FACULDADE DE SÃO BENTO · do bode expiatório Trata-se, portanto, de fazer ver a lógica sagrada...
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FACULDADE DE SÃO BENTO
Lucas Henrique Pereira Duarte
A SACRALIDADE DA VIOLÊNCIA DO ESTADO: O CÁRCERE À LUZ
DO BODE EXPIATÓRIO DE RENÉ GIRARD
São Paulo
2017
Lucas Henrique Pereira Duarte
A SACRALIDADE DA VIOLÊNCIA DO ESTADO: O CÁRCERE À LUZ
DO BODE EXPIATÓRIO DE RENÉ GIRARD
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como exigência parcial para obtenção do
título de Licenciatura Plena em Filosofia na
Faculdade de São Bento.
Orientador: Prof. Dr. Franklin Leopoldo e
Silva.
São Paulo
2017
Lucas Henrique Pereira Duarte
A SACRALIDADE DA VIOLÊNCIA DO ESTADO: O CÁRCERE À LUZ DO
BODE EXPIATÓRIO DE RENÉ GIRARD
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para obtenção do título
de Licenciatura Plena em Filosofia na Faculdade de São Bento.
Orientador: Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva.
Trabalho de Conclusão de curso defendido e aprovado em 13/12/2017, pela banca
examinadora:
Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva (FSB)
Dr. Rafael Godoi (USP)
Prof. Dr. Edevilson de Godoy (ITESP)
AGRADECIMENTOS
Agradecer é ação eucarística que nos descentraliza e reconhece a diversidade do outro.
Sou grato aos encontros ao longo da minha vida, que possibilitam força dinâmica para
enfrentar as adversidades subjetivas e objetivas do tempo presente: minha mãe Cida e
meu e pai Cassio, meus irmãos Pedro e André, minhas avós e avôs, Miguelina e Eudir,
Adelino e Pedro, bem como tios, tias, primos e primas e uma infinidade de amigos e
amigas que se somam com suas famílias às nossas; 241º Grupo Escoteiro Quarupe e
toda comunidade internacional de escoteiros; Congregação do Espírito Santo sob
proteção do Imaculado Coração de Maria – os espiritanos apenas – que subsidiou toda
minha formação superior; Faculdade de São Bento pela concessão de bolsa de estudo
neste último ano; Pastoral Carcerária, lugar privilegiado que encontrei para engajar-me
no projeto de Jesus de Nazaré; amigos, amigas e colegas, que repartem comigo papos,
cervejas, preces, trajetos e histórias, especialmente, minha namorada Valquíria, por
todo o afetuoso suporte e a partilha do pão e da poesia do dia-a-dia; os professores e
professoras que me acompanharam ao longo desta extensa formação, meu orientador
Franklin e aqueles que aceitaram compor essa banca. Finalmente, ao Amor que me
amou primeiro, me chamou a ser “leve pena ao sopro do Espírito...” e me jogou para
vida, na certeza que tudo é Graça...
Justiça é cega vê tudo negro
Por isso todo culpado é negro
Todo morto é negro
Vocês são cegos
(Baco Exu do Blues, “Abre caminho”, Esú, 2017)
E eu vi a mulher embriagada com o sangue
dos santos e o sangue das testemunhas de Jesus
(Apocalipse 17,6)
RESUMO
A presente monografia trata do conceito da violência sagrada proposto por René Girard em
sua obra A Violência e o Sagrado (1972), a fim de revelar a violência fundadora do Estado
democrático de direito, especificamente, da instituição carcerária. Pretende-se apresentar um
quadro geral da teoria mimética, localizando a vida e obra de seu autor, e compreender a
continuidade entre o sacrifício arcaico, vingança e justiça punitiva, perpetuada no mecanismo
do bode expiatório Trata-se, portanto, de fazer ver a lógica sagrada do cárcere no Estado
secular, que sacrifica homens e mulheres marginalizados, a fim de manter a harmonia social.
Palavras-chave: Violência, Sacralidade, Teoria Mimética, Bode Expiatório, Sacrifício,
Vingança, Justiça, Cárcere.
ABSTRACT
This present study disposes about the concept of the sacred violence proposed by René Girard
in his work The Violence and the sacred (1972). In order to reveal the foundation of violence
in the democratic State, specifically, in the prison. It is intended to present a general screen of
the mimetic theory, locating the life and work of its author, and to understand the continuity
between the archaic sacrifice, revenge and punitive justice, perpetuated in the mechanism of
the scapegoat. It is, therefore, to see the sacred logic of the prison secular State, which
sacrifices marginalized men and women in order to maintain social harmony.
Keys-words: Violence, Sacredness, Mimetic Theory, Scapegoat, Sacrifice, Revenge, Justice,
Prison.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9
CAPÍTULO 1 - RENÉ GIRARD E TEORIA MIMÉTICA ............................................... 16
1. Um pensador sem fronteiras ............................................................................................. 16
1.1. Vida e obra ................................................................................................................. 17
2. Desejo é mimético ............................................................................................................ 19
1.2. Sobre as mediações .................................................................................................... 21
2.2. Sobre os desejos ......................................................................................................... 22
3. Bode expiatório ................................................................................................................. 23
1.3. Crise mimética............................................................................................................ 24
2.3. Mecanismo do bode expiatório .................................................................................. 27
3.3. Comunidade humana .................................................................................................. 28
4. A revelação da Revelação ................................................................................................. 30
1.4. Bíblia Hebraica ........................................................................................................... 31
2.4. A novidade do Evangelho .......................................................................................... 32
CAPÍTULO 2 - A VIOLÊNCIA SAGRADA ....................................................................... 34
1. Um olhar crítico para o sagrado ........................................................................................ 34
2. Sacrifício e violência ........................................................................................................ 35
1.2. Substituição vitimaria ................................................................................................. 36
2.2. Vitima sacrificável ..................................................................................................... 38
3. Ciclo de vingança .............................................................................................................. 39
1.3. Controle da vingança .................................................................................................. 42
4. Sacrifício e justiça ............................................................................................................. 43
1.4. Teologia do judiciário ................................................................................................ 45
2.4. Crise dos sistemas sacrificiais .................................................................................... 47
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 51
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 55
ANEXO I ................................................................................................................................. 59
ANEXO II ................................................................................................................................ 60
INTRODUÇÃO
1º de janeiro de 2017. A grande maioria da população brasileira festeja a chegada de
um novo ano. Champanhe. Pernil. Frutas. Mesa farta. Amigos e familiares. Pular sete ondas e
fazer promessa. Contagem regressiva. Feliz Ano novo! Entretanto, nas periferias do país,
distantes geograficamente do eixo RJ-SP, longe da av. Paulista e da Praia de Copacabana, há
muito pouco que se celebrar, além da sofrida e teimosa existência de cada dia. Nas unidades
prisionais do norte e nordeste do país, o ano de 2017 iniciou seguindo uma rotina diferente da
descrita. Sem fogos e ceia, homens e mulheres vivem o seu dia-a-dia como pena. Ao todo, nos
primeiros dias desse ano, formam 113 pessoas assassinadas sob custódia do Estado:1 56 no
Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ), no Amazonas; 31 na Penitenciária
Agrícola do Monte Cristo, em Roraima; e, 26 na Penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do
Norte. Ninguém chorou por estas mortes! Tudo aconteceu no mesmo ano em que se
completam 25 anos que pelo menos 111 pessoas reclusas na Casa de Detenção, em São Paulo,
foram assassinadas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, episódio conhecido como
massacre do Carandiru. Desde 1992 a 2017, temos assistido, silenciosamente, a ampliação das
carceragens, mas a manutenção da mesma lógica de sempre que produz massacres2 e mortes.
3
Enquanto as empresas de comunicação transformam a violência do Estado nos
cárceres em espetáculo, fortalecendo, mesmo que indiretamente, a consolidação do populismo
penal – leis mais duras, penas mais severas – expresso concretamente no governo da pobreza
do Estado Penal das democracias neoliberais dos novos tempos do século XXI, o país carece
de um debate sério acerca da situação carcerária, e no limite, das práticas punitivas legais no
Estado democrático de direito. Nossas cadeias permanecem numa condição de invisibilidade,
que somente aparece ou é trazida à tona quando suas mazelas extrapolam as muralhas e
chegam a nós ou pelas lentes e letras de jornalista e pesquisadores, ou, como no caso das
populações periféricas empobrecidas – clientela preferencial –, quando um dos seus cai no
sistema. É mais do que necessário, pois, jogar luz a esta zona de invisibilidade, que tanto o
1 Esse número sobe para 142 se considerado os primeiros quinze dias do ano e as mortes no Paraná.
2 Papuda, 17/08/2000, 11 mortes; São Paulo, 18/02/2004, 16 mortes; Urso Branco, 01/01/2002, 27 mortes; Urso
Branco, 30/04/2004, 12 mortes; Rio de Janeiro, 29-30/05/2004, 31 mortes; Pedrinhas, 08/11/2010, 18 mortes;
Região metropolitana de Fortaleza, 21-22/05/2016, 14 mortes; Monte Cristo, 16/10/2016, 10 mortes; e, Ênio dos
Santos Pinheiro, 17/10/2016, 8 mortes. 3 Apenas no ano de 2016, morreram cerca de 379 pessoas em unidades prisionais. Ver Anexo II.
10
debate público quanto o acadêmico se furtam de fazer ver e ouvir e desenvolver uma reflexão
profunda, distante das respostas fáceis que até então temos assistido, sobre a lógica perversa e
condições materiais intoleráveis do cárcere.
Os dados mostram que o Brasil é o terceiro país com maior população privada de
liberdade do mundo. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2014, possuíamos
622.202 pessoas presas (CNJ, Disponível em: <https://goo.gl/4iStUa>. Acesso em:
21/11/2017). São uma multidão de pessoas encarceradas que excedem as 357.219 vagas,
gerando uma superlotação nas unidades prisionais. O Brasil está entre os países que mais
prende no mundo, e marchamos no sentido contrário das práticas internacionais. Dados do
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) do Ministério de Justiça
mostram que entre 2008 e 2014, a taxa de aprisionamento no Brasil apresenta uma tendência
contrária aos demais países com maior número de população carcerária – EUA, China e
Rússia. Enquanto a média mundial é de 144 pessoas presas por 100 mil habitantes, o Brasil
soma 306,2 para cada 100 mil, e mais, entre 1990 a 2014 houve um aumento de 575% na
população encarcerada no Brasil (MINISTÉRIO DE JUSTIÇA, 2014. Disponível em
<http://goo.gl/UNM7WS>. Acesso em: 21/11/2017). Nunca se prendeu tanto!
Ao mesmo tempo em que cresce o encarceramento não é percebido a diminuição da
violência. No estado de São Paulo, nos últimos vinte anos, se inauguraram 131 novas
unidades prisionais, totalizando 168 (SAP. Disponível em: <https://goo.gl/L4hGtM>. Acesso
em: 21/11/2017). No mesmo período, os boletins de ocorrências registrados nas delegacias de
polícia cresceram cerca de 170%, ao passo que as prisões efetuadas acenderam 217%,
segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) (Disponível em:
<http://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/>. Acesso em: 21/11/2017). Enquanto o discurso
institucional e normativo insiste no objetivo da pena de privação de liberdade como meio de
ressocialização4, não é verificado nenhum índice que aponte para eficácia e eficiência do
sistema punitivo nesse sentido. Atualmente, os indicadores demonstram tratar-se tão somente
de uma tecnologia de Estado que seleciona e priva de direitos uma parcela da população
marcada desde muito tempo pela exclusão e segregação, produzindo vidas matáveis, mortes
em vida e mortes de fato (MALLART e GODOI, 2015. Disponível em:
<https://goo.gl/8zr1M4>. Acesso em: 21/11/2017). A maioria das pessoas privadas de
4 Segundo a Lei de Execução Penal (LEP): “Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de
sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do
internado”.
11
liberdade é jovem (56% da população carcerária têm entre 18 a 29 anos, enquanto, no país são
cerca de 20% da população absoluta); negra (duas em cada três pessoas privadas de liberdade
são negras, enquanto no Brasil essa proporção é menor, já que 51% da população absoluta se
consideram negra); e, de baixa escolaridade: (apenas 8% da população carcerária completou o
ensino médio). (MINISTÉRIO DE JUSTIÇA, 2014. Disponível em
<http://goo.gl/UNM7WS>. Acesso em: 21/11/2017)
Com agravante, do ponto de vista garantista, as unidades prisionais brasileiras se
encontram em situações que violam todos os direitos da pessoa humana. De modo geral,
nossas prisões são caracterizadas pela superlotação, que acarreta problemas de ventilação,
iluminação e higiene, como também o descumprimento ou cumprimento precário da Lei de
Execução Penal (LEP), legislação que prevê os direitos5 da pessoa presa e sua assistência
6 no
cumprimento da pena. O número de pessoas presas que trabalham e/ou estudam é baixíssimo,
os itens de higiene pessoal e matérias de limpezas são insuficientes, a assistência médica é
praticamente inexistente e a morosidade dos processos jurídicos angustiantes. Trata-se, pois,
de um sistema violentíssimo que imputa o sofrimento e a dor, marcando corpos e vidas.
Essa realidade intolerável não é totalmente ignorada por estudantes e pesquisadores.
Se por um lado, muitos trabalhos colaboram com a expansão no Brasil das práticas punitivas e
o encarceramento em massa; por outro, nos últimos anos tem crescido estudos sobre o cárcere
a partir de outros enfoques e epistemologias. Sua complexidade e mudanças estruturais têm
movido pessoas de diversas áreas, não apenas das habituais ciências jurídicas e criminais, a se
debruçar sobre as práticas punitivas nos tempos do neoliberalismo. No Brasil, contribuem
bastante os trabalhos de sociólogos, antropólogos, historiadores e juristas, como Fernando
Salla,7 Sérgio Adorno,
8 Vera Malaguti,
9 Camila Dias,
10 Karina Biondi,
11 Anna Lucia
Schritzmeyer,12
Antônio Rafael Barbosa13
, Adalton José Marques14
Rafael Godoi,15
Fábio
5 Segundo a Lei de Execução Penal (LEP): “Art. 40 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade
física e moral dos condenados e dos presos provisórios”. 6 Art. 10. “A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o
retorno à convivência em sociedade.” (LEP). 7 SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo: 1822-1940. São Paulo, Annablume, 1999.
8 ADORNO, Sérgio. Sistema penitenciário no Brasil: problemas e desafios. Revista USP, n. 9, 1991, p. 65-78.
9 ABRAMOVAY, Pedro Vieira e BATISTA, Vera Malaguti (orgs.). Depois do grande encarceramento. Rio de
Janeiro: Revan, 2010. 10
DIAS, Camila Caldeira Nunes. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do
Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese de Doutorado em Sociologia, São
Paulo, FFLCH-USP, 2011. 11
BIONDI, Karina. Junto e misturado: uma etnografia do PCC. São Paulo, Terceiro Nome, 2010. 12
SCHRITZMEYER, Anna Lucia P. Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São
Paulo: Terceiro Nome, 2012.
12
Mallart,16
Natália Redígolo,17
Clarissa Nunes Maia, Flávio de Sá Neto, Marcos Costa e
Marcos Luiz Bretas. 18
Também organizações e movimentos sociais estão mobilizados na
produção de relatórios e estudos sobre os sistemas penal e carcerário, a saber, Pastoral
Carcerária (CNBB)19
, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim),20
Instituto Terra,
Trabalho e Cidadania (ITTC),21
Justiça Global,22
Associação de Mães e Amigos dos Presos
(AMPARAR),23
Mães de Maio24
e outros.
No que diz respeito à filosofia propriamente, sua história é rica em problemas e
pensadores. Entretanto, apenas no século XX, com Vigiar e punir: história da violência nas
prisões (1975) de Michel Foucault, que o estudo filosófico adentrou as muralhas da prisão. É
certo que Foucault não inaugurou esse estudo, mas são inegáveis as contribuições advindas de
seu trabalho sobre o controle, a disciplina e a gestão das prisões. Com certeza, é de se
observar que a prisão tal qual a concebemos não poderia ser um problema (ou não aparece
como um problema filosófico) para pensadores canônicos do Ocidente – Platão, Aristóteles,
Agostinho, Tomás de Aquino, e etc. – por se tratar de um aparato estatal inscrito a partir da
gênese do Estado moderno, mesmo que a pena seja bastante anterior ao cárcere em si.25
É
evidente que em cada época houve homens e mulheres que elaboraram racionalmente
possíveis respostas para as aflições e contextos. Sem desmerecer a contribuição dos antigos,
creio que é preciso aprofundar o pensamento de alguns contemporâneos. René Girard (1923-
2015) é um destes.
13
BARBOSA, Antônio Rafael. Prender e dar fuga: biopolítica, tráfico de drogas e sistema penitenciário no
Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Antropologia Social, Rio de Janeiro, Museu Nacional/ Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2005. 14
MARQUES, Adalton Jose. Crime, proceder, convívio-seguro: um experimento antropológico a partir de
relações entre ladrões. 2009. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, FFLCH-USP, São Paulo, 2010. 15
GODOI, Rafael. Fluxos em cadeia: as prisões em são Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo,
2017. 16
MOREIRA, Fábio Mallart. Cadeias dominadas: dinâmicas de uma instituição em trajetórias de jovens
internos. São Paulo: Terceiro nome, 2014. 17
REDÍGOLO, N. C. Para além dos muros e das grades: atitudes e valores em relação às instituições
carcerárias do município de Valparaíso/SP. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, Universidade
Estadual Paulista, Marília, 2013. 18
MAIA, Clarissa Nunes et al. (orgs.). História das prisões no Brasil. vol 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009. 19
Ver: <http://carceraria.org.br/>. 20
Ver: <https://www.ibccrim.org.br/>. 21
Ver: <http://ittc.org.br/>. 22
Ver: <http://www.global.org.br/>. 23
Ver: <http://associacaoamparar.blogspot.com.br/>. 24
Ver: <http://maesdemaio.blogspot.com.br/>. 25
Sobre a pena, diversos autores consagrados da história da filosofia refletiram. Em nosso trabalho não os
citamos por não ser diretamente nosso objetivo – falar sobre a pena em si – e tampouco estender
demasiadamente nosso trabalho.
13
O pensador francês desenvolveu uma vasta bibliografia contribuindo com a crítica
literária, psicologia, antropologia, filosofia e teologia. Sua principal tese: a teoria mimética
contribui bastante para entendermos e avançarmos no debate quando falamos de violência. Ao
problematizar o desejo humano, Girard produz um rico estudo que ultrapassa as fronteiras das
ciências modernas; e vincula a violência e o sagrado, instituições fundantes das comunidades
humanas.
Neste trabalho escolhemos pensar a violência, esse fenômeno complexo e atual, em
sua manifestação pelas vias legítimas do Estado, que, por sua vez, se expressa de diversas
formas, seja simbolicamente na morosidade burocrática dos processos administrativos, seja
concretamente na ação cotidiana de agentes de segurança pública. Selecionamos, pois, a
administração da justiça pública, focalizando, o cárcere, como principal dispositivo do
sistema punitivo estatal. O nosso trabalho quer analisá-lo a partir das contribuições do
pensamento de René Girard, que explicam a violência humana com base no desejo mimético e
no mecanismo do bode expiatório, e trazem para o debate secular o tema do sacrifício,
vingança e justiça. Desejamos, deste modo, estudar a atualidade da teoria mimética e do
mecanismo do bode expiatório; compreender a lógica sacrificial do sistema punitivo; e
entender o cárcere como expressão do monopólio da vingança pelo Estado. Por isso, nos
perguntamos: como o pensamento de René Girard se insere na história da filosofia? Como a
teoria mimética, a partir do mecanismo do bode expiatório, pode explicar o funcionamento do
sistema punitivo? E, quais relações podem ser estabelecidas entre esse mecanismo, e sua
lógica, com justiça punitiva e o sistema carcerário?
O pensamento de Girard nos sugere a hipótese de que o sistema carcerário moderno
substitui o sacrifício primitivo e intolerável na contemporaneidade. O mecanismo de
transferência violenta do bode expiatório de René Girard purifica a violência humana contra
as minorias, e se expressa atualmente através do sistema carcerário que constitui um
mecanismo estatal que sacrifica – marca os corpos de – homens e mulheres marginalizados, a
fim de manter a harmonia social, baseado no castigo e na vingança, assim, tanto o sacrifício
dos inocentes como a administração da justiça pública são as duas caras da mesma moeda da
violência institucional, e por isso legítima e sagrada.
O nosso intento se desenvolve em duas partes. Na primeira, traçamos um panorama
geral da vida e da obra de René Girard, bem como, explicitamos as teses de sua teoria
mimética e seus desdobramentos. Inicialmente localizamos a herança e a contribuição
14
filosófica de René Girard, postulando seu caráter intelectual profundo que supera as fronteiras
que fixam as ciências humanas para elaborar uma teoria geral sobre o humano, colaborando,
assim, desde a crítica literária à teologia; e, posteriormente, nos laçamos nos insights de
Girard. A condição mimética do desejo humano é analisada com base nos tipos de mediação e
desejo, se valendo dos exemplos literários utilizados por Girard para validar sua teoria. O
mecanismo do bode expiatório é considerado como processo de transferência violenta da
“guerra de todos contra todos” para “guerra de todos contra um”, pela seleção de uma vítima
expiatória, mais ou menos arbitraria, que permite a saída de uma situação de crise, cuja
origem está na rivalidade mimética produzida pelo desejo; e seu apaziguamento possibilita a
estruturação da comunidade humana, a partir de mitos, ritos e tabus. A tradição judaico-cristã
surge, finalmente, como literatura reveladora ao dar voz às vítimas expiatórias, afirmando sua
inocência, ao invés de legitimar a violência ritual e em detrimento dos sacrificadores. Na
tradição hebraica, personagens como Abel, José do Egito, Servo de Iaweh e Jó são exemplos
destas narrativas que desvela o mecanismo do bode expiatório, e a experiência de Jesus de
Nazaré é central para o desmoronamento do mimetismo que engendra a violência sagrada.
Na segunda parte, nos propomos mais precisamente a analisar o mecanismo do bode
expiatório como expressão da violência sagrada. O sacrifico é posto em destaque. A
centralidade de lógica enquanto ritual de purificação, é apreendido a partir de relatos
etnográficos, e seu conteúdo mítico com base nas tragédias clássicas e moderna, assim
pretendemos evidenciar o processo de transferência e seletividade da violência. O sacrifício
dos bodes expiatórios obedece a uma lógica própria que podemos ver reproduzida nos
processos de vingança coletiva, e controla a vingança privada. O sistema jurídico penal se
insere, por fim, como formulação da racionalidade burocrática perpetuadora das práticas
sacrificiais que tanto a modernidade ilustrada quis por fim. Descrevemos, pois, sua teologia
como condição transcendental que a mantém estável e, encerramos nosso estudo tematizando
o problema da indiferenciação na crise dos sistemas sacrificiais.
Nosso trabalho, para tanto, se baseia, sobretudo, numa leitura atenta de A violência e o
sagrado e de autores como Richard J. Golsan e Michael Kirwan que elaboraram duas
importantes obras para iniciarmos um estudo sobre teoria mimética, Mito e Teoria Mimética:
uma introdução ao pensamento girardiano e Teoria Mimética: conceitos fundamentais,
respectivamente. O livro de René Girard, publicado em 1972, estabelece a relação entre
violência e sagrado, como sugere o título, através da reabilitação do estudo sobre o religioso,
para além do pedantismo científico materialista, que desqualifica toda a experiência sagrada e
15
mítica como algo do campo do irracional. Girard é capaz de apreender e revelar que manter a
cegueira intelectual sobre as instituições primitivas e modernas é negar a continuidade entre
ambas. Enquanto, o racionalismo ocidental moderno quer se afastar de toda e qualquer
irracionalidade, não percebe que reproduz as mesmas instituições baseadas em lógicas tais
quais ele pretendia escapar, mas agora com um agravante, tudo alicerçado na razão. O texto
de Golsan nos possibilitou o acesso ao pensamento girardiano. Apresentando um panorama
completo da obra de Girard e uma apresentação sintética, focada no lugar do mito no
empreendimento da teoria mimética, o autor reconstrói todo o edifício explicando
criticamente passo por passo da teoria mimética. Kirwan, por sua vez, nos brinda com um
maravilhoso, nas palavras do próprio Girard quando publicado em 2004, manual introdutório
que nos permite vislumbrar os limites e caminhos futuros da teoria mimética.
Ao fim e ao cabo, nossa pesquisa, entre outras coisas, se insere entre aquelas
produzidas pelos incomodados, que buscam interpretar e dar sentindo para a experiência. O
último – e talvez crucial – elemento que baseia nosso estudo é a inquietação de um agente de
pastoral carcerária da Arquidiocese de São Paulo, que regularmente realizou visitas às pessoas
privadas de liberdade nas unidades circunscrita na Região Episcopal Belém (zona leste da
capital paulista), a saber, CDP Vila Independência,26
CDPs Chácara Belém I e II. Esperamos,
que assim como a obra de Girard, possamos desvelar a violência naturalizada – dessacralizar a
violência, diria Girard – que permeia nossas instituições, e em última análise, efetivamente
desconstruir prisões.
26
Ver Anexo I.
CAPÍTULO 1 - RENÉ GIRARD E TEORIA MIMÉTICA
1. Um pensador sem fronteiras
Se formos buscar nos manuais de filosofia com certeza não encontraremos o nome de
René Girard. Dificilmente nas grades curriculares dos cursos de graduação em Filosofia as
obras de Girard farão parte da bibliografia básica de algum componente, talvez numa
complementar. Entretanto, isso em hipótese alguma deve nos levar a conclusão de que René
Girard não é um filósofo, ou que suas contribuições são desnecessárias para a História da
Filosofia. Um problema que poderíamos enfrentar seria nos perguntar o que é um filósofo.
Ou, por que chamamos Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes, Leibniz,
Kant, Hobbes, Locke, Nietzsche, Schopenhauer, Husserl, Sartre, Foucault e outros de
filósofos enquanto relutamos para nomear alguns pensadores também como filósofos? Em
suma, a questão que se coloca é: o que faz do filósofo um filósofo? Não obstante, devemos
suspender nosso juízo a este respeito e afirmarmos, tão somente, a herança filosófica de
Girard, bem como a contribuição de sua teoria, elaborada a partir do problema do desejo
humano:
[...] Girard se ocupou de uma leitura atenta de Hegel, Nietzsche e outros filósofos,
especialmente da tradição francesa existencialista. Uma sessão do Colloquium on
Violence and Religion em 2001 teve “Girard e a Filosofia” com seu tema, com
contribuições de Charles Taylor e Gianni Vattimo, enquanto num encontro anterior,
Paul Ricoeur expressou sua dívida para com os insights de Girard. A preocupação
expressa por Domenasch, de que Girard ocupa a posição de um filósofo sem aceitar
os encargos de um filósofo, é um tanto injusta (poder-se-ia perguntar, de maneira
sarcástica, o que são exatamente os encargos e tarefas de um filósofo hoje?). De
qualquer modo, embora Girard não alegue ser um filósofo, ele é, todavia, alguém
que se engajou positivamente na tradição filosófica e, por sua vez, inúmeros
filósofos importantes foram críticos da obra de Girard. (KIRWAN, 2015, p. 179-
180)
17
Ao fim e ao cabo, para nossa pesquisa não é central a discussão se o autor pode ser
considerado um filósofo ou não, cumpre apenas apresentar sua teoria e os possíveis
desdobramentos filosóficos, e especificamente, na filosofia política, isto é, de que modo o
pensamento de René Girard contribui para a reflexão sobre a violência de Estado produzida
pelo sistema punitivo. O fato é que tentar descrever René Girard tomando somente uma
perspectiva das ciências modernas é bastante complicado. Se quisermos defini-lo, diríamos
que René Girard é um intelectual capaz de ultrapassar as fronteiras das ciências humanas.
(KIRWAN, 2015, p. 19)
Começando com a crítica literária e terminando com teoria geral da cultura, através
de uma explicação do papel da religião nas sociedades primitivas e uma
reinterpretação radical do cristianismo, René Girard modificou completamente o
panorama das ciências sociais. Etnologia, história das religiões, filosofia,
psicanálise, psicologia e crítica literária são explicitamente mobilizadas nesta obra.
Teologia, economia e ciências políticas, história e sociologia – resumindo, todas as
ciências sociais e aquelas que antes eram chamadas ciências morais – são
influenciadas por ela. (DUMOUCHEL, Paul. apud KIRWAN, 2015, p. 34)
1.1. Vida e obra
A obra de Girard é bastante vasta e parte, inicialmente, da crítica literária com a
publicação, em 1961, de Mentira Romântica e Verdade Romanesca, onde elabora os
princípios da sua teoria mimética, a partir da análise de cinco importantes escritores:
Cervantes, Stendhal, Flaubert, Proust e Dostoiévski; abrange a psicologia e antropologia, em
1971, Girard publica A Violência e o Sagrado, apresentando o mecanismo do bode expiatório
a partir de mitos, ritos e rituais primitivos; até envolver a teologia, com Coisas ocultas desde
a fundação do mundo, de 1978, um extenso e sistemático diálogo sobre a totalidade da teoria
mimética a partir da revelação judaico-cristã. Estas são as três principais obras de René
Girard, entretanto há uma infinidade de outros títulos, a maior parte são obras coletivas,
artigos e entrevistas em jornais. Por isso, seu perfil é bastante complexo, mas sua contribuição
é inegável:
18
Nem antropólogo profissional, nem filósofo, nem teólogo, nem psicólogo, contudo,
Girard traz para cada uma dessas disciplinas tanto problemáticas novas como
intuições muito pertinentes fazendo com que – e talvez as obrigue – enriqueçam os
seus conteúdos teóricos e questionem os seus fundamentos. (KIRWAN, 2015, p. 20)
Nascido na França, em Avignon, no Natal de 1923, e filho do curador do museu da
cidade, Girard estudou na École des Chartes, em Paris, entre 1943 e 1947; especializando-se
em história medieval e paleografia, antes de imigrar para os EUA. Onde concluiu seu
doutorado em História com a tese American Opinion on France, 1940-1943, na Universidade
de Indiana, em 1950; tornou-se professor em diversas universidades norte-americanas, como
Indiana, John Hopkins, Nova York e Stanford; e casou-se com Martha McCullough, em 1951,
tendo três filhos. Em 1995, René Girard se aposenta na Universidade de Stanford, mas sua
atividade como pesquisador e hermeneuta da cultura humana só pararam vinte anos depois,
quando veio a falecer em Stanford, Califórnia.
De sua biografia, Kirwan destaca acontecimentos que o levaram a se interessar pelos
temas da mímesis, da violência e do sagrado, a saber: a experiência da Segunda Grande
Guerra (1939-1945); o envolvimento com a Resistência Francesa; a impressionante
capacidade da Juventude Operária Católica (JOC) de resistir aos totalitarismos; sua conversão
ao cristianismo, na Páscoa de 1959; a discriminação vivida em Paris e o racismo no EUA; e o
suicídio de seu irmão. Porém, crucial é sua experiência literária. Os textos de Proust,
Dostoiévski, Shakespeare e os Evangelhos deram energia e inspiração e o impactaram
profundamente. Assim, podemos dizer que Girard é, sobretudo, um leitor.
Ao longo de um pouco mais de 90 anos, René Girard produziu muito. Além das obras
já mencionadas, há uma porção de ensaios, capítulos de livros e entrevistas.27 Kirwan nos
apresenta uma bibliografia básica sob três títulos: trabalhos-chave; aplicação da teoria
mimética; e entrevistas importantes, apresentações em conferências (2015, p. 45-46).
27
A Universidade de Innsbruck organizou um banco de dados completo das produções de Girard:
<http://uibk,ac.at/rgkw/mimdok/suche/index.html.en>.
19
2. Desejo é mimético
A principal tese do pensamento de René Girard pode ser resumida na seguinte
expressão: o desejo é mimético. De fato, o tema da mímesis não é novo na filosofia ocidental.
O pensamento antigo já observava o papel da mímesis nas relações. Aristóteles afirma que a
diferença entre o ser humano e outras formas de vida é sua capacidade de imitação, já Platão,
em sua ontologia da imitação, a considera perigosa e problemática. (KIRWAN, 2015, P. 53) O
pensamento romântico e o moderno desprezam a imitação como renúncia da individualidade e
personalidade própria. (Girard 2011, p.37) Entretanto, Girard recupera a mímesis, e a relaciona
ao desejo humano. Essa é sua originalidade, que radicalmente enraizada no problema da
violência humana, busca compreender porque entre todas as forças de vida, os seres humanos
são aparentemente os mais violentos e propícios ao conflito? (Ibid, p. 55.)
Há duas aproximações modernas à violência. A primeira é política e filosófica, ela
considera o homem naturalmente bom e atribui tudo o que contradiz esse postulado
às imperfeições da sociedade, à opressão das classes populares pelas classes
dirigentes.
A segunda é biológica. No seio da vida animal, que é naturalmente pacífica, apenas
a espécie humana é verdadeiramente capaz de violência. Freud falava de uma pulsão
de morte. Atualmente, procuram-se os genes da “agressividade”.
Essas duas aproximações permanecem estéreis. Há anos venho propondo uma
terceira, que é ao mesmo tempo muito nova e muito antiga. Quando falo dela,
desperto certo interesse, imediatamente substituído pelo ceticismo quando pronuncio
a palavra-chave de minha hipótese: imitação. (GIRARD, 2011, p. 33)
Girard se afasta das hipóteses em voga para postular que o desejo humano é
eminentemente social, e não inato ou autônomo. O ser humano só deseja um objeto por que
outro ser humano também o deseja e não há nada no próprio objeto que o atraia a cobiça. E
dessa relação surge rivalidade e violência. Para Girard, o desejo não é linear, não se trata de
uma relação entre A e B. Sendo A o ser humano que deseja e B a coisa desejada. A partir da
crítica literária fica evidente que o desejo é uma relação triangular entre A, B e C. Sendo,
agora, C o mediador ou o modelo de desejo.
20
O caso de Dom Quixote, analisado por Girard, é um bom exemplo. O cavaleiro
andante de Cervantes se coloca em marcha, em companhia de Sancho Pança, em busca de
aventuras e do amor de Dulcinéia por causa de um modelo: Amadis de Gaula, o mais perfeito
dentre os cavaleiros andantes. Dom Quixote, assim, deseja ser um cavaleiro andante por que
Amadis o foi, não por livre iniciativa e vontade, mas por desejo mimético. O mesmo acontece
nas seguintes obras analisadas por Girard: Em Busca do Tempo Perdido de Proust, onde o
narrador, o jovem Marcel, deseja ser escritor como foi Bergotte; em Madame Bovary de
Flaubert, a protagonista imita as mulheres adúlteras da literatura em seu desejo de possuir
alegrias advindas do amor; n’O Vermelho e o Negro de Stendhal, o jovem tutor deseja ser
glorioso como Napoleão, ao passo que ele se torna objeto de desejo do sr. Valenod porque o
sr. Rênal o contratou como tutor de seus filhos; e em Memórias do Subsolo de Dostoiévski, o
narrador escolhe primeiro um oficial e depois um antigo amigo de escola para mediar seus
desejos, isto é, ser modelo do que se deve desejar.
A partir dessas obras, Girard apresenta a mentira romântica que atribui à primazia do
indivíduo e à autonomia do desejo individual, afirmando que estes autores fornecem um
antídoto contra as ilusões e desilusões fomentadas pelo romantismo: a verdade romanesca
(GOLSAN, 2014, p. 34). Enquanto a primeira esconde a raiz mimética do desejo, a outra
revela o papel crucial de um mediador que estimula o desejo, logo, o ser humano só deseja o
que os outros desejam.
O papel desempenhado pelo modelo/mediador é importante, pois a depender da
distância entre este e o indivíduo que deseja pode surgir uma situação de rivalidade. É preciso
considerar que mesmo que a violência tenha sua origem no desejo mimético, para Girard, esta
faculdade não é negativa e bastaria deixar de imitar o desejo do outro para alcançarmos a paz
e harmonia desejada pelos povos. Cabe recordar que a capacidade de imitar do ser humano é
importantíssima para a educação. Não apenas imitamos hábitos e costumes, mas também no
processo de alfabetização somos levados a imitar àquela forma pontilhada no livro, que
posteriormente aprenderemos que se trata de uma letra com um valor simbólico específico.
Logo, Girard distingue a mediação em dois modos, pois parece bastante diferente a mediação
de Amadis sobre Quixote do que a de Velenod sobre o Sr. Rênal. Como também, há dois tipos
de desejo.
21
1.2. Sobre as mediações
O que irá diferenciar o papel do mediador sobre o sujeito desejante será a distância,
pois quanto maior esta for, mais o mediador permanecerá apenas como um modelo a ser
imitado pelo sujeito que deseja. O caso de Dom Quixote é exemplar: Amadis viveu em
tempos e espaços fictícios, assim, as chances dos dois se encontrarem e disputarem o mesmo
objeto são nulos. A isto, Girard, chamou de mediação externa:
Falaremos de mediação externa quando a distância é suficiente para que as duas
esferas de possíveis, cujo centro está ocupado cada qual pelo mediador e pelo
sujeito, não estejam em contato. (GIRARD, 2014, p. 31)
O mesmo acontece com Julien Sorel de Stendhal, em O Vermelho e o Negro, que a
todo o momento procura viver como o exemplo de Napoleão, separados pelo tempo. Assim, o
mediador é para o sujeito àquele que indica o que desejar de um modo muito mais consciente
do que a mediação interna: “mostrai-me por onde tenho de começar a imitar-vos”, proclama
Dom Quixote. Nesse sentido, Girard nos diz que “O herói [sujeito desejante] da mediação
externa proclama em alto e bom tom a verdadeira natureza de seu desejo. Ele venera
abertamente seu modelo e declara-se seu discípulo.” (Ibid, p. 33)
Não obstante essa distância não é apenas geográfica. Girard nos fala de uma distância
espiritual, uma distância que permanece intransponível, onde nenhuma rivalidade é viável e a
harmonia nunca fica seriamente afetada (Idem). Assim, a distância entre mediador e sujeito
pode ser no espaço, no tempo, na hierarquia social, em prestígio, etc.
O motivo é o relacionamento hierárquico entre modelo e imitador. Uma vez que o
modelo é um personagem de ficção, nunca pode haver um conflito de rivalidade
entre Dom Quixote e Amadis; a distância entre eles não pode ser ultrapassada. De
igual modo, a distância social entre Dom Quixote e seu reconhecido pupilo e criado,
Sancho Pança, impede qualquer tipo de conflito entre eles. A obra termina sem
violência. (KIRWAN, 2015, p. 67)
Agora, quando a distância entre modelo e sujeito desejante é diminuída ocorre uma
mudança no tipo de mediação, e a chance desta relação se mudar de uma admiração para um
conflito é factível. Girard chama essa mediação de mediação interna. (GIRARD, 2014, p. 33) A
22
proximidade faz com que as partes – mediador e sujeito – entrem em conflito pela aquisição
do mesmo objeto.
A mediação interna se desdobra em diversos aspectos. Primeiro já não podemos dizer
que em uma relação mimética de mediação interna as partes desempenham papéis estáticos.
Isto é, o sujeito desejante não aparece apenas como aquele que deseja o objeto, mas também
como mediador do desejo de seu mediador. Em O Vermelho e o Negro, Rênal deseja Julien
por causa de Valenod, ao passo que Valenod deseja Julien por causa de Rênal. Ambos se
imitam e tornam-se duplo e rival, um é o espelho do desejo do outro e, por isso, se apresentam
como obstáculo na aquisição do objeto. Segundo, podemos afirmar que a mediação interna
produz uma situação de rivalidade entre sujeito e mediador. Quanto mais mediador e sujeitos
estão próximos mais aumenta o desejo e cresce as barreiras para a aquisição. E, por
conseguinte, terceiro, no conflito mimético o próprio objeto perde a centralidade. A rivalidade
de Valenod e Rênal toma a cena, e podemos dizer que o objetivo de ambos em contratar
Julien não é tão intenso quanto o de se afirmar diante do outro. Entretanto nessa corrida pelo
outro não se percebe o papel do mediador para a valorização do objeto.
A mediação interna, portanto, é um processo que deixa suas vítimas cegas e seus
próprios efeitos: os indivíduos que desejam passam a crer na autonomia dos próprios
desejos, e ao fazê-lo, negam a importância do mediador. Por fim, os próprios
mediadores são suprimidos. (Ibid, p. 33)
2.2. Sobre os desejos
Girard também considera dois tipos de desejo. Ainda que ambos sejam miméticos, há
um desejo de apropriação e um desejo metafísico. Enquanto o primeiro é o desejo de possuir o
objeto indicado pelo mediador, o segundo é o desejo de possuir o ser do mediador. Quixote
queria ser Amadis. Há uma carência no sujeito desejante que pretende ser preenchida com o
ser do outro. Trata-se de um desejo que transcende os objetos materiais, por isso se fixa no
mediador. Golsan observa que “‘o desejo segundo o Outro é sempre o desejo de ser um
Outro’ e o objeto desejado propriamente dito é tão somente um ‘meio de alcançar o
mediador’” (2014, p. 38)
Pode parecer que o desejo de apropriação se limite a mediação interna, aquela que é
geradora de conflito e rivalidade, enquanto o desejo metafísico seja da ordem da mediação
23
externa, e limite à admiração. Porém, as fronteiras dessas categorias não são tão fixas. A
afirmação de Golsan nos ajudar a perceber que em um desejo de apropriação há algo de
metafísico não revelado, onde repousa a possibilidade de um deslocamento de desejo desde o
objeto para o mediador. Numa relação de mediação interna, isso significa a mais brutal crise
mimética. Querer ser o outro, na verdade, é querer ocupar o seu espaço, possuir os seus bens,
e para tanto aniquilá-lo.
3. Bode expiatório
O segundo passo da teoria mimética de René Girard passa da crítica literária a
antropologia. Não obstante, sem perder de vista a epistemologia que a literatura proporciona.
Girard jamais deixará de ser um leitor. Toda sua trajetória parte do estudo fenomenológico de
alguns textos específicos.
Os escritores que me interessam estão obcecados com o conflito como destruidor
sutil do significado diferencial que ele parece acentuar. Devo partilhar um tanto
dessa obsessão [...] não a literatura como tal, mas certos textos literários são
fundamentais para meu ‘projeto’ como pesquisador, muito mais vitais do que a
teoria contemporânea. Meu uso dos textos literários é muito egoísta e pragmático. Se
eles não me servirem, eu os deixo em paz. (GIRARD apud KIRWAN, 2015, p. 91)
Como vimos, o desejo mimético tem sua formulação inicial na leitura de Cervantes,
Flaubert, Proust, Stendhal, Dostoiévski. Em seus desdobramentos, Girard se utilizará,
sobretudo, da tragédia clássica de Sófocles e da tragédia moderna de Willian Shakespeare,
além de teóricos da antropologia e psicanálise. Se a primeira tese de Girard é: o ser humano
deseja o que os outros desejam, agora, Girard nos diz que o desejo mimético desencadeia uma
crise de rivalidade que só pode ser resolvida com uma violência contra uma vítima arbitrária,
e de tal violência emergem as sociedades humanas e suas instituições.
A segunda fase da teoria de Girard procura investigar o que acontece quando a
rivalidade iniciada devido à partilha do mesmo desejo se torna mais intensa e
também mais generalizada. (KIRWAN, 2015, p. 92)
24
Girard continua interessado pelo tema da mímesis, porém focando agora no conflito
produzido por ela. É de se notar que numa relação de rivalidade quanto mais as partes tentam
se diferenciar mais elas se assemelham, mais elas se tornam idênticas, isto é, mais elas se
imitam. Há assim reciprocidade no conflito, e uma dose de ressentimento. Ao fim e ao cabo,
Girard está tentando elaborar uma teoria social mais ampla.
1.3. Crise mimética
Girard observa que nas relações humanas a violência é um fenômeno contagiante, e
muito mais fácil é iniciar um conflito do que por um fim. Podemos pensar em brigas
corriqueiras em festas que se propagam tão rápidas, tomando todo o salão e com efeitos
devastadores, gerando possivelmente mortes. Tudo pode se iniciar por uma pisada no pé ou
uma trombada, ou ainda por um simples olhar mal interpretado, óbvio que eventualmente
também possa haver uma rivalidade anterior a tudo isso. O fato é que a violência tal como a
conhecemos aparece como um fenômeno puramente humano. Nenhuma outra espécie animal
se rivaliza como nós, com o objetivo de aniquilar seu oponente, isto é, pôr fim a existência do
inimigo.
Nas palavras de Girard: ‘Os animais são capazes de rivalizar e combater sem chegar
à morte porque as inibições instintivas garantem o controle das armas naturais, isto
é, as garras e os dentes’. No caso dos homens [seres humanos], o uso primitivo de
armas artificiais lhes permitiu superar esses freios instintivos e destruir uns aos
outros com maior facilidade. (GOLSAN, 20014, p. 59-60)
Nesse sentido, a força destrutiva da violência humana coloca em risco a própria
existência da comunidade humana. Girard chama essa situação de crise mimética. Thomas
Hobbes, em Leviatã, descreve a crise mimética, ainda que não considere a natureza mimética
do desejo.
A crise é um estado de “guerra de todos contra todos”, tal noção supõe que as relações
entre os seres humanos são naturalmente conflituosas, pois estão baseadas na competição,
25
desconfiança e busca pela glória (KIRWAN, 2015, p. 95). Daí vem a célebre frase: “o homem é
o lobo do homem”.
Em outras palavras, o homem é um ser violento e seu estado natural é um estado de
guerra, que impossibilita a organização social e consequente progresso humano.
Hobbes chama de estado de guerra não “... apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas
naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente
conhecida. (...). Assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na
conhecida disposição para tal, durante o tempo em que não há garantia do contrário.
Todo tempo restante é de paz.” (HOBBES apud KIRWAN, p. 96-97)
Hobbes diz que enquanto os seres humanos estão em tempo de guerra não há espaço
para o desenvolvimento industrial, agrário, comercial, tecnológico, científico e artístico, não
há a possibilidade de sociedade. A convivência relativamente harmoniosa entre os seres
humanos, só é possível, para Hobbes, através de um pacto que restrinja a violência de todos e
conceda o monopólio da força a um: o Leviatã. Assim, os seres humanos, por si só, não são
capazes de uma convivência pacífica, e somente um governo forte pode impor a paz – uma
pax romana, claro – e propiciar o desenvolvimento da comunidade humana.
Para Hobbes, o problema do conflito universal é solucionado quando todas as
facções e partes rendem simultaneamente sua força e capacidade militar às mãos de
uma autoridade suprema e soberana, uma que, portanto, adquire o monopólio dos
meios de violência.
(...)
Para Hobbes, a estabilidade social é alcançada quando as pessoas percebem sua
necessidade de um katéchon, ou seja, uma força de restrição soberana, todo-
poderosa, cuja autoridade todos os membros do grupo aceitem reconhecer em prol
da segurança e do bem-estar comuns. (KIRWAN, 2015, p. 98)
26
A noção de “guerra de todos contra todos” de Hobbes tem seu limite. Para
entendermos a explicação de Girard para superar a crise mimética é preciso considerar
características da própria crise: velocidade, descontrole, distorção e destruição.
A crise é uma situação onde o nível violência é tamanho que a própria existência dos
grupos humanos fica em risco. A frase atribuída ao líder pacifista indiano Mahatma Gandhi
ilustra essa lógica predatória: “olho por olho e o mundo acabará cego”. A crise, também,
configura uma completa destruição das diferenças e uma crescente indiferenciação. Kirwan
diz que “uma sociedade em crise mimética tem dificuldade em sustentar até a mais básica das
classificações, como a que se refere a humano e não humano”. (Ibid, p. 103.) O triste episódio
do Genocídio de Ruanda parece um bom exemplo para entendermos o caráter entorpecente e
destruidor da violência.
O conflito entre hutus e tutsis deixou um rastro de sangue pelo país, cerca de 800 mil
mortes em cem dias. As lideranças hutus, em locução radiofônica, exortavam os seus pares a
“eliminar as baratas”, em referência aos tutsis.28
Outros exemplos também caberiam como a
propaganda nazista que associava os judeus aos ratos, e ainda a narrativa mítica, no contexto
da Guerra Fria, que os comunistas se alimentavam de crianças. Girard vai dizer que o inimigo
perde sua humanidade e assume características monstruosas, tendo como referência a
mitologia (KIRWAN, 2015, p. 109).
Além disso, a crise produzida pela rivalidade mimética joga a comunidade em um
ciclo de violência. Onde tanto a motivação quanto as razões do conflito se perdem, e se vê
somente a luta, como se houvesse uma predisposição natural – como nos fala Hobbes – para o
confronto, pois o outro é tão somente um inimigo monstruoso a ser destruído. A violência,
então, é um jogo que distorce a realidade e cega os oponentes. Em Troilo e Créssidia, de
Shafkespeae, gregos e troianos lutam, diariamente, pela posse de Helena, entretanto, ao passar
do tempo Helena vai perdendo o seu valor (beleza), e a guerra perde seu sentido ao ponto de
um jovem soldado se perguntar: “por que estamos lutando?” (KIRWAN, 2015, p. 49)
Não obstante, o fim desse ciclo vicioso não advém simplesmente pela percepção de
que a luta não tem sentido, de que a paz é melhor que a guerra ou que melhor seria as partes
firmarem um acordo. Girard até ironiza a inocência de Hobbes em sua tentativa insuficiente
de explicar a resolução do conflito universal. (Ibid, p. 100) A via de solução tomada por
28
A cinematografia produziu obras sobre o Massacre em Ruanda que merecem nota: O mais popular é Hotel
Rwanda (2004), Shoting Dogs (2005) e Sometimes in april (2005).
27
Girard considera a própria dinâmica mimética da crise. A violência desagregadora fruto da
mimese é apaziguada por uma nova violência, agora, unificadora, contra um ou alguns. (Ibid,
p. 104)
2.3. Mecanismo do bode expiatório
A teoria de Girard concorda em partes com o pensamento de Hobbes. Não obstante,
por não considerar o caráter mimético da natureza humana, Hobbes apresenta uma solução
um pouco ilusória para o estabelecimento da harmonia social. Parece pouco provável ser
possível reunir os rivais numa sala e estabelecer a paz por escrito em um contrato. (Ibid., p.
103) Para Girard, o fim da crise mimética passa da “guerra de todos contra todos” para a
“guerra de todos contra um”. Assim, a violência desordenada gerada pela situação de crise só
pode ser contida por uma violência ordenada que estirpe, superficialmente, os males e garanta
a coesão social. A isso Girard chama de mecanismo do bode expiatório.
É evidente que Girard busca esse termo na literatura bíblica, porém, como aponta
Kirwan, não se refere ao ritual de purificação do antigo Israel narrado em Levítico 16. Na
verdade, o pensador francês descreve o mecanismo como aquela noção popular de
culpabilizar ou vitimizar um indivíduo inocente. (Ibid., p. 105) A comunidade imersa na crise
contagiosa da rivalidade precisa de um bode expiatório eleito arbitrariamente. A comunidade
precisa de uma vítima para conter a própria violência. Em uma situação de crise, onde os
iguais se digladiam é preciso eleger alguém ou um grupo sem muito vínculo social (os
prisioneiros de guerra, os escravos, as crianças e os adolescentes solteiros, os indivíduos
defeituosos, a escória da sociedade, e por fim, o rei) para receber toda a culpa da decadência
social, e eliminá-lo, matando-o ou expulsando da comunidade.
Uma comunidade lida com sua violência ao canalizá-la. Nesse sentido, a solução
para a ameaça de violência descontrolada contém violência, nos dois sentidos de
“conter”: envolve o uso controlado e limitado da violência, para prevenir que uma
violência muito mais difusa subjugue e destrua o grupo. (KIRWAN, 2015, p. 106)
28
Girard analisa Édipo Rei de Sófocles para explicar o mecanismo. A primeira
afirmação é de que o próprio protagonista é um bode expiatório. Édipo reúne características
para atrair a violência da comunidade para si. Ele possui sinais de vitimação: é rei, estrangeiro
e coxo (GOLSAN, 2014, p. 73). Outro dado que é preciso considerar é que Tebas vive uma
crise sacrificial. A cidade padece os males de uma peste que infecta a todos. Girard observa
que, simbolicamente, as calamidades sociais, como peste, enchentes e incêndios, são marcas
da difusão da violência na comunidade. (Ibid., p. 71) Em outros termos, a população de Tebas
sofre e Édipo é o culpado. Sobre ele cai não apenas a culpa pelos problemas de Tebas, mas
também crimes horrendos: o assassinato de Laio (seu pai), casar-se com Jocasta (sua mãe) e
dar-lhe filhos. A ele é atribuído todos os males, e somente a sua eliminação estabelecerá a
harmonia social perdida.
3.3. Comunidade humana
O sacrifício do Bode Expiatório é o elemento fundador da cultura humana. Se
recordarmos o pensamento de Hobbes, perceberemos que o raciocínio de Girard é coerente. A
violência universal que impede qualquer desenvolvimento da comunidade, ao ser
neutralizada, aparentemente, pelo sacrifício da(s) vítima(s) inocente(s) possibilita o
estabelecimento da ordem. Nesse processo mimético percebemos um movimento do caos para
ordem, e isso, transforma o status da vítima, isto é, se antes a vítima é culpada de toda
maldição (caos), com seu sacrifício pacificador, ela é fonte de toda benção.
Esta passagem de maldição para benção, Girard chama de dupla transferência. Toda a carga
negativa atribuída à vítima, agora, é transformada em principal agente de unificação e paz, e por isso,
salvador e sacralizado (GOLSAN, 2014, p. 68). No final de Édipo Rei, o bode expiatório aceita
as acusações e passa o fim da vida no exílio, fora de Tebas, ele é sacrificado. O desfecho desta
análise está em Édipo em Colono, quando tanto os cidadãos de Tebas quanto os cidadãos de
Colono passam a competir pela futura posse do corpo do rei, vitimado por uma violência que
unifica e reconcilia. (Ibid., p. 75)
Em todo esse processo vemos a sacralização da violência, e disso surgirão as
principais instituições humanas, sobretudo, a religião, e esta é a principal tese de A violência e
o sagrado: “A violência é o coração e a alma secreta da religião” (KIRWAN, 2015, p. 93). Ao
29
fim e ao cabo, o mecanismo do bode expiatório revela a raiz violenta fundadora da cultura
humana. Roberto Solare diz:
A realidade humana é religiosa, e isto significa violenta. Através da violência do
sacrifício, emerge em instituições que detêm a violência, que colocam freios e
limites, ainda que estejam compostas pela violência. De tal forma, o religioso ou as
instituições não são nada mais que soluções parciais para o mal que aflige a
humanidade desde que apareceu a violência fratricida. (Disponível em:
<https://goo.gl/R2cLdg>. Acesso em: 20/06/2017)
Girard chama de violência fundadora este fenômeno de intima interconexão entre
cultura humana e a violência, e nesse ponto concorda com Freud. Nesse sentido, a religião é a
primeira instituição humana detentora da violência e seus elementos denotam esta relação.
Ora, estabelecida a harmonia é preciso outros mecanismos que impeça o surgimento de uma
nova crise mimética. A religião cumpre muito bem esse papel, ao elaborar mitos, rituais e
tabus e proibições.
Os mitos contam histórias da perseguição sob a perspectiva do vencedor, o
linchador; os rituais são a repetição controlada da ação sacrificial, através da qual a
comunidade adquire uma força e unanimidade renovada, especialmente quando
esses rituais envolvem sacrifícios (vítimas); tabus e proibições existem para que não
haja qualquer repetição da rivalidade que possa levar a uma nova crise. (KIRWAN,
2015, p. 113-114)
Kirwan destaca a relação entre rituais e tabus e proibições. Esses elementos religiosos
estão em oposição, ainda que possuam a mesma função: evitar a crise do conflito mimético.
Enquanto tabus e proibições isolam os objetos desejo, a fim de impedir que a sociedade
retorne ao caos, os rituais são a flexibilização de certas normas como expressão da violência
de forma controlada. Assim, o ritual é uma espécie de válvula de escape da comunidade, e
está intimamente relacionado aos seus mitos.
30
Os mitos não são narrativas fantasiosas ou uma simples extrapolação da imaginação
sem conteúdo de verdade, esse é o grande erro do pensamento intelectual contemporâneo.
Para Girard, os mitos são histórias distorcidas que as comunidades contam sobre suas origens,
a partir de acontecimentos reais (GOLSAN, 2014, p. 97). Porém, velando a violências das
origens. Daí que mito e mudo possuem a mesma raiz semântica, e os mitos silenciam
mecanismo do bode expiatório, escondem a violência fundadora. (KIRWAN, 2015, p. 127)
4. A revelação da Revelação
A terceira fase da teoria de Girard se volta para outro tipo de literatura: a Bíblia. Vale
recordar o percurso de nosso autor. Girard formula a raiz mimética do desejo humano a partir
da (alta) literatura, e seus desdobramentos violentos serão considerados a luz da tragédia
clássica e shakespeariana e a antropologia; agora, a Bíblia entra na teoria girardiana como um
tipo de literatura que revela o mecanismo do bode expiatório. Do ponto da violência,
enquanto os mitos escondem a verdade ao assumir o lado dos perseguidores e sacralizar a
violência, como vimos acima, as narrativas bíblicas revelam a verdade sobre a inocência da
vítima e a dessacralização da violência sacrificial. Em suma:
Toda a revelação bíblica não é nada mais que a luta de Deus para levar seu povo
rumo à nova consciência que irá de fato “separá-lo” de outras nações. A face do
verdadeiro Deus é aos poucos, mas inexoravelmente, revelada como infinitamente
amorosa e completamente distante de toda violência. (Ibid., p. 140)
Em sua análise, Girard encontra na revelação bíblica uma forma nova e não sacrificial
de formar uma comunidade humana. Já na complexa bíblia hebraica é possível perceber a
desmistificação da violência, formada a partir de uma mitologia preexistente, seus textos
subvertem o mecanismo do bode expiatório ao dar voz às vítimas. Não obstante, são os
relatos sobre Jesus e sua pregação, e, sobretudo, sua paixão, morte e ressurreição, que
revelarão a plenitude da verdade: Deus está ao lado das vítimas.
31
1.4. Bíblia Hebraica
O primeiro livro da bíblia, Gênesis, é analisado por Girard na perspectiva da teoria
mimética e se mostra muito rico. A narrativa da queda de Adão e Eva é uma espécie de
prólogo para desastres piores: o assassinato de Abel e o dilúvio. (KIRWAN, 2015, p. 143.)
Podemos ver a serpente como mediadora do desejo de Adão e Eva pelo fruto do
conhecimento. A história de Caim e Abel comparada com a de Rômulo e Remo, outro mito
fundador, demonstra a diferença entre os textos.
Em ambas, há o fratricídio, entretanto, Caim a partir do assassinato de seu irmão Abel
funda uma comunidade e jamais é inocentado por seu crime, já Rômulo que igualmente funda
uma comunidade – Roma – a partir do assassinato de Remo, se torna sacrificador e Sumo
sacerdote, ele é divinizado. A violência de Rômulo geradora de ordem é sacralizada, pois
Remo é apresentado como um transgressor, alguém culpado pelo caos; Abel, em
contrapartida, desde o início é uma vítima inocente da violência de Caim, que é marcado por
Iahweh para controlar a violência mimética: ninguém pode vingar Abel, matando Caim.
Entretanto, uma comunidade que nasce da violência em algum momento voltará à violência.
Lemec, personagem bíblico se apresenta como um vingador, e o episódio do dilúvio é a
conclusão disso. O assassinato fundador não liberta a comunidade da violência, não
estabelece ordem alguma, na verdade, esconde a violência. E esta é a subversão bíblica:
A história de Caim e Abel dessacraliza as origens violentas da cultura, revelando
primeiro a inocência de Abel, vítima original, e demonstrando, em seguida, que a
violência de Caim não erradica a violência, mas apenas adia seu retorno mais
apocalíptico. Segundo Girard, Abel é tão somente o primeiro de uma longa série de
vítimas vingadas. (GOLSAN, 2014, p. 133)
A história de José do Egito também é para Girard um exemplo desmistificador que
revela a inocência da vítima perseguida injustamente. O filho de Jacó é perseguido pelos
irmãos que desejam sua morte, o vendem aos ismaelitas e dizem ao pai que José fora
devorado por um animal, para isso apresentam sua túnica embebida de sangue de um bode.
No Egito, José é comprado por Putifar. Ele será preso sob a falsa acusação de seduzir a esposa
de Putifar. Girard observa que desmistificação na história está na humanidade da vítima
(GOLSAN, 20014, p.135). José não é causa de maldição nem de benção, mas permanece
32
humano e ao perdoar seus irmãos consegue uma convivência pacífica com eles. (KIRWAN,
2015, p. 146)
Outros dois textos são bastante explorados por Girard. As narrativas de Jó e do servo
de Iahweh são claras expressões da revelação do mecanismo do bode expiatório desde o olhar
da vítima perseguida. Ambos falam da mesma coisa: uma vítima inocente sofre e não é por
conta de Deus. Jó é um bode expiatório, sobre ele cai toda a maldição e seus acusadores
tentam de diversas formas sacralizar a violência sofrida e pedem para Jó assumir sua culpa,
porém Jó é inocente e revela que o seu sofrimento não é sagrado (GOLSAN, 20014, p. 136-
140). Se na narrativa de Jó a violência da turba parece nebulosa, escondida por detrás dos
discursos de seus amigos, nos Cânticos do servo de Iahweh é evidente. O texto revela que o
servo é atacado e insultado por todos sem acusação alguma, ele é inocente, mas é duramente
castigado (KIRWAN, 2015, p. 147-149). Ambos são textos que revelam o mecanismo do bode
expiatório e tomam o lado das vítimas, e por isso, desmistificam a violência e frustram sua
perpetuação pela novidade da postura não violenta das vítimas: em Jó, seus perseguidores lhe
pedem perdão; e os vitimadores do servo de Iahweh reconhecem as consequências de sua
perseguição.
2.4. A novidade do Evangelho
Girard considera o Evangelho a principal literatura que desmonta o mecanismo do
bode expiatório. Cristo aparece como uma figura singular no edifício da teoria mimética. Sua
pregação expressa a radicalidade ao combater o conflito mimético. O sermão da montanha é
uma exortação à renúncia que pode interromper o ciclo de violência punitiva. As parábolas
como da ovelha perdida revelam a oposição da mentalidade do bode expiatório, que sacrifica
um em nome da multidão. A relação de Jesus com as autoridades políticas e religiosas surge
com crítica ao processo do bode expiatório. (Ibid, p. 149-151)
Em Coisas Ocultas, Jesus é caracterizado como o primeiro e o maior dos profetas,
aquele que condensa a todos os anteriores profetas e vai além de todos eles. Cristo é
o profeta da última, e também melhor, oportunidade. Com ele, dá-se uma mudança
que se segue diretamente do Antigo Testamento, mas que também constitui uma
ruptura decisiva. Temos pela primeira vez a eliminação completa do sacrificial – o
fim da violência divina e a explícita revelação de tudo o que se passara antes.
(GOLSAN, 20014, p. 140)
33
Além da pregação, para Girard, a condenação, morte e ressurreição de Jesus expressa
o mecanismo do bode expiatório, e constitui o centro do Evangelho. Nele, o próprio Jesus é
um bode expiatório. Podemos notar isso na narrativa de João: Caifas, sumo sacerdote, reunido
com outras autoridades judaicas para planejar a morte de Jesus, afirma que é melhor que
apenas um pereça por todo o povo. (KIRWAN, 2015, p. 142)
Importante salientar a diferença entre a narrativa de Cristo e outros mitos. Ao contrário
de Édipo que ao morrer é divinizado, e por isso a violência que o sacrifica é sacralizada, a
Paixão do Cristo não lhe tira a humanidade. Os relatos revelam que a violência da Cruz caiu
sobre uma vítima inocente, assim, os Evangelhos dessacralizam a violência. (GOLSAN, 20014,
p. 140) A morte de Jesus está em oposição ao sacrifício arcaico. E, ao longo de sua carreira,
Girard resistiu em nomear a Paixão de Cristo também como sacrifício, visto que, toda sua
leitura bíblica foi antissacrificial. Porém, a partir da relação com o teólogo jesuíta Raymund
Schwager (1945-2004), como demonstra Edevilson de Godoy, Girard reconsidera o evento da
cruz sob um novo olhar. Realmente, o sacrifício de Cristo não é como o sacrifício arcaico. Na
verdade, aquele supera este, pois, trata-se de uma doação de si pela vida do outro. Em Cristo,
o sacrifício não é abolido, mas afastado da violência sagrada, é um sacrifício antissacrificial,
como gesto de absoluto amor na doação até a morte pela vida do próximo. (GODOY, 2009, p.
280)
CAPÍTULO 2 - A VIOLÊNCIA SAGRADA
1. Um olhar crítico para o sagrado
No primeiro capítulo, na terceira parte, apresentamos o mecanismo do bode expiatório
de René Girard, como processo de transferência violenta da guerra de “todos contra todos”
para “todos contra um”, meio de resolução da crise mimética e condição fundamental para o
surgimento das comunidades humanas. Agora, pretendemos destacar, nesse processo de
resolução de conflito, a violência engendrada e conceitos do pensamento de Girard, no que
diz respeito à lógica sacrificial, que nos permitirão perceber os laços que unem e legitimam
um tipo de violência como sagrada para que se salve uns em detrimento de outros.
A investigação de Girard parte da leitura atenta de etnólogos, isto é, seu olhar se volta
primeiro para a experiência dos povos não ocidentais. É importante fazer uma ressalva para os
riscos que podemos correr ao pensarmos esses povos. De ingênuo, Girard não tem nada. Não
podemos cair na simplicidade de pensar uma realidade paradisíaca anterior a nós, que foi
perdida ou destruída por algum motivo e vivemos no pior período possível, expressa no mito
do bom selvagem Tampouco nos parece razoável assumirmos uma posição negativa ao
olharmos o passado, imaginando que antes de nós tudo é caracterizado pela ausência e
carência (CLASTRES, 1978, p. 123), e que hoje a civilização humana vive o seu ápice, graças
à razão.
Ambas as posturas não são sensatas e Girard tenta escapar delas, adotando uma atitude
crítica tanto frente ao pensamento moderno que não enxerga a racionalidade das sociedades
primitivas ou do pensamento mítico e religioso, quanto diante dos pensadores que o
superestimam, crendo ser uma espécie de paraíso perdido.
O olhar de Girard para essas sociedades se dá por meio de textos. Ele não foi etnólogo,
nunca fez uma expedição e nem conviveu com os povos que exemplificam sua teoria. Henri
Hubert, Marcel Mauss, Anthony Storr, Konrad Lorenz, Joseph de Maistre, Claude Lévi-
Strauss, Godfrrey Lienhardt, Victor Turner, Bronislaw Malinowski, Robert Lowie, Pierre
35
Clastres foram os grandes intermediários do estudo de Girard sobre a natureza humana
(ANDRADE, 2011, p. 110).
Como crítico que era, na busca de entender o desejo humano, encontra uma visão
turva sobre o sagrado, que impossibilita uma leitura madura sobre o humano. Assim, sua
grande contribuição para a história do pensamento humano não está apenas no tema da
mímesis, mas também na dedicação em estabelecer a importância do estudo do sagrado e,
sobretudo na sua íntima relação com a violência, pois esta constitui o verdadeiro coração e
alma secreta daquele (GIRARD, 1990, 47).
2. Sacrifício e violência
Em A Violência e o sagrado, Girard observa a dupla percepção do sacrifício ritual. O
sacrifício ou se apresenta como algo muito sagrado e legítimo ou como um crime ilegítimo,
tal dualidade insere o sacrifício numa lógica ambivalente, pois é crime matar a vítima, mas se
a vítima não for morta não será sagrada, como indicou Hubert e Mauss (GIRARD, 1990, p.
12). Essa ambivalência será o ponto de partida do estudo de René Girard sobre a natureza
violenta das sociedades humanas. Logo, problematiza nosso autor: se há uma proximidade
entre violência e sacrifício, devido à ambivalência, não existe violência que não possa ser
descrita em termos de sacrifício. Porém não é tão evidente, pois há diversos elementos que
escondem a realidade do sacrifício.
A violência aparece como um fenômeno universal, algo comum a todos os seres
humanos e todas as culturas, até mesmo fisiologicamente, como afirma de Anthony Storr,
pois não existe diferença substancial de um ser humano irado e outro. Também, o desejo de
violência é fácil de ser estimulado e difícil de ser contido. Ainda que possamos afirmar a
irracionalidade da violência, pois o ser humano violento muitas vezes é identificado com as
feras, não lhe faltam razões quando quer irromper e a violência não saciada busca sempre uma
vitima alternativa.
Podemos pensar, por exemplo, que a imolação de vítimas animais desvia a violência
de certos seres que se tenta proteger, canalizando-a para outros, cuja morte pouco ou
nada importa. (GIRARD, 1990, p.15)
36
1.2. Substituição vitimaria
O tema da substituição ou da vítima alternativa é importante no estudo do mecanismo
do bode expiatório de Girard. Etnólogos como Joseph de Moaistre, Evans-Pritchard e Godfrey
Lienhardt observaram que no sacrifício ritual a vítima possui uma relação com os seres
humanos. Entre os Nuer e os Dinka, povos do alto Nilo estudados por Evans-Pritchard e
Lienhardt, respectivamente, há um paralelo entre a sociedade humana e a sociedade bovina.
Assim, o sacrifício aparece como um jeito de lidar com a violência, um modo de controlá-la e
enganá-la. Girard diz que a substituição sacrificial não passa pela moral do culpado e do
inocente, como pensou Joseph de Moaistre, o deslocamento de uma vítima para outra sugere
um desvio para proteger os membros da comunidade da violência que poderia se abater sobre
seus pares, com o objetivo de enganar a violência oferecendo uma vítima sacrificável, pois é
preciso dar algo para a violência engolir (GIRARD, 1990, p.16).
Tal substituição e desvio podem ser percebidos em histórias como de Caim e Abel,
Jacó e Esaú e Ulisses e Ciclope. Na primeira, percebemos a função do sacrifício em dissipar a
violência oferecendo vítimas sacrificiais. Abel, criador de gado, oferece o primogênito de seu
rebanho em sacrifício e, por isso possui um artifício para ludibriar a violência, enquanto seu
irmão Caim, agricultor, oferece frutos do seu trabalho, e, por conseguinte não possui uma
válvula de escape para a violência. O fim da história é conhecido. Caim mata Abel, e não o
contrário, pois o segundo tem um mecanismo de controle da violência, o sacrifício, e o
primeiro não. Entre outros irmãos bíblicos, Jacó e Esaú, vemos a substituição sacrificial mais
claramente. Esaú, filho primogênito de Isaac, sai para caçar a fim de oferecer ao seu pai e
ganhar sua benção. O irmão mais jovem, Jacó, sabendo disso se organiza com sua mãe,
Raquel; ela separa dois cabritos e prepara um prato suculento, com a pele cobre Jacó, que
oferece a Isaac se passando por Esaú que era peludo. Os cabritos desviam a violência que
atingiria Jacó (maldição), e entrepostos entre pai e filho, impedem o contato direto que
poderia desencadear a violência. Na Odisseia, Ulisses engana Ciclope se colocando sob as
ovelhas para escapar da violência da besta. Numa leitura sacrificial, nas três histórias, o
animal é interposto entre a violência e o ser humano (GIRARD, 1990, p. 19).
Ao expulsar o sacrifício para fora do real, o pensamento moderno não foi capaz de
captar essas relações. Girard é bastante crítico com os pensadores modernos que
desqualificaram por completo o sacrifício, não conseguindo captar nada de real, pois,
37
entendido apenas a partir de sua estrutura, numa mediação entre sacrificadores e uma(s)
divindade(s), fundado numa teologia que afirma que deus reclama vítimas para o seu deleite e
apaziguamento. Os modernos nunca conseguiram perceber a função do sacrifício nas
sociedades primitivas e seus aspectos objetivos.
O pensamento moderno, ao enfatizar de modo demasiado exclusivo os aspectos
literalmente maníacos da prática sacrificial, perpetua à sua maneira esse
desconhecimento. Os homens [seres humanos] obtêm tanto mais êxito na eliminação
da violência quanto mais este processo de eliminação não for reconhecido como seu,
mas sim como imperativo absoluto, como ordem de um deus cujas exigências são
tão terríveis quanto minuciosas. O pensamento moderno, ao expulsar completamente
o sacrifício para fora do real, continua a ignorar sua violência. (GIRARD, 1990, p.
27)
Por isso, o esforço de Girard se orienta para encontrar as relações conflituosas
simultaneamente dissimuladas e apaziguadas pelo sacrifício e sua teologia (GIRARD, 1990,
p.20). Assim, o sacrifício ganha uma função real para além do ritual, como instrumento de
prevenção e proteção contra a própria violência emergente nas sociedades; estrutura simbólica
que impede que a violência destrua a comunidade e mecanismo purificador da violência. Sua
teologia camufla:
Uma verdadeira operação de transferência coletiva, efetuada à custa da vítima,
operação relacionada às tensões internas, aos rancores, às rivalidades e a todas as
veleidades recíprocas de agressão no seio da comunidade. (GIRARD, 1990, p.20)
Sacrifício e violência estão conectados e as leituras que ignoram essa relação não
contribuem para perceber a centralidade do sacrifício nas sociedades primitivas. Trata-se,
pois, da primeira instituição que possibilita a sociedade e todas as outras instituições, através
do apaziguamento da violência intestina (desavenças, ciúmes, ressentimentos e rivalidades), e
impede a explosão dos conflitos, garantindo harmonia e unidade social. Na lógica
contratualista da filosofia política de Hobbes, Locke e Rousseau, o sacrifício pode ser
entendido como grande pacto social. Pois, o sacrifício une os corações e estabelece a ordem,
como afirma a sabedoria chinesa (GIRARD, 1990, p.21), no mesmo sentido, o fragmento 60
38
de Heráclito – “O combate [a guerra, a violência] é o pai e o rei de todas as coisas” – admite
a raiz violenta da sociedade e suas instituições (de tudo). Em última análise, o sacrífico
descarrega sobre uma vítima ou um grupo as tensões internas à sociedade que ameaçam a
ordem, transferindo para esta tudo o que cria mal-estar entre a comunidade. (MERUJE e
ROSA, 2013, p. 153)
2.2. Vítima sacrificável
O sacrifício não se reduz apenas ao quadro ritual. Sua lógica ultrapassa os limites do
religioso. Assim podemos entender a intuição de Girard ao afirmar que toda violência pode
ser descrita em termos de sacrifício: Ajax, furioso com os chefes dos exércitos que lhe nega as
armas de Aquiles, mata um rebanho em substituição aos guerreiros dos quais queria se vingar.
Medeia tomada pela cólera substitui o verdadeiro objeto de seu ódio por seus próprios filhos.
A violência busca sempre ser saciada, quando não, acumula e transborda gerando os mais
desastrosos efeitos, nesse contexto, o sacrifício regula a violência e canaliza para “boa”
direção (GIRARD, 1990, p. 23), ao fim e ao cabo, para que se salvem uns, outros devem
morrer. Trata-se de um mecanismo de purificação violenta pela transferência.
No estudo de Girard sobre o sacrifício, observa-se em diversas sociedades que os
outros – aqueles que são alvos da violência – podem ser tanto animais quanto seres humanos,
entretanto tal distinção não é relevante para o percurso do autor, embora se possa pensar em
certo progresso entre uma sociedade que sacrifica animais ao invés de humanos, mas essa
perspectiva se baseia em um julgamento de valor, onde um sacrifício é aceitável e outro
repugnante. Girard coloca ambos no mesmo plano e se preocupa em encontrar qual é a lógica
que elege outros em detrimento de uns, é dizer, por que se sacrifica boi ou cabritos e não
jacarés e cobras? Ou por que um tipo ser humano e não outro? Quais são os critérios que
fundamentam a chamada seleção da vítima sacrificial? O que permite que um indivíduo seja
sacrificável não é um critério arbitrário. A primeira intuição de Girard nos diz essa escolha se
baseia numa semelhança entre a vítima sacrificável e a não sacrificável.
Para que uma determinada espécie ou categoria de seres vivos (humana ou animal)
mostre-se sacrificável, é preciso que nela seja descoberta uma semelhança tão
39
surpreendente quanto possível com as categorias (humanas) não sacrificáveis, sem
que a distinção perca sua nitidez, evitando-se qualquer confusão. (GIRARD, 1990,
p.25)
No sacrifício animal é evidente a distinção entre uma vítima e outra, ainda, que
baseado numa semelhança, ninguém se equivoca entre um boi com um ser humano, prova
disso que sempre se sacrifica o primeiro para salvar o segundo. Agora, em se tratando do
sacrifício humano a distinção não é tão óbvia. Por isso, a segunda intuição de Girard aponta
para o tipo de relação estabelecida entre os indivíduos. Olhando para as vítimas humanas se
descobre uma diversidade de características: prisioneiros de guerra, os escravos, as crianças e
os adolescentes solteiros, os indivíduos defeituosos, a escória da sociedade (pharmakós) e até
o rei. Girard estabelece um denominador comum. Todas essas categorias sacrificáveis
apresentam um vínculo frágil com a sociedade e de algum modo, não fazem parte da
sociedade. No caso do rei, Girard explica que “Ele escapa da sociedade ‘por cima’, assim
como o pharmakós escapa ‘por baixo’” (GIRARD, 1990, p. 26), isto é, enquanto soberano,
ele não participa da posição da maioria. Em suma, o que define objetos sacrificáveis é a sua
integração na sociedade; os marginalizados, aqueles que são postos a margem são o alvo
principal da violência sagrada, e sua condição frágil impossibilita qualquer resposta, é dizer, a
vítima sacrificial não possui ninguém para cumprir o dever de vingar-se (Idem). Assim, o
sacrifício controla a violência impedindo a proliferação de seus germes que pode contaminar a
todos.
3. Ciclo de vingança
Em diversas sociedades a vingança é um dever, pois, face ao sangue derramado, a
única vingança satisfatória é o derramamento do sangue criminoso, (GIRARD, 1990, p. 28),
entretanto, de modo contrário, podemos considerar um risco, pois se levada até as últimas
consequências pode conduzir ao aniquilamento total dos membros. Assim, onde quer que a
vingança apareça, ela constitui um risco para o futuro da comunidade.
Considerando a natureza mimética da condição humana, Girard em Aquele por quem o
escândalo vem nos dá um exemplo banal e corriqueiro do dia-a-dia, que nos ajuda a entender
40
o perigo da reciprocidade violenta que engendra a vingança e nos faz entender a eficácia do
sacrifício.
A regra geral do ocidente nos diz que ao encontrar alguém, estendamos as mãos como
saudação, acolhida, respeito e cordialidade. Porém, se ao se estender a mão, o outro, por
algum motivo, não corresponde, não nos imita no cumprimento, podemos dar início ao um
conflito recíproco e despertar nosso desejo de violência, gerando consequências difíceis de
serem apaziguadas.
Se um personagem chamado de B se desvia de A, que lhe estende a mão, A sente-se
imediatamente ofendido e, por sua vez, recusa-se a apertar a mão de B. No contexto
do primeiro, essa recusa chega tarde demais e corre o risco de passar despercebida.
O personagem A vai então se esforçar por tornar-se mais visível, forçando
ligeiramente a coisa. Talvez ele vire espetacularmente as costas para B. Longe dele o
pensamento de desencadear uma escalada de violência. Ele deseja simplesmente
“deixar claro o golpe”, fazer que B entenda que o caráter insultante de seu
comportamento não lhe é indiferente.
O que A interpreta como uma recusa descortês não era talvez senão uma ligeira
distração de B, cuja atenção estava voltada para outro lugar. Imaginar um insulto
deliberado é menos doloroso para a vaidade de A do que passar despercebido ainda
que por apenas um instante. O mal-entendido original é minúsculo, mas, se B se
esforça para explicar para A, longe de se dissipar, a sombra que envolve a relação se
torna impenetrável. A frieza súbita que A ostenta parece injusta a B e, para colocar-
se no mesmo nível, quando B reenviar a mensagem, acrescentará um suplemento de
frio à frieza de A. Nem A nem B desejam a desavença, e, no entanto, ela está
presente. Quem é o responsável? (GIRARD, 2011, p. 41-42)
Aqui não nos importa encontrar o responsável – o culpado – pelo conflito, pois cada
parte tem consciência de suas razões para recusar a reconciliação, mas, nesse episódio
hipotético, é importante notar a reciprocidade que envolve as ações e reações das
personagens. Tanto A quanto B se imitam duplamente, um é modelo e mediador do outro.
Entretanto, a reciprocidade ou a dupla imitação não surge de conflitos, ao contrário, ela faz
parte do dia-a-dia e está em toda parte, seja na paz seja na guerra. Podemos afirmar sem o
risco de errar que, todos os dias, nós imitamos e somos imitados nas mais corriqueiras das
atividades. O que acontece entre A e B, e em muitos de nossos conflitos, é o deslocamento da
“boa” reciprocidade – um simples aperto de mão – à “má” reciprocidade. Essa mudança não é
óbvia. Nem A nem B desejam a desavença, e, no entanto, ela está presente.
41
Se ao final os adversários terminem por se matar, é com o objetivo de se livrar da
má reciprocidade, dificuldade insuportável que se manifesta então em forma de
ciclos de vingança interminável. A vingança consegue atravessar gerações e
gerações e faz a volta ao mundo. Transcende o tempo e o espaço. Não é de espantar
que os povos arcaicos a consideram sagrada. (GIRARD, 2011, p. 44-45)
Ao fim e ao cabo, a vingança é a expressão da reciprocidade violenta, e sua lógica de
extermínio do outro como tentativa de retorno a boa reciprocidade perpetua a si mesma,
colocando em jogo a existência da comunidade, pois cada resposta violenta exige uma nova
represália igual ou mais violenta, o que Girard chamou de crise mimética e o cinema
brasileiro representou em Abril despedaçado (2002) de Walter Salles, adaptação da obra
original homônima (Prilli i Thyer, 1980) do escritor albanês Ismail Kadaré.
A história de Sallses se passa no sertão brasileiro, em 1910, e se desenvolve ao redor
de uma tradição de vingança. O jovem protagonista Tonho (Rodrigo Santoro) enfrenta o
dilema de cobrar o sangue de seu irmão Inácio e ver sua breve vida dividida em duas – os 20
anos que já viveu e o pouco tempo que lhe resta para viver. Já que, chegada sua hora, os
Ferrera virão cobrar o sangue do parente por ele assassinado. Ambas as famílias estão
imersas em um ciclo vicioso da vingança que parece não ter fim.
Assim, como no exemplo do aperto de mão de Girard, não resolve saber quem
instituiu esse ciclo de hostilidade ou quem assassinou o parente do outro primeiro, cumpre
apenas notar que cada assassinato cometido por uma é imitado pela outra família. Parece que
é preferível se acabar a pôr fim ao o conflito, pois, como Girard nos explica, a saída para esse
ciclo mimético não é tarefa fácil:
Não basta convencer os homens que a violência é odiosa para acabar com a
vingança, da mesma maneira que em nossos dias isto não é suficiente para acabar
com a guerra. É justamente por estarem convencidos desse fato que os homens
consideram seu dever vingar-se. (GIRARD, 1990, p. 29)
É necessária, pois, uma resposta que de uma vez por todas controle e, de certa forma,
interrompa a escalada da violência. Se o ciclo de violência recíproca põe em risco
sobrevivência da comunidade, e se o desejo de violência precisa ser saciado. É preciso dar-lhe
uma vítima que ao mesmo tempo satisfaça a sede de violência do grupo e não responda à
violência sofrida. Assim, como temos mostrado, o sacrifício se apresenta como a principal
42
instituição, nas sociedades primitivas, moderadora da violência e, por conseguinte, para que
seus benefícios sejam desfrutados pela maioria, sua vítima – que é inocente dos crimes que
lhe são impostos – precisa carecer de poder de vingança. O sacrifício, em última análise, é
uma forma de resolução de conflito.
O sacrifício oferece ao apetite da violência, que a vontade ascética não consegue
saciar, um alívio sem dúvida momentâneo, mas indefinitivamente renovável, cuja
eficácia é tão sobejamente reconhecida que não podemos deixar de levá-la em conta.
O sacrifício impede o desenvolvimento dos germes de violência, auxiliando os
homens no controle da violência. (GIRARD, 1990, p. 32)
1.3. Controle da vingança
Se estamos afirmando a função do sacrifício, como essa instituição que domestica a
violência nas comunidades humanas, seria de se supor que em sociedades desprovidas de
sacrifício ritual, a vingança se propagasse descontroladamente. Entretanto, não é isso que
observamos empiricamente, por exemplo, se olharmos sociedades como a nossa que deixaram
de ser religiosas há muito tempo. De alguma forma nós controlamos nosso desejo de
violência. Roberto Solarte, a partir da leitura de Girard, afirma que:
A contemporaneidade se orgulha de ser um mundo que deixou Deus para trás em
seu próprio entendimento, e acusa a crença religiosa de ser a origem do fanatismo e
da intolerância. Porém, este mundo afastado de Deus não deixou de ser religioso, ou
seja, sacrificial. (Disponível em: <https://goo.gl/R2cLdg>. Acesso em: 20/06/2017)
O religioso, no sentido girardiano, é justamente esse meio violento de domesticação da
violência, sempre buscando apaziguá-la, evitando sua propagação, isto é, o sacrifício – ou a
prática sacrificial – não se inscreve apenas em sua forma ritual, mas vai além, encontrando
novas formas de expressão, sem nunca perder sua natureza, sua alma: a violência. Aqui está
uma das principais críticas de Girard ao pensamento moderno: ao desconsiderar a função do
sacrifício ritual, elimina-se também a violência e não é possível captar seus desdobramentos e
novas formas de perpetuação, não se vai à sua raiz. Oras, parece-nos óbvio que o sacrifício tal
qual temos descrito não possui espaço em nossas sociedades, até mesmo, trata-se de um crime
43
previsto na maioria das legislações, e desde Kant não concebemos que a fé religiosa exija
práticas de injustiça, como imolar um inocente (ETXEBERRIA MAULEON, disponível em
<https://goo.gl/tpfyah>, acesso em 26/06/2017). Entretanto, como os povos modernos lidam
com sua violência, se não há mais o religioso como instrumento para domesticá-la? As
comunidades sempre temeram a violência recíproca, quais outros meios de controle surgem?
Em outros termos, como temos lidado com a vingança ao longo da história? Girard responde a
nossa questão. Há três categorias de meios para proteger-se da vingança:
1) os meios preventivos, que podem todos ser definidos como desvios sacrificiais do
espírito de vingança. 2) As regulações e os entraves à vingança, tais como as
composições, os duelos judiciários, cuja ação é ainda ação curativa e precária. 3) O
sistema judiciário, dotado de uma incompatível eficácia curativa. (GIRARD, 1990,
p. 34-35)
Os três são aparentados, e no ocidente, pode ser visto no desenvolvimento histórico,
mesmo que os dois primeiros pareçam muito mais inconcebíveis, para o pensamento
contemporâneo, do que o sistema judiciário. Enquanto os primeiros estariam marcados por
sua desumanidade irracional e arcaica, o último, pelo contrário, seria a expressão do progresso
humano, que pela razão conseguiu elaborar um instrumento de mediação de interesses e
aplicação da justiça. Entretanto, Girard o apresenta inscrito na mesma lógica da vingança, isto
é, o sistema jurídico não se diferencia tanto dos outros modos de controle, pois figura-se
como uma vingança pública, ao passo que, a vingança conhecida pelo senso comum – aquela
de Abril despedaçado – é vingança privada. E podemos concluir que “não há, no sistema
penal, nenhum princípio de justiça realmente diferente do princípio de vingança” (GIRARD,
1990, p. 29). E ainda, que “o problema é ainda mais grave, pois, hoje em dia, o sacrifício não
mais produz sagrado, apenas reproduz a violência mimeticamente engendrada.” (ROCHA,
disponível em: <https://goo.gl/taZqSQ>. Acesse em: 26/06/2017)
4. Sacrifício e justiça
O sistema judiciário se apresenta como resposta mais racional e superior em relação às
demais. Muitos creem que sua ausência nos faria regressar ao estágio de vingança infinita, do
blood feud. A sua grande diferença é o caráter compulsório da intervenção da autoridade,
44
pois, somente assim, os indivíduos estariam livres do dever de vingança (GIRARD, 1990, p.
35), isto é, eu já não preciso cobrar por minhas próprias mãos pelo crime cometido contra
mim, mas há uma autoridade que assume minha causa, a defende e protege. A autoridade
deve necessariamente punir aqueles que violam as normas, a fim de impedir que surja
qualquer vontade, na parte lesada, de vingança, em outros termos, ela precisa dar a melhor
resposta possível para a resolução do conflito. Assim, toda a sua estrutura concebe a
retribuição da pena como justiça e se organiza ao redor deste ser violento, delinquente,
criminoso e culpado, que impôs a desordem na convivência; e, sem deixar de ser sacrificial,
modela a vingança, escondendo suas raízes, como diz Girard:
O sistema judiciário afasta a ameaça da vingança. Ela não a suprime, mas limita-a
efetivamente a uma represália única, cujo exercício é confiado a uma autoridade
soberana e especializada em seu domínio. As decisões da autoridade judiciária
afirmam-se sempre como a última palavra da vingança. (GIRARD, 1990. p. 29)
Por exemplo, se um personagem A cometer um crime contra B, a autoridade judiciária
toma para si a causa de B, pois entende que a violência contra um dos membros da
comunidade é, na verdade, uma violência contra a comunidade em geral, pois viola o pacto
social. Um processo penal é instaurado a fim de reestabelecer a paz e harmonia social
quebrada pela violência. Importante observar a centralidade de A, enquanto B é esquecido
nesse processo, e passa a ser apenas representado pela totalidade do corpo social. Se
declarado culpado, A terá que pagar pelo crime, sofrerá violentamente as consequências de
sua ação criminosa. Assim, a autoridade dará sua resposta à violência de A, em forma de
pena, e a justiça será feita.
É justamente, o caráter retributivo – por castigar o culpado – do sistema que lhe
garante uma suposta superioridade diante das práticas sacrificiais, que busca impedir a
vingança desviando a violência contra vítimas substitutas.
Ao invés de tentar impedir como todos os procedimentos propriamente religiosos,
impedir a vingança, moderá-la, eludi-la ou desviá-la para um objeto secundário, o
sistema judiciário racionaliza a vingança, conseguindo transformá-la em uma técnica
45
extremamente eficaz de cura e, secundariamente, de prevenção da violência.
(GIRARD, 1990, p.36)
Assim como Max Webber afirmou, a partir de Hobbes, o monopólio da violência do
Estado moderno, como expressão de sua racionalidade e causa de sua eficácia (1970, p. 62),
Girard nos fala do monopólio absoluto sobre a vingança pelo juiz, como possibilidade de
extinção da proliferação da violência coletiva.
No final das contas, o sistema judiciário e o sacrifício têm, portanto a mesma
função, mas o sistema judiciário é infinitamente eficaz. Só pode existir se associado
a um poder político realmente forte. (GIRARD, 1990, p. 37)
1.4. Teologia do judiciário
O poder jurídico é a metamorfose do sistema sacrificial (MARUJE e ROSA apud
RICOEUR, 2000, p. 347). Apesar de condenar o sacrifício como atividade criminal, o poder
jurídico moderno afirma sua legitimidade, assim como outras instituições, na mesma lógica
do sacrifício. Tanto o sagrado primitivo quanto o Estado moderno tentam canalizar a
violência fundamental e ocultá-la através da violência sacrificial (PINTO, p. 11), como sugere
Jean-Pierre Dupuy, resgatando a centralidade do religioso para o surgimento da cultura:
Todas as instituições humanas decorrem do sagrado: o poder, o sistema de trocas e a
moeda, a economia, a técnica, o direito penal e a instituição judiciária, o Estado, etc.
(Disponível em:<https://goo.gl/MMV3PP>. Acesso em: 20/06/2017)
Deste modo, sobrevive no sistema jurídico algo do sagrado, que garante a verdade de
sua ação, isto é, assim como no ritual sacrificial, há uma divindade que aceita vítimas, há no
sistema jurídico uma transcendência que nos faz crer na diferença entre a violência legítima –
a decisão penal – e a ilegítima – o crime. E nesse ponto voltamos ao início do nosso capítulo
quando afirmamos a ambivalência do sacrifício ritual. A eficácia do ritual jurídico passa pelo
46
reconhecimento pleno de sua transcendência. O estabelecimento da justiça, o seu golpe fatal
precisa ser aceito pela comunidade como a violência sagrada, caso contrário, sua ação será
inútil e recairá no ciclo vicioso da vingança (GIRARD, 1990, p. 38). O sistema jurídico penal
deve, então, estar sob o véu, envolto no mistério que impeça a observação de sua violência
como criminosa.
O grande deus da modernidade que reclama vítimas é a Lei. (GOMÉZ-PINTO, 2015,
p. 184) Ela legítima o projeto da violência soberana do Estado de Direito. Toda sua estrutura
de perpetuação se justifica em sua racionalidade. Foram os filósofos do contrato social que
sacralizam racionalmente a lei, sobretudo o direito civil burguês, de tal forma que qualquer
um que represente um perigo a ordem - tradição, família e propriedade - é um inimigo, um
subversivo, uma vítima que precisa ser abatida antes que a doença se torne epidemia. A lei,
em última análise, seleciona os bodes expiatórios, se amparando muito mais no medo do que
na razão. Hobbes que secularizou o direito natural, pondo em paralelo o soberano e Deus,
afirmou que uma lei sem espada é apenas letra. Deste modo, é de se concluir que há algo de
violento na lei, algo de sagrado, ou melhor, há uma violência sacralizada.
A necessidade do sacrifício se justifica porque a vítima ameaça a institucionaliza-se,
a ordem, a paz. A lei se converte no instrumento de sacralização da violência como
justificação da violência do homem pelo homem. (GOMÉZ-PINTO, 2015, p. 190)
Se aceitarmos, na teologia do judiciário, a Lei como Deus, é necessário que haja um
sacerdote, um ministro do sagrado, alguém que diria o rito sacrificial. Para além das forças e
do aparato repressivo do Estado, a partir da modernidade, esta personagem é o juiz, a
autoridade jurídica, como diz Girard. Alguém com poderes para culpar e vingar ao
transgressor da ordem, em nome de toda a coletividade, em nome da lei, e em última análise,
em nome de deus. O juiz será a autoridade que garantirá a vontade coletiva expressa na lei,
ponto de unidade da comunidade, contra a violência coletiva. Porém, o juiz não parece ser um
cidadão comum em seu ofício de julgar e punir, deve ser por isso que ainda hoje ele aparece
transvestido numa toga e se coloca no posto mais alto do tribunal. Na Europa e nos EUA
alguns ainda aparecem com peruca para desassociar ainda mais o cidadão da autoridade, que
em seu ofício atua – in persona ius – em nome da lei (deus).
47
No ritual secular da razão do direito burguês, ele é o sacerdote impessoal com o dever
de sacrificar a vítima expiatória. Não encontrando nenhum tipo de oposição, isto é, ninguém
isolado ou coletivamente, se opõem a sua resposta sacralizada pela lei, a qual se firma em sua
independência que busca a vontade coletiva. Assim, a ação violenta do judiciário é legítima,
pois é exercida em nome de todos; enquanto a do indivíduo é ilegítima, pois é em nome
apenas de um.
2.4. Crise dos sistemas sacrificiais
Quando a violência sacrificial não se diferencia da violência ilegítima, isto é, quando
já não é possível distinguir dentre as ações violentas, a eficácia da primeira desmorona. A sua
tentativa de controlar a violência, ao invés de eliminá-la gera reações em cadeia, e já “não há
diferença entre o sangue derramado ritualmente e o sangue derramado criminosamente”
(GIRARD, 1990, p. 62). O fim das diferenças é o fim dos sistemas sacrificiais, pois não é
possível separar o puro do impuro, o justo do injusto, o certo do errado, o bem do mal, e os
indivíduos que a princípio deveriam ser protegidos tornam-se suas vítimas. (GIRARD, 1990,
p. 59)
A crise sacrificial, ou seja, a perda do sacrifício, é a perda da diferença entre a
violência impura e a violência purificadora. Quando se perde essa diferença, não há
mais purificação possível e a violência impura, contagiosa, ou seja, recíproca,
alastra-se pela comunidade. (GIRARD, 1990, p. 68)
A diferença, entendida por Girard no duplo sentido de Jacques Derrida, como não
identidade no espaço e não coincidência no tempo, coloca ordem nas coisas, ou melhor, a
diferença ordena tanto a natureza quanto a cultura. Recordemos da centralidade da imitação,
isto é, a não diferença, a cópia, na causa das rivalidades e conflitos. A diferença possibilita
que nos situemos em relação aos demais e também permite que as coisas tenham sentido.
Um exemplo pertinente para a relação entre perda de diferença e da explosão da
escalada de violência pode ser expresso no égalité dos revolucionários de 1889. Deixando de
lado os detalhes políticos do contexto, a Revolução Francesa, de certo modo, inaugura a era
da mediação interna. Desde então, nossas relações ficaram marcadas pela demasiada
proximidade entre sujeito e mediador e o número de conflitos é crescente, pois, “se todos são
48
potencialmente iguais, como evitar a contaminação recíproca de seus desejos?” (ROCHA,
disponível em: <https://goo.gl/taZqSQ>. Acesso em: 21/06/2017). Basta vermos a sucessão
de conflitos e tomadas violentas do poder. Enquanto alguns creram na igualdade como
fundamento da ordem e da paz social, Girard, apoiado na experiência das sociedades
primitivas, afirma o contrário, “pois não é a diferença, mas a sua perda que gera a confusão da
violência.” (GIRARD, 1990, p. 71).
Quando as diferenças perdem sua legitimidade, passam quase que necessariamente a
ser consideradas como causa das rivalidades, às quais fornecem um pretexto. Mas
nem sempre elas desempenham este papel. Ocorre com todas as diferenças o mesmo
que com o sacrifício, que acaba por engrossar a torrente de violência quando não
mais consegue detê-la... (GIRARD,1990, p.70)
A crise da diferença pode ser vista entre os Kaigang de Santa Catarina que foram
isolados numa reserva,29 e imersos em uma situação de pobreza religiosa e técnica, certamente
com origens no desenvolvimento do Estado brasileiro, olvidaram de suas antigas tradições e
se inseriram em um círculo vicioso de violência. Não possuindo mais nenhum meio de
controle e desvio da violência para “os de fora”, “os outros”, “coisas diferentes”, passam a
combater contra os seus. Não existindo nenhum princípio de diferenciação, se esforçam
violentamente, em vão, para impor a ordem e a segurança. A desarticulação cultural joga a
comunidade inevitavelmente em um suicídio social, e mesmo que haja indivíduos pacíficos, o
temor pelo pior é generalizado, pois a violência se alastra feito peste. Um único assassinato é
suficiente para que o assassino entre em um sistema fechado, aniquilando todos aqueles que
um dia poderão vingar-se.
Encontramos, tanto na religião primitiva quanto na tragédia, um mesmo princípio
em funcionamento, sempre implícito, mas fundamental. A ordem, a paz e a
fecundidade baseiam-se nas diferenças culturais. Não são as diferenças, mas sim o
seu desaparecimento que provoca a rivalidade demente, a luta extrema entre os
homens de uma mesma família ou uma mesma sociedade. (GIRARD, 1990, p. 69)
29
Baseado no estudo etnográfico Povos da Floresta de Jules Henry (GIRARD, 1990, p.73).
49
O perigo iminente provocado pela eliminação das diferenças pode ser apreendido a
partir do destaque que Girard dá para as relações fraternas:
Irmãos gêmeos são comumente vistos como fonte de temor para muitos sistemas
culturais, nos quais, quase sempre, um deles ou os dois precisam ser suprimidos, como forma
de proteger a comunidade da violência implícita, pois “onde a diferença está ausente, é a
violência que ameaça”. (GIRARD,1990, p. 78) Os gêmeos anunciam o perigo da violência
indiferenciada, são considerados impuros e sua presença no corpo social, isto é, a presença da
não diferença, faz eclodir a crise sacrificial caracterizada pelas epidemias, desastres,
relaxamento das proibições, desmoronamento ritual. Muito embora toda essa fobia tenha
nuances míticas e sacrificiais, parece-nos razoável se olharmos o problema dos gêmeos
inscrito no problema da não diferenciação.
Os irmãos não gêmeos também escondem o perigo da violência. Um estudo de
Malinoeski intitulado The Father in Primitive Psychology30 exemplifica como os sistemas
culturais driblam o perigo da indiferenciação por sua não afirmação. Entre os povos das ilhas
Trobiand, na costa oriental da Papua Nova Guiné, “(...) uma criança nunca se parece com sua
mãe nem com seus irmãos ou irmãs ou qualquer de seus parentes da linha materna (...)”
(MALINOWSKI apud GIRARD, 1990, p. 81). Estes povos matrilineares negam o quanto
podem qualquer semelhança, sendo uma ofensa grave afirmá-la, seria como atrair para a
comunidade os germes da violência. Entretanto, é preciso aceitar que os irmãos não gêmeos
não são tão indiferenciados do que os gêmeos, visto que entre estes há uma semelhança física
evidente enquanto naqueles há apenas uma semelhança consanguínea. Se entre os povos de
Trobiand existe um dogma que protege a perda de diferença, a tragédia e o mito trazem outro
tipo de relação fraterna. Os irmãos inimigos, como Girard chama, expressam com mais
realidade a crise sacrificial.
Tendemos a imaginar a relação fraterna como uma afetuosa, mas os exemplos
mitológicos, literários e históricos que acorrem são todos de conflito: Caim e Abel,
Jacó e Esaú, Etéocles e Polinices, Rômulo e Remo, Ricardo Coração de Leão e João
sem Terra, etc. (GIRARD, 1990, p. 84)
30
Na tradução livre: O pai na psicologia primitiva.
50
Ao fim e ao cabo, quando a crise sacrificial se instala na comunidade, quando não
existe nenhum tipo princípio diferenciador, quando as estruturas perdem sentido e os
indivíduos se encontram perdidos, a violência se multiplica atingindo apenas não os inimigos,
não os de fora, não os estrangeiros, mas também os amigos, os de dentro, os cidadãos, e
finalmente os irmãos, àqueles que deveriam ser protegidos. Se não parado a tempo, o
progresso da violência indiferenciada aniquila toda a comunidade. A este movimento de
desconstrução é preciso seguir um movimento inverso de (re)construção que recuse o
mimetismo violento desde suas bases.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nossa pesquisa, ao aprofundar o pensamento de René Girard no que concerne à
sacralidade da violência do mecanismo do bode expiatório, consideramos que, mesmo a
administração da justiça sendo um tema periférico no edifício da teoria mimético, surgindo
apenas como desdobramento da investigação sobre o sacrifício, as contribuições de Girard são
iluminadoras, nos permitindo jogar luz e fazer ver os pressupostos onde se alicerçam as
instituições modernas, especificamente, o cárcere, um modo específico de violência do
aparato estatal, que surge historicamente justamente para “humanizar” – racionalizar – as
penas.
A posição crítica de René Girard foi decisiva para entendermos os laços que unem a
violência e o sagrado, e seu processo de institucionalização, seja em sua intuição inicial, ao
resgatar o estudo sobre o religioso pela prática sacrificial, seja apresentando
desenvolvimentos históricos dessa prática em diversos tempos e espaços. Revelar essa
violência institucional, da qual todos nós participamos, direta ou indiretamente, ativa ou
passivamente, por atos ou omissões e, por conseguinte aceitamos como prática legítima
baseada na crença de trazer benefícios e afastar malefícios, assim como em processos
terapêuticos, constitui o primeiro passo importante para rompermos esse ciclo de violência
que perpassa as relações. Uma posição evidentemente oposta às narrativas míticas de ontem e
de hoje que escondem sua violência. Por sua vez, a ação de nomear fenômenos, em hipótese
alguma, pode ser entendida com o processo inócuo de localizar culpados, atacando-os com
violência apologética, e dividindo a realidade entre um “nós” bem definido e aceito, e um
“eles” desconhecido e temido. A realidade que nos aparece não pode se organizar entre bons e
maus, inocentes e culpados, santos e demônios; caso assim fosse, estaríamos tão somente
reproduzindo a mesma lógica que tentamos desvelar ao longo desse trabalho de conclusão de
curso, e a recente pesquisa de Rafael Godoi indica:
Mesmo a crítica mais ácida se elaborada a partir desse viés normativo, corrobora
estruturas de poder e formas de pensamento que conformam, em grande medida, a
atual experiência de justiça e do crime. (2017, p. 233)
52
A complexidade das realidades contemporâneas, portanto, exige de nós respostas – ou
pelo menos reflexões – complexas. Girard parece ser consciente disso ao não se contentar
com o conhecimento produzido sobre o desejo humano, alicerçado na autonomia do sujeito
que deseja e é capaz de conquistar o mundo pela razão. O pensamento girardiano nos sugere
que nossas respostas precisam ser apocalípticas, isto é, reveladoras da ordem do mundo. É
preciso pôr em xeque o instituído. O resgate da experiência religiosa se insere nesse processo.
Girard não parte do religioso dogmático para formular sua teoria, mas em seu percurso
intelectual, ao investigar a rivalidade humana engendrada pelo desejo humano se depara com
o religioso, com instituição primeira que regula e modela a violência, assim, é possível
apreender suas íntimas relações com a violência. A violência é a alma do sagrado (GIRARD,
1990, p. 47). Em suma, o religioso não está ausente de racionalidade, pelo contrário, sua razão
subsiste em mitos, ritos e tabus de um coletivo humano, sejam arcaicos ou contemporâneos, e
por sua vez, conformam o sagrado e escondem sua violência fundadora. Por tanto, o
pensamento girardiano possibilita uma profunda hermenêutica do mundo contemporâneo por
suas formas sacras, viabilizando jogar luz e nomear a violência de nossos tempos, pois, como
afirmamos a secularização das instituições não deixou de ser religiosa, isto é, não deixaram de
produzir ordem violenta.
Podemos considerar ainda que a contemporaneidade e flexibilidade da teoria
mimética, apesar das críticas de pouco científica ou de uma pretensa intenção totalizante,
produzem um tipo de conhecimento sólido e profundo, não o único nem o último, tampouco
sólido no sentido de uma estrutura hermenêutica inflexível e fechada, mas obedecendo a uma
racionalidade que lhe é própria, busca pensar o mundo aprofundando o debate em torno do
desejo humano e seus desdobramentos. Girard, até o fim de sua vida, buscou compreender os
mais diversos fenômenos; desde eventos globais como os violentos atentados terroristas e as
guerras do final do século XX e início do XXI, a comportamentos subjetivos de violência
contra si como os casos de enfermidades como a anorexia. Por conseguinte, uma expressiva
fileira de estudiosos de diversas áreas encontrara na teoria mimética uma seara fértil para a
produção de conhecimento. Na América Latina,31
e no Brasil, tem crescido o estudo e
31
O conceito de girardiano de interdividualidade – que neste trabalho não apresentamos – vem sendo
trabalhando nesta parte sul do globo “como categoria crítica proposta pela teoria mimética na América Latina
[oferecendo] idéias às nossas comunidades acadêmicas e culturais, movimentos civis e demais atores da
mudança social que visam superar o momento crítico em que estamos imersos, um que desfigura o rosto dos
53
aplicação da teoria mimética, na interpretação de nossas realidades marcada, sobretudo, por
violências, desde as mitologias dos povos originários, as iniciativas colonizadoras, o sistema
escravocrata, os processos de independência, a submissão ao capital estrangeiro, os regimes
ditatoriais cívico-militares, os populismos sejam conservadores ou progressistas até o recente
capitalismo neoliberal.
Nossa pesquisa, pois, se insere, nesse rol especulativo da teoria mimética a fim de
compreender o mundo contemporâneo. Com certeza, ao longo do percurso trilhado, corremos
o risco de perder o foco inicial, posto que, nossa abordagem é pouco habitual na pesquisa na
tradição brasileira. Ao trazer uma realidade empírica tão adversa, mas não distante de nós,
pois o aparato estatal que mantém o cárcere garante nossas liberdades, (GODOI, 2017, p.
236), quisemos descolonizar nosso “filosofar”, acostumado estritamente como práticas
interpretativas de textos, em sua maioria, de homens brancos ocidentais. Embora, não
escapemos desse hegemônico modo tradicional de pesquisa filosófica acadêmica – estudamos
o pensamento de um francês radicado nos EUA –, recusamos a brasileiríssima Filosofia
Brasileira, (DA SILVEIRA, 2016, p. 261) assumindo os riscos de sair de nossas bolhas
culturais que pairam em certos círculos acadêmicos, sobretudo na filosofia – deixando-se
afetar pelas realidades brasileiras.
A experiência empírica da violência do sistema punitivo, vivida tão somente enquanto
agente de pastoral, e por isso, bastante atenuada, não sendo submetido aos dispositivos de
controle que cotidianamente recaem sobre corpos e mentes de pessoas privadas de liberdade e
seus próximos, por exemplo, a violenta revista vexatória,32
onde, sobretudo, mulheres têm
seus corpos minuciosamente investigados por agente penitenciários a fim de evitar o acesso
de objetos proibidos no interior das unidades prisionais, como drogas consideradas ilícitas e
celulares (com bateria, carregador e chip), nesse trabalho não é profundamente detalhada,
todavia foi a via de acesso e possibilidade para a produção de um saber autêntico e verdadeiro
segundo a proposição de Oswaldo Porchat: “primeiro viver, depois filosofar” (1993, p. 40).
Expressão facilmente vulgarizada pela produção de likes e retwittes, mas que adquire pleno
sentido ao recordarmos todo nosso processo de formação acadêmica e construção de vínculos.
mais vulneráveis ao mesmo tempo que estilhaça a centelha de humanidade em nossas sociedades”
(MENDONZA-Álvarez et al (orgs.), 2016, p. 14. ) 32
Desde 2014, essa prática é legalmente proibida no estado de São Paulo, porém na maioria das unidades
prisionais mentem-se rotineiramente. Diversas entidades trabalham para sua extinção. Ver:
<http://www.fimdarevistavexatoria.org.br/>.
54
Finalmente, nossa análise sacrificial do cárcere e a sacralidade de sua violência não
encerra o debate consolidado sobre René Girard, teoria mimética, bode expiatório, cadeia,
aparato de repressão estatal, instituições e sistemas normativos de justiça e punição, e em
último grau, sobre a violência; tão somente, introduz novos olhares e encoraja para prosseguir
o diálogo em sentido apocalíptico, buscando a superação dos mecanismos sagrados e
sacrificiais, pela desinstitucionalização de tais práticas que, especificamente, nas prisões passa
pelo progressivo desencarceramento, e no limite, na desmilitarização das vidas.
BIBLIOGRAFIA
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1990.
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KIRWAN, Michael. Teoria Mimética: conceitos fundamentais. São Paulo: É Realizações,
2015.
Bibliografia complementar
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2011.
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GIRARD, René. Mentira Romântica e Verdade Romanesca. São Paulo: É Realizações,
2009.
_____________. Aquele por quem o Escândalo Vem. São Paulo: É Realizações, 2011.
_____________. Bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2014.
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Artigos e entrevistas
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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210compilado.htm>. Acesso
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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Diagnóstico da pessoa presa. Online. Disponível
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MINISTÉRIO DE JUSTIÇA, Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento de
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<http://goo.gl/UNM7WS>. Acesso em: 23 nov. 2017.
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<https://goo.gl/L4hGtM>. Acesso em: 21 nov. 2017.
SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA. SSP. Online. Disponível em:
<http://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/>. Acesso em 21 nov. 2017.
ANEXO I
Figura 1 – Entrada para o Centro de Detenção Provisória Vila Independência.
Fotografia feita em 26 de abril de 2017, por Lucas Duarte. Nela, vemos, ao fundo, uma
torre de vigilância e parte da fachada do CDP; em primeiro plano, há um grupo de mulheres
que certamente vieram entregar o “jumbo”, uma série de mantimentos e materiais de higiene
e limpeza trazidos pelas famílias. É possível ver uma sacola grande na cor branca entre elas,
trata-se do jumbo. Ironicamente uma enorme placa informa que a área está contaminada e é
perigosa à saúde. Na época, o governo de estado construía dois grandes piscinões ao redor da
unidade para conter as cheias do Rio Tamanduateí. Conversando com moradores do bairro,
soube que antes de dar lugar ao CDP e aos piscinões, a região a beira da Av. Dr. Francisco
Mesquita fora um lixão.
Apesar disso, desde 01/01/2000, o Estado de São Paulo mantém pessoas presas nessa
região reconhecida até pelas autoridades como perigosa. O CDP da Vila Independência, em
20/11/17, abrigava 1546 homens, segundo dados da SAP, quase o dobro de sua capacidade de
(828), mas esse número já chegou a superar os 2 mil. Além disso, cotidianamente familiares,
trabalhadores, voluntários e outras pessoas frequentam a unidade sob perigo iminente.
As obras foram concluídas, a área permanece contaminada e o CDP segue em pleno
funcionamento.
ANEXO II
Nota da Pastoral Carcerária: não é crise, é projeto.
“(…) enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade
dentro da sociedade e entre os vários povos,
será impossível desarraigar a violência.”
(Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 59)
Apesar do clamor nacional que se seguiu aos massacres de Manaus, Roraima e Rio
Grande Norte, o principal produto do sistema prisional brasileiro sempre foi e continua sendo
a morte, a indignidade e a violência. Em números bastante subestimados, fornecidos pelas
próprias administrações penitenciárias, no mínimo 379 pessoas morreram violentamente nas
masmorras do país em 2016, sem que qualquer “crise” fosse publicamente anunciada pelas
autoridades nacionais.
Nesse sistema, sob a tutela e responsabilidade do Estado, onde a mortalidade é 6,7
vezes maior do que fora dele, e as situações de violações sistemáticas de direitos são notórias
e encontram-se detalhadamente registradas em uma infinidade de relatórios produzidos por
organizações governamentais e não governamentais, não foi por falta de avisos ou
“recomendações” que as pessoas privadas de liberdade deixaram de ser mortas e vilipendiadas
em sua dignidade.
O que se deduz da atual conjuntura é que a morte de centenas e a redução de centenas
de milhares à mais abjeta degradação humana parece não ser digna de incômodo ou atenção
quando executadas metodicamente e aos poucos, sob o verniz aparentemente racional das
explicações de caráter gerencial, e sem que corpos mutilados sejam expostos ao olhar da
mídia. O acordo rompido em Manaus, Roraima e Rio Grande do Norte não foi o da
convivência pacífica entre as facções, que nunca existiu, mas entre o Estado e o “grande
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público”, a quem jamais deveria ser permitido enxergar as verdadeiras cores deste grande
massacre brasileiro que se desenrola há tempos.
A guerra de facções por sua vez, transformada em uma narrativa lúdica, desinforma e
distrai daquilo que jaz no cerne da questão: o processo maciço de encarceramento que
vivenciamos, e que desde 1990 multiplicou em mais de sete vezes a população prisional
brasileira, somando, juntamente com os presos domiciliares e em medida de segurança, mais
de 1 milhão de seres humanos sob tutela penal, segundo dados do CNJ.
Esse formidável, custoso e cruel aparato de controle social, estruturado em pleno
período democrático, deita raízes profundas em nosso sistema econômico que “exclui para se
manter”, como já afirmou o Papa Francisco, e cuja lógica neoliberal e mercantilizante atinge
todas as relações humanas, sem exceção. Crime e castigo tornaram-se commodities, e corpos,
quase todos pretos, novamente tornaram-se objetos de comércio e barganha, dessa vez em
benefício dos senhores das prisões privadas.
Juízes, promotores e defensores, por ação ou omissão, cada qual com sua parcela de
responsabilidade, também desempenham papel central na gestão deste caos, emprestando
legitimidade jurídica para um sistema de encarceramento que funciona à margem de qualquer
legalidade. Em relatório divulgado em outubro de 2016, que apresentou o resultado do
acompanhamento de mais de uma centena de casos de tortura em 16 estados e no Distrito
Federal, a Pastoral Carcerária já apontava a participação estrutural do sistema de justiça na
ocultação e validação de práticas violadoras de direitos.
Diante do aparente colapso da estrutura prisional brasileira e da repercussão nacional e
internacional dada ao caso, o Sistema de Justiça retomou às pressas os paliativos mutirões
carcerários, e o Governo Federal desfiou um rosário de propostas absurdas, que vão do
reforço à fracassada política de construção de novas unidades, até o descabido e perigoso uso
das Forças Armadas no ambiente prisional. Soma-se a essas propostas o desvio de verbas do
Fundo Penitenciário Nacional para outras finalidades, por meio da Medida Provisória 755, e o
Decreto n.º 8.940/2016, que estabeleceu as regras mais rígidas dos últimos anos para a
concessão do indulto presidencial.
Assim, o Governo Federal, alicerçado pelo Judiciário e o Ministério Público, vai
reforçando a agenda repressiva e encarceradora, que aplicada nas últimas décadas resultou na
mesma catástrofe que agora se propõe a resolver. Na esteira destas propostas, ONG’s e
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veículos de imprensa pedem a “retomada do controle” das prisões pelo Estado, num apelo
cifrado por mais violência, e listas de soluções e medidas reformadoras são febrilmente
reeditadas, vindo ao socorro de um sistema que há mais de 30 anos evidencia sua irreformável
natureza desumana.
Desde 2013 um conjunto de organizações e movimentos, entre eles a Pastoral
Carcerária, Mães de Maio e Justiça Global, tem pautado a necessidade de ações estruturais
para reverter o atual quadro de encarceramento em massa, por meio das propostas articuladas
na Agenda Nacional pelo Desencarceramento, e alertando para a contínua degradação do
sistema.
Na atual conjuntura, não podemos cair na falácia das análises simplistas e das medidas
que pretendem apenas aplainar o terreno até o próximo ciclo de massacres, nem titubear no
enfrentamento aos pilares desse sistema, como a atual política de guerra às drogas, a
militarização das polícias, o aprisionamento provisório, a privatização do sistema prisional, e
a política de expansão do aparato carcerário.
Se a opção que alertávamos há tempos era pelo desencarceramento ou barbárie, o
Estado de forma clara e reiterada optou pela barbárie. Parafraseando Darcy Ribeiro, já não se
trata mais de uma crise, mas de um projeto. E a perversidade de tal projeto não poderá cair
sob nenhuma anistia. Poderá haver anistia pactuada entre os poderes do Estado, mas não
haverá perante a consciência e perante Aquele que se apresentou sob a figura de um preso,
torturado, executado na Cruz, Jesus, o Nazareno, feito Juiz Supremo que julgará
especialmente aqueles que violaram a humanidade. (Lc 11,50-51)
Assim, mais do que nunca devemos continuar a construir laços verdadeiros de
solidariedade com o povo preso e seus familiares, reforçar o trabalho em torno da Agenda
Nacional pelo Desencarceramento, e redobrar nossa luta profética pela realização do sonho de
Deus: um mundo sem cárceres.
19 de janeiro de 2017
Pastoral Carcerária Nacional – CNBB