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FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO Giovanni Vella Desejo impossível e conhecimento possível. Do Fédon a O Banquete: o poder gerativo de Eros São Paulo SP 2013

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM

FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

Giovanni Vella

Desejo impossível e conhecimento possível.

Do Fédon a O Banquete: o poder gerativo de Eros

São Paulo – SP

2013

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM

FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

Giovanni Vella

Desejo impossível e conhecimento possível.

Do Fédon a O Banquete: o poder gerativo de Eros

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia da

Faculdade de São Bento, como requisito

parcial para a obtenção do título de Mestre

em Filosofia.

Área de concentração: História da Filosofia

São Paulo – SP

2013

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Giovanni Vella

Desejo impossível e conhecimento possível.

Do Fédon a O Banquete: o poder gerativo de Eros

Dissertação de Mestrado apresentada ao

programa de Pós-Graduação em Filosofia do

Departamento de Filosofia da Faculdade de

São Bento, para obtenção do título de Mestre

em Filosofia sob orientação da Profª. Drª.

Rachel Gazolla.

Dissertação defendida e aprovada pela

Comissão Julgadora em ____/____/_____

São Paulo

2013

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“Amor, ch’a nullo amato amar perdona,

mi prese del costui piacer sì forte,

che, come vedi, ancor non m’abbandona."

(Divina Commedia, Inferno: Canto V)

"Eu não sou eu nem sou o outro

Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédio

Que vai de mim para o Outro".

(Mário de Sá Carneiro, in Pilar da Ponte do Tédio)

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Dedico esse trabalho ao meu pai que teria sido feliz em lê-

lo e a todas as almas que buscam a própria unificação

no Amor.

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Agradecimentos

À Profª Drª Rachel Gazolla, que primeiramente me fez amar a alma platônica.

À comunidade dos monges camaldolenses do Mosteiro da Transfiguração em Mogi Das Cruzes: esse trabalho nasceu lá, que só o silêncio e a oração

podem fazer a vida brotar.

Aos professores da Faculdade de São Bento que promoveram sempre o meu

desejo de estudar o desejo.

Aos monges de São Bento que sempre me acolheram com tanto carinho.

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RESUMO

“O que é, homens, aquilo que querem um do outro?”. Quando, no elogio de

Aristófanes, o deus Hefesto se dirige com esta pergunta aos amantes

abraçados e “arrebatados de maneira digna de maravilha” (O Banquete, 192 d),

o leitor do Simpósio encontra-se diante de uma precisa mudança hermenêutica

no diálogo: aquela proferida pelo deus da metalurgia é, com efeito, a primeira

pergunta filosófica que aparece no texto. É o convite divino para refletir (em

uma atmosfera mítica, não por acaso análoga ao discurso de Sócrates-Diotima)

justamente sobre a natureza de Eros, poderosa dúnamis que une os corpos

dos homens, os quais, se estiverem em condições de levar com perfeição essa

atração natural a uma dimensão intelectual mais profunda, serão felizes e bem-

aventurados (O Banquete, 193, c-d). A partir de um reconhecimento da

proposta programática da vida filosófica citada em Fédon, sugerimos uma

leitura diferente da possível relação entre os dois elogios do O Banquete: o

diálogo entre Hefesto e os amantes – como o drama filosófico dos amantes -

primeiro degrau da escada iniciática e educativa proposta pela sacerdotisa a

Sócrates.

Palavras–chave: Eros, alma, temperança, Hefesto, scala amoris

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ABSTRACT

“What is it, oh men, that you wish from each other?”. When, in Aristophanes‟

eulogy, god Hephaestus poses this question to lovers that are embraced and

“rapturous in a manner worthy of wonder” (Symposium, 192 d), the Symposium

reader finds himself before a precise hermeneutical change in the dialogue: the

question posed by the god of metallurgy is, as a matter of fact, the first

philosophical question that appears in the text. It is the godly invitation to reflect

(in a mythical atmosphere, not accidentally analogous to the speech of

Socrates-Diotima) precisely on the nature of Eros, powerful dúnamis that unites

bodies of men, which, if they are in a position to lead with perfection such

natural attraction into a deeper intellectual dimension, will be happy and

fortunate (Symposium, 193 c-d). Based on a recognition of the programmatic

proposal of philosophical life quoted in Phedon, we suggest a different reading

of the possible relationship between the two Symposium eulogies: the dialogue

between Hephaestus and the lovers – as the lovers‟ philosophical drama - the

first step of the initiatory ladder and the educative proposal made by the

priestess to Socrates.

Keywords: Eros, soul, Hephaestus, temperance, scala amoris

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO.............................................................................................................9

CAPÍTULO I - O Fédon: um diálogo de iniciação à vida filosófica

1.1 O diálogo platônico: uma escolha de vida.................................................13

1.2 Preparar-se para morrer............................................................................16

1.3 A separação entre alma e corpo: ética platônica e perspectiva órfica......21

CAPÍTULO II - Conhecimento e desejo no Fédon

2.1 A escolha dos raciocínios...........................................................................28

2.2 O desenvolvimento do discurso e a verdade das coisas ...........................31

2.3 O verdadeiro e a causa real das coisas conhecidas...................................34

2.4 A separação entre alma e corpo como antecipação metafórica da morte..41

2.5 A vida filosófica como experiência humana da realidade divina..................44

2.6 Desejo, a maravilhosa prisão.......................................................................47

2.7 O papel do desejo na natureza do ato filosófico .........................................50

CAPÍTULO III - O Banquete: do Eros mítico ao lógos humano

3.1 A virada filosófica a partir do elogio de Aristófanes.....................................53

3.2 O mito atualizado: a fundamentação divina da extraordinária amizade.....56

3.3 A pergunta de Hefesto: a busca de um quid no pré-lógico.........................58

3.4 “Que é que quereis , ó homens?”: o flagrante do desejo............................60

CAPITULO IV – O Banquete: a experiência iniciática da scala amoris

4.1 Algumas definições de Eros........................................................................65

4.2 O drama erótico de Aristófanes: primeiro degrau da ascese......................67

4.3 O amado torna-se amante e conhece o Belo..............................................70

CAPÍTULO V – Eros: o filósofo do paradoxo

5.1 É possível possuir o bem para sempre? .....................................................72

5.2 A posse eterna do Bem: uma experiência relacional..................................74

5.3 A natureza e o rumo do desejar...................................................................77

5.4 Desejo e contemplação: do abraço impossível ao conhecimento possível.78

CONCLUSÃO – O Banquete e o poder gerativo de Eros

Por que, então, o filósofo deseja ser ético? ..................................................... 80

O nascimento da alma...................................................................................... 81

Da pergunta de Hefesto à scala amoris: Eros sempre gera em si mesmo.......84

O Banquete e o poder gerativo de sua leitura...................................................88

BIBLIOGRAFIA

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INTRODUÇÃO

Entre as mais belas definições de Eros que Platão marcou

em O Banquete, a mais decisiva, que não nos deixa de surpreender todas as

vezes em que meditamos sobre ela é a de que o próprio Eros é filósofo (O

Banquete, 204 b) e que a força do seu desejar é a própria força da filosofia,

direcionada para a imortalidade (O Banquete, 207 a). Essa identificação

profunda entre o amor e a filosofia, na experiência do desejo e do irracional,

segundo Pierre Hadot, é o dom mais marcante da herança platônica para o

Ocidente1. Ela é tão ampla e profunda, que pode abrir caminhos interpretativos

bem diferentes, mesmo entre os intérpretes mais reconhecidos do pensamento

platônico. Assim, por exemplo, acontece que, enquanto Giovanni Reale, em

seu Manual de História da Filosofia define a erótica como “caminho alógico

para o Absoluto”2 outro insigne estudioso, Claudio Henrique Lima Vaz, parece

afirmar exatamente a tese oposta: em seu famoso ensaio “A ascensão dialética

no Banquete de Platão” ele faz questão de esclarecer como o “o movimento da

alma não é um impulso alógico, é um progresso da inteligência”, uma vez que é

iniciada ao que ele chama de “ciência do Belo”3. Vemos, então como depois de

séculos de profundas leituras, O Banquete, com a multiforme apresentação de

Eros e de seus caminhos filosóficos, ainda não se deixa encaixar e

compreender numa teoria única. Esse diálogo, ainda hoje, deixa o leitor viver a

mesma intensa experiência dos ilustres convidados que participam, em Atenas,

de seu elogio coletivo para responder à pergunta: qual é, então, a natureza de

Eros?

Nosso trabalho pretende, assim, responder a essa antiga e sempre atual

pergunta: quem é Eros? Qual é o seu poder? O caminho escolhido para tanto é

focar, sobretudo, uma das características destacadas como um de seus

principais poderes: o fato de ele ser uma força gerativa:

É com efeito, Sócrates, dizia-me ela, (Eros) não é do belo o amor, como pensas.

– Mas do que é enfim? –

– Da geração e da parturição no belo.

1 HADOT, Pierre. Esercizi spirituali e filosofia antica. Torino: Einaudi, 2002, p. 107.

2 REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. Historia da filosofia vol. I. São Paulo: Paulinas,

1990, p. 152. 3 LIMA VAZ, Henrique. A ascensão dialética no Banquete de Platão. Em Platonica. São

Paulo: Loyola, 2011, p. 58.

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– Seja, disse-lhe eu. (O Banquete, 206 e)

Com este objetivo claro, este trabalho representará também a ocasião

para constatar como o processo de vivência do Amor desempenha um papel

central na reflexão platônica sobre a natureza da vida humana, uma vez que

chega ao ponto culminante de sua realização: a contemplação das

ideias, nomeadas pelo filósofo como divinas e eternas.

Portanto, pretendemos investigar, principalmente, as ligações entre Eros

e Logos que aparecem de forma explícita e às vezes implícita na proposta

platônica de uma vida filosófica.

O caminho que escolhemos para chegar a definir qual é o poder gerativo

de Eros não começa, todavia, em O Banquete, mas vem de mais longe – ele

partirá de outro diálogo: o Fédon. Por que essa escolha? Porque o Fédon é um

diálogo programático onde a vertente ética e a epistemológica da doutrina

platônica são apresentadas juntas, através da síntese maravilhosa da figura de

Sócrates. Acreditamos que essa passagem introdutória pode fornecer uma

moldura clara e definida na qual poderemos inserir nossa pesquisa sobre o

poder gerativo de Eros.

Iniciaremos nossa investigação pela análise do Fédon4, também

enquanto é nesse diálogo que a ambiguidade da experiência da alma se

desvela ao longo da demonstração de sua imortalidade. E, assim

fundamentados, partiremos para a descrição do processo erótico em O

Banquete5.

As questões “Qual é o perfil do verdadeiro filósofo?” e “O que é

filosofar?” serão desenvolvidas no Capítulo I, a partir de uma análise geral de

alguns dos passos mais relevantes da primeira parte do Fédon (até 100 e).

Nesse trecho, o testemunho de Sócrates às vésperas da morte é de

importância capital. Com efeito, é no relato dessa experiência peculiar de um

homem que irradia tranquilidade no momento da morte iminente, que o Fédon

4 Para a tradução em português desse diálogo, escolhemos: PALEIKAT, Jorge.

COSTA, João. Fédon. Rio de Janeiro: Difel, 2002, salvo em alguns casos que serão assinalados.

5 Para a tradução em português desse diálogo, escolhemos: CAVALCANTE DE

SOUZA, José. O Banquete ou Do Amor. Rio de Janeiro: Difel, 2002, salvo em alguns casos que serão assinalados

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oferece importantes indicações sobre o valor da vida, como ela pode ser vivida

dignamente, pela escolha das virtudes e a justa medida das paixões que

perturbam a alma. É cumprindo essa escolha que o filósofo chegará à

contemplação das ideias eternas através da famosa “segunda navegação” (que

ocorre no Fédon, 99-100 e), onde será explicitada a proposta filosófica de

refugiar-se nos discursos para procurar a verdade das “coisas que são”.

Portanto, destacaremos, no Capítulo II, a importância da vida ética e sua

fundamentação gnosiológica nos discursos (logói): afinal, são questões que

definem a moldura sapiencial na qual deve ser interpretada a famosa

demonstração da imortalidade da alma. Para nosso intento, nos ateremos

apenas a essa moldura, nessa visão da filosofia como educação à temperança

e ao reto conhecimento, ressaltando as diferenças fundamentais entre a

doutrina platônica e as crenças órficas.

Assim fundamentados na descoberta desse único impulso anímico

orientado ao mesmo tempo para ser ético e teorético, concluiremos nossa

análise do Fédon com algumas perguntas que nos motivarão à viagem textual

por O Banquete: Por que o filosofo deseja, de fato, ser ético? Se o desejo é

descrito como se fosse cravo que liga alma e corpo resistindo à separação

deles, (Fédon, 83, d) como acontece que o desejo de ser ético se acende na

alma do discípulo? Como a alma consegue reconhecer o que lhe é congênere,

tomando, por assim dizer, consciência de si mesma e desenvolvendo o

processo virtuoso do conhecimento das ideias?

Agora, então, estaremos a caminho de uma busca positiva da

experiência do desejo. Com essa busca, responderemos à indagação sobre as

ligações possíveis entre o principal retrato da vida filosófica que Platão

apresenta no Fédon e a multiforme experiência do desejo assim como é

celebrada em O Banquete.

Seguiremos, então, em O Banquete, as indicações textuais de uma

conexão profunda entre a força (dúnamis) gerativa de Eros e a possibilidade da

contemplação intelectual fundamentada sobre a “ciência do Belo”, segundo a

inequívoca expressão de Henrique de Lima Vaz.

Nesse passo a passo, procederemos à análise de O Banquete,

(capítulos III, IV e V), evidenciando como esses dois diálogos podem ser lidos

de forma complementar. Para desenvolver esse caminho, nos aprofundamos

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no elogio do comediógrafo Aristófanes (mais especialmente na cena da

intervenção de Hefesto no “mito andrógino”).

Na análise que pretendemos propor, é precisamente esse trecho que

prepara o elogio de Diótima e o discurso socrático central para a experiência

iniciática da subida pela famosa scala amoris. (O Banquete, 210 a).

Depois de ter evidenciado o único caminho filosófico que liga a

experiência mítica relatada por Aristófanes à experiência ascensional proposta

por Diótima-Sócrates, nós nos perguntaremos se e como é possível possuir o

bem para sempre, questionando, dessa forma, uma das definições de Eros

mais importantes do diálogo (O Banquete, 206 a) Assim, de raciocínio em

raciocínio, de questionamento em questionamento, procuraremos demonstrar

de que maneira uma reflexão hermenêutica sobre o poder gerativo de Eros

pode representar uma possível resposta à pergunta que avançamos como

questão filosófica central para este trabalho: se o desejo impulsiona a partir de

dentro o movimento da alma do filósofo, então que tarefa ele cumpre na

realização de escolhas humanas dignas de serem chamadas filosóficas?

CAPÍTULO I

O Fédon: um diálogo de iniciação à vida filosófica

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1.1. O diálogo platônico: uma escolha de vida

Os primeiros dois capítulos deste trabalho indicam o caminho para

evidenciar, no Fédon, o retrato do verdadeiro filósofo, necessário para

destacar, num segundo momento, o poder gerativo de Eros em O Banquete.

Qual é a proposta filosófica que caracteriza o Fédon, certamente um dos

diálogos mais famosos da produção platônica? E qual é seu contexto? Antes

de entrar nos detalhes da primeira parte dessa obra (que analisaremos

parcialmente até a proposta decisiva da segunda navegação, que ocorre em

99a – 100e) parece necessário propor uma consideração introdutória acerca da

escolha platônica do diálogo como forma de reflexão propriamente filosófica.

É um fato: Platão escolheu pensar de forma “literária”. Seria apenas uma

escolha estilística, que nada tem a ver com o conteúdo proposto no próprio

diálogo? Não. No Fédon, como em todas as obras platônicas, o diálogo entre

Sócrates e seus companheiros não se reduz a um registro estilístico que

apresenta uma troca de pontos de vista no meio de uma conversa sobre um

determinado tema. Sabemos que a prática do diálogo ensinada na Academia

representava a razão intrínseca e a característica ética de seu filosofar. O

grande estudioso de filosofia antiga, Pierre Hadot, define essa dimensão

primária do diálogo, que os interlocutores escolhem partilhar, como uma

“escolha de vida”, descrevendo-a assim:

graças ao seu esforço sincero, os seus interlocutores descobrem, por eles mesmos e

neles mesmos, uma verdade independente deles, na medida em que se submetem a

uma autoridade superior, o lógos. 6

O estudioso ainda explica que se trata de uma escolha de vida que se

encaixa no espírito mais autêntico da filosofia antiga, e que consiste no

6 HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga. São Paulo: Loyola, 2004, p. 100.

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movimento pelo qual o indivíduo transcende a si próprio em algo que o supera:

o logos, o discurso que, na visão platônica, implica em uma exigência de

racionalidade e de universalidade7

Ainda segundo Hadot, esse logos não representaria uma espécie de

saber absoluto, que demonstraria a racionalidade coerente em um nível

puramente demonstrativo e abstrato. Na verdade, no diálogo, o acordo que se

estabelece entre interlocutores leva a admitir certas posições em comum, nas

quais eles superam seus pontos de vista particulares, chegando a entrever

uma determinada virtude, para depois escolhê-la. Trata-se, então, de alcançar

um claro discernimento ético em meio às diversas circunstâncias da vida

política da cidade. O que caracteriza os diálogos platônicos é sempre uma

perspectiva ética: filosofar é exercitar-se diariamente em superar a si mesmo

para não cair em um julgamento superficial sobre o que acontece de bom e

mau na vida, e escolher virtudes certas e fundadas sobre raciocínios bem

articulados.

Nesse sentido, o Fédon não é uma exceção. Nele, o autor relata a morte

de Sócrates: no ano 399 a.C., ele foi condenado à morte em Atenas, acusado

de impiedade por não reconhecer o culto dos deuses e por corromper a

juventude. Na descrição das últimas horas do filósofo, partilhadas com os

próprios companheiros antes de tomar cicuta, é apresentada a autobiografia do

homem que por força de suas convicções interiores, escolhe morrer

respeitando a lei da cidade, embora os juízes o acusem injustamente.

Esta cena de Sócrates na prisão, rodeado por seus amigos assim como

relata o Fédon, foi objeto de inúmeras representações artísticas. Ela é o próprio

símbolo da herança socrática: a aceitação da morte como supremo ato

filosófico8. A força dessa atmosfera dramática, com a qual o diálogo começa e

continua até o fim, divide os comentadores quanto ao peso que deve ser

atribuído à dimensão mais literária no diálogo, com respeito aos conteúdos

7 HADOT, Pierre, Ibid, p. 101.

8 “Um monumento a Sócrates: esta é a primeira impressão que se guarda do Fédon.

Somente no discurso de Alcibíades, em O Banquete, a descrição será novamente tão pessoal. Para o autor, o grande e independente interesse estava não tanto no destino de Sócrates, mas na sua elevação e grandeza diante desse destino: é isso que passa a impressão persistente de tragédia”. NATORP, Paul. Teoria das ideias de Platão. Uma introdução ao idealismo. São Paulo: Paulus, 2012, p. 281.

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especificamente filosóficos9. Essa cena representa o ideal de vida socrática,

que permeou profundamente os principais cânones da nascente cultura

ocidental, seja por apresentar a origem da teoria das ideias platônicas, seja por

apresentar uma grandiosa meditação filosófica sobre a morte. Parece certo que

o Fédon foi produzido para iniciar os jovens discípulos de Platão no tema da

imortalidade da alma e, ao mesmo tempo, oferecer uma meditação ética a

respeito da morte. Como bem explica o estudioso Christopher J. Rowe, o

Fédon é uma

representação dramática da atividade filosófica que propõe a arte da discussão séria.

Seu objeto explícito é a morte, mas seu centro é a pergunta sobre como a vida tem que

ser vivida10

.

Nesse aspecto, o Fédon representa uma introdução aos ideais da vida

filosófica completa e bem argumentada, assim como ela era proposta na

Academia. Desse modo, o relato das últimas horas de Sócrates representa,

para os discípulos, o testemunho de uma verdadeira vida filosófica que atingiu

sua máxima completude. O diálogo destaca como, nessas últimas horas,

Sócrates estava vivendo o que já havia praticado ao longo de uma vida inteira.

Também revela a transparente continuidade e coerência entre dois fatos: o

testemunho público que ele deu quando presenciou de forma tão peculiar o

debate ético e político da sua cidade e a postura com a qual ele enfrenta,

agora, a morte imerecida. Se na Apologia (28 e), Sócrates afirma que passou a

vida submetendo-se a exames por si mesmo e pelos outros, na prisão ele

continuará fazendo o mesmo, com tranquilidade participativa e rigor intelectual,

oferecendo a seus companheiros importantes orientações sobre o valor da

vida, e mostrando como ela pode ser vivida de forma coerente, quando é

conhecida além de suas contradições aparentes, muitas vezes paradoxais.

De fato: essas contradições aparentes não faltam nem mesmo no

diálogo. Aliás, algumas já se apresentam logo de início, assinaladas pelos

próprios amigos de Sócrates. Isto não deve nos surpreender. Parece que o

9 Cf. ROWE, Christopher J. Il Simposio di Platone. Cinque lezioni con un contributo sul

Fedone. Auflage: Academia Verlag, 1998, p. 71. 10

Ibid, p. 86, (tradução nossa).

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intento específico de Platão é, claramente, o de caracterizar, com afirmações

aparentemente paradoxais, o contexto que já é, em si, paradoxal. Afinal,

estamos diante de um homem que comenta sobre a necessidade e a

importância de o ser humano cumprir escolhas dignas de “uma vida inteira”,

sendo que a própria vida, a vida que lhe resta, está perto de terminar em

poucas horas11.

Acreditamos que a imagem literária de um Sócrates raciocinando num

clima suspenso entre a vida e a morte tenha sido escolhida por Platão para que

a alma dos discípulos da Academia entrasse numa certa disposição filosófica.

É Gadamer quem afirma, por exemplo:

Como Nietzsche tão bem expôs, a figura da morte de Sócrates tornou-se o novo ideal

ao qual a juventude mais nobre dos gregos se dedicou em vez do ideal heroico antigo,

Aquiles. Portanto, o poder poético do Fédon de convencimento é mais forte do que seu

poder argumentativo de prova 12

.

Portanto, apresentaremos algumas das primeiras afirmações paradoxais

de Sócrates que abrem o diálogo (e que logo provocam a reação dos amigos

presentes) porque será mediante elas que tentaremos compreender que tipo

de vida filosófica e que tipo de morte, também filosófica, está sendo proposta

ao leitor através do testemunho socrático. É com esse intento que entramos

nessa atmosfera tão particular do diálogo, assim como ela já se apresenta

desde o início.

1.2. Preparar-se para morrer

Desde o princípio, o Fédon se apresenta emoldurado por uma atmosfera

extraordinária: nas últimas horas de vida, Sócrates parece estar feliz, com uma

postura que irradia firmeza e tranquilidade. Embora esteja esperando a morte,

ele acrescenta até que será feliz, “como ninguém jamais”. Diante dessa

situação inédita, seus companheiros experimentam sensações misturadas de

prazer e dor – uma emoção tão particular que chega a chamar a atenção. Eis

11 Cf. Fédon, 90, d; 91, a.

12 GADAMER, Hans-Georg. The proofs of imortality in Plato´s Phaedo, in GADAMER,

Hans Georg, Dialogue and Dialetctic. Yale University, 1980, p. 22.

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as palavras pronunciadas por Fédon para descrever tudo o que estava

acontecendo na cela de Sócrates:

Enquanto estive ao lado de Sócrates, minhas impressões pessoais foram, de fato, bem

singulares. Na verdade, ao pensamento de que assistia à morte desse homem ao qual

me achava ligado pela amizade, não era a compaixão o que me tomava. O que tinha

sob os olhos, Equécrates, era um homem feliz: feliz tanto na maneira de comportar-se

como na de conversar, tal era a tranquila nobreza que havia no seu fim. E isso, de tal

modo que ele me dava a impressão, ele que devia encaminhar-se para as regiões do

Hades, de para lá se dirigir auxiliado por um concurso divino, e de ir encontrar no além,

uma vez chegado, uma felicidade tal como ninguém jamais conheceu (Fédon, 58 e).

É essa postura do filósofo que provoca a reação de seus companheiros.

É ainda Fédon que assim descreve os próprios sentimentos:

“Por isso é que absolutamente nenhum sentimento de compaixão havia em mim, como

teria sido natural em quem era testemunha duma morte iminente. Mas o que eu sentia

não era também o conhecido prazer de nossos instantes de filosofia, embora fosse

essa, ainda uma vez, a natureza das nossas conversas. A verdade é que havia em

minhas impressões qualquer coisa de desconcertante, uma mistura inaudita, feita ao

mesmo tempo de prazer e dor, ao recordar-me que dentro em pouco sobreviria o

momento de sua morte” (Fédon, 59 a-b).

Ora, no livro X de A República, no qual Platão reflete sobre a

possibilidade de a alma experimentar, ao mesmo tempo, sentimentos

contraditórios, encontra-se um trecho que pode nos ajudar a entrar nessa

atmosfera particular que o Fédon irradia. Lemos:

A lei diz que o que há de mais belo é manter a maior calma em meio aos infortúnios e

não sentir ira, porque não é evidente o que é bom ou mau em tais situações, nem se no

futuro haverá um ganho para quem sofre dificuldades e que não vale a pena levar

muito a sério nenhuma das coisas humanas. E ainda, nessas situações, o sofrimento

vem e se interpõe como empecilho ao que bem depressa devia vir ajudar-nos (A

República, 604 b-c).

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A experiência de um homem que se mostra feliz no momento da morte

iminente, se comparada ao trecho citado acima, aparece de forma mais

avançada: Sócrates mostra não ter nenhuma dúvida sobre o bem que o espera

no futuro, que se realizará “auxiliado por um concurso divino” (Fédon, 58 e) no

invisível. Perguntamos-nos: qual é a razão em que se funda essa

surpreendente felicidade que Sócrates experimenta? Para explicar esse ponto,

Platão escolhe uma palavra que é diversas vezes oferecida ao leitor, sempre

acompanhada por diferentes adjetivos que a reforçam de várias formas: a força

que sustenta a sua alma é a elpís, termo grego que pode ser traduzido como

“esperança”, “convicção” ou, na forma reforçada, “boa esperança”, “firme

convicção13”.

E por que essa esperança é tão especial? A afirmação que se encontra

no diálogo é explícita: quem passou a vida inteira filosofando sabe que, quando

morrer, poderá ter boas esperanças de se encontrar “primeiro, ao lado de

outros deuses, sábios e bons” (Fédon, 63 b; Apologia, 41 a). Trata-se da

esperança de que, no reino dos mortos, o reino de Hades invisível, existirá algo

melhor para os bons do que para os maus (Fédon, 63 c). Logo depois,

Sócrates acrescentará:

(...) considero que o homem que realmente consagrou sua vida à filosofia é senhor da

legítima convicção no momento da morte, possui esperança (eu[elpi~) de ir

encontrar para si, no além, excelentes bens (mevgista ajgaqa;) quando estiver

morto. Mas como pode ser assim? Isso será, Simia e Cebes, o que me esforçarei por

vos explicar (Fédon, 64 a).

E, como essa questão é capital, Sócrates pretende demonstrá-la a seus

companheiros, apontando sua relevância. É nesse contexto que Sócrates

apresentará uma das passagens mais famosas do Fédon, destinada a ser

muito interpretada pelos comentadores: como a morte é a oportunidade para o

ser humano contemplar “excelentes bens” e ir ao tão precioso encontro com os

deuses, a única ocupação para uma pessoa que se dedica à filosofia consistirá

13 Cf. Fédon, 67 b-c; 68, a; 70, a.

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“em preparar-se para morrer e em estar morto” (Fédon, 64 a). Logo depois

Sócrates concluirá assim:

Se isso é verdadeiro, bem estranho seria que, assim pensando, durante toda sua vida,

que não tendo presente ao espírito senão aquela preocupação, quando a morte vem,

venha a irritar-se com a presença daquilo que até então tivera presente no pensamento

e de que fizera sua ocupação (Fédon, 64 a).

É assim que, pelo menos duas vezes, no começo e no final do diálogo,

Sócrates convida seus companheiros a escolherem essa forma de vida, que

consiste em se preparar para morrer. Primeiro, dirigindo-se aos presentes,

Sócrates faz uma proposta ao filósofo Eveno, que está ausente: trata-se do

primeiro convite para viver uma vida filosófica. Sócrates diz:

Transmite-lhe também (a Eveno)14

a minha saudação e, além disso, o conselho, se de

fato ele é sábio (a{n swfronh`) de seguir minhas pegadas o mais depressa que

puder. Quanto a mim, parece que me vou hoje mesmo, uma vez que os atenienses me

ordenam (Fédon, 61 c).

As palavras de Sócrates são claras: ele está convidando Eveno a segui-

lo, “o mais depressa que puder” na experiência de viver o que ele mesmo está

vivendo, isto é, morrer como um homem virtuoso e sábio, ou filósofo, deve

morrer. O segundo convite será proposto na despedida de Sócrates a seus

companheiros na conclusão do diálogo, e contém algumas indicações a mais.

Depois de ter confirmado a beleza das crenças a respeito da imortalidade da

alma, que acaba sendo finalmente demonstrada, Sócrates oferece um retrato

do homem que, “confiante e corajoso” sobre o destino da própria alma, saberá

pôr-se a caminho “quando seu destino o chamar”. É o retrato do homem

virtuoso que Platão assim descreve:

14 Eveno de Paros comparece outras vezes nos diálogos platônicos como um

personagem particular. Apesar de, provavelmente, haver sido um mestre itinerante em Atenas, ninguém se dirige a ele como fosse um sofista; ao contrário. Cebéte o chama aqui de filósofo, embora Sócrates pareça considerá-lo um poeta (Fédon, 60, d 9) Cf. NAILS, Debra. The People of Plato. Indianapolis/Cambridge: Hackett Pubblishing Company, 2002, p. 153.

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(...) durante a sua vida desprezou os prazeres do corpo e os ornamentos deste,

principalmente, pois são, a seu ver, coisas estranhas e nocivas. O homem que, ao

contrário, se dedicou aos prazeres que tem a instrução por objeto, e que dessa forma

ornou a sua alma não com adornos estranhos e nocivos, mas com o que é

propriamente seu e mais lhe convém, com a temperança, a justiça, a coragem, a

liberdade, a verdade – esse aguarda confiante e corajoso o momento de pôr-se a

caminho do Hades, quando seu destino o chamar! (Fédon, 114 e).

E conclui algo que queremos destacar:

Vós, seguramente, Símias, Cebes e todos os outros, será mais tarde, não sei quando,

que vos poreis a caminho. Quanto a mim, o meu destino neste momento me chama,

como diria um ator de tragédia (Fédon, 115 a).

Essas duas passagens, que evidenciamos como dois convites

diferenciados, parecem destacar a escolha de Platão de colocar a figura de

Sócrates e suas convicções como exemplares para os discípulos: ele mesmo

pede para ser seguido em seu ato de enfrentamento da morte. Os dois convites

contêm uma mensagem bastante clara: quando se está em busca da

temperança, da justiça e da verdade, os prazeres da instrução valem mais do

que os prazeres corpóreos. Explica-se: são valores certos, que aguardam

quem está no caminho do bem-viver. Esse é o ideal filosófico que mantém sua

coerência e seu valor até diante da morte, “quando o destino chama”. O

homem sábio demonstrará que, durante toda a sua existência, tem assimilado

os valores de uma vida filosófica. É por essa razão que o temor da morte, tão

caracteristicamente humano, terá um lugar secundário perante essa

aprendizagem.

Mas qual é o caminho que o discípulo deve iniciar para chegar à

contemplação de bens tão preciosos, alcançáveis depois a morte? E quais

seriam de fato, esses bens? Em que sentido os verdadeiros filósofos estão se

preparando para morrer? Devemos entender que se trata mesmo da morte

física?

A esse respeito, destacamos uma questão que nos parece fundamental:

Sócrates dá a entender que sua argumentação refere-se a um determinado tipo

de morte (kai; oi[ou qanavtou: Fédon, 64 b), e o caminho que ele

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indicará para compreender tudo isso passa por um questionamento básico:

interrogar-se sobre o que é de verdade a morte, para pensar corretamente na

sua experiência (Fédon, 64 c). Só depois dessa passagem será possível

compreender qual é o tipo de morte que o discípulo da Academia enfrenta

antes de poder, finalmente, escolher as ações coerentes com esse reto pensar.

Vamos acompanhar, então, o raciocínio de Sócrates sobre o que é, de fato, a

experiência da morte.

1.3. A separação entre alma e corpo: ética platônica e perspectiva órfica

– Segundo nosso pensar, é a morte alguma coisa?

– Claro – replicou Símias.

– Nada mais do que a separação da alma e do corpo, não é? Estar morto consiste

nisto: apartado da alma e separado dela, o corpo isolado em si mesmo; a alma, por sua

vez, apartada do corpo e separada dele, isolada em si mesma. A morte é apenas isso?

– Sim, consiste justamente nisso. (Fédon, 64 c)

Lendo esse trecho, deduzimos que, se para Sócrates a morte é a

separação entre alma e corpo, o filósofo que vive como morto deverá viver no

mesmo estado de separação. A confirmação dessa dedução chega alguns

trechos mais à frente, nos quais a argumentação é retomada quase com as

mesmas expressões:

– Ter uma alma desligada e posta à parte do corpo, não é esse o sentido exato da

palavra “morte”?

– É exatamente esse o sentido.

– Sim. E os que mais desejam essa separação, os únicos que a desejam, não são por

acaso aqueles que, no bom sentido do termo, se dedicam à filosofia? O exercício

próprio dos filósofos não é precisamente libertar a alma e afastá-la do corpo?

– Evidentemente (Fédon 67 d)

Está claro, então, que os filósofos desejam a separação entre a alma e o

corpo, e que, além de desejá-la, de alguma forma eles a realizam através de

um determinado exercício de libertação. Como será possível ao filósofo fazer

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isto? A resposta é simples: não levando em consideração nenhuma das

manifestações que são ligadas ao corpo. Por exemplo, afastando todos os

prazeres, que sempre se referem ao corpo físico, como o de comer ou beber,

ou os amorosos, ou o desejo de possuir vestimentas de boa qualidade (Fédon,

64 b).

Em passagens anteriores, Sócrates parece ser categórico ao afirmar

que, durante todo o tempo no qual a alma estará misturada com “essa coisa

má” que é o corpo, nós não poderemos atingir o que julgamos ser a verdade

(Fédon, 66 b):

Não somente mil e uma confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando

clamam as necessidades da vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças – eis-

nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real! O corpo de tal

modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma

infinidade de bagatelas, que por seu intermédio “sim, verdadeiramente é o que se diz”

não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer!

Vede, pelo contrário, o que ele nos dá: nada como o corpo e suas concupiscências

para provocar o aparecimento de guerras, dissenções e batalhas; com efeito, na posse

de bens é que reside a origem de todas as guerras e, se somos irresistivelmente

impelidos a amontoar bens, fazemo-lo por causa do corpo, de quem somos míseros

escravos! Por culpa sua ainda, e por causa de tudo isso, temos preguiça de filosofar

(Fédon, 66 c).

Como vimos, com sua natureza própria, o corpo consegue contaminar a

alma. Por isso é preciso, acrescenta Sócrates, que permaneçamos “puros de

seu contato, (kaqareuvwmen ajp jaujtou`) e assim até o dia em que o

próprio Deus houver desfeito esses laços” (Fédon, 67a).

Portanto, o momento final da existência é o ponto crucial em que a

separação entre corpo e alma se tornará completamente possível, cumprindo

de forma definitiva a purificação já começada em vida:

E quando dessa maneira atingirmos a pureza, (ou[tw me;n kaqaroi;) pois que

então teremos sido separados da demência do corpo, deveremos mui verossimilmente

ficar unidos a seres parecidos conosco; e por nós mesmos conheceremos sem mistura

alguma tudo o que é. É nisso, provavelmente, é que há de consistir a verdade

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(tou`to d´ ejsti;n i{sw~ to; ajlhqev~). Com efeito, é licito admitir que não

seja permitido apossar-se do que é puro, quando não se é puro (Fédon, 67 a-b).

Nessas últimas passagens do discurso socrático, podemos observar

alguns temas e várias expressões que chamam a atenção do leitor. Nota-se

claramente sua semelhança com a linguagem do culto órfico praticado na

Atenas do século IV – como, por exemplo, a oposição entre alma e corpo, a

crença no destino divino da alma e em sua sobrevivência no Hades15. Esse

esclarecimento parece ser necessário para destacar como o Fédon apresenta

distintas perspectivas éticas entre as várias que permeavam a sociedade

ateniense do século IV. Essas diferentes perspectivas devem ser reconhecidas

em sua própria especificidade quando se apresentam no diálogo, embora essa

distinção não seja sempre fácil. Afinal, o próprio Platão oferece uma sugestiva

ambiguidade de linguagem capaz de provocar o leitor (é o caso, por exemplo,

das práticas devocionais dos ritos de purificação aos quais Sócrates faz

referência, para depois falar do pensamento como ato de purificação: Fédon,

67 c; 69 c). Todavia, por mais que as crenças religiosas de matriz órfica

emoldurem a atmosfera do diálogo (sobretudo quanto à questão da natureza

da alma e de seu destino após a morte), mesmo Sócrates estando bem

próximo de sua hora de beber cicuta, a proposta ética de vida filosófica que

caracterizou a Academia platônica não se deixa confundir por esse orfismo.

De fato, Platão interpretou de uma forma tão particular o espírito

religioso da época, suas crenças e práticas, que precisamente por isso mudou

sua linguagem. O estudioso espanhol de orfismo, Alberto Bernabé, define esse

procedimento como "transposição platônica", afirmando que o filósofo não

acredita fielmente nas convicções órficas, mas somente herda cenografias

15 Entre as características que marcaram a relevância do culto órfico e das suas

crenças na sociedade grega a partir do VI século a.C, o historiador Giovanni Reale lembra sobretudo: a alma presa no corpo como num cárcere para pagar culpas originarias; a reencarnação necessária até a libertação definitiva das culpas; as necessárias purificações para propiciar a retidão de vida; REALE, Giovanni.Corpo, alma e saúde. O conceito de homem de Homero a Platão. São Paulo: Paulus, 2002, p. 114.

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éticas e alguns tópicos doutrinários, que serão depois colocados a serviço da

própria ideologia filosófica16.

Na prisão, a presença de Símias e Cebes, dois amigos de Sócrates tidos

como pitagóricos, também pode ser considerada como mais uma razão que

explica a atmosfera marcadamente órfica que caracteriza o diálogo. Como se

sabe, a doutrina pitagórica e a órfica têm muitos aspectos em comum17, além

de se caracterizarem como novas formas de agrupamentos religiosos que,

como explica o pesquisador Jean Pierre Vernant, resistiram à afirmação de

uma religiosidade pública oficial da cidade:

Tíasos, confrarias, e mistérios abrem, sem restrição de categoria ou de origem, o

acesso a verdades sagradas que eram outrora apanágio de linhagens hereditárias.

A criação de uma seita religiosa como as que se denominam órficas, a fundação de

um mistério e a instituição de uma confraria de „sábios‟, como a de Pitágoras,

manifestam, em condições e meios diferentes, o mesmo grande movimento social

de alargamento e de divulgação de uma tradição sagrada aristocrática. 18

Hans George Gadamer, por exemplo, aponta como significante a

presença de Símias e Cebes, que representam no diálogo “um grupo religioso

do tipo estabelecido pelo antepassado das seitas pitagóricas”, mas, ao mesmo

tempo, representantes da ciência contemporânea, “bastante familiarizados com

a ciência natural, biologia e medicina do seu tempo”. Mesmo o perfil particular

dos principais interlocutores de Sócrates, que ele define representantes do

“novo iluminismo científico”, permite a Gadamer evidenciar um aspecto do

Fédon que nos parece importante destacar. Afirma o estudioso alemão:

Quando Platão faz Sócrates, na hora de sua morte, conversar com pitagóricos

representantes da ciência contemporânea, obviamente isso significa mostrar que

16 O especialista oferece um estudo amplo sobre o orfismo com páginas dedicadas à

sua influência detectável nos textos platônicos: BERNABÉ, Alberto, Hieros logos: poesía órfica sobre los dioses, el alma y el más allá. Madrid: Akal, 2003.

17 Entre as crenças compartilhadas por órficos e pitagóricos, também está a doutrina da

metempsicose, isto é, a necessária encarnação da alma em sucessivas existências corpóreas, inclusive em animais. Cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia vol. I. São Paulo: Paulus, 1990, p. 45. Esse assunto fundamental na doutrina platônica e que apresentará um desenvolvimento específico no Fédon não será aprofundado neste trabalho.

18 VERNANT, Jean Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo: Paz e Terra,

2008, p. 461.

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Platão diz que era sua própria tarefa unir a introspecção moral defendida por Sócrates

com o conhecimento científico representado pelos pitagóricos19

.

É relevante observar, acrescenta Gadamer, que a conversa entre

Sócrates e os pitagóricos começa a partir de um problema religioso específico:

o da liceidade do suicídio, gesto expressamente proibido pelo mestre pitagórico

Filolau, mas que estranhamente, Címias e Cebes afirmam desconhecer. Para o

comentador, esse é um sinal de que os dois estão muito distantes da tradição

religiosa, a ponto de não usarem argumentos doutrinários para responder a

Sócrates, quando este declara possível, para o filósofo, o desejo de morrer

(Fédon, 61 d). Ao contrário: o que Cebes faz é questionar a coerência entre

essa afirmação de Sócrates e o fato de ele acabar de admitir que vivia sob o

auspício de deuses benevolentes: por que querer morrer, então?20 Concluindo,

Gadamer comenta:

A verdade da tradição religiosa empalideceu para Cebes de tal modo que o destino da

alma no além não é mais motivo de preocupações para ele. Do mesmo modo, Símias

simplesmente ri quando Sócrates declara que “morrer” é o ponto crucial de toda

filosofia (Fédon, 64 a)21

.

A análise gadameriana dessa passagem do Fédon nos permite

confirmar suficientemente tudo o que já foi afirmado sobre o método da

transposição platônica destacado por Bernabé: Platão enriquece as

argumentações socráticas com referências órficas para oferecer ao leitor a

própria visão filosófica, utilizando a linguagem e as metáforas religiosas mais

conhecidas por seus interlocutores. Fazendo isso, ele poderá compartilhar com

eles os argumentos racionais que confirmarão ou não a consistência lógica das

afirmações deles. Como estão sendo questionadas a natureza imortal da alma

e as implicações éticas que essa visão traz consigo, o Fédon acaba se

constituindo como a proposta de uma análise platônica específica dos

19 GADAMER, Hans Georg. The proof of imortality in Plato´s Phaedo, in GADAMER,

Hans Georg, Dialogue and Dialectic. Yale: Yale University, 1980, p. 23 (tradução nossa). 20

Christopher J. Rowe também acha significativa a postura critica de Cebes, que está determinado a questionar os argumentos de Sócrates e a ouvir seu comentário a respeito do assunto (Fédon, 63 a). Cf. ROWE, Christopher J. Op. cit., p. 77.

21 GADAMER, Hans Georg, Op. cit., p. 24.

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pressupostos racionais que podem sustentar, ou não, as crenças morais e

escatológicas de órficos e pitagóricos sobre o destino da alma. É importante

notar que essa análise é a preliminar para a apresentação de uma perspectiva

própria e específica sobre o mesmo assunto. São interessantes, a esse

respeito, as conclusões do mesmo Gadamer:

Platão certamente não deseja dizer que ele provou a mesma imortalidade da alma, que

é básica na tradição religiosa. Mas o que ele deseja dizer é que o ceticismo que se

espalhou como resultante do esclarecimento científico não afeta a esfera da vida

humana e nossa compreensão dela. O crescimento do conhecimento científico nas

causas do vir a ser e deixar de ser, no curso dos processos naturais, não afasta a

necessidade de pensar além da realidade deste mundo e não há autoridade para

contestar convicções religiosas. Desse modo, o ponto de demonstração, parece-me, é

que ele refuta dúvidas e não que ele justifica crença. 22

Portanto, poderíamos concluir que o momento da libertação e da

separação (luvsi~23 kai cwrismo;~) da alma é decisivo. É então que ela

consegue permanecer isolada e “concentrada sobre si mesma” por ter

renunciado a envolver-se com paixões corpóreas. Por isso, esse momento é

definido pelo próprio Sócrates como a verdadeira tarefa do filósofo (Fédon,

67c). Notamos que parece acontecer no Fédon o que o estudioso Thomas

Robinson já analisou como uma das características de toda a obra de Platão:

frequentemente suas conclusões surgem mais cedo do que os argumentos

filosóficos sobre os quais elas são estabelecidas 24.

Ao encerrarmos esse parêntese necessário, vemos que, no Fédon, fica

evidente que, mesmo partilhando algumas expressões e certos temas (como

os limites da tarefa do corpo na aquisição da sabedoria), as visões de mundo

órfica e platônica não estão fundamentadas sobre as mesmas experiências, e

nem tampouco chegam às mesmas conclusões.

22GADAMER, Hans-Georg. The proofs of imortality in Plato´s Phaedo, in GADAMER,

Hans Georg, Dialogue and Dialetctic. Yale University, 1980, p.37. 23

“Para os órficos, Dionísio era ´quem dissolve` (Luseuv~). Através dele, por meio dos

ritos, os homens procuravam libertar-se de seus ímpios progenitores”: ONIANS, B. Le origini del pensiero europeo. Milano: Adelphi, 1998, p. 537 (tradução nossa).

24 ROBINSON, Thomas. Os gregos e conceito de alma de Homero a Aristóteles. São

Paulo: Annablume, 2010, p. 89.

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A sugestiva e poética linguagem metafórica escolhida por Platão – rica

de alusões explícitas ao culto órfico, tão familiares a seus leitores e, como

parece, nunca escolhidas por acaso25 – introduz questões importantes na

economia do diálogo. Essas questões acabarão sendo argumentadas segundo

o método próprio da Academia: a escolha do diálogo como prática capaz de

levar o homem a contemplar intelectualmente a verdade. Essa prática é

apresentada no Fédon como um processo de purificação do próprio ato de

pensar (Fédon 67c). Assim, o pensamento ao desenvolver-se vai descobrindo,

passo a passo, os próprios erros. Gadamer explica como podemos entender a

questão da “purificação do pensar”:

Ainda que Sócrates muito seguramente justifique sua prontidão para a morte

aproveitando-se da ideia de purificação da alma com a morte, é claro, mesmo assim,

que em Sócrates a antiga concepção pitagórica de pureza abriu o caminho para uma

nova. Pureza, para ele, não é mais identificada com ritos cultuais de purificação

prescritos, aos quais os membros de uma ordem observam como seu symbola sem a

mínima compreensão. Pelo contrário, Sócrates entende pureza como o novo cuidado

de si mesmo na vida do filósofo que se concentra em pensar. (...) Pois puro

pensamento é verdadeiramente o que caracteriza “ciência”, ou seja, as matemáticas,

que eram centrais para os pitagóricos dessa geração26

.

25 O psicanalista James Hilmann lembra como na tradição ocidental a sede da alma

foi, às vezes, colocada nas entranhas e destaca algo de muito interessante para a nossa análise: “O termo mediante o qual a medicina indica o borborigmo é o mesmo usado por Platão

no Fédon (ejn borbovrw/ keivsetai: 69 c) e Aristófanes para definir a lama repugnante

do mundo infernal”. HILLMAN, James. Il sogno e il mondo infero. Milano: Adelphi, 2003, pp. 227-228 (tradução nossa).

26 GADAMER, Hans-Georg. The proofs of imortality in Plato´s Phaedo, in GADAMER,

Hans Georg, Dialogue and Dialetctic. Yale University, 1980, p. 24.

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CAPÍTULO II

Conhecimento e desejo no Fédon

2.1. A escolha dos raciocínios

Quando Sócrates de fato resolve explicitar a razão especificamente

filosófica da escolha de afastar a alma do corpo, os argumentos propostos

realmente estão relacionados à intenção explícita de “alcançar a verdade” e

“transmiti-la” - duas atividades para as quais os sentidos corpóreos podem ser

um impedimento. A posição de Sócrates é categórica a respeito desse assunto:

Quero dizer com isso, mais ou menos, o seguinte: acaso alguma verdade é transmitida

aos homens por intermédio da vista ou do ouvido, ou quem sabe se, pelos menos em

relação a estas coisas não se passem como os poetas não se cansam de no-lo repetir

incessantemente, e que não vemos nem ouvimos com clareza? (Fédon, 65 b).

Quando será que a alma alcança a verdade? Afinal, quando ela deseja

investigar qualquer questão que se refira ao corpo e utiliza o corpo, é claro que

ele a engana radicalmente! (Fédon, 65 b).

Sócrates responde através de uma pergunta, proposta de forma retórica:

“Não é, por conseguinte, no ato de raciocinar, e não de outro modo, que a alma

apreende, em parte, a realidade de um ser?”.27

Para depois concluir:

E, sem dúvida alguma, ela raciocina melhor precisamente quando nenhum empeço lhe

advém de nenhuma parte, nem do ouvido, nem da vista, nem dum sofrimento, nem

sobretudo dum prazer – mas sim quando se isola o mais que pode em si mesma,

abandonando o corpo à sua sorte, quando, rompendo tanto quanto lhe é possível

qualquer união, qualquer contato com ele, anseia pelo real (Fédon, 65 c).

27 (Fédon, 65 c)

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Agora está clara e explícita a razão da necessidade, já postulada, de

separar a alma do corpo: ela é decisiva para permitir uma vida filosófica

baseada na livre escolha do diálogo. Explica-se: enquanto a alma está

exercendo o pensamento, o corpo a agita, impedindo-a de adquirir a visão da

verdade. Ao distanciar-se do corpo, com efeito, não só a alma aprende a se

afastar de uma realidade possivelmente ausente no Hades, (onde serão

encontrados os possíveis bens futuros apontados pela perspectiva órfica) mas,

sobretudo, das sensações fracas e inseguras que os sentidos do corpo

procuram por si mesmos, impedindo-a de “adquirir verdadeiramente a

sabedoria (peri; aujth;n th;n th`~ fronhvsew~ kth`sin: Fédon, 65

a)”.

Platão apresenta uma conexão entre o ato de “adquirir verdadeiramente

a sabedoria” e a impossibilidade de transmiti-la por intermédio da vista ou do

ouvido - e isto nos permite definir claramente a natureza ética desse

movimento de afastamento da alma que deseja distanciar-se do corpo.

Apresentado com expressões típicas da religiosidade órfica, esse afastamento

cumpre uma tarefa propriamente pré-gnosiológica, pois torna possível o

conhecimento da realidade como ela é, em sua essência. Sócrates afirma

explicitamente:

(...) se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á

necessário separar-nos dele (o corpo) e encarar, por intermédio da alma em si mesma,

os entes em si mesmos. Só então é que, segundo me parece, nos há de pertencer

aquilo de que nos declaramos amantes: a sabedoria. Sim, quando estivermos mortos,

tal como o indica o argumento, e não durante nossa vida. (Fédon, 66 d-e).

Mas é claro também que, como propedêutica ao pensar retamente a

realidade, a escolha de afastar-se do que impede a clara visão das formas

acaba sendo, como se sabe, uma escolha virtuosa, porque ela emerge da

procura de um agir sábio.

Sócrates propõe que a alma necessita libertar-se do corpo e apresenta

uma conexão explícita entre esse afastamento e a escolha dos raciocínios.

Essa conexão nos esclarece que essa libertação necessária não se limita

apenas a exercer a tarefa escatológica de adquirir o prêmio dos excelentes

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bens futuros buscados no Hades, de acordo com a perspectiva órfica. Não: a

escolha de separar a atividade da alma afastando-a das perturbações dos

prazeres é a própria razão de ser do homem sábio, que segue as exigências da

vida filosófica em sua vida cotidiana. E a primeira dessas exigências consiste

em descobrir, aos poucos, que é preciso ser virtuoso para conhecer as coisas

como elas são, em sua própria pureza, sem mistura. Portanto, é uma exigência

precisamente epistemológica, determinada por uma clara decisão ética: a de

adquirir a sabedoria (peri; aujth;n th;n th`~ fronhvsew~ kth`sin:

Fédon, 65 a) alcançando a verdade (th`~ ajlhqeiva~ a{ptetai: Fédon,

65 b), depois que alma e corpo se afastam e os raciocínios retos se

desenvolvem. O filósofo tem a esperança de contemplar, um dia, a dimensão

divina. E é o êxito desse processo articulado que caracteriza a própria

experiência humana:

(a alma) ela acalma as paixões, liga-se aos passos do raciocínio e sempre está

presente nele (eJpomevnh tw` logismw` kai; aJei; eJn touvtw/ ou`sa)

toma o verdadeiro, o divino, o que escapa à opinião, por espetáculo e também por

alimento, firmemente convencida de que assim deve viver enquanto durar sua vida e

que deverá, além disso após o fim desta existência, ir-se para o que lhe é aparentado e

semelhante, desembaraçando-se destarte da humana miséria (Fédon, 84 a, grifo

nosso).

Assim, no Fédon a vida filosófica da alma está ligada aos passos do

raciocínio e se define pela estreita união entre conhecimento e moral,

apresentada muitas vezes através da linguagem religiosa de raiz órfica. Afinal,

pensar e agir retamente, phrónesis e étos, são dimensões que andam juntas:

uma sempre permite o desenvolvimento da outra. Agora, lembrando-nos que a

nossa tarefa permanece ainda a de explicar que tipo de morte “filosófica” está

sendo proposta aos discípulos da Academia, tentaremos explicar como, no

Fédon, se articula essa sustentação recíproca entre a escolha ética de separar

alma e corpo e a decisão epistemológica de construir as bases do raciocínio

reto, com o objetivo de tocar a verdade e adquirir a sabedoria.

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2.2. O desenvolvimento do discurso e a verdade das coisas

Sócrates explicou claramente a seus amigos que os passos da alma que

raciocina podem ser arriscados: ela pode passar por graves perigos. O

caminho da vida filosófica, alerta ele, não se dá em um estado de completa

segurança - é preciso preparar-se para evitar insucessos.

É necessário, pois, a este propósito, fazer uma das coisas seguintes: não perder a

ocasião de instruir-se, ou, então, se não for capaz nem de uma nem de outra dessas

ações, ir buscar em nossas antigas tradições humanas (bevltiston tw`n

ajnqropwnivnon lovgwn labovnta)28

o que houver de melhor e menos

contestável, deixando-se assim levar como sobre uma jangada, na qual nos

arriscaremos a fazer a travessia da vida, uma vez que não a podemos percorrer, com

mais segurança e com menos riscos, sobre um transporto mais solido: quero dizer,

uma revelação divina! (Fédon, 85 c).

Note-se que, nesse trecho surgem algumas expressões que apresentam

o processo de conhecimento da alma como uma travessia precária e arriscada

na busca de um raciocínio válido. Desse modo, parecem antecipar a metáfora

da mais famosa “segunda navegação”, que será desenvolvida em seguida,

quando Sócrates, ao investigar os fenômenos naturais, decide, mais uma vez,

“buscar refúgio nos discursos” (eij~ tou;~ lovgou~ katafugovnta)

para procurar neles “a verdade das coisas” (Fédon, 99 e).

Mas, afinal, quais são os riscos que se apresentam ao discípulo da

Academia ao fazer a “travessia da vida”? Digamos logo isto: se a vida filosófica

é o caminho existencial da alma que contempla ideias e pratica virtudes,

afastando-se das desviantes paixões corporais que a impedem de reconhecer

a verdade, o risco que Sócrates vê é o de alguém desviar-se desse caminho. E

28 Achamos melhor, nesse caso, que ocorre em Fédon, 85 c, contrariamente à escolha

dos tradutores Paleikat e Cruz Costa, que a palavra raciocínio traduza o termo grego lógos. Concordamos, portanto, com a escolha que encontramos numa tradução italiana: ragionamento umano che sia il migliore, (raciocínio humano que seja o melhor: tradução nossa). Cf. PLATONE. Tutte le opere. Roma: Grandi Tascabili economici Newton, 1977.

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como isso sucederia? Simplesmente pelo fato de alguém achar que as ideias

são verdadeiras sem que sejam realmente, assim como não reconhecer

virtudes verdadeiras, pensando ser sabedoria o que não é. Esse desvio,

Sócrates o chama de o mal supremo (mevgistovn te kakw``n kai

eskatovn), e assim descreve sua causa:

“É que em toda a alma humana, forçosamente, a intensidade do prazer ou do

sofrimento, a propósito disto ou daquilo, se faz acompanhar da crença de que o objeto

dessa emoção é tudo o que há de mais real e verdadeiro, embora tal não aconteça.

Esse é o efeito de todas as coisas visíveis, não é?” (Fédon, 83 c).

Portanto, o risco que pode se apresentar na vida filosófica é que a alma

do discípulo fique atraída e acabe se desviando de seu objetivo pela

intensidade corpórea das emoções suscitadas pelas coisas visíveis - que

parecem ser reais, mas não são. Ao contrário, afirma Sócrates, a alma não

deve deixar–se desviar pelas coisas visíveis aos olhos, mas sim procurar o que

lhe é semelhante e congênere - isto é, o que é puro, imortal, invisível, que não

sofre mutação alguma. Esse estado da alma, afastada do corpo e voltada aos

objetos que lhe são congêneres, Sócrates o chama de inteligência ou, como

também acaba por vezes sendo traduzida, de temperança (frovnesi~:

Fédon, 79 d).

Assim, a separação efetiva entre alma e corpo impede o erro mais grave

e extremo de todos: o de dizer que é verdade aquilo que não é.

O que Platão estaria nos explicando? Ele está nos alertando que, se a

alma não se afastar do corpo, como é necessário, o resultado é que ela não

conseguirá conhecer as coisas como elas são. Por conseguinte, ela não

poderá afirmar-se como princípio de identificação cognitiva. A alma perturbada

pelas paixões, que acha verdadeiro aquilo que não é, enfrenta o mal real. Afinal

sabemos que é perigoso vivenciar os males mais evidentes como adoentar-se,

ou gastar o próprio patrimônio, pois eles são consequências sempre possíveis,

quando não prováveis, para o homem que não domina o corpo (Fédon, 83 c).

Mas esses males não são tão perigosos, nos diz Platão, quanto o mal supremo

e terrível que impede de reconhecer as coisas como elas são.

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Todavia, esse não é o único risco: uma alma não separada do corpo não

só corre o risco de não reconhecer o mal mais perigoso como também pode

não reconhecer o bem verdadeiro, pois pode achar virtuoso algo que parece

mas não é. Assim, a alma se encontra em uma situação paradoxal,

agudamente definida por Platão. De fato: ela escolheu ser temperante por

causa de uma falsa intemperança, isto é, de uma intemperança não

reconhecida como tal através de um raciocínio correto (Fédon, 68 e).

Por ser a phrónesis um ato de autêntica purificação intelectual, ela –

enquanto temperança – é capaz de descobrir e até intercambiar os erros que

acabou gerando ao longo do exercício de exame de suas condições, erros que

poderíamos chamar de falsa temperança. É isso que Sócrates explica que,

assim como existem pretensos prazeres (os assim chamados prazeres em

Fédon, 68 c) também existe uma pretensa temperança. Ela é falsa quando

praticada por homens que se afastam da dor e dos prazeres por medo de

enfrentar outros medos e prazeres. Então, essa temperança é falsa porque

apenas está trocando prazeres e paixões com outros prazeres e paixões de

mesmo nível, aos quais a alma permanece ligada por meio do medo. Então,

para Sócrates, existe uma única possibilidade de alguém evitar fazer escolhas

supostamente éticas e conseguir sair deste círculo vicioso onde uma paixão

segue-se a outra. Para tanto, é preciso trocar uma suposta coragem, ou

temperança ou justiça, com a moeda da sabedoria: ela, com suas perguntas

que sempre procuram fundamentar o que examinam, é a única que pode ter a

certeza e o poder de compra da verdadeira coragem, da verdadeira

temperança e da verdadeira justiça (Fédon, 69 a).

A essa altura, vamos resumir os princípios básicos que já esclarecemos

até aqui. Deixamos claro que o princípio de identificação cognitiva das coisas

que são é a alma. Que ela tem de se afastar eticamente do corpo para

recolher-se em si e poder adquirir sabedoria, para conhecer a verdade.

Reconhecemos, nos raciocínios corretos, o fundamento possível dessa

experiência, ao seguir um caminho arriscado e ao mesmo tempo ético e

teorético, no qual o discípulo pode se perder por achar que é verdadeiro aquilo

que não é.

Agora, o passo seguinte será crucial: trata-se de evidenciar como se

apresenta, no Fédon, o critério através do qual as coisas são, de fato,

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conhecíveis. Em outras palavras: é preciso saber qual é o princípio de

identificação constitutiva das coisas que são29. Como todos sabem, essa é a

questão epistemológica que no Fédon o próprio Sócrates apresentará como

sua segunda navegação intelectual, que permanece como marco fundamental

na História da filosofia ocidental. Como o objetivo específico desse capítulo é

definir melhor a qualidade essencial da vida cognitiva da alma, e apresentar a

experiência de morte assim como foi proposta aos discípulos platônicos,

dedicaremos a essa complexa questão apenas uma apresentação geral e

programática.

2.3. O verdadeiro e a causa real das coisas conhecidas

Assim como foi necessário, no campo ético, definir um critério para

distinguir entre a verdadeira temperança e a suposta, propondo aos discípulos

a moeda da sabedoria, a mesma necessidade se impõe no campo do

conhecimento: Sócrates tenta definir um critério que permita ao discípulo não

se perder no desenvolvimento de discursos, pois, quando são desenvolvidos

sem um método certo, podem revelar-se incapazes de procurar a verdadeira

causa das coisas (ejpi; th;n th`~ aiJtiva~ zhvthsin;: Fédon, 99 d).

Seu objetivo é claro: depois de ter esclarecido que a alma afastada do corpo é

o princípio que torna possível conhecer o que é o verdadeiro, agora Platão

pretende definir o princípio que realmente faz com que o verdadeiro se

manifeste nos raciocínios, constituindo a causa real das coisas conhecidas.

Para tanto, baseado nos ensinamentos de seu mestre Sócrates, Platão

propõe, no Fédon, um proposta epistemológica inédita, depois de ter-se

declarado insatisfeito com as soluções já propostas por aqueles que não foram

capazes de superar uma visão meramente naturalista em busca do princípio

ontológico do real:

29 Encontramos a definição das ideias como princípios de identificação constitutiva em

GALIMBERTI, Umberto. La casa di Psiche. Milano: Feltrinelli, 2005, p. 95.

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Pareceu que deveria acautela-me, a fim de não vir a ter a mesma sorte daqueles que

observam e estudam um eclipse do sol. Algumas pessoas que assim fazem estragam

os olhos por não tomarem a precaução de observar a imagem do sol refletida na água

ou em matéria semelhante. Lembrei-me disso e receei que minha alma viesse a ficar

completamente cega se eu continuasse a olhar com os olhos para os objetos e

tentasse compreendê-los através de cada um de meus sentidos. Refleti que devia

buscar refúgio nas ideias e procurar nelas a verdade das coisas (Fédon, 99 d).

É exatamente esta a questão filosófica que motiva Sócrates a

desenvolver, no Fédon, a nova argumentação, que se inicia com a famosa

metáfora da segunda navegação (to;n deuvteron plou`n: Fédon, 99 d),

inspirada em tudo o que acontecia concretamente aos marinheiros, obrigados a

remar nos dias sem vento para prosseguir na direção escolhida logo que

desamarrassem as velas.

Depois de haver pontuado que o fato de buscar refúgio nos discursos é

estrategicamente relevante para quem quer filosofar (relevância já antecipada,

como vimos, em outras passagens do diálogo), Sócrates dá prosseguimento à

sua proposta específica:

Assim, depois de haver tomado como base em cada caso (uJpoqevmeno~

eJkavstote lovgon) a ideia que, a seu ver, é a mais sólida (lovgon o}n

eJrrwmenevstaton ei?nai). Então, tudo aquilo que estiver em sintonia com ela

será considerado como verdadeiro (wJ~ aJleqh` o{nta), quer se trate de uma

causa ou de outra coisa qualquer. E aquilo que não lhe é consoante ele rejeitará como

erro. (Fédon, 100 a).

Assim, em cada caso, o novo processo de questionamento dialógico

coloca como base a ideia escolhida como a mais firme entre as hipóteses que

parecem semelhantes, mas não tão firmes. Desse modo, impõe-se a

necessidade de escolher uma hipótese que tenha firmeza em si: a própria

razão de semelhança, isto é, algo de Semelhante em si, igual a si mesmo. O

refinado estudioso de Platão, Lima Vaz, define esse “Semelhante em si” como

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“um absoluto de inteligibilidade que só pode ser pensado na sua diferença com

as coisas empíricas particulares”30.

Aí está o êxito possível da escolha já citada, da necessidade de o

filósofo refugiar-se nos discursos, ponto capital de toda a reflexão platônica

sobre a possibilidade do conhecimento das coisas sensíveis: as coisas

verdadeiramente reais são as ideias das coisas – ou, em outras palavras,

somente na Ideia alguma coisa tem realidade efetiva. Sócrates está afirmando

que o que constitui a verdadeira realidade das coisas é algo ideal, que está

além de sua aparência física: e aí está o ponto básico da doutrina platônica do

conhecimento. Henrique C. De Lima Vaz ainda comenta: é mesmo no Fédon

que se pode observar, “nas suas origens, a primeira e mais audaz tentativa de

fundamentação gnosiológico-metafísica do realismo filosófico”.31.

Agora, está aberta, clara e definida, a proposta platônica para a

concepção do inteligível como atributo fundamental das coisas, que constitui a

estrada que abre para Sócrates a possibilidade de dar forma definida às ideias

de Belo, de Bom e de Justo, que continuamente vão se apresentando no

desenvolvimento dos raciocínios:

Volto a uma teoria que já muitas vezes discuti e por ela começo: suponho

(uJpoqevmeno~ ei?nai) que há um belo, um bom, e um grande em si, e do mesmo

modo as demais coisas. Se concordas comigo também admites que isso existe, tenho

muita esperança de, por esse modo, explicar-te a causa mencionada e chegar a provar

que a alma é imortal (Fédon, 100 b).

Lima Vaz define essa proposta platônica de “algo em si” como a

proposta de uma “inteligibilidade absoluta” que se apresenta assim, como o

atributo fundamental de todas as perfeições puras: o Belo, o Bom, o Justo. E

acrescenta: “Essa inteligibilidade, sendo absoluta, só pode ser atributo de um

existir puro, do ser que é verdadeiramente tal (ontos on)”.32

30 LIMA VAZ, Henrique, Nas origens do realismo: a teoria das ideias no Fédon de

Platão. In Platônica. São Paulo: Loyola, 2011, p. 79 31

LIMA VAZ, Henrique. Nas origens do realismo: a teoria das ideias no Fédon de Platão. Em Platônica. São Paulo: Loyola, 2011 p. 69

32 Ibid., p. 79

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A explicação do estudioso brasileiro merece ser destacada porque nos

ajuda a compreender a verdadeira natureza da hipótese platônica: ela não

espera a conclusão do raciocínio para demonstrar-se comprovada e, por

conseguinte, verdadeira. Ao contrário: ela própria determina a possibilidade de

os mesmos raciocínios atingirem a verdade. Outro comentador do Fédon, Paul

Natorp, afirma a respeito:

Deve-se seguramente perceber que a noção de uma “ideia“ é fortalecida ao ser

associada não apenas à definição, mas também ao procedimento da prova. Uma

“ideia” agora não significa mais simplesmente o sentido da predicação (de alguma

coisa) como bela, boa etc. que deve ser mantida em imutável identidade; antes ela

significa especialmente isto: estabelece-se uma pressuposição inicial à qual todas as

conclusões devem ser ligadas; e a lei deve manter-se verdadeira em identidade

imutável ao longo de toda diversidade de casos – casos a que ela não é tanto aplicada,

mas sim, em que se desdobra33

.

Por conseguinte, a importância das ideias do Belo em si, do Bom em si,

do Bem em si não reside no fato de oferecerem coerência lógica aos discursos.

Na verdade, elas são a base certa e verdadeira de qualquer lógica possível e,

ao mesmo tempo, são pressuposto e consequência da possibilidade do

conhecimento das coisas particulares. Para definir essas ideias, Sócrates

escolhe o significado mais profundo da palavra “hipótese”: algo que está

embaixo, como uma base firme; princípios necessários que trazem em si a

própria razão e, por isso, são capazes de nos fazer conhecer o sensível e de

nos proteger do erro: “Por isso digo convictamente, a mim mesmo e aos

demais, que o que é belo é belo por meio do Belo” (Fédon, 100 e).

Então, a phrónesis – ou seja, o movimento sábio da alma voltado para

as coisas praticas da vida, apresentado aos discípulos a partir da metáfora da

moeda que permite de comprar prazeres verdadeiros trocando os falsos – está

baseada sobre o principio lógico e, ao mesmo tempo, ontológico das ideias. Se

a alma é princípio cognitivo do raciocinar – ou seja, a dúnamis que conhece

33 NATORP, Paul. Teoria das ideias de Platão. Uma introdução ao idealismo. São

Paulo: Paulus, 2012, p. 290.

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através dos raciocínios puros – o que ela realmente conhece são as ideias, o

princípio constitutivo de seu próprio raciocinar.

É importante focarmos com atenção esse movimento simples da

phrónesis, que é impulsionado pela alma e constituído pelas ideias. Sócrates

já havia descrito a atitude da alma do filósofo quando, envolvida no raciocinar,

tenta “tocar” a verdade (povte, ou\n h\ d v o{~ hj yukh; th`~

aJlhqheiva~ a{ptetai), “alçando-se ao mais alto ponto, desdenha o corpo

e dela foge, enquanto por outro lado procura isolar-se em si mesma” (Fédon,

65 c-d).

Qual seria, na verdade, esse ponto mais alto que a alma alcança uma

vez recolhida em si mesma, quando está afastada das paixões? Isto será

esclarecido em seguida: o que é justo em si mesmo, o belo em si, o bom em si,

realidades que têm uma própria existência certa, inteligível e não percebível

com os olhos (Fédon, 65 e). Entende-se, então, a simplicidade do ato de

conhecer: uma vez purificada das paixões corporais, a alma isolada e recolhida

em si mesma também já pode conhecer aquilo que existe por si mesmo.

Segundo Lima Vaz, tal é o evento gnosiológico fundamental do Fédon,

que ele definiu como “isomorfismo entre a alma e o inteligível puro, fato noético

primitivo que está no fundamento da teoria das ideias”34.

Na visão platônica, quando a alma se afasta dos prazeres corporais,

reconhece entes verdadeiros e, ao mesmo tempo, percebe a própria natureza

em si, o seu ser algo de definido “por si mesma” (aujth; kaq´ auJth;n),

contemplando algo que é do seu mesmo gênero (suggenh;~ ou\sa: Fédon,

79 d), verdadeiro objeto do próprio conhecimento. Ao afastar-se do corpo, de

fato, a alma reconhece a excelência de si mesma – isto é, as ideias que lhe são

congêneres. Essas ideias são, realmente, as excelências das coisas, o que

persiste nelas de divino e imutável: são entes ou comportamentos que podem

ser contemplados por meio do puro raciocinar.

34 Continua Lima Vaz: “No Fédon e nos diálogos que os seguirão, ele (o fato noético

primitivo) se apresenta ligado às vicissitudes de uma meta-história mítica – a preexistência e a vida após a morte”. A referência aqui é á teoria platônica da reminiscência, segundo a qual o nosso conhecer é de fato um reconhecer algo já conhecido numa existência antecedente. Também dessa fundamental doutrina platônica não poderemos dar conta nesse trabalho. LIMA VAZ, Henrique. Henrique. Nas origens do realismo: a teoria das ideias no Fédon de Platão. In Platônica. São Paulo: Loyola, 2011 p. 78.

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E quem haveria de obter em sua maior pureza esse resultado, senão aquele que

usasse no mais alto grau, para aproximar-se de cada um desses seres, unicamente o

seu pensamento, sem recorrer no ato de pensar nem à vista, nem a um outro sentido,

sem levar nenhum deles em companhia do raciocínio; quem, senão aquele que,

utilizando-se do pensamento em si mesmo, por si mesmo e sem mistura, se lançasse a

caça das realidades verdadeiras, também em si mesmas, por si mesmas, e sem

mistura?”(Fédon, 66 a).

Então, aí está o sentido profundo do comportamento virtuoso que era

ensinado aos discípulos: a alma que vai se afastando cada vez mais das

paixões é ética não somente porque é capaz desse esforço, mas sobretudo

porque, nesse esforço, consegue contemplar a forma excelente das coisas em

si, a forma “purificada”. O que antes se apresentava de forma indistinta e

confusa à alma que ainda não estava suficientemente recolhida em si mesma,

agora é contemplado em si e reconhecido em sua verdade. Quando a alma

chega ao estado purificado das paixões, já pode conhecer a verdade das

coisas. Quem é, então, o virtuoso? Platão parece concluir que o virtuoso não é

aquele que quer ser temperante e, por isso, afasta a alma do corpo, evitando

as paixões. Não: o virtuoso é quem adquiriu a sabedoria de reconhecer,

através dos discursos retos e corretos, o que é a verdadeira temperança e o

que é a autêntica separação entre alma e corpo. E ele faz isso sempre,

continuadamente, buscando o que é verdadeiro, e sempre isolando a alma em

si mesma. Esse fato comporta um paradoxo lógico, a nosso ver ao mesmo

tempo insolúvel e fecundo35.

35 Realmente: em um primeiro ato, a alma se afasta do corpo para se libertar. Mas é

somente depois de liberta e recolhida em si mesma que ela consegue reconhecer, em um segundo ato, o que é verdadeiro. Nessa sequência, a proposta de afastamento da alma é ética porque tenta realizar ou alcançar o que é verdadeiro. Todavia, o paradoxo parece evidente quando observamos que o primeiro ato se reconhecerá ético somente quando e se a aquisição cognitiva do segundo for realizada. Por quê? De fato, é só ganhando, através do conhecimento, um critério certo (“o que é verdadeiro”) que a alma pode reconhecer efetivamente como verdadeira – e, portanto, ética – a escolha de afastarmos a alma das paixões corporais. O paradoxo apresenta-se na seguinte circunstância: se o primeiro ato (que é ético) e é condição de possibilidade do segundo (que é cognitivo), também o segundo é condição de autenticidade do primeiro. Conclusão: isto nos confirma mais uma vez como, na visão platônica, a dimensão ética e a cognitiva sempre apresentam uma fundamentação filosófica recíproca.

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Desse modo, o Fédon apresenta uma proposta de vida filosófica na qual

o campo da escolha ética implica, no difícil processo do conhecimento,

conseguir afastar a alma do corpo e, ao mesmo tempo, contemplar as ideias.

As duas dimensões andam juntas – uma sustentando e completando a outra.

O movimento da busca da verdade, na visão platônica, deve ser

considerado único, próprio para sua dinâmica ética e cognitiva ao mesmo

tempo. De fato, quando bem exercitados para isso, os pensamentos purificados

produzidos pela alma que vive longe das paixões enganadoras do corpo são

capazes de contemplar realidades também elas purificadas: “também em si

mesmas, por si mesmas e sem mistura”, como acabamos de ler. Isso quer

dizer que um pensar purificado pode chegar à definição da virtude em si, do

que é, por exemplo, a própria temperança.

A conclusão parece lógica: pensamentos purificados (voltados para as

coisas em si, sem participação dos sentidos enganadores) fundam os atos

também purificados (isentos das paixões que ofuscam as visões da alma). O

processo pode ser o contrário: o filósofo que purifica a própria alma das

paixões está criando a condição (ética) para “ver” as ideias-formas, produzindo

pensamentos puros. Ainda uma vez, ética e conhecimento se espelham e se

sustentam em único movimento de recíproca purificação: a busca da verdade

como uma partilha ideativa progressiva e contemporânea entre atos que

induzem pensamentos que, por vezes, produzem atos que voltam a produzir

pensamentos, e assim por diante.

Essa cadeia lógico-ideativa que liga atos e pensamentos, tão imensa

quanto imensas são as potencialidades da linguagem humana, é, em outras

palavras, a experiência do filosofar como incessante purificação do próprio

pensar. Destacamos como, em outro trecho, o próprio Sócrates acaba

definindo a phrónesis isto é, o pensamento voltado à prática: “o mesmo

pensamento outra coisa não seja do que um meio de purificação” (Fédon, 69

c).

Essa experiência do pensar como purificação progressiva também é

considerada uma vida quase divina, semelhante à dos deuses e assim

apresentada:

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E quanto à espécie divina, absolutamente ninguém, se não filosofou, se daqui partiu

sem estar totalmente purificado (mh; filosofhvsanti kai; pantelw`~

kaqarw`/), ninguém tem o direito de atingi-la, a não ser unicamente aquele que é

amigo do saber (Fédon, 82 c).

Assim o homem sábio, amigo do saber, poderá descobrir e viver a sua

dimensão divina, reconhecendo e escolhendo corretamente, seja no campo

dos comportamentos virtuosos, seja nos raciocínios, a verdadeira realidade: a

das ideias.

Ainda segundo Lima Vaz, esse duplo registro – o ético e o do

conhecimento – representa a chave fundamental do manifesto programático do

Fédon. O estudioso brasileiro explica o que ele chama de “a dupla face de um

olhar voltado para o passado e de um programa para o futuro”. Ele afirma: o

Fédon, por um lado

é um discurso de consolação que busca evocar a figura ideal de Sócrates e torná-la

rediviva pela demonstração ou logos da vida imortal da alma que, libertada da prisão

do corpo, contempla a realidade inteligível e eterna. Por outro lado, escrito no início da

atividade educativa de Platão, o diálogo se nos apresenta fremente de ambições

programáticas e como que abrindo todas as velas ao sopro do grande ideal que agora

animava Platão: o ideal de uma vida filosófica consagrada inteiramente ao

conhecimento da realidade verdadeira36.

2.4. A separação entre alma e corpo como antecipação metafórica da

morte

Agora é possível definir de forma mais completa o horizonte da vida

filosófica proposta pela Academia platônica através da figura ideal de Sócrates.

Também fica claro que tipo específico de morte tem de ser enfrentada, à qual o

próprio Sócrates havia feito uma alusão:

36 VAZ, Henrique. Nas origens do realismo: a teoria das ideias no Fédon de Platão. Em

Platônica. São Paulo: Loyola, 2011, p. 76.

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Pois o que ignoram, ele e os que lhe fazem coro, é de que modo se estão

preparando para morrer aqueles que verdadeiramente são filósofos, de que

modo eles merecem a morte e que espécie de morte merecem. (Fédon, 64 b).

Trata-se de um caminho existencial difícil de ser empreendido. Será

preciso enfrentar a vida de forma dramática, isto é, como se fosse uma

antecipação da morte – e os filósofos tentam ser conscientes e dignos dessa

realidade paradoxal.

Platão deixou claro que a dinâmica da alma, que é ao mesmo tempo

cognitiva e ética, a conduz à sua própria pátria quando ela, que é invisível, ao

acompanhar os “passos do raciocínio”, está presente na arte de desenvolver

opiniões fundadas em hipóteses estáveis, reconhecendo, assim, o que lhe é

congênere: as ideias, também elas invisíveis. Ora, segundo uma perspectiva

órfica, esse reconhecimento somente poderá ser cumprido de forma definitiva

no Hades:

Mas então a alma, aquilo que é invisível e que se dirige para um outro lugar, um lugar

que lhe é semelhante, lugar nobre, lugar puro, lugar invisível, o verdadeiro país de

Hades, para chamá-lo por seu verdadeiro nome, perto de Deus bom e sábio, lá para

onde minha alma deverá encaminhar-se dentro em breve, se Deus quiser; (Fédon, 80

d).

Dentro dos cânones da doutrina órfica, que impregna parte da proposta

socrática, é impossível alcançar, nesta vida, a separação radical entre alma e

corpo, isto porque ela só é possível pela ação dos deuses no momento da

morte. Qual seria a saída, então? Qual a única via possível para levarmos uma

vida realmente filosófica? Seria possível aspirar a uma sabedoria sempre

impura – ou seja, fruto de uma contemplação das coisas e de uma escolha

ética sempre mesclada com os sentidos enganadores e sem fundamentação

no logos? Não. A proposta platônica é positiva: se o objetivo final da vida

filosófica é o de permitir à alma chegar à verdade sem que o corpo impeça ou

dificulte essa tentativa, é sobre essa possibilidade que repousa a esperança do

filósofo – a de realizar uma viagem vivida como uma purificação gradativa de

seus próprios atos e pensamentos. Por isso, não nos cansamos de repetir:

trata-se de uma viagem ética e epistemológica, ao mesmo tempo.

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Se, por um lado, as perspectivas da doutrina órfica influenciam no Fédon

– e, por isso, boa parte da linguagem socrática parece indicar um êxito preciso

na vida divina que espera o discípulo no Hades – a proposta da morte platônica

é bem outra. De fato, os discípulos da Academia vivem antecipando, em vida, a

experiência de morrer. Porém, a única razão de realizarem a separação entre

corpo e alma é a de alcançar as verdadeiras virtudes que pertencem a esta

última:

Não acontece a mesma coisa com a temperança (swfrosuvnhn) e até com a

temperança no sentido comum da palavra? Porventura a ausência de veemência nos

desejos e uma atitude desdenhosa e prudente não são próprias unicamente daqueles

que, no mais alto grau, sentem desprezo pelo corpo (toi`~ mavlista tou`

swvmato~ ojligwrou`sin) e vivem na filosofia? (Fédon, 68 d)

Podemos definir esta experiência específica como “morte metafórica”.

A prática habilidosa de viver a vida filosófica com discernimento

permitirá ao filósofo enfrentar, sem medo, a própria morte do corpo –

exatamente como está acontecendo, de fato, e não metaforicamente, ao

mestre Sócrates. Este último, com uma linguagem sulcada por influências

órficas, chega a afirmar que, por ter vivido profundamente essa escolha do

passo a passo dos raciocínios pode ser que, para ele, seja até melhor morrer

do que viver. A reação dos companheiros presentes a essa tese extrema é

critica e, como já vimos, é a causa do início da discussão do Fédon (Fédon, 62

a). Portanto, poderíamos entender essa afirmação socrática da seguinte

maneira: a vida filosófica é uma morte metafórica, uma vez que permite ao

filósofo acessar, em vida, os bens invisíveis da alma que, em uma perspectiva

órfica, somente estariam disponíveis no Hades, depois a morte física. Em

outras palavras: quando, no exercício ético, a alma se separa do corpo, é como

se ela morresse.

Vemos o quanto é importante entender essa tensão dialética entre a

morte metafórica e a morte física que Platão proporciona ao leitor. Ela também

é fundamental para captarmos o sentido ético da demonstração da imortalidade

da alma, que é o assunto central do diálogo. O que Sócrates pretende

proporcionar não é tanto a coerência lógica que sustentaria sua teoria, mas sim

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a perspectiva libertadora que os discípulos devem partilhar , uma vez que,

como alunos da Academia, acreditam na necessidade filosófica de enfrentarem

“a morte em vida” – isto é, a separação entre alma e corpo

Ora, Platão percebe que o caminho do distanciamento das paixões é

fonte de incertezas e de perigos para os alunos. Portanto, é necessário

proporcionar-lhes motivações que expliquem claramente como e por que suas

almas sobreviverão a essa situação difícil. É preciso explicar-lhes que elas não

morrerão – mas que, pelo contrário, viverão eternamente, conhecendo as

coisas divinas que lhe são congêneres, afirmando, assim, todas as suas

maravilhosas potencialidades. A respeito disso, Gadamer escreve:

(..) Não se deveria nunca esquecer que no caso da “demonstração” de Platão, trata-se

de um mero estágio da exposição dialógica, a qual mais profundamente concerne não

a imortalidade, absolutamente, mas mais o que constitui o verdadeiro ser da alma –

não a respeito de sua imortalidade ou mortalidade, mas a sua vigilante compreensão

de si mesma e da realidade.37

O comentário de Gadamer nos faz entender como a proposta platônica

vai além da doutrina órfica, segundo a qual a alma passa por um julgamento

após a morte em função de suas ações em vida, assim como se pode ler neste

trecho:

Assim pois, companheiro, se é verdade o que acabamos de dizer, que imensa

esperança existe para aquele que se encontra nesta altura de minha rota. Lá, no além,

se tal deve acontecer em algum lugar, ele irá possuir com abundância tudo aquilo que

exigiu de nós a realização de um imenso esforço, em nossa vida passada. E assim

esta viagem, esta viagem que ora me foi prescrita, é acompanhada de uma feliz

esperança; e o mesmo acontece a quem quer que possa afirmar que seu pensamento

está pronto e o possa dizer purificado (Fédon, 67 b-c).

2.5. A vida filosófica como experiência humana da realidade divina

37 GADAMER, Hans-Georg. The proofs of imortality in Plato´s Phaedo, in GADAMER,

Hans Georg, Dialogue and Dialetctic. Yale University, 1980, p. 29.

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Assim, entre a morte física – ponto culminante da vida humana – e a

postura de uma vida filosófica, estabelece-se certo nexo de causalidade. Afinal,

esta última determina a qualidade da primeira, na medida em que o filósofo

chega ao Hades totalmente purificado e atingirá a vida divina. A partir dessa

perspectiva escatológica, a escolha de afastar a alma dos prazeres é uma

postura que, de fato, consegue antecipar a experiência da morte propriamente

física. É como se essa fosse uma espécie de morte “órfica” do corpo, como se

permitisse, ao filósofo, conhecer o mundo divino a partir do mundo material.

Assim, a vida filosófica acaba sendo apresentada ao discípulo como

uma dialética constante entre uma dimensão simbólica da existência (isto é,

preparar-se para morrer vivendo na imaginação uma morte ainda não real) e

uma dimensão experiencial (isto é, o morrer de fato para as exigências do

corpo, que acabam sendo afastadas totalmente para permitir a vida cognitiva

da alma). Assim, a vida ética se define como uma antecipação metafórica da

morte física mediante o afastamento dos prazeres, mesmo quando se trata de

conhecer a realidade material. Essa experiência não só antecipa

imaginativamente a morte, como também antecipa o bem (órfico) que a morte

traz consigo. E o faz de forma plena, pelo fato de o filósofo ter amado o

conhecimento ao longo de toda a sua vida. Então, ele merece vivenciar a

contemplação da pura sabedoria. Sócrates nos leva a esta conclusão:

Eis o que deve pensar, meus companheiros, um filósofo, se realmente é filósofo: pois

nele há de existir a forte convicção de que em parte alguma, a não ser num outro

mundo, poderá encontrar a pura sabedoria (Fédon, 68 b)

Agora é possível entender muito bem por que Sócrates não pode estar

triste nessa sua última hora: é nesse momento que está se realizando o evento

capital almejado por ele durante sua vida inteira:

(..)bem estranho seria que, assim pensando, durante toda sua vida, que não tendo

presente ao espírito senão aquela preocupação, quando a morte vem, venha a irritar-se

com a presença daquilo que até então tivera presente no pensamento e de que fizera

sua ocupação. (Fédon, 64 a).

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Concluindo: o centro da proposta socrática da vida filosófica, assim

como acaba sendo apresentada na primeira parte do Fédon, é tocar a verdade

com alma e pensamento purificados para poder reconhecer as virtudes e as

ideias em si. Essa experiência é um processo que antecipa metaforicamente a

morte física, pois prepara o filósofo – ainda nesta vida – para a contemplação

ética e noética da sabedoria pura e absoluta, através do exercício de um

raciocinar reto e correto38.

As crenças órficas acrescentam que essa experiência divina será

plenamente realizada no mundo divino, onde a alma, que é imortal, um dia

chegará. Essa experiência é a razão da grande esperança dos homens que em

vida se purificaram suficientemente (Fédon,141c: oiv filosofiva

iJkanw`~ kaqhravmhenoi): a esperança de receber o belo prêmio (kalo;n

a\qlon) de chegar a uma morada pura (eij~ th;n katara;n

oi[khesin) no Hades, e lá permanecer para sempre, absolutamente sem

corpo. Vale a pena ler diretamente as belas palavras que Sócrates escolhe

para sua exortação final:

Pois bem, meu caro Símias, são estas as realidades, cuja exposição fizemos por alto,

e, que nos devem levar a tudo fazermos por participar da virtude e da sabedoria nesta

vida (ajreth``~ kai; frwnhvsew~ ejn tw``/ bivw/). Bela é a recompensa e

bela a esperança (Fédon, 114, c)

Todavia, se para o homem que participa aos cultos órficos a

recompensa de uma vida ética está nos bens esperados no mundo divino, para

o filósofo o prêmio é viver bem a própria vida terrena, contemplando nela sua

realidade divina. A esse respeito, Natorp nos oferece uma explicação – a nosso

ver, decisiva:

38 Escreve Lima Vaz: “O Fédon é um „livro de consolação‟ Assim a vida filosófica que,

para a alma, é assumir o próprio destino e orientá-lo para o real verdadeiro tem o seu fim na theoria que é coroamento do lógos. O lógos é, portanto, uma atividade fundamental da alma enquanto comunicação com o inteligível (as Formas). Por ele, a vida individual adquire um

conteúdo de valor e se faz superação da morte”. VAZ, Henrique C. Eros e logos. Natureza e educação no Fedro platônico. Em Platônica. São Paulo: Paulus, 2011, p. 11.

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A vida do filósofo, ouvimos, é “exercitar-se em morrer”, isto é, na elevação do intelecto

acima do mundo dos sentidos, na visão do eterno. A existência continuada do indivíduo

é aceita, ou pelos menos esperada; o interesse não se concentra nela, mas na

participação no eterno que o filósofo já conseguiu pensando nas ideias, uma

participação pela qual ele não precisa esperar o além-túmulo. O tema não é a

esperança numa vida futura, mas a realidade da vida eterna sempre possível aqui, a

vida no eterno39

.

Portanto, a própria escolha de Sócrates de enfrentar a morte dialogando

com seus companheiros é o melhor testemunho de sua escolha de vida

(Fédon, 90 d - 91 a). É a escolha que caracteriza a Academia platônica: o

discípulo deve permanecer firme no que julga verdadeiro à luz de um atento

raciocinar, para buscar o equilíbrio e não se perder por causa das paixões que

confundem e distorcem a busca da verdade. Esse perigo, todavia, sempre

acompanhará a vida do filósofo. O raciocinar do homem será continuamente

exposto às perturbações do corpo, capazes de ofuscar a clara visão da alma. A

metáfora da navegação arriscada indica tudo isso. O próprio Sócrates parece

estar muito consciente desse fato e isso parece evidente quando ele fala aos

companheiros:

Pois estou exposto, visto que se trata apenas da morte, a não me comportar como

filósofo, mas sim à maneira dos homens completamente iletrados que só pensam em

levar a melhor (Fédon, 91 a).

2.6. Desejo, a maravilhosa prisão

Como se sabe, Fédon é considerado um dos diálogos platônicos no qual

aparece de forma mais acentuada a visão pessimista sobre a tarefa do corpo

na busca filosófica da verdade – e, em alguns casos, fortemente negativa. Leia-

se, por exemplo, nestes dois trechos:

39 NATORP, Paul. Teoria das ideias de Platão. Uma introdução ao idealismo. São

Paulo: Paulus, 2012, p. 283.

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É este então o pensamento que nos guia: durante todo o tempo em que tivermos o

corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos

completamente o objeto de nossos desejos! Ora este objeto é, como dizíamos, a

verdade. (...) O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores,

imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio

(sim, verdadeiramente é o que se diz) não recebemos na verdade nenhum pensamento

sensato; não, nem uma vez sequer (Fédon, 66 b);

(...) Por todo o tempo que durar a nossa vida, estaremos mais próximos do saber,

parece-me, quando nos afastarmos o mais possível da sociedade e união com o corpo,

salvo em situações de necessidade premente, quando, sobretudo, não estivermos mais

contaminados por sua natureza, mas pelo contrário, nos acharmos puros de seu

contato, e assim até o dia em que o próprio Deus houver desfeito esses laços (Fédon,

67 a).

Segundo alguns estudiosos, passagens como essas, em que Platão

recupera valores da uma tradição órfico-pitagórica, teriam uma relevância mais

metafórica que epistemológica, ao fornecer indicações úteis à descrição do

caminho filosófico proposto aos discípulos da Academia40.

A questão que Sócrates pretende comunicar claramente não parece,

com efeito, uma proposta ideológica de um primado espiritualista da alma

sobre o corpo. Ao contrário, ela é fruto de uma consideração experiencial de

profunda sutileza: a alma que não sabe identificar noeticamente seus próprios

desejos fundamentais (assim como os entes “exteriores” que a vista apresenta

ao seu olhar) permanece em “estado de contaminação”.

Quando a alma permanece na total ignorância de si mesma (en pavse

ajmaqiva: Fédon, 82, e) este é um sinal de que os desejos que ocupam as

ações da pessoa são os desejos do corpo. É que ela não sabe desejar outra

coisa senão o que a afeta imediata e corporalmente. Sócrates descreve essa

dinâmica entre alma e corpo como uma prisão:

40 Por exemplo: ROBINSON, Thomas. Os gregos e conceito de alma de Homero a

Aristóteles. São Paulo: Annablume, 2010, p. 105.

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O que é maravilhoso nesta prisão, a filosofia bem o percebeu, é que ela é obra do

desejo, e quem concorre para apertar ainda mais as suas cadeias é a própria pessoa.

(Fédon, 82 e).

Aqui, nos vemos diante de uma descoberta relevante, que entra com

precisão fenomenológica no campo anímico ainda não explorado pela tradição

pitagórica à qual pertenciam alguns dos seus companheiros presentes: a

vivência do desejo, definida por Sócrates como “maravilhosa”. Aliás, ele parece

nos dizer que também é uma experiência ambígua e surpreendente, pois trata-

se do sentimento terrível de desejar sua própria prisão. Afinal, o texto nos

indica isto: aquele que deseja sem “consciência” (isto é, sem que a alma possa

dizer qual é a excelência desse desejar) vive na prisão dos impulsos mais

fortes. Nessa condição de estar tão estreitamente ligada ao corpo, tão

amarrada às paixões que não lhe pertencem fundamentalmente e que a levam

longe de sua própria natureza “formal”, a alma chega a desejar estranhar-se a

si mesma. É assim que ela vai ao encontro do “mal supremo”: o de crer em

algo como real e verdadeiro, embora não o seja (Fédon, 83 c).

Essa é a condição paradoxal na qual a vida filosófica se inicia. A alma

começa seu caminho em uma condição na qual emoções e forças ambíguas a

ligam ao corpo. Essa fase inicial poderia ser definida como pré-lógica e pré-

ética – e o discípulo somente poderá tomar consciência de sua condição

examinando-a aos poucos. Platão nos traz o exemplo da experiência de cada

dor e prazer (ejkavsth hjdonh; kai; luvph), os quais

possuem uma espécie de cravo com o qual pregam a alma ao corpo, fazendo, assim,

que ela se torne material e passe a julgar a verdade das coisas conforme as indicações

do corpo (Fédon, 83 d).

O exemplo escolhido nos ajuda a compreender melhor que tipo de

purificação está sendo proposta: a de transformarmos intelectualmente as

energias indistintas e poderosas que amarram a alma, para melhor lidar com

elas. Assim, reconheceremos intelectualmente os verdadeiros prazeres e as

verdadeiras dores através das ideias em si, que sustentarão a vida ética.

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Desse modo, estaremos preparados para escolher uma qualidade de prazer e

nos afastaremos de uma qualidade de dor41.

Ao fazer isso, a alma consegue explicar suas razões libertando-se do

corpo por meio da temperança – fato que Platão descreve magnificamente

neste trecho que vem logo a seguir:

Assim digo, o que os amigos do saber não ignoram é que uma vez tomadas sob seus

cuidados, as almas cujas condições são estas, a filosofia entra com doçura a explicar-

lhes as sua razões, a libertá-las, mostrando-lhes para isso de quantas ilusões está

inçado o estudo que é feito por intermédio dos olhos, tanto como o que se faz pelo

ouvido e pelos outros sentidos (Fédon, 83 a).

2.7. O papel do desejo na natureza do ato filosófico

E aqui chegamos a esse último e estimulante assunto, que conclui a

exposição de alguns dos elementos principais do projeto de vida filosófica

apresentados no Fédon. Nessa proposta platônica proporcionada por esse

diálogo, vemos que a vida filosófica se confirma como o perfazer do caminho

ascético da alma. Ela começa a trilhá-lo ao reconhecer e purificar a experiência

ambígua das paixões vividas sem discernimento. Então, irá aprendendo aos

poucos a desejar por si mesma, enquanto o corpo deixará de desejar de modo

impositivo. Mediante um afastamento estratégico das paixões e do uso correto

de raciocínios filosóficos fundados sobre hipóteses verdadeiras, a alma

chegará a descobrir a possível excelência (virtude) como boa medida das

paixões corpóreas já purificadas. Portanto, filosofar é o conjunto de todas

essas operações, também descritas como experiência de morte metafórica,

navegação arriscada no mar da vida, um ato integral de purificação da força

impetuosa do desejo humano que liga “como um cravo a alma ao corpo”,

através da experiência da dor e do prazer.

41 Note-se como, logo no começo do diálogo, apresenta-se a questão que chama a

atenção dos companheiros de Sócrates, a de uma inédita condição da alma que experimenta ao mesmo tempo dor e prazer (Fédon, 59 a). No segundo livro das Leis, encontra-se também a reflexão sobre dor e prazer como as primeiras sensações das crianças. É aqui que Platão define a educação (paideia) como a prática correta de lidarmos com a dor e com o prazer através do raciocínio (Leis, 653 b-c).

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Todavia, esse último assunto do desejo – essa maravilhosa prisão –

merece uma reflexão cuidadosa, por ser uma experiência pré-ética e pré-lógica

da alma. Por isso, será com essa reflexão que logo mais iniciaremos o estudo

do outro diálogo escolhido neste trabalho, O Banquete. Assim, pretendemos

compreender melhor os limites dessa dimensão negativa do desejo,

evidenciada no Fédon, mas que será apresentada de forma explicitamente

positiva em O Banquete. Para tanto, destacaremos as potencialidades

subjacentes a essa experiência humana do desejo, que, embora não

explicitadas no Fédon, podem ser pelo menos supostas a partir de algumas

perguntas específicas.

É claro que, no Fédon, o desejo não se afigura valorizado no processo

do conhecimento, pois é definido como “o cravo” que liga a alma ao corpo,

impedindo a separação. Mas, por outro lado, parece necessário entendermos

melhor em que sentido as necessidades corpóreas e os desejos humanos

ofuscam a alma. Perguntamos: se a alma não tivesse paixões para purificar,

poderia nunca chegar a se manifestar na experiência existencial dos

discípulos? Será que a maravilha do desejo provoca só consequências

”negativas” para a alma do filósofo? Enquanto não tentarmos compreender

melhor o movimento interno da alma e sua ligação com o desejo, correremos o

risco de limitar a ética platônica apenas à postura ferrenha de homens que

decidem se afastar das paixões para chegar a uma recompensa futura no

Hades, dentro dos cânones da doutrina órfica. Portanto, precisamos

reconhecer o possível papel positivo do desejo, percebendo melhor a natureza

do ato ético apresentado no Fédon. Perguntamos, então: “Por que o filósofo

deseja, de fato, ser ético?”

Embora na primeira parte do Fédon falte uma análise específica desse

assunto, a natureza dinâmica e contínua do desejo humano não só parece

anteceder o processo de escolha moral e gnosiológica, como também, ao

mesmo tempo, torna-o sempre possível: afinal, os desejos que o discípulo

precisa purificar (e que acabarão definitivamente só com a morte física) são a

garantia da continuidade da vida ética, que usa, por assim dizer, a matéria

bruta das paixões ainda não dominadas para se definir no seu exercício de

temperança.

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Nessa nossa leitura do texto, vemos que a dimensão pré-anímica do

desejo – que liga (inicialmente sem ordem) alma e corpo, “como se possuísse

uma espécie de cravo” – provoca, de fato, a escolha ética de purificação e a

acende, para que ela desenvolva um processo virtuoso, de aperfeiçoamento do

desejar. É por isso que pretendemos compreender melhor: por que e como o

desejo de ser ético se acende na alma do discípulo?

A pergunta parece merecer uma resposta, até porque o desejo humano,

embora progressivamente purificado, nunca perde completamente a própria

propulsão. De fato: sua força interna, a dúnamis, continuará alimentando o

incessante processo de conhecimento da alma, que não deixa de desejar a

contemplação das coisas excelentes que lhe pertencem por natureza, como as

virtudes e as ideias em si, até a definitiva separação do corpo na morte física.

Parece ser necessário, então, esclarecer a natureza dessa problemática

do desejo, entendido como dúnamis pré-ética e pré-lógica, que antecede e

acende o processo de escolha ética e gnosiológica – ou seja, todo o

movimento cognitivo da alma. Se essa questão se apresenta no Fédon, ela

aparece apenas acenada, e não aprofundada. Portanto, essa pista de reflexão

nos leva a procurar respostas em outro diálogo, O Banquete, que destaca o

mesmo papel gerativo do desejo no processo de conhecimento.

No Fédon, o filósofo amante da sabedoria procura a própria felicidade, a

eudamonía ao aceitar uma morte que o levará a viver no mundo divino, com os

deuses. Em O Banquete, o filósofo amante da sabedoria escolhe outro

caminho para buscar, ao mesmo tempo, a maior alegria e a imortalidade (O

Banquete, 212, a). Para tanto, ele não precisará ser sábio nem ignorante, mas

mediano (O Banquete, 204 b). E como isso acontecerá? Por meio da intensa e

sempre paradoxal experiência erótica – caminho preferencial para ele chegar à

posse da verdadeira virtude, segundo Sócrates (O Banquete, 212 b).

Veremos então como em O Banquete, a figura do verdadeiro filósofo e

com ela o papel do desejo no processo de conhecimento tomará outra luz,

apresentada em outro contexto literário e temático, em outro momento da

reflexão platônica sobre a própria doutrina. Os dois diálogos, no comum

horizonte da visão platônica, partilham uma relação profunda que merece ser

destacada. Escreve Lima Vaz:

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O Fédon e o Banquete, são quase contemporâneos. A intima relação que os une,

dentro de motivos aparentemente antinômicos, é uma das mais surpreendentes

criações do gênio de Platão. No Fédon a alma se apresenta como expressão (lógos)

do inteligível (eídos-ousía). No Banquete ela mostra em si outra estrutura fundamental:

o „desejo (eros) que para além da pura comunicação aspira à intima comunhão42

.

42 LIMA VAZ, Henrique. Eros e logos. Natureza e educação no Fedro platônico. Em

Platônica. São Paulo: Loyola, 2011, p. 12.

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CAPÍTULO III

O Banquete: do Eros mítico ao lógos humano

3.1. A virada filosófica a partir do elogio de Aristófanes

Como se sabe, O Banquete relata o elogio coletivo a Eros, celebrado

ritualmente em Atenas, na casa do poeta Agatão, para festejar a vitória na

competição teatral em que apresentou sua primeira tragédia, no ano de 416

a.C. Aos ilustres convidados, entre eles também Sócrates, é pedido um elogio

pessoal, “o mais belo possível” a Eros, deus tanto antigo quanto poderoso mas

que, até então, não havia recebido um elogio digno de sua fama. O diálogo se

apresenta como uma sequência de belos discursos sobre o tema do Amor,

tecidos em ligações sutis – referências cruzadas aos acontecimentos da vida

política da cidade e à fama dos convidados, bem como aos modos das

relações amorosas entre eles.

Na sequência dos vários tributos a Eros que compõem esse maravilhoso

diálogo platônico, o texto oferece vários indícios, verdadeiros sinais

argumentativos reconhecíveis, ou até explicitações temáticas que antecipam ou

aprofundam a questão fundamental da natureza gerativa de Eros e de seu

manifestar-se nos belos discursos dos amantes. Essa questão é claramente

explicitada por Diótima (O Banquete, 206 a) e é o centro de nosso foco

hermenêutico:

É com efeito, Sócrates, dizia-me ela, (Eros) não é do belo o amor, como pensas.

– Mas do que é enfim? –

– Da geração e da parturição no belo.

– Seja, disse-lhe eu. (O Banquete, 206 e)

Mas é no quarto elogio, atribuído a Aristófanes, o comediógrafo, que

vemos acontecer a verdadeira virada filosófica, a partir do resgate de um antigo

mito apresentado de forma inusitada. Ora, o inusitado é exatamente o campo

da comédia, que, ao contrário da tragédia, permite à plateia rir de suas próprias

experiências projetando-as nos personagens – e, neste caso, de seu próprio

processo de conhecimento, observando-o de perto, projetado em uma cena. E,

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é importante salientar, aqui temos uma plateia muito especial: os mais ilustres

e ilustrados convidados, à volta de uma mesa de banquete, onde o prato

principal é o elogio a Eros.

Aristófanes pretende oferecer um discurso de iniciação, que apresente

aos ouvintes o poder (thvn duvnamin) de Eros, mesmo porque esse poder

não é reconhecido pelos homens. Além disso, esse intento tem uma

perspectiva e uma condição: os que ouvirão seu discurso podem tornar-se

mestres de outros, mas, primeiro, é preciso que aprendam “a natureza humana

e suas vicissitudes (eijshghvsasqai th;n ajnqrwpivnhn fuvsin kai

ta; paqhvmata aujth~)” (O Banquete, 189 c-d)43

Segundo o relato do comediógrafo, em sua origem, a natureza humana

tinha três sexos: macho, fêmea e andrógino. Esses seres possuíam uma

conformação física diferenciada, que os tornava muito poderosos: eram

esféricos, tinham dois rostos opostos em uma única cabeça, quatro braços e

quatro pernas, e por isso eram capazes de andar rodando com muita

velocidade. A característica desses seres duplos estava nos pensamentos sem

medida, no vigor e na força terrível que os possuía e tornava possível a

escalada ao céu para investir contra os deuses.

Para evitar esse risco, os deuses decidiram primeiro cortar os seres

humanos em duas partes, voltando-lhes o rosto e a banda do pescoço para o

lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação fosse mais

moderado o homem (O Banquete, 190 e).

Essa escolha de Zeus fez com que os homens saíssem à procura de

sua antiga metade e também provocou a morte deles, pois passavam o tempo

todo juntos, deixando-se de fato morrer. Essa nova situação acabou

provocando uma segunda intervenção divina: Zeus decide deslocar os genitais

deles para a frente de seus corpos, para que “se processasse a geração um no

43 Um dos primeiros verbos escolhidos por Platão nesse trecho pertence à linguagem dos

Mistérios (eijshghvsasqai) (CAVALCANTE DE SOUZA, José. Op. cit. p. 22). Notamos que

Sócrates escolheu apresentar-se, no começo do diálogo, como especialista somente nas questões de amor (O Banquete, 177 d), e, em seguida, relata ter aprendido esse saber pela sacerdotisa Diótima (O Banquete, 201 d). Essa iniciação socrática ao Belo/bem se apresentará no desenvolvimento do discurso da sacerdotisa, relatado por Sócrates como a experiência que precede e parece legitimar a contemplação das ideias após a subida da scala amoris (O Banquete, 209 e; 210 e).

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outro”, no caso de serem macho e fêmea. Caso se tratasse de um homem

procurando outro homem:

que pelo menos houvesse saciedade em seu convívio e pudessem repousar,

voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da vida. Então há tanto tempo que o

amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa

antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza

humana (O Banquete, 191 d).

Por causa desse passado mítico, hoje cada homem é “símbolo, alguém

que procura o próprio complemento” (O Banquete, 191 d), “sempre desejando

o que é do mesmo gênero” (ajei; to; suggene;~ ajspazovmeno~) (O

Banquete, 192 b)44.

Para explicitar quais são os homens que derivam do antigo corte divino,

Aristófanes descreve alguns jovens que se comprazem “em deitar-se com os

homens e a eles se enlaçarem”. O mesmo comediógrafo acrescenta que se

trata, nesse caso, dos meninos “de natural mais corajoso” (O Banquete, 192 a).

Logo depois, talvez percebendo que seu discurso poderia dar a impressão de

juntar muito rapidamente virtude e paixão amorosa, e que essa atitude poderia

ser facilmente confundida com um evidente despudor, ele convida seus

ouvintes a perceberem esse comportamento como uma consequência de

“audácia, coragem e masculinidade”, em quanto esses jovens

44 Aristófanes afirma que, antes, é preciso conhecer a natureza humana e suas

vicissitudes (paqhvmata) . É essa a tradução que Cavalcante nos oferece (CAVALCANTE DE

SOUZA, José. Op. cit. p. 22) – a mesma escolha que encontramos numa recente tradução para o italiano: vicissitudini (PLATÃO, Simposio. Trad. Matteo Nucci. Torino: Einaudi, 2009, p. 79.). Todavia, achamos interessante assinalar a escolha diferente apresentada por Donaldo Schüler, que propõe para o português a palavra “características”. (PLATÃO. O Banquete. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 61). Se considerarmos que o próprio Platão utiliza o

mesmo termo (paqhvmata) para explicar as afeições da natureza humana (A República, Livro

IV 439 d), poderíamos supor que Aristófanes também esteja propondo a seus ouvintes um discurso sobre as afeições da alma, dentro da maravilhosa moldura de um relato mítico sobre a natureza divina dos homens. Afinal, a alma é o princípio primordial auto-gerativo que funda e ao mesmo tempo revela a natureza divina dos seres humanos.

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acolhem o que lhes é semelhante. Uma prova disso é que, uma vez

amadurecidos, são os únicos que chegam a serem homens para a política (O

Banquete, 192 b)45

.

Com efeito: Aristófanes parece nos sugerir que os amantes desejam

passar muito tempo juntos, atraídos por uma virtude reconhecida como uma

característica própria da presença do amado. A ligação erótica que os une se

apresenta de fato, nessa bela imagem, como um círculo virtuoso e espontâneo:

assim, o prazer da comunhão não parece ser despudor, mas sim uma

experiência de maravilhosa força ligadora.

E quem está ligando homens congêneres entre eles por “audácia,

coragem e masculinidade” é justamente Eros, “que nos dirige e comanda”,

doador “dos maiores benefícios” porque isso é simplesmente “o melhor”:

conseguir um bem-amado, de natureza conforme ao seu gosto; e se disso

fôssemos glorificar o deus responsável, merecidamente glorificaríamos o Amor,

que agora nos dá as maiores esperanças, se formos piedosos para com os

deuses, de restabelecer-nos em nossa primitiva natureza e, depois de nos

curar, fazer-nos bem aventurados e felizes (O Banquete, 193 c-d).

3.2. O mito atualizado: a fundamentação divina da extraordinária

amizade

Quando, na segunda parte de seu elogio, Aristófanes explica o sentido

do mito que acabou de apresentar, a nosso ver estamos diante de uma das

passagens mais importantes de O Banquete. Aristófanes “atualizará”

explicitamente o conto mítico ao apresentar a condição dos seres humanos e o

poder que Eros continua tendo sobre eles. É desse modo que Platão indica,

45 CAVALCANTE, José. Op. cit.,p. 24; NUCCI, Matteo. Op. .cit., p. 87. Ambos

destacam nos comentários deles a mordaz e evidente ironia de que Platão não nos poupa quando liga o assunto da homossexualidade ao da carreira política – assunto muitas vezes presente nas comédias propostas pelo mesmo Aristófanes. Parece-nos que isso não tira a possibilidade de ver em plena operação a habilidade de Platão de criticar o que merece ser criticado, sem perder de vista o que de positivo está potencialmente escondido num comportamento que acaba sendo desviado: a relação erótica como fonte de possível conhecimento e alcance de virtude para a vida civil. Sobre o caráter educativo e político da iniciação amorosa destacamos como segundo Lima Vaz, na visão platônica, “os fundamentos de uma paideia real” definem a verdadeira politeia. Cf: LIMA VAZ, Henrique. Op. cit., p. 16.

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por meio de um relato a respeito da natureza divina e poderosa do gênero

humano, a fundamentação possível de uma verdade intelectual descoberta por

esse gênero, isto é, a de Eros como guia que “nos dirige e comanda”, natureza

que merece ser glorificada porque ela é de

máxima utilidade, levando-nos ao que nos é familiar e que, para o futuro, nos dá as

maiores esperanças, se formos piedosos para com os deuses, de restabelecer-nos em

nossa primitiva natureza e, depois, de nos curar, fazer-nos bem aventurados e felizes

(O Banquete, 193 d).

É este o resultado que, entre outros, nos oferece O Banquete, fruto da

típica virada heurística que é a marca registrada da concepção platônica da

filosofia: a elaboração da verdade mítica – neste caso, sobre a dúnamis de

Eros – para chegar gradativamente à verdade do logos acerca do mesmo deus

e da mesma dúnamis. Essa operação platônica tem uma relevância

hermenêutica específica em O Banquete. Os elogios precedentes

apresentaram as ações dos deuses a partir da seleção de algumas de suas

características. Agora, Aristófanes faz uma escolha diferente. Ele proporciona

uma história, uma elaboração, até um diálogo entre os deuses e os homens,

para apresentar a tentativa destes últimos de responder a respeito do sentido

profundo da própria experiência de vida46. O elogio de Aristófanes proporciona

a ligação fecunda entre a elaboração do mito e a prática filosófica de fazer

perguntas sobre a existência, como mostraremos. A fundamentação mítica da

compreensão da experiência de Eros culminará no discurso de Sócrates, o

qual, explicitamente, se apresenta como quem pretende dizer a verdade sobre

Eros (O Banquete, 198 d; 199 b). Lemos, agora, um trecho entre os mais

famosos do diálogo. Diz Aristófanes:

Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade, tanto o

amante do jovem como qualquer outro, então extraordinárias são as emoções que

sentem de amizade, intimidade e amor, a ponto de não quererem por assim dizer

separar-se um do outro nem por um pequeno momento. E os que continuam um com o

outro pela vida afora são estes os quais nem saberiam dizer o que querem que lhes

46 Cf. ROWE, Christopher J. Il Simposio di Platone. Cinque lezioni con un contributo sul

Fedone. Auflage: Academia Verlag, p. 34.

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venha da parte de um ao outro. A ninguém, com efeito, pareceria que se trata de união

sexual e que porventura em vista disso que um gosta da companhia do outro assim

com tanto interesse (megalhv~ spoudh`) (O Banquete, 192 c).

O que acontece aqui? Os amantes estão vivenciando filía, eros, o

maravilhar-se, a intimidade. E passam a vida inteira juntos, mas não sabem

dizer qual é a causa dessa comunhão intensa e do ímpeto que a caracteriza

Enquanto os amantes estão gozando do vigor gratuito, ligante e indistinto

doado por Zeus, chega Hefesto, o deus coxo da metalurgia, com suas

ferramentas nas mãos, e lhes pergunta:

Que é o que quereis ó homens? Ficais assim o mais possível na vida inteira, e além da

vida mesma, até lá, no Hades? Vedes se isso é o vosso amor se vos contentais se

conseguirdes isso. (O Banquete, 192 d)

Essa pergunta sobre o desejo dos homens é, a nosso ver, uma das mais

cruciais de todo o diálogo: assim como no Fédon lemos que o homem

necessita de uma palavra divina que impulsione e oriente sua perigosa

navegação filosófica no mar da vida (Fédon, 85 d), agora a palavra primordial

do deus Hefesto cumpre a mesma tarefa de orientar dinamicamente as

escolhas do homem. Será sobre sua análise que iremos fundamentar e

articular gradativamente nossa apresentação do poder gerativo de Eros.

3.3. A pergunta de Hefesto: a busca de um quid no pré-lógico

Olhemos bem o esquema que o texto nos propõe: os amantes

apaixonados estão experimentando uma filía, maravilhosa, ligadora, gratuita:

desejam simplesmente permanecer nesse estado amoroso. Desconfiam que a

causa de tudo isso seja algo que supera a mera atração física, mas não têm

palavras para explicar o que seja essa ligação tão intensa. De fato, eles não

têm lógos para tal vivência, não têm consciência: permanecem felizes num

estado que podemos definir como “pré-discursivo”. Os amantes não sabem

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dizer a causa do surpreendente encontro que os liga. Talvez seja mesmo por

isso – como para quebrar esse particular estado afásico dos amantes – que

sobrevenha uma palavra forte, não humana, a palavra divina. O que pergunta

Hefesto aos amantes? De fato o que lhes irá propor?

Quando vislumbramos a potencialidade teorética contida na pergunta,

imaginamos o que Hefesto está proporcionando aos amantes: uma abertura

para um “espaço” de reflexão humana sobre a dúnamis impetuosa que liga

intensa e reciprocamente os homens (oJ e[rw~ e[mfuto~:O Banquete, 191

d). É um traço daquela antiqua condição mítica, que prendia o gênero humano

ao corpo vital circular e simbiótico antes do corte de Zeus. Essa forte conexão

entre o estado atual dos amantes e o estado mítico primordial permite que a

pergunta de Hefesto não questione o desejo em si, como se este fosse um “ato

potencial”, uma função específica do homem como indivíduo. A pergunta divina

é explicitamente dirigida para questionar a natureza do desejar como “o desejar

de alguém” – isto é, um desejar já em ato47, presente com sua intensidade real,

fisicamente visível no contato amoroso dos amantes, magnificamente descrito,

como vimos, por Platão: note-se a expressão final de 192, d

(katakeimevnoi~ ejpista;~) que traduzida de forma literal pode significar

também: estando em cima de.

Parece importante destacar esse aspecto experiencial da pergunta

divina de Hefesto. Ela bem sintetiza que tipo de elaboração mítica Platão está

nos oferecendo. Dirigida aos amantes, ela não é uma pergunta meramente

lógica, mas, sim, ao mesmo tempo, antropo-lógica e teleo-lógica, enquanto

retoma o assunto inicial do elogio aristofânico – isto é, “a natureza humana e

suas vicissitudes” (O Banquete, 189 d). A pergunta de Hefesto pretende

transformar a inclinação impetuosa e ligadora da atração erótica dos homens

relacionando-a simbolicamente a uma nova experiência gerativa de sentido,

fruto de um domínio inédito da antiga e divina disposição natural.

47 Quem sustentará a tese do desejo que é sempre desejo de algo será

Sócrates/Diótima (O Banquete, 200 e).

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Acompanharemos esse processo inédito nas linhas e entrelinhas do

texto realizando nossa análise passo a passo, fundamentados em algumas

avaliações que apresentaremos.

3.4. “Que é que quereis, o homens?”: o flagrante do desejo

Consideramos primeiramente: que tipo de pergunta é a de Hefesto?

Trata-se do questionamento precisamente filosófico, da interrogação heurística

a respeito do desejo ali concretizado: “Que é que quereis, o homens?” (Tiv

e{sq o{ bouvlesqe: O Banquete, 192 d). É a primeira vez que essa

pergunta, tipicamente socrática, comparece em O Banquete, assinalando a

intenção de Platão de definir o desejar no exato momento do desejo. Essa

intervenção divina, esse recurso literário do “deus ex-machina”, típica do teatro

grego, cria mais uma situação inusitada e, portanto, cômica. Essa quebra que

faz entrar um deus no palco do diálogo entre Aristófanes e seus ouvintes

promove uma verdadeira virada filosófica. É a “deixa” para que se inicie o

discurso subsequente, de Sócrates. A partir desse ponto, a doutrina platônica

sobre o poder gerador de Eros, que subjaz na trama da sequencia dos elogios

será colocada, para ser, aos poucos, sempre mais explicitada. Inicia-se o

convite para a reflexão, o começo único e necessário de uma postura

primordialmente intelectual que procura ler a própria experiência humana a

partir do interior. O mesmo convite é repetido, logo depois: “Mas vede se é isso

o vosso amor e se vos contentais se conseguirdes isso” (O Banquete, 192 e).

Achamos importante valorizar o teor filosófico da pergunta de Hefesto

aos amantes. Ela se revela rica de consequências hermenêuticas capazes, a

nosso ver, de iluminar, como veremos, o sucessivo e, como se sabe,

fundamental discurso de Sócrates/Diótima, tomando forma na experiência da

subida na scala amoris. Trata-se agora de vislumbrar as outras questões

contidas nesse trecho, às vezes de forma explícita, às vezes, não.

Diante da interrogação divina e da proposta que aparece logo em

seguida – a de permanecer eternamente no estado prazeroso da mútua ligação

amorosa (inclusive no Hades) os amantes têm, pelos menos, duas

possibilidades.

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A primeira seria a de continuar desejando o que eles já estão desejando.

Assim, iriam conservar-se em uma ligação amorosa indefinida e natural,

escolhendo, de fato, o desejo do desejo já em ato – a eternidade dessa intensa

experiência volitiva. Mas, para quem conhece a lenda mítica sobre a figura

divina de Hefesto, essa resposta parece inviável, pois o deus da metalurgia,

que se apresenta aos amantes com “seus instrumentos” nas mãos, foi capaz

de vingar-se de sua esposa Afrodite, que o traía com Ares, amarrando os dois

na cama com ferros. A mensagem ao leitor é clara: a perspectiva de um abraço

eterno é, de fato, sem saída, porque levaria à morte do próprio desejo. É que

este último, que por natureza é intenso e descontínuo, aparece e desaparece

de modo imprevisível – e, portanto, um abraço eterno o anularia. Aí está um

paradoxo evidente: desejar um desejo para sempre provoca a morte desse

desejo. Explica-se: a eternidade do “para sempre” não segue a

descontinuidade arbitrária do intenso impulso erótico – é esta a mensagem que

Platão parece enviar a quem não sabe reconhecer e dizer o que está vivendo.

Flagrados no ato, os amantes não podem deixar de sentir o desejo que

estão sentindo. Nesse exato momento, eles estão vivendo uma poderosa

inclinação natural, na qual não podem senão desejar o que está acontecendo

no agora. A pergunta de Hefestos, aparentemente dirigida aos amantes é, na

verdade, dirigida aos participantes do banquete: “Que é que quereis, o

homens?” (Este desejar que estou lhes mostrando agora, concretizado nesta

cena).

E então Hefesto continua: “Mas vede se é isso o vosso amor e se vos

contentais se conseguirdes isso” (O Banquete, 192 e). Aí está o convite, na

verdade dirigido aos convidados do banquete (e a nós, leitores!), para definir

heuristicamente: “O que é, afinal, o Amor – para cada um de vós aqui

presente? É mesmo isso?”

A partir do cômico, entramos agora no domínio do trágico: afinal, a

plateia de O Banquete vê-se ali retratada nesse estado erótico, no qual os

amantes aprisionados ao desejo são vítimas de uma escolha divina que não os

responsabiliza e que, na verdade, os domina. A pergunta de Hefesto quebra

essa disposição humana fundada numa ordem mitológica. Ela abre uma

passagem fundamental que pretendemos destacar: é a passagem do desejar

sem poder ao poder de desejar. A plateia percebe que os amantes retratados

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na cena não têm o poder de desejar, pois desejam o desejo natural, sem a

liberdade de fazer outra coisa senão o que está sendo feito, sem avaliação

critica nenhuma.

Parece-nos que aí está o verdadeiro rumo da pergunta de Hefesto, como

se indagasse: “O que é, ó homens, esse vosso desejar ficar sempre junto de

alguém? Para onde vos leva esse impulso tão forte do vosso desejo?”

Agora, a única possibilidade que permanece, tanto para os amantes

como para a plateia é acolher a proposta de Hefesto, o questionador, e

compreender a natureza desse intenso desejar. Aqui se estabelece a

passagem do desejar sem poder ao poder de desejar – isto é, definir e escolher

o fruto de sua própria ligação amorosa e desejar o conhecimento.

Veremos agora como nasce esse desejo pelo conhecimento.

Notemos, primeiramente, que Diótima chama a atenção para a baixa

intensidade da reação dos amantes à proposta de Hefesto. Para descrevê-la,

Aristófanes-Platão utiliza verbos na forma hipotética, como para confirmar o

embaraço inicial (ajporou`nta~ aujtou;~: O Banquete 192 d) com o qual

eles acolheram a pergunta do deus

Depois de ouvir essas palavras, sabemos que nem um só diria que não, ou

demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que

há muito estava desejando, sim, unir-se e confundir-se como o amado e de

dois ficarem um só. (O Banquete, 192, e; grifo nosso)

Essa reação fraca parece estar em sintonia com o estado “afásico”, sem

lógos dos amantes que já destacamos. Eles não conseguem raciocinar, e não

conhecem um ao outro porque estão em um relacionamento simbiótico. Por

isso, não sabem dizer “o que querem que lhes venha da parte de um ao outro”.

Suspeitam que a causa dessa intensa ligação esteja além do prazer sexual

experimentado, mas, a respeito disso, não podem dizer nada senão

adivinhando ou indicando “por enigmas” (O Banquete, 192 d). Entretanto, os

amantes sabem uma coisa só, repetida duas vezes por Aristófanes com um

mesmo verbo usado para dois substantivos análogos: o que os amantes estão

almejando com a paixão recíproca é algo de semelhante a eles (to; o{moion

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aujtoi`~ ajspazovmenoi: O Banquete, 192 a), algo de aparentado (ajei;

to; suggene;~ ajspazovmeno~: O Banquete, 192 b).

Ora, quando os amantes apaixonados vivem um estado prazeroso e

gratuito, mas sem palavras para explicar sua causa, surge a pergunta e a

proposta de Hefesto: seu lóogo~ divino pede uma resposta – isto é, o primeiro

lóogo~ humano.

A pergunta de Hefesto se apresenta como um ato intelectual (intus-

legere, ler de dentro da realidade) sobre um estado de desejo indistinto,

consequência da antiga natureza divina de um relacionamento sem tempo e

sem medida, no vigor e nos pensamentos (O Banquete, 190 b): puro êxtase

erótico, sem descontinuidade alguma e sem palavras para exprimi-lo.

Portanto, ao realizar o pedido do primeiro ato logístico que elabora o

mito divino, a pergunta de Hefesto adentra no antes e no depois do ainda só

potencial logos humano – e esta é a primeira purificação noética da experiência

amorosa natural. Explica-se: se o sentimento que a acompanhava ainda era

indistinto para ter um logos, a pergunta de Hefesto ajuda na distinção do

indistinto que ainda caracteriza a paixão amorosa humana nesse patamar.

Com efeito, o círculo mítico da antiga condição divina, que ligava seres

congêneres no globo simbiótico passará por uma transformação depois do

corte de Zeus e da pergunta de Hefesto: será a primeira experiência filosófica

do homem convidado a conhecer a causa e a natureza do prazer da união

sexual, que liga os seres nessa relação tão intensa e ligante.

Agora, desejamos descrever como se desenvolve essa primeira

experiência filosófica humana. A pergunta repentina de Hefesto desencadeia

uma reação que sugere o afastamento dos corpos para responder à pergunta.

Trata-se de passar de um momento de desejo e fruição para o primeiro

momento de reflexão, isto é, de prhonésis. Este termo parece ser capaz de

explicar a dimensão indissolúvel, ao mesmo tempo ética e teorética, dessa

nascente experiência humana.

O ato de refletir sobre o desejar pode ser definido como fronético, isto é,

um pensamento “prático” sobre a realidade de uma paixão humana. Ao mesmo

tempo, ele se apresenta também como temperança (swfrosuvnh), primeiro

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exercício de domínio das paixões (que tanto caracterizou nossa leitura do

Fédon).

Cremos ter esclarecido suficientemente o quanto são fecundas as

consequências da pergunta de Hefesto aos amantes, no elogio de Aristófanes:

em nossa análise, ela gera o primeiro ato noético de uma vida filosófica, junto

ao primeiro ato de temperança. Se o primeiro ato de temperança foi o de Zeus

que pelo seu corte doou uma medida aos pensamentos e a força dos homens,

a pergunta de Hefesto vai na mesma direção: foi um convite para um segundo

ato de temperança, desta vez dirigido à nascente responsabilidade humana.

De agora em diante, essa vida será ritmada pelas indagações e

questionamentos que buscam o sentido da própria experiência humana. No

caso dos amantes, elas vão se multiplicar naturalmente, passando de uma

experiência intensa e atrativa, para a compreensão do Belo em si e, em

seguida, do Bem absoluto: “Por que um belo corpo atrai as almas

irresistivelmente?”, “Por que os amantes experimentam o desejo irrealizável da

posse ´eterna` de um belo corpo?”, “E se não é possível possuir para sempre

um corpo amado, pode-se desejar o Bem e possuí-lo para sempre?” Todas

essas indagações justificam uma atenta ação educativa em matéria de Amor: a

famosa subida pela scala amoris, centro do discurso de Sócrates, que vem em

seguida.48 Esse discurso também é emoldurado por uma atmosfera mítico-

iniciática e apresentará como se deve ordenar o conhecimento e os

comportamentos dos jovens que aspiram iniciar o caminho da vida filosófica,

cujas dificuldades já destacamos na nossa análise inicial do Fédon.

48 Conceito já afirmado no Banquete. Pausânias, por exemplo, considerava necessária,

em matéria de Amor, uma lei civil, para que “não se perdesse na incerteza tanto esforço; pois é na verdade incerto o destino dos meninos, a que ponto do vício ou da virtude eles chegam em seu corpo e em sua alma” (O Banquete, 181 d).

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CAPITULO IV

O Banquete: a experiência iniciática da scala amoris

4.1. Algumas definições de Eros

Antes da apresentação da famosa scala amoris, a sacerdotisa Diótima

apresenta uma série de argumentações que aprofundam os elogios a Eros, já

feitos pelos participantes do encontro. Depois narrar o nascimento de Eros,

filho de Poros e Penia, ela o apresenta como: o desejo de um bem percebido

como falta, e que os homens pretendem possuir sempre; é uma experiência

intensa, que tem um esforço de coesão (spoudéhv) e uma característica

própria – a de ser “um parto em beleza, tanto no corpo, tanto na alma” (O

Banquete, 206 b). Trata-se então, de uma experiência gerativa que pertence

aos homens, os quais “concebem não só no corpo, mas também na alma” (O

Banquete 206 c), quando desejam a imortalidade (O Banquete, 207 a). E o que

concebem todos os homens? O pensamento, phrónesis e o mais da virtude

(th;n a[llhn ajrethvn) (O Banquete, 209 a). Esse desejo humano de

imortalidade, aliás – acrescenta a sacerdotisa – é o mesmo da fúsis da

natureza mortal, que “procura, na medida do possível, ser sempre e

permanecer imortal” (O Banquete, 207 d). Em algumas das definições, Eros,

então, é o desejo de imortalidade (O Banquete, 207 a ), assim como é “amor de

consigo ter sempre o bem” ( O Banquete, 206 a).

Depois desse prólogo, inicia-se a subida pela scala amoris. Nela,

Sócrates é convidado a buscar a verdadeira causa do amor e seu fim intrínseco

(tevlo~). Não devemos esquecer que foi o próprio Sócrates quem

esclareceu e pontuou suas intenções, em um longo discurso – o mais longo de

todos; ele pretende propor palavras verdadeiras sobre Eros (tavlhqh`

legovmena: O Banquete, 199 b).

Mas como se apresenta, de fato essa experiência da scala amoris,

maravilhosamente descrita entre 210 a e 212 b? Numa reciprocidade erótica de

um nível profundo entre ele e a sacerdotisa, o iniciado contemplará o belo

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divino em si (aujto; to; qei`on kalo;n), agarrando ao mesmo tempo o

verdadeiro (a{te tou` ajlhqou`~ ejfaptomevnw) e gerando a

verdadeira virtude (O Banquete, 212 a).Trata-se de um caminho de purificação

intelectual: é a caminhada ascética que leva à contemplação dos mistérios

eróticos (210 a-212 a) que os amantes percorrem refletindo eticamente sobre a

experiência do próprio desejo, uma progressiva afinação entre dois polos que

sempre tentam se encontrar no exercício do filosofar: a dimensão do Lógos e a

do Eros. A primeira é a faculdade humana de produzir belos discursos que

consigam expressar a beleza em si, presente em todos os corpos belos:

Tenta, então, seguir-me se fores capaz: deve, com efeito, começou ela, o que

corretamente se encaminha a esse fim, começar quando jovem por dirigir-se aos belos

corpos e em primeiro lugar, se corretamente o dirige o seu dirigente, deve ele amar um

só corpo e então gerar belos discursos (lovgou~ kalouv~) (O Banquete, 210 a).

A segunda, a de Eros, é a força que sempre tenta tomar posse da alma

manifestando-se como um dáimon, propulsor de um contínuo desejo. Ela é

uma duvnami~ que leva a alma a gerar o que lhe é próprio: “o pensamento e o

mais da virtude” (O Banquete, 209 a).

Assim, o estudioso Lima Vaz afirma que, em O Banquete, Platão

procurou uma síntese entre essas duas estruturas fundamentais, a síntese pela

qual Eros ganha o próprio valor somente se for educado pelo logos. É desse

modo que ele já “se caracteriza então como o dinamismo do lógos”49.

Giovanni Reale também parece estar de acordo com essa interpretação.

Na introdução ao seu livro dedicado a O Banquete, ele afirma que, sendo Eros

o filósofo por excelência, “o lógos humano não pode proceder sem a paixão

que o estimula, o empurra sempre além e o segura estruturalmente”50

Sobre esse assunto, pretendemos marcar, mais uma vez a relevância

estratégica do discurso de Aristófanes. Propomos o seguinte: considerar o

convite divino que Hefesto dirige aos amantes para refletir sobre a natureza do

49 LIMA VAZ, Henrique. Eros e logos: Natureza e educação no Fedro platônico. Em

Platônica. São Paulo: Loyola, 2011, p. 13. 50

REALE, Giovanni. Eros demone e mediatore. Milano: Bompiani, 2005, p. 11 (tradução nossa).

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desejo erótico como o prólogo mítico e fundador da scala amoris sugerida pela

sacerdotisa Diótima. Esta é uma experiência educativa que articula e ordena

teleologicamente a possível resposta ética dos amantes ao convite divino. Que

argumentações podem sustentar essa possibilidade hermenêutica na qual

pretendemos nos aprofundar?

4.2. O drama erótico de Aristófanes: primeiro degrau da ascese

Note-se, primeiramente, um fato textual: a única citação claramente crítica que

Sócrates faz em seu logo discurso (O Banquete, 205 d) será dirigida a

Aristófanes, suscitando uma reação do comediógrafo que, todavia, não

encontrará resposta (O Banquete, 212, c). Este já é um sinal para destacar a

relevância especial que o mito de Aristófanes apresenta no discurso de

Sócrates51. Em segundo lugar, a elaboração sapiencial do transporte físico e

emocional parece ser o primeiro passo do caminho do iniciado que domina

seus desejos com seu logos e com a temperança.

Assim, nos parece que a proposta iniciática de Diótima e o convite de

Hefesto aos amantes expressam, em termos diferentes um movimento único: o

primeiro momento no qual a orientação da dúnamis de Eros se impõe como

uma exigência do lógos. Portanto, esta nos parece ser a questão central de O

Banquete platônico: se Eros é compreensível justamente como a força que liga

todos os seres viventes, essa energia atravessa também o logos humano,

sendo ao mesmo tempo “menos que o lógos – no lógos – mais que o lógos”,

segundo a feliz expressão que encontramos num ensaio platônico de Lima

Vaz52.” Para sustentar nossa hipótese hermenêutica, que propõe o diálogo

entre Hefesto e os amantes como etapa mítica e fundadora da scala amoris,

achamos interessante acompanhar a análise articulada que o estudioso

brasileiro propõe do dinamismo filosófico que une Logos e Eros em O

51 Cf. ROWE, Christopher J. Op. cit., p.33.

52 LIMA VAZ, Henrique. Eros e logos. Natureza e educação no Fedro platônico.

Em Platonica. São Paulo: Loyola, p.14

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Banquete. Lima Vaz, no ensaio “Eros e Logos. Natureza e educação no Fedro

platônico” descreve assim o desenvolvimento temático desse assunto:

O primeiro momento é uma experiência que se realiza num “transporte” (ptoiesis)

quase fora de si ao contato do ser belo. Ora, o ser belo é esplendor da alma bela no

corpo belo. A ascensão do eros que Diótima descreve em termos de iniciação mistérica

parte pois do corpo belo53

.

Depois dessa primeira observação, Lima Vaz explica onde é possível

detectar, na proposta platônica, a dinâmica erótica quando ela se apresenta

menos que o lógos e, depois, para além do lógos:

Entretanto, nessa primeira emoção sensível, – menos que o logos – o corpo belo não

é para o eros termo estático de complacência sensual. O corpo é (nota especificamente

grega) individuação da alma. Por ai, participa do universal e se aparenta ao divino. A

primeira obra do eros despertado à vista do corpo belo é gerar belos discursos. A

beleza do corpo torna-se universal. O eros avança já sob o signo do logos. Não mais

só um corpo belo, mas todos os corpos belos. Daí a passagem á beleza da alma, mais

preciosa (kallos timioteron) até a súbita (eksfaines) visão da beleza em si. O eros –

agora para além do logos, repousa na visão54

.

A reflexão de Lima Vaz, que agudamente descreve o começo da scala

amoris como experiência da primeira emoção sensível (menos que o logos)

para chegar à visão do belo em si (para além do logos) nos sugeriu a

possibilidade de ligar tudo isto à experiência erótica análoga e primordial

apresentada pelo elogio de Aristófanes. Já evidenciamos a postura afásica dos

amantes de Hefesto, quando estavam cheios de paixão amorosa, mas sem

palavras, num contexto mítico de uma paixão impetuosa, desmedida e ligante.

O lovgo~, como experiência plena e avançada, poderá chegar depois, fruto

da reflexão temperante que o mesmo Hefesto tinha pedido. Achamos que a

própria ascensão metafórica pela scala amoris representa essa experiência

elevada, quando o Belo e o Bem que subjazem na paixão erótica forem

53 LIMA VAZ, Henrique. Eros e logos: Natureza e educação no Fedro platônico. Em

Platônica. São Paulo: Loyola, 2011, p. 14. 54

Idem, p. 14 (grifo nosso).

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questionados, gradativamente identificados e finalmente contemplados. É

assim que o homem chega, pela via filosófica, ao ponto culminante da scala

amoris, voltando à sua antiga condição maravilhosa de ser divino e imortal.

Não te parece que só quem tiver chegando lá, vendo o belo como convém, poderá

produzir não simulacros de virtude – pois não é em sombras que estará tocando –, e

sim virtudes autênticas, visto que o tocado é a própria verdade? Ora, a divindade preza

os que geram e cultivam a verdade. Se convém que alguém se torne imortal, é esse.

(O Banquete, 212, b).

Então temos como que duas fotografias diferentes da única elaboração

filosófica que Platão reserva à dúnamis de Eros quando se submete ao poder

do logos. A primeira retrataria o estado mítico e fundador da segunda, sendo

que esta última é apresentada como o estado decisivo de um processo

educativo elevado. Em ambas as fotografias o leitor pode reconhecer o

primeiro momento em que Eros liga seres atraídos sexualmente, seguido pelo

primeiro ato de temperança que pode orientar a força erótica para uma

contemplação do Belo em si:

Que pensamos então que aconteceria, disse ela, se a alguém ocorresse contemplar o

próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes humanas, de cores, e outras

muitas ninharias mortais, mas o próprio divino belo pudesse ele em sua forma única

contemplar? (O Banquete, 202 a).

O começo da famosa scala amoris (a visão e o contato com o belo

corpo) e o seu momento final (a contemplação do Belo/Bem em si) podem ser

idealmente vistos como a definição filosófica da caminhada educativa da alma

que iniciou, potencialmente, no primordial drama erótico representado no elogio

mítico de Aristófanes. Aliás, é o próprio Sócrates que sublinha, por duas vezes,

como a súbita visão do Belo em si recapitula as experiências precedentes (O

Banquete, 210, a; 210 e).

Concluindo: o caminho iniciático proporcionado pela sacerdotisa pode

ser interpretado como fruto teórico de uma análise da potencialidade

teleológica da alma humana e de seu impulso erótico fundamental. Nesse

caminho, o discípulo descobrirá e reconhecerá sua verdadeira origem e seu

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fim, na separação gradativa da dimensão corporal que acompanha a

purificação dos belos discursos. A origem é a condição divina do homem, já

posta em chave mítica e pré-lógica no elogio de Aristófanes. O fim é sempre a

mesma condição divina, mas adquirida através da temperança e da visão do

Belo em si. A diferença entre origem e fim da mesma condição divina está

então no diferente nível de temperança que o homem iniciado ao poder de Eros

consegue exercer.

4.3. O amado torna-se amante e conhece o Belo

Entre os dois momentos distintos – origem e fim da experiência erótica

que aproxima os homens à própria divindade – a relação entre os amantes

muda estruturalmente. Quais são as principais diferenças entre o estado inicial

e o final da mesma experiência erótica?

Note-se, por exemplo, a postura dos homens questionados por Hefesto.

Influenciados por uma paixão divina e sem lógos possível, eles estavam numa

situação de paridade: ambos eram amantes. Ao contrário, o desenvolvimento

do processo educativo descrito na scala amoris traz consigo uma diferenciação

entre amante e amado, onde este segundo é guiado pelo primeiro, seu

educador, à contemplação do Belo em si. O amado chegará a essa visão

sendo finalmente distinto e não mais ligado ao educador-amante na intensa

paixão indiferenciada que o ligava a ele antes da visão do Belo em si.

Mas, ao chegar ao ponto culminante da scala amoris, o amado pode

cumprir a sós a experiência divina da contemplação intelectual, gozando

plenamente da mesma força erótica, também ela divina, apresentada no

começo mítico do relato de Aristófanes (O Banquete, 190 b). Trata-se da

mesma força natural, agora transformada em força contemplativa, pela

ascensão intelectual que leva à contemplação do Bem em si. E, quando

acontece que o amado consegue contemplar a ideia de Belo em si, ele súbita e

finalmente se torna o amante. É nessa visão divina e fulgurante que sua alma

agarra o Verdadeiro, contemplando-o no final do belo caminho erótico iniciado

pela intensa atração física por um belo corpo e guiado, na temperança dessa

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atração, à procriação de belos discursos (lovgou~ kalouv~: O Banquete,

210 e).

Resumindo: há um longo caminho filosófico entre as linhas e correntes

de pensamento implícitas e explícitas em O Banquete que ligam o elogio de

Aristófanes ao discurso de Sócrates-Diótima.

O diálogo entre Hefesto e os amantes não oferece à scala amoris

somente a perspectiva hermenêutica do reconhecimento do paradoxo

intrínseco ao desejo dos amantes, ponto de partida para contemplar algo além

da abrangente e recíproca paixão. Ele oferece, também, uma moldura

antropológica coerente com a definição do poder gerativo de Eros, numa chave

mítica e, portanto, fundadora – e este é o assunto fundamental do discurso de

Diótima (O Banquete, 206 b)55.

Se maravilhoso e divino era o estado primordial dos corpos indistintos,

ainda sem lógos (O Banquete, 192 b-c) também agora é maravilhoso e divino o

estado do iniciado que contempla o Bem em si sem ter mais a necessidade de

estar próximo do corpo do amado e sem mais nenhum lógos possível.

55 É de Giovanni Reale a tese de uma recíproca sustentação entre mito e lógos em

Platão: o segundo procura um próprio complemento no primeiro, assim como o primeiro busca clarificação e sustentação no segundo. REALE, Giovanni. Platone. Milano: RCS Libri, 2008, p. 291.

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Capítulo V

Eros: o filósofo do paradoxo

5.1. É possível possuir o bem para sempre?

Após nossa tentativa de aproximar tematicamente o elogio de

Aristófanes ao discurso de Sócrates-Diótima, a última tarefa desse trabalho é

demonstrar como essa ligação – geralmente não muito considerada por alguns

comentadores mais favoráveis a uma leitura antitética dos dois discursos56 –

permite reconhecer a qualidade peculiar do poder gerativo de Eros, assim

como ele é apresentado em O Banquete.

Propomos agora uma comparação textual mais precisa entre duas

definições de Eros contidas nos dois elogios. Aristófanes define Eros como o

“desejo e procura do inteiro” (O Banquete, 192 e), Sócrates, como já

apontamos, dirige a ele uma critica indireta, pouco antes de definir o mesmo

Eros como “amor de consigo ter sempre o bem” (cf. O Banquete, 206 a).

Pretendemos evidenciar como as duas definições são mais próximas do

que distantes, uma vez que fazem parte de um único processo sapiencial,

como evidenciamos até agora.

Nossa análise sobre a busca dos amantes pela integridade (da metade

perdida com o corte de Zeus) já apontou a natureza paradoxal dessa procura.

Afinal, ela tenta eternizar a descontinuidade natural do desejo, que surge e

desaparece – e, portanto, nunca é para sempre.

Agora, a pergunta que fazemos é a seguinte: essa impossibilidade lógica

não se apresentaria, da mesma forma, quando se questiona a definição

socrática de Eros como “amor de consigo ter sempre o bem”? Seria possível

possuirmos o bem para sempre? Essa conotação “para sempre” deve ser

56 Por exemplo, sempre Rowe afirma que a tese de Aristofanes caracteriza-se por uma

seriedade superficial e não a considera uma preparação ao discurso de Diotima. ROWE, Christopher. Op. cit., pp. 34-36. Giovanni Reale destaca a relevância particular do elogio de Aristófanes, acreditando que Platão estaria apresentando no diálogo as suas doutrinas não escritas. Cf. REALE, Giovanni. Eros demone e mediatore. Milano: Bompiani, 2005, p. 98.

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entendida só como uma metáfora, ou ela é uma experiência real na vida

filosófica?

Analisemos essa questão. Se o desejo de possuir sempre o bem

apontasse para uma experiência possível, estaríamos diante de um paradoxo

evidente, que se apresenta desta forma: para possuir o bem – que é sempre

igual a si mesmo, e por isso nunca muda – o homem deveria experimentar um

desejo que também permaneça sempre o mesmo, sem mudar seu objeto. Mas,

como poderia possuir sempre o próprio objeto de desejo, obrigando-se à

repetição contínua no tempo que tudo transforma? Entre a sucessão de

desejos no tempo, o sempre não pode ser obviamente mantido. Se, porém,

fosse possível o contrário, um desejo sem tempo e interrupção de um bem

também imutável, o paradoxo se apresentaria em nova forma: nós

conheceríamos, com efeito, um tipo de desejo muito especial que, uma vez

acendido, logo se apagaria na posse imutável de seu objeto. No entanto,

acontece que esse desejo apareceria e desapareceria ao mesmo tempo,

nasceria e morreria no mesmo ato: o desejo ganharia seu objeto, o bem eterno,

mediante seu eterno falecimento. Platão, obviamente, não pensou de forma tão

ingênua o paradoxo do desejo, aqui reduzido a gerar em si mesmo o próprio

nada.

Como esse movimento se desenvolve, logo veremos que o argumento

do desejo impossível de possuir sempre o bem nos obriga a refletir mais sobre

a natureza ambígua desse ato participativo humano, que deseja possuir

“sempre” o bem, que é “sempre” igual a si mesmo. Como os homens

participam desse bem? Como se apresenta, em O Banquete esse desejo de

possuir sempre o bem? Destacaremos algumas indicações preciosas que o

texto nos oferece para responder a essa pergunta, devida à maneira ambígua e

ao mesmo tempo fecunda com a qual Eros costuma se apresentar aos

homens.

5.2. A posse eterna do Bem como experiência relacional

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A fala de Diótima nos explicou com clareza que a experiência erótica

sempre passa pelo belo corpo desejado, buscado e encontrado – quer no

desejo dos amantes que procuram uma mulher (procriação de filhos, no corpo),

quer no desejo dos mestres que procuram um jovem discípulo (procriação de

virtudes, na alma – O Banquete, 209 b). Por conseguinte, a experiência erótica

gerativa de possuir o Bem procriando no Belo é sempre uma experiência

relacional. Mas de que forma? Trata-se de partilhar dialogicamente uma

experiência contemplativa da ideia do Bem? Não é somente isso. Essa

dimensão relacional é vivida também no encontro corpóreo, entre os amantes,

que não se limita à partilha de uma visão em comum contemplativa do Bem em

si.

Destacamos a presença de importantes acentuações nos verbos

escolhidos por Diótima, ao proporcionar a experiência contemplativa de

geração no Belo: o amante deseja com paixão a beleza encontrada no rosto do

amado (O Banquete, 209 b): o verbo aqui é ajspavzomai, que pode significar

também “cobiçar”, ou “ligar-se profundamente”, que toca, atinge o Belo. Em O

Banquete, 209 c, o verbo usado é a}ptomai, que também significa “segurar”.

Encontraremos no texto o mesmo verbo mais à frente, com sufixo reforçativo

(ejfavptomevnw), para apontar uma ação ainda mais intensa, isto é,

“agarrar”: “porque não são imagens que estará agarrando, mas reais virtudes,

porque é o que verdadeiro que estará agarrando” (O Banquete, 212 a).

Mais ainda: se analisarmos o trecho do diálogo que apresenta o assunto

da posse eterna do Bem, teremos uma surpresa. Observemos como a tradução

do prof. Cavalcante de Souza, principal referência neste trabalho, contém esta

expressão “é o amor, amor de consigo ter sempre o bem” (O Banquete, 206 a).

Pode-se destacar como o verbo ter, escolhido por Cavalcante (em outras

traduções encontramos também o verbo possuir) é uma tradução possível do

verbo estar, no sentido de: estar perto de, próximo a.

Na tradução literal do texto grego, a frase se apresentaria assim:

e[rw~ tou` to; ajgaqo;n auJtw`/ ei\nai ajeiv

amor do o bem a ele ser sempre.

A esta altura, a pergunta – obviamente não filológica, mas hermenêutica

– é a seguinte: o que está atrás dessa ambiguidade flutuante entre a semântica

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do verbo ser/estar com aquela do verbo ter/possuir? Observamos também

como, junto com o dativo de pessoa, o verbo einai aponta para a experiência

ambígua do desejo do homem. Em outros diálogos platônicos o mesmo verbo

se apresenta ao leitor com um sentido ontológico e também psicológico: o do

verbo ser, significando a atividade da alma que só conhece as coisas que são

eternas, porque estas não aparecem, mas são reais e verdadeiras.

Então, ou a tradução deste trecho 206 a seria: “amor sempre é ser/estar

próximo ao seu bem”, ou: “amor de consigo ter sempre o bem”. Parece que

essa ambiguidade semântica entre os verbos ter e ser/estar não pode ser

resolvida de forma definitiva, porque provavelmente estamos tocando a

natureza dupla e simultânea da experiência erótica como a experiência de

afasia original dos amantes do mito, antes do nascimento da linguagem.

Podemos perguntar: como nasceria essa transposição semântica

ambígua que, aqui, aparece entre o verbo “ser/estar” e o verbo “ter/possuir”?

Nossa hipótese é a seguinte e se funda sobre uma evidencia textual: Sócrates-

Diótima está acabando de criticar a definição de amantes como os que

procuram a sua metade, e a crítica é evidentemente dirigida ao Aristofanes57.

A esse respeito Diótima pretende propor:

E de fato corre um dito, continuou ela, segundo o qual são os que procuram a

sua própria metade os que amam; o que eu digo porém é que não é nem da

metade o amor, nem do todo, pelos menos, meu amigo, se não se encontra

este em bom estado, pois até os seus próprios pés e mãos querem os homens

cortar, se lhes parece que o que é seu está ruim. Não é com efeito o que é seu,

penso, que cada um estima, a não ser que se chame o bem de próprio e de

seu, e o mal de alheio; pois nada mais há que amem os homens senão o bem;

ou te parece que amam? (O Banquete, 205 e 206 a).

Essa passagem é decisiva para sustentar nossa hipótese de

interpretação: o bem ao qual Eros se direciona para possuí-lo para sempre (O

Banquete, 206 a), é o mesmo bem que os amantes podem reconhecer dentro

da experiência da busca por sua metade, segundo a definição de Diótima, que

questiona a de Aristófanes. Trata-se de um bem que, primeiramente não

57 NUCCI, Matteo, Simposio. Torino: Einaudi, 2009. p. 149.

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pertence ao homem enquanto tal, mas que pode ser reconhecido como “bem

em si” dentro da relação amorosa. É como se Sócrates dissesse: o poder de

Eros não pode ser reduzido a uma atração biológica de corpos que procuram a

metade perdida, por mais intensa que ela seja. Não: Eros é a busca do bem

que pode ser descoberto dentro da atração recíproca; é algo que não pertence

ao simples desejar corpóreo próprio do homem, mas pode ser enxergado e

contemplado como fruto do encontro entre os homens que se procuram,

amando-se.

Sócrates também acrescenta que se trata de um bem ao qual Eros quer

estar direcionado para sempre. E, por ser o “para sempre” a dimensão do bem,

o poder de atração desse desejar é tão vasto que abarca a dimensão da

corporeidade.

Por isso, achamos que o bem para o qual Eros se direciona é sempre o

mesmo, tanto na experiência dos amantes míticos questionada por Sócrates,

quanto na definição que será escolhida logo depois pelo mesmo Sócrates. A

experiência do bem nasce na relação corpórea dos amantes e se evidencia no

momento do reconhecimento como “bem em si”. Esse “bem em si” nasce e se

destaca no desejo amoroso, com natureza e identidade próprias. Por isso, os

amantes não podem resistir a ele e ficam atraídos para sempre. Diótima explica

claramente: Eros “não é nem da metade nem do todo” – a menos que, nessa

experiência, os amantes encontrem um “bem em si”, com a própria identidade

e natureza que vai além da dimensão corpórea, pois não há limitações de

tempo e espaço. Afinal, só neste nível de clareza gnosiológica de um bem

percebido enquanto tal Eros pode ser reconhecido pelos amantes como

“desejo virtuoso”: o de possuir esse “bem em si” para sempre.

É nesse ponto que podemos resolver a questão da ambiguidade entre

ser/ estar como uma experiência flutuante, progressiva, dinâmica e amorosa.

A partir da contingente relação amorosa (estar) dá-se o discernimento

filosófico: o que é este estar aqui e agora? De tal modo que o estar/ser dos

homens se torna um evento erótico e gnosiológico ao mesmo tempo. Eros

assim se apresenta aos homens, permitindo a eles de reconhecer algo de

“congênere” entre os corpos abraçados (por serem metades iguais que se

desejam) e de “diferente” (a força invisível do desejo que lhes une e que não

pertence a nenhum dos dois).

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O que muda depois desse primordial evento é o registro e o rumo do

prazer amoroso, que passa da ligação passional entre corpos indistintos à

profundidade desejosa de seres individuais que irão descobrindo o Bem em si

que jaz na profundidade da própria disposição erótica.

Concluindo: é importante destacar como na definição de Sócrates-

Diótima o sujeito que conhece o bem é relacional e permanece sempre no

estado de “os amantes” – homens envolvidos numa relação amorosa natural

que permite um evento gnosiológico. A definição socrática de Eros como

“consigo ter sempre o bem” parece assim se caracterizar por uma dimensão

natural e corpórea, ainda misteriosa, mas já possível dentro da experiência

apaixonada dos amantes.

5.3. A natureza e o rumo do desejar

Mas ainda temos que investigar: ser/estar próximo ao corpo do amado, com

uma evidente acentuação afetiva e sexual, pode querer dizer ter/possuir

também o Belo/Bem? Essa proximidade ilumina algo de misterioso? E como

aconteceria isso?

Na afasia dos amantes encontramos a muda resposta: ser/estar próximo

de alguém, como acontece no ato gerativo/reprodutivo, não pode querer dizer,

no plano da realidade, possuir a pessoa que fica perto – e muito menos para

sempre. O corpo do amado, embora tocado e ligado no ato sexual nunca

chegará a ser possuído em um abraço eterno – o que acabaria matando o

próprio amor.

Então, se a posse eterna do bem descoberto e amado é algo impossível,

o que resta aos amantes? Como possuir sempre o Bem? Por que Eros deveria

ser elogiado? Quais seriam, então, seus dons? É na fala de Diótima que

encontraremos a resposta: o desejar de Eros é está dentro dos limites da

natureza.

Com efeito, logo depois ter definido Eros como “amor de consigo ter

sempre o bem”, a sacerdotisa se pergunta:

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Quando então – continuou ela – é sempre isso o amor, de que modo, nos que o

perseguem, e em que ação, o seu zelo e esforço (ejn tivni pravxei hJ

spoudh; kai; hJ suvntasi~) se chamaria amor? Que vem a ser essa atividade?

Podes dizer-me? (O Banquete, 206 b)58

.

Diotima esclarecerá que a paixão dos amantes sinaliza a inclinação que

pertence aos mortais que estão em busca da imortalidade, porque essa é a

mesma inclinação da natureza:

Que pensas, o Sócrates, ser o motivo desse amor e desse desejo? Porventura não

percebes como é estranho o comportamento de todos os animais quando desejam

gerar, tanto dos que andam quanto dos que voam (...) (O Banquete, 207 a).

“a natureza mortal procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal” (O

Banquete, 207 d).

Então, a iniciação erótica será proposta aos iniciados no tocar-possuir-

conhecer a dúnamis gerativa e virtuosa de Eros de seu manifestar-se segundo a

natureza, como tendência dentro de limites.

5.4. Desejo e contemplação: do abraço impossível e conhecimento

possível

A experiência erótica, embora difusa, aponta para a imortalidade e

oferece o rumo do caminho contemplativo. Esse caminho só estará aberto

àqueles seres humanos que direcionarem racionalmente essa tensão erótica

para a virtuosidade de Eros dentro dos limites da natureza.

58 No elogio de Aristófanes, os amantes não sabiam dizer por que “um gosta da

companhia do outro assim com tanto interesse” (O Banquete, 192 c). A expressão grega

traduzida como “com tanto interesse” é, megálhes spoudhés (megavlh~ spoudh`~) que tem

o sentido de ímpeto intenso e determinado da relação amorosa. Observamos que trata-se do mesmo termo - spoudhé que usa Diotima. É como se os amantes se perguntassem, qual é o rumo, o escopo dessa força natural que nos domina? Para onde ela é orientada? Em sua afasia, eles não conseguem responder. Agora, propondo as mesmas indagações, Diótima vai responder.

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Este é um caminho de conhecimento que desvela a própria capacidade

intelectual (do latim intus-legere: ler dentro) de compreender o sentido profundo

da experiência contemplativa. Se antes a tensão erótica era guiada pelo ímpeto

intenso e natural (spoudh;) agora é purificada e guiada pela força de

orientação intelectual, mas sempre alimentada pelo mesmo ímpeto que

impulsiona a natureza em sua busca pela imortalidade.

Lemos, com efeito, que “é em virtude da imortalidade que a todo ser

esse zelo (spoudh;) e esse amor acompanham” (O Banquete, 208 b). Então,

o impulso intelectual que surge depois da experiência do abraço impossível,

chegará à contemplação da ideia do Belo/Bem em si, sem cessar de alimentar-

se da mesma natureza (fuvsi~) mortal, que sempre participa da imortalidade

ao ser progressivamente purificada na ambiguidade impetuosa da sua

spoudhé.

Concluindo: detectamos e agora concluímos a descrição da linha

temática que liga o estado mítico primordial, relatado por Aristófanes, ao

começo da scala amoris até o momento contemplativo final vivido por Sócrates.

Trata-se, como já evidenciamos, da longa caminhada filosófica humana,

descrita desta forma, desde a sua origem até o seu fim.

Na antiga condição divina, os corpos humanos tocavam-se sem

necessitar de nenhuma reflexão sobre eles mesmos e a causa de seus

prazeres. Depois, com o corte de Zeus, os corpos continuam se tocando e

experimentando um prazer amoroso, vivenciado como inesgotável quando

acompanhado pela nova experiência de uma vida erótico-filosófica. Essa vida

filosófica começa com a resposta à pergunta de Hefesto: “O que é, homens,

que desejais?” Nasce assim o lógos e, com ele, a autêntica aventura humana.

Deixamos agora para a conclusão final deste trabalho a ultima resposta

que devemos ao leitor: no caminho filosófico dos amantes, que começou com a

pergunta de Hefesto para culminar na experiência da scala amoris, qual foi o

fruto único e especial do poder gerativo de Eros? Quando Diótima explica que

Eros não é o desejo do belo mas sim “geração e parturição no belo” (O

Banquete, 206 e) o que, de fato, ele gera e ainda hoje provoca na vida dos

homens?

CONCLUSÃO

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O Banquete e o poder gerativo de Eros

“Eros é il Bello che si

domanda cosa é il bello e

mentre lo fa si autogenera

come desiderio fondante il

desiderio che desidera” 59

“Por que, então, o filósofo deseja ser ético?”

Concluímos nossa leitura da primeira parte do Fédon com uma pergunta

que motivou a escolha de procurar a resposta numa análise textual de O

Banquete: “Por que o filósofo deseja, de fato, ser ético?”. Destacamos a

necessidade de uma tentativa de resposta, para não corrermos o risco de

limitar nossa interpretação da proposta ética platônica apenas à postura

ferrenha de homens que decidem se afastar das paixões para chegar a uma

recompensa futura no Hades, dentro dos cânones da doutrina órfica.

Daí a necessidade de reconhecer o possível papel positivo do desejo,

percebendo melhor a natureza do ato ético assim como acabava de ser

apresentado no Fédon. Se, com efeito, nesse diálogo o desejo liga alma e

corpo, “como se possuísse uma espécie de cravo” e a vida filosófica se define

no separar virtuosamente a alma do corpo, nossa pergunta permanece atual:

se o desejo é só esse cravo que resiste à separação, como é que o desejo de

ser ético se acende na alma do discípulo? O Fédon explica também como a

alma, na busca do que lhe é congênere, resolve retirar-se em si mesma,

afastando-se das paixões que a impedem de contemplar o que é puro e

imortal. Mas, ainda assim, a pergunta permanece: o que deve acontecer na

alma para que ela consiga reconhecer o que lhe é congênere, tomando, por

assim dizer, consciência de si mesma, desenvolvendo o processo virtuoso do

conhecimento das ideias?

59 Trata-se de uma definição de Eros que surgiu no idioma italiano como fruto da análise de O

Banquete. Essa é sua tradução em português: “Eros é o belo que se pergunta o que é o belo e, enquanto o faz, ele se autogera como desejo que fundamenta o desejo que está desejando”.

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Foram essas perguntas que motivaram nossa viagem textual em O

Banquete, focada, sobretudo, na análise do elogio do comediógrafo

Aristófanes. Procuramos vislumbrar, dentro da experiência original dos

homens, o nascimento da vida filosófica como a busca do “bem em si”. Trata-

se de algo de congênere que une os amantes, fonte de intenso prazer – e que,

no entanto, não pode ser eternizado numa única experiência sem que

desapareça. O “bem em si” provoca maravilhamento e pode ser desejado e

escolhido todas as vezes que for reconhecido dentro de uma relação sapiencial

amorosa.

O nascimento da alma

O relato do diálogo aporético entre Hefesto e os amantes apresenta uma

riqueza de metáforas muito peculiar. Nele, a pergunta divina “Que é o que

quereis, ó homens, ter um do outro?” rompe o estado pré-discursivo ao exigir

do ser humano uma resposta em palavras sobre o processo do desejar

humano. Estamos convencidos de que este trecho é de uma importância

capital no pensamento platônico, pois todas as suas metáforas apontam, de

fato, para uma única e fundamental experiência: o emergir da alma humana no

mundo e o reconhecimento de sua força (duvnami~) invisível de conhecer o

Belo/Bem em si.

Essa força dinâmica, expressa no relato de Aristófanes, é um desejo

mítico-primordial de união sexual que assume uma forma anímica inédita, ao

manifestar-se como a causa do primeiro ato logístico. Assim, a experiência da

alma é o presente, o dom original de Eros aos homens: o fruto divino que brota

de seu poder gerativo.

Se, antes da pergunta de Hefesto, os homens eram símbolos – isto é,

antigas metades atraídas apaixonadamente por outras metades – agora a

ligação simbólica toma um rumo novo e radicalmente diferente: os amantes

experimentam uma nova atração, uma força invisível que os liga além do

prazer sexual, algo de congênere entre eles. A vida das respectivas almas

começa a se manifestar, despertada pela pergunta divina.

Quando o amante acolhe o convite divino e indaga a si mesmo o que o

está ligando ao amado (no momento crucial no qual se prospecta a mera

possibilidade de um distanciamento entre os corpos e do fim do prazer tão

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intenso), então acontece o inédito surgir da alma no mundo pós-mítico,

mediante o primeiro ato de autoconhecimento, de uma nova “vida interior”, de

uma nova fonte de atração recíproca e de uma nova qualidade da mesma.60

Nesse evento, a alma se manifesta pela primeira vez também como uma

dúnamis que está ao mesmo tempo dentro e fora do corpo de cada um dos

amantes. A alma individual, que vivia escondida na procura simbiótica da

antiga metade física, perdida pelo primeiro corte de Zeus, agora, depois da

pergunta filosófica de Hefesto, pode finalmente manifestar-se no ato de

compreender a natureza da própria relação amorosa.

De agora em diante, essa relação acontecerá entre almas distintas que

percebem que estão unidas e descobrem-se mutuamente. Nessa relação,

quando contemplam o que lhes é congênere, elas ainda guardam o antigo e

poderoso prazer. Mas agora, elas contemplam o Belo/Bem, descoberto na

experiência filosófica que vivenciam em conjunto. Nesse momento, acontecem

duas experiências ao mesmo tempo: a vida da alma impulsiona de dentro dos

corpos, contemplando e conhecendo as ideias eternas, e o lógos permite

vivenciar tudo isso como uma experiência “fora dos corpos”.

Parece-nos claro, embora não explícito, que a alma do amante começa

a manifestar-se principalmente quando toma um distanciamento progressivo da

presença física e abrangente do corpo do amado. Agora, a dúnamis da alma é

o fruto invisível que brota no meio dos dois corpos finalmente distintos, os quais

experimentam, pela primeira vez, ao se olharem reciprocamente com “os olhos

da alma”, algo de inédito e ao mesmo tempo de congênere e invisível entre

eles61.

60 Giovanni Reale vê nessa atração que une os amantes uma tematização implícita de

Platão e, todavia, evidente, da busca sapiencial de uma dimensão mais profunda da experiência humana: a do Um transcendente. Seria esta a dimensão perfeita que supera a Dualidade, segundo as assim chamadas doutrinas não escritas que teriam caracterizado a última fase da vida filosófica da Academia. REALE, Giovanni. Eros demone e mediatore.

Milano: Bompiani, 2005, pp.109-115. 61

Essa dimensão “limite” que nós definimos de pré-lógica e na qual se enraíza a pergunta de Hefesto, permitindo o surgimento da alma humana e a sua aventura no mundo, parece-nos bem individuada por Levinas, que assim escreve: “O mito de Aristófanes no Banquete de Platão, em que o amor reúne as duas metades de um ser único, interpreta a aventura com um regresso a si. A fruição justifica esta interpretação. Faz ressaltar a ambiguidade de um acontecimento que se situa no limite da imanência e da transcendência”. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Biblioteca de filosofia contemporânea, Edições 70, p. 133.

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Assim, nessa passagem fundamental, completa-se a transição da união

mítico-simbiótica para uma nova relação amorosa, fundamentada no

conhecimento da força erótica que participa da origem dos seres. Na fala do

comediógrafo Aristófanes, está apresentada (em uma magnífica moldura

literária e com um registro mítico e, por isso mesmo, fundador) a dimensão

profunda e primitiva da “alma grega”, apenas entrevista e só detectada na

maravilha assustadora de seu surgimento.

Não é à toa que Platão escolhe Aristófanes como a personagem

necessária para desenhar literariamente esta cena mítica em O Banquete.

Somente um comediógrafo poderia flagrar o desejo realizado em pleno ato

sexual, para apontá-lo como um processo de conhecimento. A intervenção do

deus Hefesto que se apresenta como o questionador, sua entrada em cena,

intempestiva, promove a atenção para sua indagação: não um questionamento

de cunho moral sobre algo que se pode ou não se pode fazer, mas sim um

questionamento gnosiológico, que toma como exemplo uma alegoria (“mito dos

andróginos”), com personagens em plena ação erótica.

Assim como tudo o que já destacamos em nossa análise do Fédon,

onde a alma era chamada a retirar-se em si mesma, afastando-se das paixões

que impediam sua tentativa de contemplar o que lhe é congênere, o convite de

Hefesto aos amantes parece seguir na mesma direção. Entre o Fédon e O

Banquete, nessa passagem do elogio de Aristófanes, parece que o assunto é,

de fato, o mesmo: o caminho da alma em busca do que lhe é congênere e que

se define tomando distância do corpo. A pergunta de Hefesto pode bem

representar o início, o primórdio desse caminho da alma, o surgimento de seu

impulso primordial – o mesmo que no Fédon se apresenta como um impulso

elevado, fruto da profunda educação que o discípulo havia recebido na

Academia. O Banquete e o Fédon podem bem representar dois momentos

distintos do processo virtuoso de separação da alma do corpo que gera o

verdadeiro conhecimento. Num contexto mítico e fundador, O Banquete

apresenta o nascimento divino da alma que conhecerá o Belo-Bem, dentro dos

limites da natureza mortal. Num contesto órfico religioso, O Fédon demonstra a

como a alma não perca a própria identidade imortal também perante a morte. A

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experiência divina do reconhecimento da ideia de Belo-Bem, com efeito, é

sempre possível dentro dos limites da natureza e a morte representa só um

desses limites. A figura de Sócrates, nos dois diálogos, relata tudo isso.

Da pergunta de Hefesto à scala amoris: Eros sempre gera em si mesmo

Porém quando a força de Eros se apresenta pela primeira vez aos

homens míticos, eles ainda não estão preparados para reconhecê-lo. Os

amantes experimentam o poder invisível e ambíguo da própria alma sem,

todavia, saber expressá-lo na construção de um belo discurso.

Na verdade, eles buscam e almejam permanecer para sempre na

intensidade abrangente da paixão amorosa que, todavia, é descontínua, e pela

própria natureza não conhece o sempre, mas somente a contínua geração e

corrupção. Por conseguinte, as consequências éticas desse reconhecimento

(ou da sempre possível falta de reconhecimento) e dos diferentes frutos

intelectuais que essas duas possibilidades produzem tornam necessário o

esforço educativo representado pela metáfora da scala amoris – será ela que

caracterizará a relação entre amante e amado, já citada no Capítulo III. A

ascensão pela scala amoris torna-se possível e necessária para alcançar o

conhecimento erótico, evitando e corrigindo as quedas provocadas pela falta de

conhecimento direto e correto.

E o que será possível contemplar a partir do ponto culminante da scala

amoris, nesses preciosos instantes de uma real experiência amorosa? A

magnificência do Belo e do Bem em si, quando o ser humano toca

metaforicamente aquilo que é Verdadeiro, segundo a expressão específica

escolhida por Platão (tou` ajlhqou`~ ejfaptomevnw/: O Banquete, 212

a)62.

Quando a alma, iniciada pela proposta da sacerdotisa Diótima, agarra

afasicamente o que é verdadeiro (O Banquete, 212 a), quando nenhum lógos

poderia exprimir esse contato inefável, experimenta um estado divino de

62 Note-se como no primeiro diálogo entre Agatão e Sócrates – este último recém-chegado ao

banquete, o assunto é justamente a vontade do primeiro de tocar o corpo do ilustre convidado para assim captar sua notória sabedoria. A resposta irônica de Sócrates sinaliza que o assunto é sério e compreensível somente dentro de uma finalidade autenticamente filosófica, estranha ao dono da casa (O Banquete, 175 d).

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contemplação que poderíamos definir como pós-lógico (Lima Vaz o define de

para além do lógos) que se manifesta quando as palavras não podem mais

dizer o que a alma está vivendo. Trata-se de um estado da alma sem lógos,

análogo àquele sempre erótico e, todavia, pré-lógico (Lima Vaz o define,

menos que o lógos) mas também divino e inefável, que reconhecemos nos

amantes de Hefesto, quando eles não sabiam dizer o que estavam vivendo.

Todavia há uma diferença que merece ser destacada: se no estado

erótico inicial a falta de palavras pertence ontologicamente ao ser humano que

ainda não é homem que fala e pensa, no momento final a falta de palavras

acompanha um estado elevado e temporário da alma que está contemplando o

Belo em si e o Verdadeiro, e que não perderá por isso sua faculdade logística.

Aponta Lima Vaz :

Assim a alma se revela a Platão em duas estruturas fundamentais que se traduzem na

sua atividade: eros e logos, expressão no discurso, comunhão no amor. São essas

duas estruturas que manifestam na alma o ingênito parentesco com o divino. O eros é

revelação do Belo, o logos revelação do Verdadeiro63

Mas o poder gerativo de Eros não se limita a revelar o Belo aos homens.

De fato, a alma se reconhece gerada pela força (duvnami~) de Eros, quando

recebe os dons divinos que são necessários para vivenciar a própria disposição

para o Belo-Bem: virtude e conhecimento, ou seja, o que “convém à alma

conceber e gerar” (O Banquete, 209 a).

Isto nos permite perceber outro aspecto da natureza divina de Eros: seu

poder auto-gerativo. Explica-se: Eros é sempre sujeito e objeto da experiência

humana. Ele pede aos amantes de ser reconhecido em quanto tal, provocando

ao mesmo tempo o impulso virtuoso para que esse conhecimento se cumpra.

Quando os homens se questionam sobre até que ponto o dom de Eros está

agindo em suas vidas, de fato já estão conhecendo Eros. Este é o seu efetivo

poder: fazendo assim, com efeito, ele gera sempre si mesmo, se reproduz

eternamente (O Banquete, 179, b).

63 LIMA VAZ, Henrique, Eros e logos. Natureza e educação no Fedro platônico. In

Platônica. São Paulo: Loyola, 2011, p. 15.

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O conjunto inseparável dos dons de Eros – virtude e conhecimento

(ajrethv e frovnhsi~) – caracteriza a vida da alma que sempre se

manifesta como fonte única da disposição ética e teorética do homem. Cada

ato cognitivo é, com efeito, um direcionamento filosófico do desejo humano e,

como tal, um ato de domínio ético do corpo, exercitado para um fim escolhido.

A alma que aspira a conhecer o que lhe é congênere através da frovnhési~

ordena eticamente as energias corpóreas necessárias para possibilitar esse ato

cognitivo que, por essa razão, se apresenta ao mesmo tempo como um ato

temperante.

Voltamos a insistir sobre a necessidade de destacar, na visão platônica,

um único processo de conhecimento e purificação da alma (Fédon, 67 c): ela

pensa e é temperante sempre num único movimento, reconhecendo ideias em

si e produzindo ao mesmo tempo virtudes (excelências de atos). E quem

garante a continuidade a esse processo filosófico? É o contínuo, incessante – e

imaginamos que por isso é caracterizado no Fédon como maravilhoso – desejo

do homem. Explica-se: esse desejo sempre está pedindo para ser purificado,

seja quando ativa um processo teorético, seja quando desencadeia um

processo ético. Já podemos agora confirmar que, na visão platônica, o papel

do desejo não pode ser limitado e negativo como acaba sendo apresentado na

primeira parte do Fédon. Não podemos acreditar que ele sirva apenas para

aprisionar, cada vez mais, a alma ao corpo, quando este ainda não estiver

“domado” pela temperança.

Então Eros, semideus e intermediário entre os mortais e os deuses, é

força ética e teorética em perpétua geração, que nasce, impulsiona,

desaparece, para voltar continuamente, reiniciando seu ciclo pró-criativo e

participando, assim, com sua força poderosa e fecunda, para a verdadeira

realidade eterna. A mensagem que O Banquete nos endereça é que Eros, junto

com o dom da “mania” – a paixão intensa que ele proporciona aos homens -

manifesta a força do cosmos, faz conhecer aos homens a tensão da fuvsi~

para o próprio fim, o próprio tevlo~: o Bem eterno.

Eis o poder gerativo de Eros: ele é o paradoxo vital e fecundo que

impulsiona a alma a sempre desejar conhecer. Eros nunca pode parar de ser

ele mesmo: afinal, ele é o continuo desejo do Bem através do Belo. Por isso, a

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impossibilidade de sua satisfação guarda a dúnamis sem fim, que sempre o

relaciona ao Bem e à Virtude! O paradoxo vital de Eros é que sua

impossibilidade lógica o torna, de fato, perenemente possível. Ele é sempre

sem fim, num contínuo devir que o faz ser mortal e imortal ao mesmo tempo,

segundo sua natureza, que respeita o plano mais amplo, da mesma natureza,

que também é direcionada para a imortalidade (O Banquete, 207 d). Agora está

claro que a questão não é mais resolver o paradoxo lógico se é possível ou não

possuir o corpo amado ou o Bem para sempre. A questão que Sócrates e

Diótima colocam é a de aceitar o poder de Eros como o do semideus que

permite aos homens desejar sempre possuir o Bem, porque esta é a inclinação

que constitui a própria natureza de todos os seres viventes.

Desse modo, se a alma é o princípio imortal dessa tensão para o eterno

Bem, a “mania erótica” que doa aos homens desejos impossíveis e poderosos,

que sempre nascem e sempre morrem, apresenta-se como a porta

antropológica a ser reconhecida e aberta pelos homens, para iniciar o caminho

educativo e filosófico da alma, que os levará a reconhecer aquele Belo em si

que não nasce e não morre, que sempre é, no ápice da experiência da scala

amoris.

Essa metáfora da mania erótica como porta antropológica a ser

reconhecida e passada pelos homens é rica de sugestões, com as quais

gostaríamos de concluir esta investigação. Essa porta antropológica do desejo

não foi colocada pelos homens, mas sim pelos deuses, para mostrar onde se

encontra o limiar divino que os une aos seres humanos, ligando a eternidade

ao tempo. Reconhecer a ambiguidade da experiência do desejo é, assim

parece, o primeiro ato de prhónesis que entrevê nessa experiência algo de

misterioso e atrativo que chama os homens a uma interrogação sobre a própria

natureza. Decidir entrar por essa porta é uma escolha educativa e ascética:

significa amar filosoficamente a ambiguidade do desejo, purificar

intelectualmente as ambiguidades que o próprio exercício gera continuamente.

Significa ter compreendido que é, através dessa ambiguidade, que se inicia o

caminho fecundo que leva os homens à condição divina como parte que lhes

pertence.

Portanto, podemos concluir que acolher Eros e sua divina mania, seu

especifico poder gerativo, constitui o primeiro ato filosófico. É o início do

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caminho epistêmico que é, antes de tudo, uma resposta sapiencial a Eros – o

filosofo (O Banquete, 204 b) amante da imortalidade (O Banquete, 207 a), o

deus mais poderoso para alcançar a virtude (O Banquete, 180 b). No segundo

discurso de Sócrates, no Fedro, lemos que essa mania “é doada pelos deuses

aos homens, para a nossa maior alegria. E a demonstração disso não irá

persuadir os homens valorosos, mas somente os sábios” (Fedro, 245 c).

O Banquete e o poder gerativo de sua leitura

Na cena final de O Banquete, finalmente em Atenas surgem as primeiras

luzes do amanhecer. Entre os convidados, Sócrates está ainda desperto e

lúcido, falando com Agatão e Aristófanes sobre um assunto que, de fato,

conclui a parte argumentativa do diálogo: é próprio do homem ser trágico e

cômico ao mesmo tempo. Mas os dois não aguentam mais, adormecem, e

Sócrates, o vencedor da competição, levanta-se e se dirige ao Liceu. A casa de

Agatão, depois de tantas palavras, está finalmente envolta num silêncio

completo, vital: todos os discursos acabaram. Agora, o poder persuasivo que

deles ficou está mexendo nas almas silenciadas dos participantes. O silêncio

que o leitor recolhe apresenta-se como uma experiência plena, enriquecida de

palavras a serem pensadas. Um silêncio que é o ponto culminante de uma

parábola retórica cumprida pela força da persuasão, repleto de duvnami~

erótica e pronta a se transformar – quando do despertar do corpo – em força

lógico-discursiva capaz de procurar virtude e sabedoria. É esta a ultima

condição, a pós-discursiva, a condição de excelência das almas persuadidas

pela troca vital de belos discursos, dom da força socrática capaz de persuadir e

gerar virtude na alma dos ouvintes (O Banquete, 209 a).

Quando Sócrates se levanta e sai perfeitamente sóbrio da casa de

Agatão para alcançar o Liceu, é como se saísse das linhas do texto para

encontrar a alma do leitor, oferecendo a ele uma exposição

extraordinariamente polifônica nos conteúdos e nos registros narrativos da

ambiguidade da própria alma, de seu sempre desejar e sempre satisfazer-se,

em contínuo círculo do Belo e Bom recebidos, e do Belo e Bom procurados.

Essa intuição platônica, claríssima em O Banquete, nos parece ainda hoje real:

cada um de nós experimentou a vergonha e a coragem na frente do próprio

amado, relatada por Fedro; ou a ligação apaixonada e alógica para com uma

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pessoa específica, como nos proporciona Aristófanes; nem todos tivemos a

sorte de experimentar a maravilha e o estupor diante da aparição inesperada

(ejxfaivne~) do Belo que tocará, um dia, nossa alma, conforme o famoso

discurso de Diótima. Mas conhecemos bem o drama e a luta na alma do belo

Alcibíades, cheia de inveja e paixão, sem paz.

Platão nos apresenta tudo isto para que a alma do leitor encontre, em

seu contínuo e sempre variável desejar, o que lhe é congênere: o Belo em si e

o Bem em si, as formas eternas e invisíveis das ideias que só a alma, também

ela forma invisível, pode reconhecer. Eros, nos diz O Banquete, é essa

experiência, humana e divina ao mesmo tempo, do desejo incansável de um

sentido estável. Eros é filósofo e Sócrates é o erótico por excelência. E se a

alma do homem de hoje se reconhece nessa experiência anímica, que nunca

para e sempre se repete, entre o leitor e o texto se desenvolverá uma relação

erótica, recíproca e dinâmica.

Assim como acontece entre os amantes, que não se cansam de se

reencontrar num abraço que se repete, sempre igual e sempre novo, o leitor

tocado na alma voltará sempre e novamente a abrir as páginas de O Banquete,

para procurar novo sentido nas palavras e argumentações já lidas inúmeras

vezes. Entre texto e alma do leitor, a relação será ao mesmo tempo pré-lógica

e pós-lógica, enquanto a pré-condição dessa relação é o movimento da alma

que deseja sempre e incansavelmente conhecer, antes e depois qualquer

argumentação já pensada, lida ou escutada. A alma platônica revelada em O

Banquete é esse movimento eterno (note-se o paradoxo), único, de desejar e

conhecer: desejar de novo para conhecer de novo.

Por isso, essa relação de uma procura ligante entre alma e texto será

sempre satisfeita, e sempre não – condição pela qual a relação continuará

sendo viva, repetida, incansável na busca de novos sentidos. Sempre erótica, e

por isso, sempre, numa última palavra, filosófica.

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