000,p.48–9)
Eassimpordiante,poderiavir,adistinçãoentremasculinoefeminino.Na
interpolaçãodessasoposiçõesfoiconstruídoopensamentoocidental,comosefosse
possívelsepará-laseconsiderá-lascomocategoriasestanques,equeserelacionam
sempreemdualidade,emoposição,nuncaemcomplementação.Ocorpo,apaixão,a
sensibilidade,aaparênciaeofemininosão,assim,admitidoscomocategoriasbrutas,
170
naturais,emsubordinaçãoàmente,àsensatez,àrealidade,aomasculino,categorias
racionaiseobjetivas.
Tipicamente,afeminilidadeérepresentada(explícitaouimplicitamente)deumadeduasmaneirasnessecruzamentodeparesdeoposição:ouamenteétomadaequivalenteaomasculinoeocorpoequivalenteaofeminino(e,assim,deantemão,excluindoasmulherescomosujeitosdoconhecimento,oufilósofas)ouacadasexoéatribuídasuaprópriaformadecorporeidade.Noentanto,aoinvésdeconcederàsmulheresumaformadeespecificidadecorporalautônomaeativa,nomelhordoscasos,oscorposdasmulheressãojulgadosemtermosdeuma“desigualdadenatural”,comosehouvesseumpadrãooumedidaparaovalordoscorpos,independentementedosexo.(GROSZ,2000,p.67)
Aolongodetrêsséculosopensamentoocidentaltemprocuradodiscutiradualidade
cartesiana.Noentanto,édeterminanteainfluênciadeDescartesnopensamento
racionalmodernoe,emsetratandodocorpofeminino,essadualidadeéainda
reforçadaporumsegundoelemento,queestámuitopresentenapersonagemde
Gretchen:amísticacristã.Odiscursocristãosobreocorpotransitaemuma
ambiguidade:deumlado,adignidadedocorposanto,ocorpodeCristo;edeoutro,o
corpopecador,relacionadoàfraquezadacarne.
AféeadevoçãoaocorpodeCristocontribuíramparaelevarocorpoaumaaltadignidade,fazendodeleumsujeitodaHistória.(...)CorpomagnificadodoFilhoencarnado,doencontrodoVerbocomaCarne.CorpogloriosodoCristodaRessurreição.CorpotorturadodoCristodaPaixão,cujosímboloéemtodaparteacruz,lembraosacrifíciopelaredençãodahumanidade.(...)Masexisteumaoutraimagemdocorpo,igualmentecheiadesentido,queéaimagemdoserhumanopecador.AIgrejadaContrarreformareforçouadesconfiançaqueomagistériojáhaviamanifestadonosséculosmedievaisarespeitodocorpo,“essaabominávelvestedaalma”.Corpodepreciadodoserhumanopecador,poisseouveincessantementedizerqueépelocorpoqueelecorreoriscodeperder-se.Opecadoeomedo,omedodocorpo,principalmenteomedodocorpodamulher(grifomeu),retornamcomoumaladainhasobformadeprecauçõesecondenações.(CORBIN;COURTINE;VIGARELLO,2012,p.19–20)
Nessaambiguidadesefundamentatodaamoralcristãacercadocorpo.Ocorposanto
éumcorposacrificado,cujosofrimentodacarnesedestinaàelevaçãodaalma.Daía
origemdocultoaocorposofredor,aomartíriopraticadoduranteaRenascença,
principalmentepormulheres,comopodemospercebernaresignaçãodeGretchen
diantedesuacondenação.
Amulheresteverelacionadaaocorpo,sejaeleimpuroounão,muitomaisdoqueo
homem,emtodaaconstruçãodamísticacristã:desdeomitodacriaçãodomundo–o
171
corpodeEvaconduzAdãoaopecadooriginal–aténaconcepçãodeJesus,naqual
Mariaestálivredopecadooriginal,mas,aindaassim,participadagestaçãoapenas
enquantocorpo,receptáculodoVerboDivino.
Jesuséofrutodeumaduplafiliação,deumaidentidadehumanaedivinaaomesmotempo.EleéprodutodauniãodoVerbomasculinoedivinoedeumacarnehumanaefeminina.OVerbosefezcarnefecundandoMariapelaanunciação-encarnação(grifomeu);seu“sopro”foiofermentodivino.EElenãosereproduzirá“segundoacarne”,massegundooVerbo.Paraocristão,onascimentobiológico,afiliação“carnal”deveviracompanhadadeumrenascimento,deumafiliação“espiritual”(...)OVerboencarnadoéoalimentodaalma.(CORBIN;COURTINE;VIGARELLO,2012,p.44)
Portanto,ahistóriadasmulheresesteveintimamenteligadaaoseucorpo,que,
biologicamente,estevecondicionadoàsconsequênciasdareprodução,ecujo
imagináriosocialfoialimentadofortementepelamísticacristãdocorposantoem
oposiçãoaocorpopecador.ComodiriaMichellePerrot,“éprecisoserpiedosaou
escandalosaparaexistir”(PERROT,2007,p.19).
Relacionadatambémàpolaridadepecado/santidadeatribuídaaofeminino,estáuma
outraequeserelacionadiretamenteàformacomoseucorposemanifestanoespaço
dacidade:aquestãodopúblico/privado.Opatriarcaanuncia:lugardemulheréna
cozinha,ouseja,lugardemulherédentrodecasa.Poroposição,arua,acidade,seria
olugardohomem?Umdosaspectosdaconstruçãodadiferençaentreossexosse
espacializanosdomíniosdopúblicoedoprivado.SegundoMichellePerrot,a
narrativahistóricatradicionalreservapoucoespaçoàsmulheres,namedidaemque
privilegiaacenapública,ondeelaspoucoaparecem.Oshistoriadoreshesitaram
muitoemtransporolimiardavidaprivada,porpudoroudesprezoparacomas
atividadesobscurasquetranscorriamnoanonimatodoméstico,umlugar“sem
história”.Contudo,acasaeafamília,talcomoaconhecemoshoje,sãoum
acontecimentohistórico,datadoemsuamodernidadee,então,assuntoamerecer
atençãodoshistoriadores.
Osmodosderegistrodasmulheresestãoligadosàsuacondição,aoseulugarnafamíliaenasociedade.Omesmoocorrecomseumododerememoração,damontagempropriamenteditadoteatrodamemória.Pelaforçadascircunstâncias,pelomenosparaasmulheresdeantigamente,epeloquerestadeantigamentenasmulheresdehoje(oquenãoépouco),éumamemóriadoprivado,voltadaparaafamíliaeoíntimo,
172
osquaiselasforamdelegadasporconvençãoeposição(grifomeu).(PERROT,1989,p.15)
Aconstruçãododomínioprivadonoimaginárioocidentalfoimuitoassociadaao
feminino,namedidaemquefoidadaàmulheraresponsabilidadepormanterolar.
WitoldRybczynski,aodiscorrersobreosurgimentodoconceitodadomesticidade
burguesa,chamaaatençãoparaapresençarecorrentedemulheresemquadrosde
pintoresholandesesrenascentistasquetinhamcomotemaprincipalomundo
doméstico:
Énatural(grifomeu)queasmulheresfossemofocodaspinturasdeDeWitte,vistoqueomundodomésticoqueeleestavapintandohaviasetornadooseudomínio(grifomeu).Omundodotrabalhomasculino,edavidasocialmasculina,haviasemudadoparaoutrolugar.Acasahaviasetornadoolugarparaoutrotipodetrabalho–otrabalhodomésticoespecializado–,otrabalhofeminino.(RYBCZYNSKI,1996,p.81)
AcolocaçãodeRybczynskiésintomáticaparaentendermosaformacomoaescritada
história,emalgunscasos,posicionouamulheremrelaçãoàorganizaçãodavida
domésticaesocial.Háumadiferençacrucialentreestaúltimaabordagemeàquelade
MichellePerrot.EnquantoRyvczynskiconsideranaturalapresençafrequentede
mulheresemquadrosqueretratamosambientesdomésticosholandeses,Perrot
colocaasituaçãosobumoutroenfoque,quequestionaesse“destino”:elasforam
delegadasaeleporconvençãoeposição.
Essarelaçãopúblico/privado,puta/santaécolocadadeformainteressantenoestudo
quefazMargarethRagoacercadaprostituiçãoemSãoPaulonoperíododeaugeda
culturadocafé.EmseulivroPrazeresdanoite:prostituiçãoecódigosdesexualidade
femininaemSãoPaulo(1890-1930),MargarethRagoconstróiumpanoramada
presençadessasprostitutasemumacidadequeviveumatransformaçãoprofundaem
seuscódigosdesociabilidadeurbana:barõesdecafépassamaresidirembelos
palacetesnaAvenidaPaulista;hotéisdeluxosãoconstruídos,comoomodernoGrand
Hotelnaruadireita,projetodoarquitetoalemãovonPuttkamer,umdosmarcos
inauguraisdaarquiteturadocafé.Ouseja,emmeioàmodernizaçãoqueviviaacidade
deSãoPaulo,asprostitutas,principalmenteestrangeiras,quecomeçavamavirparaa
cidadeatraídaspelaprosperidadeeconômica,impactavamprofundamenteaforma
comoasmulheresvivenciavamoespaçopúblico.
173
Aassociaçãodaprostitutacomumafiguradamodernidade,“corpomíticoalegóricoondeoutrasdiferençasnegadas”podemseinstalar,ocorrenocontextodeumasociedadequelidacomdificuldadesdiantedastransformaçõesurbanasquealteramacondiçãofemininaeosatributosdafeminilidade.Arelativaemancipaçãodamulher,sualivrecirculaçãonasruasepraças,suaentradamaisagressivanomercadodetrabalho,acriaçãodeumespaçopúblicoliterário,segundoaexpressãodeHabermas,asolicitaçãoparaquefrequentassereuniõessociais,restaurantesdamodaoutemporadaslíricasforamrecebidasdemaneiraextremamenteambígua.Sedeumladovalorizava-sesuaincorporaçãonumamploespaçosocial,poroutroprocurava-seinstaurarlinhasdedemarcaçãosexualdefinidorasdospapéissociaisbastanteclaras.Nocasodamulher,que“honestas”e“perdidas”nãoseconfundissem.Eque,acimadetudo,asmulheresseconscientizassemnademocratizaçãodavidasocial,dequesuanaturezaprimeiraeraamaternidade.Aprostitutapassou,então,asimbolizaraalteridademaisradicaleperigosa.(RAGO,1991,p.26)
Dessaforma,adiferenciaçãodocorponoespaçopúblicopassaaserumimperativo
paraamulher,queprecisavadefinirsequeriaservistacomoumamulherhonestaou
comoumaprostituta,oquefaziacomque“pequenosdetalhesdocomportamentoe
daaparênciafemininafossemcautelosamenteestudadoseproduzidos”:operfume,o
vestido,oscabelos,todosessescuidadoseramtomadosparaquepudessemse
distinguirumasdasoutraspeloolhardooutro.
MargarethRagocolocaaprostituiçãocomoumfantasmaquepassaaassombrara
vidapúblicadehomensemulheres,encaradocomoumproblemapúblico,“olado
negativodoprogresso”.Poroutrolado,aprostitutaerarecobertatambémpor
imagensquelheatribuíamcaracterísticasde“independência,liberdadeepoder”:
Figuradamodernidade,passavaaserassociadaàextremaliberalizaçãodoscostumesnassociedadescivilizadas,àdesconexãocomvínculossociaistradicionaiseàmultiplicidadedenovaspráticassexuais.Figurapúblicaporexcelência,podiacomercializaroprópriocorpocomodesejava,dissociandoprazereamor,aventurando-se,atravésdalivretrocapelodinheiro,emviagensdesconhecidasatémesmoparaoshomensdospaísesmaisatrasados.Poderosa,simbolizavaainvestidadoinstintocontraoimpériodarazão,aexemplodeSalomé,ameaçadesubversãodoscódigosdecomportamentoestabelecidos.(RAGO,1991,p.37)
QualquersemelhançaentreocenáriodescritoporMargarethRagonaSãoPauloda
transiçãodoséculoXIXparaoXX,eadescriçãofeitapelasmulheresqueparticiparam
daconstruçãodeBrasílianãoémeracoincidência.Percebemosnosdoisfilmescomo
adiferenciaçãoentremulhereshonestaseprostitutasestáfortementepresentenos
códigosdesuasociabilidade,naconfiguraçãodoespaçodaCidadeLivreetambémna
formacomosedefinemasimesmaseasoutras.Otrilhodotremdividiadois
174
territórios:asmulhereshonestasprontamentedenunciavamqualquerirrupçãodessa
demarcação.OsdepoimentosdasmulheresemPoeiraeBatomtransitamtambém
nessadiferenciação:eramuitofeiooqueeuvia...porqueelassentavamdequalquer
jeito,dizuma.Poroutrolado,agerentedacasadeencontrosdescreveumambientede
glamour,belezaeliberdade.EmAsagadascandangasinvisíveis,Audarecupera
tambémessamemóriadamulherpoderosa,autoconfiante,lindamentevestidaeo
impactodessafiguraemseupróprioimaginário.
NanarrativadeTâniaFontenelepercebemoscomoodiscursodoprogressoatodo
vaporéadmitidoeincorporadotantoàestruturadodocumentáriocomoao
depoimentodasmulheres.Nessaadmissãoinquestionada,acabaporreproduzir
projeçõesacercadocorpofemininoedacondiçãodamulherquecompõemo
imagináriomasculinoproduzidosobreela:amulhercomofiguramaternal,
necessáriaàconstruçãodofuturo;amulherqueflorescejuntoàBrasília;amulhera
servenerada,admiradaporsuabeleza.Ofilmeprocuraafirmartambémolado
empreendedoreaventureirodessasmulheresnaconstruçãodeBrasília.Asua
atuaçãoprofissionalautônoma,noentanto,épouquíssimomostradaatravésdo
materialdearquivo.Essaescassezdeapariçõespodeestarrelacionadacomasraras,
ouainda,programáticasapariçõesdamulherhonestanoespaçopúblico,fatoqueo
filmenãoquestiona.
Aoevitarascontradiçõesquesãoimpostaspelaquestãodegênero,ofilmedeixade
assumirquehaviamdiferençaseconflitosaseremsuperadospelasmulheres.
Importamostrarumaidealizaçãodamulherinovadora,modernacomoéBrasília,mas
éfatoqueelasestavamaliembemmenornúmeroeissojáseriaumaquestãoaser
levantada.
Portanto,ofilmeevitaquestionaroporquêdeessasmulheresteremsido
invisibilisadas,evitaoenfrentamentodiretodaquestãodegênerocomoumadas
implicaçõesnaformacomosecontouahistória,deixandoessasmulheresàparte.O
quedefatocumpreodocumentárioétrazeressasmulheresparaosholofotes,mas
semquesejaproblematizadaaformadecontarahistóriaqueasdelegouumpapel
secundário.Éumexemplodecomoaçõesdegêneroporvezesprocuramequilibrar
estatísticas,masevitamoenfrentamentodiretocomosdiscursosdahistória
175
construídapeloshomens,que,comojávimosnofilmedeJeanManzon,também
homenageiaasmulherescomonoivadoBrasil,asbelasfloresdocerrado,afimapenas
demantê-lasocupandoasmesmasposições.
JáDeniseCaputo,procuraumenfrentamentodireto.Apresençadasprostitutasem
Brasíliaéprecedidaporumaausência:elaschegamparasuprirumademanda.Como
FranciscoePerdizrelatam,nãohaviaquasemulheresemBrasília.Azonafoicriada
medianteumareivindicaçãodosoperáriosquenãotinhamondesatisfazersuas
necessidadessexuais.Ecomoessaquestãopassouainterferirnaprodutividadedos
trabalhadores,aadministraçãodaNovacapnãosófoiconiventecomofoiatuantena
implantaçãodazona.Elasurgeapartirdeumanecessidaderealaoandamentodas
obrasdeBrasília.
OfilmenosapresentaanarrativadeumtrajetopossívelparaachegadaaBrasília:
caronasemcaminhões,pagascomprogramasaolongodaestrada.Aochegarna
cidade,adificuldadeemseestabelecer,fugirdapolíciaporser“demenor”,procurar
porumlugarqueasacolhesse.Dequalquerforma,avindadessasmulheresé
impulsionadapelanecessidadedetrabalho,epelagrandepropagandaquesefaziade
Brasíliacomoumaterradeoportunidades.
Podemosestabelecerperguntasaofilmetaiscomo:dequeformaessasmulhereseram
vistasnarua?eobteremosváriasrespostasdiferentes.Umadelaséaimagemdeuma
mulherquelembramusasdocinema,vestidascomcoresexuberantes,cabelosbem
arrumados,batons,decotes,florais,saiasrodadas,levadasemcharretesguiadaspor
cavalosbrancos.Aoutraéamulherquetentairàfarmácia,aoaçougueeé
denunciadaàpolíciasimplesmenteporestarali.Essasimagensnãosão
necessariamenteexcludentes,masdenunciamadicotomiadocorpodasprostitutas,
oravistocomoimagemdeliberdade,autoconfiança;oracomosubordinado,caçado,
interditado.
Aprimeiraimagem–dabelezaedoglamour–provémdasmemóriasdeumamulher
que,enquantocriança,viaessasmulherescircularemnarua–espaçoondeelas
deveriamserreconhecidasparaatraíremosclientes–etambémdeumagerentede
casadeprostituição,quetendeaimpregnarsuamemóriaapartirdessepontode
176
vista,dosucessodeseunegóciofazpartetambémgarantirquepermaneçaamemória
desuaparteglamourosa.Asegundaimagem–ocorpooprimido,impedidodecircular
livremente–provémdasfalasdasprópriasprostitutas.
Essaimagemserepetequandoconsideramosoespaçodobordel,oudacasade
prostituição.Yonedescreve,noiníciodofilme,umsalãoencortinado,ondeas
mulheresfaziamsala,comluznegra,muitasestátuas,frequentadoporpolíticos
importantes(inclusiveopróprioJK),asmulheresmuitobemvestidas,sapatoalto,
meias,vestidoslongos.Enquantoasprostitutasnosdescrevemumhoteldetábua,
espaçoprovisório,comquartospequenos,ondesócabiamumacamaeumamesinha.
Eali,passavamporcimadelasde80a120homens,edeveriamatendê-losmesmo
queaspartesinchassem,tendoapenas40minutosparadescanso.Éumcorpoque
deveresistir,porsereleopróprioinstrumentodetrabalho.Resistirevoltaraosalão,
arrumadanovamente,ouàportadohotel,ondeumafiladehomensaguarda:tôlivre!
Ocorpofemininoquepodemosaferirdessesdoisfilmesé,portanto,umcorpo
divididopelaimagemquequerpassar.Asprojeçõesqueessasmulheresfazemdesi
mesmasestãoprofundamentearraigadaspeloscódigosdesexualidadeque,em
últimainstância,estãosubmetidosaumolharmasculino.Porumlado,amulher
honestaquersemostrarcompanheiradeseuparceiro,mastambémvisionáriadeum
futuroprósperoparasimesma,paraasuafamíliae,porquenão,paraasociedade
comoumtodo.Poroutro,aprostitutabuscaaprosperidadejustamentepela
comercializaçãodeseucorpo,quetantodevesermoldadopelaseduçãoqueexerce
sobreosoutroscomopelalatentepossibilidadedeinterdição.
Ocorpofemininovive,portanto,umconstanteimpassediantedesuamodernidade:a
possibilidadedeautodesenvolvimentoéintermediadapelosentravesquesua
condiçãofemininaencontranessasduaspolaridades.Sequeromedesenvolver,
precisoantesmecolocarnomundoapartirdaminhasexualidade:ouinterdito-a,ou
submeto-aàcondiçãodemercadoria,semprevigiadapeloolhardooutro.Nessa
intermediaçãoestáohomem,enquantoolharjulgador,mastambémenquanto
produtordediscursosacercadacondiçãofeminina.
179
Existe uma modernidade para o corpo feminino?
Limitar-seaosplanoseprocedimentosquecompõemumfilmeéesquecerqueocinemaéartecontantoquesejaum
mundo,queaquelesplanoseefeitosqueseesvaemnoinstantedaprojeçãoprecisamserprolongados,
transformadospelalembrançaepelapalavraquetornamocinemaummundocompartilhadobemalémda
realidadematerialdesuasprojeções.
JacquesRanciére,emAsdistânciasdocinema
Estavapostoamim,desdeoiníciodestapesquisa,umdesafio:articularconceitosde
diferentescamposdeconhecimentoemtornodeumapossívelabordagemdahistória
eteoriadacidade.Trazerofilmecomoobjetodeestudopareciaseromaiordos
desafios.Mesmoentranhadoemminhavivênciadiária,adentrarosfilmessetornou
umcampodeinfinitassurpresas.Aolongodopercurso,defrontei-mecominúmeros
filmes,ensaieidiversaspossibilidadesdeagrupamento,derelaçõesquediferentes
filmespoderiamfazercomotemaquepropunhadiscutir.Mas,acimadetudo,oque
eubuscavaeraproduzirumtrabalhoqueconstituísse,aofinal,umanarrativacuja
experiênciaseassemelhasseàquelaquetemosnasaladecinema:quefavorecessea
livreassociação,instigasseaimaginaçãoedeixasseaindaaberturaparaareflexão.
Claroqueháinúmeraslimitaçõesqueapalavraescritaimpõeequeosformatosque
nossãoexigidosparaumadissertaçãoaindanãoalcançam.Confessoqueasensação
quetenhonestemomentoédeumtrabalhoinconclusivo,quemaisdeixaperguntas
doquepropõerespostas.
Procureiumaestruturaque,aoinvésdetrazerosfilmescomomerailustração,
buscasseintroduzi-losemumaredederelações.Enxergonessaestruturatrêsfios
condutores:primeiro,opanoramadefundoqueéaquestãodamodernidade;
segundo,asvisõesquecercamaconstruçãodeBrasília;eumterceiro,transversal,
queseriaaformadecorporificaramulhertrazidaporcadaumdessesfilmes.
Considerodeextremarelevânciaofatodequeosfilmessãoextremamente
contraditóriosentresi.Brasília,capitaldoséculoapontaemdireçõesopostasàquelas
apresentadasemAsprimeirasimagensdeBrasíliaePoeiraeBatom.Asagadas
180
candangasinvisíveis,porsuavez,enfrentaosoutrostrêsfilmesaotrazerparao
primeiroplanoaspersonagensobscurecidasnosdemais.Aprostitutacorporificaa
mercadoriaeodesejo,eresisteaqualquertentativadeencarcerá-laemuma
identidade.Suafigura,fugidia,talvezsejaamaneiramaisconcretadepercebera
modernidadeafetandoocorpofeminino.Noentanto,aliberaçãosexualéumrisco
encarnadoporela,porissoasuainterdição.
Seformesmoprecisodarlugaràssexualidadesilegítimas,quevãoincomodarnoutrolugar:queincomodemláondepossamserreinscritas,senãonoscircuitosdaprodução,pelomenosdolucro.Orendez-vouseacasadesaúdeserãotaislugaresdetolerância:aprostituta,ocliente,orufião,opsiquiatraesuahistérica(...)parecemterfeitopassar,demaneirasub-reptícia,oprazeraquenãosealudeparaaordemdascoisasquesecontam;aspalavras,osgestos,entãoautorizadosemsurdina,trocam-senesseslugaresapreçoalto.Somenteaíosexoselvagemteriadireitoaalgumasdasformasdoreal,masbeminsularizadas,eatiposdediscursoclandestinos,circunscritos,codificados.Foradesseslugares,opuritanismomodernoteriaimpostoseutríplicedecretodeinterdição,inexistênciaemutismo.(FOUCAULT,2014,p.8–9)
Procuromostrarportanto,queocorpofemininotrazidoporessesfilmeséumcorpo
atreladoasistemasdesignificaçãoaindacarregadodearcaísmos,delegandoàs
mulheresouoseulugardevirtudeouoseulugardepecado.Ocontrapontocoma
modernidadequeBrasíliarepresentaéprovocadoraeajudaaevidenciara
necessidadedequestionarmososprocessoshistóricosquandosetratadeumabusca
pelahistóriadasmulheres.
Nãoprocuroprovaraquiqueodiscursoproduzidopelasmulheres–evidenciadonos
doisfilmesdirigidosporelas–trazuma“verdade”acercadessecorpofeminino.
Acreditoqueessesfilmesrepresentamumprincípio,umaetapadedenúnciaemuma
fasededescoberta,equenosajudamaenxergaroquantodessapolaridadeatribuída
aocorpofemininoaindaestáentranhadaemnossaconstruçãoacercadonossocorpo
edesuarelaçãocomahistória.
Desdeoseusurgimento–naGrã-BretanhaenosEstadosUnidosnosanos1960,ena
Françaumadécadadepois–ahistóriadasmulherestemprocuradosuprirséculosde
silêncio,principalmentedasfontes.Atéentão,asmulheresdeixavampoucosvestígios
diretos,dadooseuacessotardioàescrita.Nãoquenãohouvessemdiscursossobreas
mulheres,masesteseram,emsuamaioria,produtodaobradehomens.Osarquivos
privadosproduzidospormulheres,inclusivediários,fotografias,muitasvezeseram
181
destruídospelasprópriasmulheres,numanecessidadedeapagarrastrosàqualestá
subjacenteanoçãodehonra.
Ahistóriadasmulheresestáprofundamentemarcadapelahistóriadeseucorpo,das
questõesqueadiferenciamdosexooposto,dospapéisquedesempenhamnavida
privada;hoje,abrangeoespaçopúblicodacidade,dotrabalho,dapolítica,daguerra,
dacriação.Muitomaisquehistóriadasmulheres,abrangeahistóriadogênero,das
relaçõesentreossexos,integrandoamasculinidade.Masaindasetratadeum
trabalhoderesgate,eestámuitovinculadaàquestãodocorpoesuarelaçãocomo
espaçoqueocupa.Dessaforma,recuperandooquecolocaJohanScottacercada
escritadahistóriadasmulheres,aoconsiderarmosocorpofemininoemrelaçãocom
amodernidade,temosumacontradiçãoqueéinerenteaoprocessodamulher:o
constanteembateentreestruturastradicionaisemodernasnainserçãodamulherem
panoramasmaioresdetransformaçãohistórica,quedesafiamanoçãolinearde
progresso.
Dequeforma,então,poderiasemanifestarnamulher,oumelhor,nocorpofeminino
umamaiorautonomia,umdesejodedesenvolvimento?Essedesejomanifestocomo
buscadonovo,dorompimentocompadrõestradicionais,pormeiodoqualocorpo
atingeumpotencialexpressivodeindividuaçãovaiserconceituadoeproblematizado
pelofeminismo.Ateoriafeministaéfundamentalnoentendimentodaspossibilidades
queamulhertemdeseautotransformar,namedidaemqueocorpofemininoestaria
maisprofundamenteatreladoàsestruturastradicionaisdasociedadee,paraafirmar
suaautonomia,precisarianegá-las.
Ocorpoaparecenateoriafeministacomocategoriacrucialnoentendimentoda
existênciapsíquicaesocialdamulher.Paraalgumaspensadorasdofeminismo
contemporâneo,éimprescindívelaconcepçãodeumcorpovivido,entrelaçadoa
sistemasdesignificadoerepresentaçãoeconstitutivodeles.Asdiferençassexuais,
sendobiológicasouculturais,exigemreconhecimentoerepresentaçãosociaisenão
podemsererradicadas,elasrequeremmarcaseinscriçõesculturais.Nãoseevoca
...umcorpopuro,pré-cultural,pré-socialoupré-linguístico,masumcorpocomoobjetosocialediscursivo,umcorpovinculadoàordemdodesejo,dosignificadoedopoder.(...)Oqueestáemjogoéaatividadeeaatuação,amobilidadeeoespaçosocialconcedidosàsmulheres.(GROSZ,2000,p.77)
182
Portanto,paraofeminismodemodogeral,aoconsiderarocorpofemininoé
necessárioumentendimentoqueultrapasseomeroreconhecimentodesuas
especificidadesoudeseusdadosbiológicos,opondo-seaqualquerdeterminismoem
relaçãoaosmesmos.Trata-sedereconhecerocorpoemseuaspectopresente,para,a
partirdele,desvendarosprocessosqueassimoconstituíram.
AfamosafrasedeSimonedeBeauvoir“ninguémnascemulher,torna-semulher”
carregaemsiumpreceitofundamentalparaofeminismo:abiologianãoé
determinantenacorporeidadefeminina.Asespecificidadescorporaisdamulhernão
sãoumdestino,esimumacondição.Àfrasefamosa,segue-se:
Nenhumdestinobiológico,psíquico,econômicodefineaformaqueafêmeahumanaassumenoseiodasociedade;éoconjuntodacivilizaçãoqueelaboraesseprodutointermediárioentreomachoeocastradoquequalificamdefeminino.SomenteamediaçãodeoutrempodeconstituirumindivíduocomoOutro.(BEAUVOIR,1980,p.9)
AcategoriadoOutroéenfaticamenteutilizadaporBeauvoiraolongodosdois
volumesdeOSegundosexo,atéhojeumadasmaisimportantesobrasdofeminismo.A
ênfasenaalteridadecomportaaquestãodamulher,esuacolocaçãoemrelaçãoao
homem.Beauvoircolocaquenãotendemosespontaneamenteanosauto-definir
comoOutroesimcomoUm.Aperguntaqueseimpõeé:comoamulherpassouase
auto-definircomoOutroemrelaçãoaohomem,queseimpôshistoricamentecomo
Um?Noentanto,édifícilestabelecerummarcohistóricoquemarqueessa
transposição.
Nemsemprehouveproletários,semprehouvemulheres.Elassãomulheresemvirtudedesuaestruturafisiológica;pormaislongequeseremonteahistória,sempreestiveramsubordinadasaohomem:suadependêncianãoéconsequênciadeumeventooudeumaevolução,elanãoaconteceu.É,emparte,porqueescapaaocaráteracidentaldefatohistóricoqueaalteridadeapareceaquicomoabsoluto.(BEAUVOIR,1970,p.12–13)
Ofeminismoéumatentativaderedefiniressatransposição,deafirmaraautonomia
feminina,detrazeramulherparaolugardoUmenãodoOutro.Talvezaquelequelê
estetrabalhoeconseguiuchegaratéaquiestejaagoraseperguntandooporquêde
somenteagoraexporofeminismodemaneiraliteral.Paraalémdetodasasquestões
metodológicasquerondamaelaboraçãodeumtrabalhoacadêmico,euconsideroque
mesmonãocompondoumtópicoouumcapítulodestetrabalho,ofeminismoesteveo
183
tempotodopresente,mesmoqueemsuasentrelinhas.Considero,antesdemaisnada
que,paraalémdeumacategoriateórica,ofeminismoéumacondiçãoexistencial,de
visãodemundo.Trata-sedebuscaremsimesmaenopassadoquepermeiaonosso
presenteossignificadosdesermulher,buscaranossacondiçãoenquantosujeitos
históricos.Nãosetratadereescreverahistória,masdedesmistifica-la,denegaro
universal,debuscaroespecífico.
Questionaracondiçãodamulherenquantoumsujeitomoderno,significaadmitirque
onossoautodesenvolvimentoéprecárioainda,enãosesabesedeixarádeser.
Entenderasmarcashistóricasqueconstroemonossocorpofazpartedeumprocesso
deindividuaçãoquetalvez,nósmulherestenhamosreconhecidohábempouco
tempo.Éprecisoseenxergarnahistóriae,aoproblematizaraquestãodegênero,
reconhecemosqueelaoperahistoricamentenãosomentesobreasmulheres,mas
tambémsobreoshomens.
Asconsequênciasdessesarquétipospolaresatribuídosaocorpofeminino–oda
santaeodaputa–sãosentidasdiretamentenamaneiracomocirculamose
vivenciamosacidade.Acidadeécondiçãomaterialparaarealizaçãodoscorpos,
espaçodesuaproduçãoecirculação,suaorigemedestino.Ocorpo,porsuavez,
manifestaoscontrastesdacidade,éumcorposocial,urbanizado.Aoinvésdanoção
dequeoserhumano(ocorpo)constróioespaço(acidade),equeesteseestrutura
conformeessaregra,sugirocomestetrabalhoahipótesedequecorpoecidade
modificam-semutuamente,eéesseprocessoqueosconstituiaolongodotempo.A
transformaçãodascidadesnãoocorreemseparadodasconstantesmudançasnos
modosdeexpressãodoscorpos.
Ocorpo,seassimcolocado,podefuncionarcomoumpontodeintermediaçãoentreo
queseriaentendidocomointerno,subjetivo,produtodamente;eoqueseria
manifestadoexternamente,aquiloquepodeserobservadoevividomaterialmente.
Colocandodeoutraforma,ocorposeriaonossointermédioentrealmaecidade,eé
tantoveículodeatuaçãocomodepercepçãodoqueosseussentidosacessam.
Estudarocorpofemininoemsuarelaçãocomacidaderequeradmitir,inicialmente,
queessecorpocarregamarcasdeseuperíododeconfinamentoaodomínioprivado.E
que,seformosconsiderarqueaconquistadoespaçopúblicopelasmulheresé
184
relativamenterecente,hácoisademeioséculoatrás,suarelaçãocomacidadeainda
encontramuitosvestígiosdetudoqueseconsiderouseradequadoaumamulheraté
então.Comojáfoicitadoaqui,oquerestadeantigamentenasmulheresdehojeestá
escritoemseuscorpos.
Pensoqueéprecisonosposicionarmosdemaneiramaisradicalentreessasduas
polaridades,assumironossocorpocomodesejanteeatuante,paraquepossamos
reescrevê-lo,eassim,reescrevertambémacidadeaonossoredor.Nãosucumbirà
casaouàruacomoambientesnaturalizados,masrompercomoslimitesqueosdois
espaçosimpõemaonossocorpo.Éprecisoencararapulsãosexualincitadapela
figuradaprostitutacomoumaguia,enãoumcontraponto.Aoencará-ladefrente,
percebemosoquantoasexualidadefemininafoiinterditadaaolongodahistóriae
precisaserassumidacomoumatributodenossocorpo,quemoldademaneira
fundamentalanossarelaçãocomoespaçodacidade.
Cabebuscarqueoutrasinscriçõespodemsesobreporousejuntaraessas,oquede
fatofariacomquesentíssemosamodernidademarcandoosnossoscorpos.Eque
essecorpofeminino,imbuídodoespíritodeaventuraqueamodernidadeinspira,
passetambémaconstruiroutrashistórias,outrascidades,outrosfilmesquenos
proporcionemumcampodeincessantereinvenção.
185
Bibliografia
ARGAN,GiulioCarlo.Elconceptodelespacioarquitetonicodesdeelbarrocoanuestrosdias.BuenosAires:EdicionesNuevaVision,1973.
BARNEY,Elvira.MulherespioneirasdeBrasília.Brasília,DF:ThesaurusEditora,2001.
BAUDELAIRE,Charles.AmodernidadedeBaudelaire.TraduçãoSuelyCassal.RiodeJaneiro:PazeTerra,1988.
BEAUVOIR,Simone.OSegundosexo-1.Fatosemitos.TraduçãoSérgioMilliet.SãoPaulo:DifusãoEuropéiadoLivro,1970.
BEAUVOIR,Simone.OSegundosexo-2.AExperiênciavivida.TraduçãoSérgioMilliet.3.ed.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1980.
BERMAN,Marshall.Tudoqueesolidodesmanchanoar:aaventuradamodernidade.TraduçãoCarlosFelipeMoises;AnaMariaLIoriatti.SãoPaulo(SP):CompanhiadasLetras,1986.
BERNARDET,Jean-Claude.Brasilemtempodecinema:ensaiossobreocinemabrasileiro.RiodeJaneiro:PazeTerra,1978.
BERNARDET,Jean-Claude.Cinemabrasileiro:propostasparaumahistória.RiodeJaneiro:PazeTerra,1979.
BIZELLO,MariaLeandra.Entrefotografiasefotogramas:aconstruçãodaimagempúblicadeJuscelinoKubitschek(1956a1961).2008.UniversidadeEstadualdeCampinas,Campinas/SP,2008.
CARVALHO,MariadoSocorro.CinemaNovoBrasileiro.In:MASCARELLO,FERNANDO(Org.)..HistóriadoCinemaMundial.Campinas:Papirus,2012.p.289–309.
CARVALHO,Vladimir.Cinemacandango:matériadejornal.Brasília,Brazil:EdiçõesCinememória,2003.
CERTEAU,MichelDe.HistóriaePsicanálise-Entreciênciaeficção.TraduçãoGuilhermeJoãodeFreitasTeixeira.BeloHorizonte:Autêntica,2011.
COMOLLI,Jean-Louis.VerePoder,ainocênciaperdida:cinema,televisão,ficção,documentário.TraduçãoAugustinDeTugny;OswaldoTeixeira;RubenCaixeta.BeloHorizonte:Ed.UFMG,2008.
CONDÉ,MauroLúcioLeitão.ParadigmaversusEstilodePensamentonaHistóriadaCiência.Ciência,HistóriaeTeoria.BeloHorizonte:Argvmentvm,2005..
CORBIN,Alain.SabereseOdores:oolfatoeoimagináriosocialnosséculosXVIIIeXIX.TraduçãoLigiaWatanabe.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1987.
186
CORBIN,Alain;COURTINE,Jean-Jacques;VIGARELLO,Georges.Históriadocorpo,vol.1-DaRenascençaàsLuzes.5.ed.ed.Petrópolis:Vozes,2012.
COSTA,FlavioMoreiraDa(Org.).Cinemamoderno,CinemaNovo.RiodeJaneiro:JoséÁlvaro,1966.
DENISECAPUTO.ASagadasCandangasInvisíveis..[S.l:s.n.].Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=DTy3t69E3Pg>.Acessoem:30jun.2016.,2008
DENISECAPUTO.Lanterninha:AsagadascandangasInvisíveis,Bloco1de2..[S.l:s.n.].Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=rxi2K5RzXWE>.Acessoem:20jan.2017a.,2015
DENISECAPUTO.Lanterninha:AsagadascandangasInvisíveis,Bloco2de2..[S.l:s.n.].Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=-U-aobHw3oU>.Acessoem:20jan.2017b.,2015
DUARTE,LuizSérgio.AConstruçãodeBrasíliacomoExperiênciaModernanaperiferiacapitalista:aAventura.RevistaUFG-DossiêCidadesPlanejadasnaHinterlândia,v.AnoXIn.6,p.24–36,jun.2009.
FABRIS,Mariarosaria.Neorrealismoitaliano.In:MASCARELLO,FERNANDO(Org.)..Históriadocinemamundial.Campinas:Papirus,2012.p.191–219.
FOUCAULT,Michel.HistóriadaSexualidade1:Avontadedesaber.TraduçãoMariaTherezadaCostaAlbuquerque;J.A.GuilhonAlbuquerque.1.ed.SãoPaulo:PazeTerra,2014.
FREIRE,RafaeldeLuna.Atrilogiadecurtas-metragensdocumentáriosdeGersonTavaresde1959.DocOn-line,n.20,p.5–25,set2016.
GOMES,AnaLúciadeAbreu.BrasílianosfilmesdaNovacap.Resgate,v.21,n.1,p.49–58,2013.Disponívelem:<http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/view/8645753>.Acessoem:9fev.2017.
GONÇALVES,MarcoAntonio.Encontros“encorpados”econhecimentopelocorpo:filmeeetnografiaemJeanRouch.Devires,BeloHorizonte,v.6,n.2,p.28–45,jul.2009.
GROSZ,Elizabeth.CorposReconfigurados.CadernosPagu:corporificandogênero,Unicamp,n.14,p.45–86,2000TraduçãoCecíliaHoltermann..Disponívelem:<http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8635340>.Acessoem:1maio2014.
HALL,Stuart.Aidentidadeculturalnapós-modernidade.RiodeJaneiro(RJ):DP&A,2006.
HOLSTON,James.Acidademodernista:umacríticadeBrasíliaesuautopia.SãoPaulo:CompanhiaDasLetras,1993.
187
HUME,David.Investigaçãosobreoentendimentohumano.OsPensadores-BerkeleyeHume.SãoPaulo:Abrilcultural,1984.p.138–178.
KOSELLECK,Reinhart.Estratosdotempo:estudossobrehistória.RiodeJaneiro:Contraponto:PUC-Rio,2014.
LEBRETON,David.AntropologiadoCorpoeModernidade.TraduçãoFábiodosSantosCrederLopes.3.ed.ed.Petrópolis,RJ:Vozes,2013.
MORICONI,Sérgio.Cinema-Apontamentosparaumahistória.Brasília,[Brasil]:ITS,InstitutoTerceiroSetor,2012.(ColeçãoarteemBrasília :cincodécadasdecultura).
MOURÃO,TâniaFontenelle;OLIVEIRA,MonicaFerreiraGasparDe.PoeiraebatomnoPlanaltoCentral:50mulheresnaconstruçãodeBrasília.Brasília:CEDIN/CEF,2010.
OLIVEIRA,MárcioDe.Brasília:omitonatrajetóriadanação.Brasília:Paralelo15,2005.
PEIXOTO,ClariceEhlers.Antropologiaefilmeetnográfico:umtravellingnocenárioliteráriodaantropologiavisual.RevistaBrasileiradeInformaçãoBibliográficaemCiênciasSociais-BIB,RiodeJaneiro,n.48,p.91–115,nov.1999.
PERROT,Michelle.Minhahistóriadasmulheres.TraduçãoAngelaM.SCorrêa.SãoPaulo:Contexto,2007.
RAFAELDELUNAFREIRE.Reencontrocomocinema..[S.l:s.n.].Disponívelem:<DVD-ResgatedaobracinematográficadeGersonTavares>.,2014
RAGO,Margareth.Osprazeresdanoite:prostituiçãoecódigosdasexualidadefemininaemSãoPaulo,1890-1930.RiodeJaneiro:PazeTerra,1991.
RANCIÈRE,Jacques.Afábulacinematográfica.TraduçãoChristianPierreKasper.Campinas,SP:Papirus,2013.
RANCIÈRE,Jacques.Asdistânciasdocinema.TraduçãoEsteladosSantosAbreu.RiodeJaneiro:Contraponto,2012.
RIBEIRO,GustavoLins.Ocapitaldaesperança:aexperiênciadostrabalhadoresnaconstruçãodeBrasília.Brasília:Ed.UnB,2008.
SANDOVAL,LizdaCosta.Brasília,cinemaemodernidade:percorrendoacidademodernista.2014.141f.UniversidadedeBrasília,FaculdadedeArquiteturaeUrbanismo,Brasília,2014.
SCOTT,JoanWallach.Géneroehistoria.TraduçãoConsolVilàIBoadas.México:FondodeCulturaEconómica :UniversidadAutónomadelaCiudaddeMéxico,2008.
SENRA,Stella.Perguntar(não)ofende,anotaçõessobreaentrevista:deGlauberRochaaodocumentáriobrasileirorecente.In:MIGLIORIN,CEZAR;BRASIL,ANDRÉ(Org.)..Ensaiosnoreal.RiodeJaneiro:AzougueEditorial,2010.p.97–121.
188
SILVA,JoelmaRodriguesDa.Mulher:“PedraPreciosa”;ProstituiçãoeRelaçõesdeGêneroemBrasília(1957-1961).1995.Dissertação–UniversidadedeBrasília,InstitutodeCiênciasHumanas,DepartamentodeHistória,Brasília,1995.
SOUZA,NelsonMelloE.Modernidade:desacertosdeumconsenso.Campinas:Ed.daUNICAMP,1994.
SPINOZA,BenedictusDe.OsPensadores-Espinosa.SãoPaulo:Abrilcultural,1983.
XAVIER,Ismail.Cinemabrasileiromoderno.SaoPaulo:PazeTerra,2001.(ColeçãoLeitura).
189
FilmografiaADIRLEYQUEIRÓS.Acidadeéumasó?Documentário,70’,2011.
ADIRLEYQUEIRÓS.Brancosai,pretofica.Documentário,90’,2014.
AGÊNCIANACIONAL.NovaCapital:Brasília-Presidentevisitalocaldaconstrução.CinejornalInformativon.44/56.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgivhQKv5jDQX68aUSRGxlN228I2JNRLhkBqryN8-SXrIM.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1956.
AGÊNCIANACIONAL.APrimeiraEscoladeBrasília.CinejornalInformativon.01/58.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgioVyZyv8vsgBR0q6qapCXy3kYcWiDqRz6erpWCsdMhX0.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1957.
AGÊNCIANACIONAL.CaminhosdeBrasília:AspectosdaconstruçãodaEstradaRio-Brasília,BR-3.CinejornalInformativon.21/58.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgicsfMOrZpsGzByUV0MMV5QWkvQpVSURNdb-9w77CPh18.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1958.
AGÊNCIANACIONAL.Brasíliajátemhistória.CinejornalInformativon.21/59.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgi3YenhKiriB3bRhHv3_QPjRwGEDNFQq8tc4r-iO34peo.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1959.
AGÊNCIANACIONAL.CaminhodaLibertação:Efetivam-seasobrasdaRodoviaBrasília-Acre.CinejornalInformativon.6/60.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgihLG3uyvdG2HULwvBpiAdCPRkQZXNx53mbWNtQwGeCEo.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1960.
AGÊNCIANACIONAL.InauguraçõesemBrasília.CinejornalInformativon.12/60.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgiZyQefhajNS-iuV7q0MQjPogMYlNpFV59Wdli4Dxnqwg.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1960.
AGÊNCIANACIONAL.BelémBrasília:rodoviadaunidadenacional.RiodeJaneiro:ArquivoNacional.Disponívelem:<http://www.zappiens.br:80/videos/cgi7ZTkqVqLPQkMd-B0wwPzOJPoses0m9sSIwmHaySjqF0.FLV>.Acessoem:9fev.2017.Cinejornal,1962.
AGNÈSVARDA.Cléode5à7.Ficção,150’,1962.
AGNÈSVARDA.L’unechante,l’autrepas.Ficção,120’,1977.
AGNÈSVARDA.Lesditescariatides.Documentário,12’,1984.
AGNÈSVARDA.Sainstoitniloi.Ficção,105’,1985.
190
ANDRÉAPRATES;CLEISSONVIDAL.DinoCazzola,umafilmografiadeBrasília.Documentário,71’,2012.
CARLOSREINCHENBACH.LilianM:relatórioconfidencial.Ficção,120’,1975.
CARLOSREINCHENBACH.GarotasdoABC.Ficção,130’,2003.
CHANTALAKERMAN.JeanneDielman,23,quaiducommerce,1080Bruxelles.Ficção,201’,1975.
DÁCIAIBIAPINA.Entornodabeleza.Documentário,68’,2012.
DANEKOMIJEN;JAMESLATTIMER.Allstillorbit.Experimental,23’,2016.
DENISECAPUTO.ASagadasCandangasInvisíveis..Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=DTy3t69E3Pg>.Acessoem:30jun.2016.Documentário,15’,2008.
GERSONTAVARES.ArtenoBrasilhoje.RiodeJaneiro:TelaBrasiliseImagemTempo.Disponívelem:<DVD-ResgatedaObradeGersonTavares>.Documentário,11’,1959.
GERSONTAVARES.BrasíliaCapitaldoséculo.RiodeJaneiro:TelaBrasiliseImagemTempo.Disponívelem:<DVD-ResgatedaObradeGersonTavares>.Documentário,11’,1959.
GERSONTAVARES.Ogranderio.RiodeJaneiro:TelaBrasiliseImagemTempo.Disponívelem:<DVD-ResgatedaObradeGersonTavares>.Documentário,10’,1959.
GERSONTAVARES.AmoreDesamor.RiodeJaneiro:TelaBrasiliseImagemTempo.Disponívelem:<DVD-ResgatedaObradeGersonTavares>.Ficção,70’,1966.
GLAUBERROCHA.Deuseodiabonaterradosol.Ficção,110’,1964.
GLAUBERROCHA.TerraemTranse.Ficção,115’,1967.
GLAUBERROCHA.Aidadedaterra.Ficção,160’,1980.
JEANMANZON.AsprimeirasimagensdeBrasília.Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=xnXQQeU5nIk>.Acessoem:2fev.2017.Cinejornal,10’,1957.
JEANROUCH.Lesmaîtresfous.Documentário,36’,1955.
JEANROUCH.Moi,unnoir.Documentário,170’,1958.
JOAQUIMPEDRODEANDRADE.Brasília,contradiçõesdeumacidadenova.Documentário,22’,1967.
JOAQUIMPEDRODEANDRADE.Macunaíma.Ficção,110’,1969.
JORGEBODANZKY;ORLANDOSENNA.Iracema,umatransaamazônica.Ficção,90’,1975.
JOSÉEDUARDOBELMONTE.5filmesestrangeiros.Ficção,13’,1997.
191
LINDUARTENORONHA.Aruanda.Documentário,20’,1959.
MARIAAUGUSTARAMOS.Brasília,umdiaemfevereiro.Documentário,70’,1996.
NELSONPEREIRADOSSANTOS.Fala,Brasília.Documentário,14’,1966.
PAULOCÉSARSARACENI;MÁRIOCARNEIRO.Arraialdocabo.Documentário,19’,1959.
PEDROANÍSIOetal.Brasília,aúltimautopia.Documentário,97’,1989.
RAFAELDELUNAFREIRE.Reencontrocomocinema.RiodeJaneiro:TelaBrasiliseImagemTempo.Disponívelem:<DVD-ResgatedaobracinematográficadeGersonTavares>.Documentário,28’,2014.
RENATOBARBIERI.AinvençãodeBrasília.Documentário,55’,2001.
ROBERTOPIRES.Agrandefeira.Ficção,91’,1961.
ROBERTOROSSELLINI.Roma,cidadeaberta.Ficção,105’,1945.
SILVIOTENDLER.OsanosJK:umatrajetóriapolítica.Documentário,110’,1980.
TÂNIAFONTENELLEMOURÃO;TÂNIAQUARESMA.PoeiraeBatomnoPlanaltoCentral.Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=9rxJUc8kbSk&t=1s>.Acessoem:2fev.2017.Documentário,58’,2010.
VLADIMIRCARVALHO.BrasíliasegundoFeldman.Documentário,21’,1979.
VLADIMIRCARVALHO.Conterrâneosvelhosdeguerra.Documentário,154’,1990.
ZULEICAPORTO.Brasiliários.Experimental,10’,1986.