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FACULDADE DE TEOLOGIA DO MOSTEIRO DE SÃO BENTO DE SÃO PAULO TEOLOGIA Huanderson Silva Leite A COMUNIDADE CRISTÃ: LUGAR DE RELACIONAMENTOS, PASTOREIO E MISSÃO. Monografia SÃO PAULO 2018

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FACULDADE DE TEOLOGIA DO MOSTEIRO DE SÃO BENTO DE SÃO PAULO

TEOLOGIA

Huanderson Silva Leite

A COMUNIDADE CRISTÃ: LUGAR DE RELACIONAMENTOS, PASTOREIO EMISSÃO.

Monografia

SÃO PAULO2018

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Huanderson Silva Leite

A COMUNIDADE CRISTÃ: LUGAR DE RELACIONAMENTOS, PASTOREIO EMISSÃO.

Monografia apresentado ao curso de Teolo-gia, como parte dos requisitos necessáriosà obtenção do título de Bacharel em Teolo-gia.

Orientador: SÉRGIO ALEJANDRO RIBA-RIC

SÃO PAULO2018

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Huanderson Silva Leite

A COMUNIDADE CRISTÃ: LUGAR DE RELACIONAMENTOS, PASTOREIO EMISSÃO.

IMPORTANTE: ESSE É APENAS UMTEXTO DE EXEMPLO DE FOLHA DEAPROVAÇÃO. VOCÊ DEVERÁ SOLICITARUMA FOLHA DE APROVAÇÃO PARA SEUTRABALHO NA SECRETARIA DO SEUCURSO (OU DEPARTAMENTO).

Trabalho aprovado. SÃO PAULO, DATA DA APROVAÇÃO:

SÉRGIO ALEJANDRO RIBARICOrientador

ProfessorConvidado 1

ProfessorConvidado 2

SÃO PAULO

2018

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• Dedico este trabalho a Deus por sempre estar ao meu lado nos momentos maisdifíceis. Quando pensei que não teria forças para continuar, Ele me sustentou.Quando decidi entrar na Faculdade de Teologia, foi sempre pensando em apri-morar os meus conhecimentos para melhor servir ao povo de Deus e Ele honroueste propósito.

• A todos os meus professores da graduação, que foram de fundamental impor-tância na construção da minha vida profissional. Aprendi demais com cada umdos meus professores, não somente com seus ensinamentos, mas com seutestemunho de vida. Vocês me ajudaram a ser pessoas melhores.

• Ao meu orientador o Professor Ms. Sergio Alejandro Ribaric que com suadisponibilidade, carinho, empatia e alegria acabou se tornando um amigo e umreferencial.

• Dedico este projeto à minha família em especial a minha esposa Valéria e ameus filhos Maria Clara e Enzo Gabriel, aos meus pais e irmãos, que jamais seopuseram a este desafio. Agradeço a todos os amigos que sempre estiverampresentes direta ou indiretamente em todos os momentos de minha formação.

• Dedico este trabalho também de maneira especial a todos os meus irmãos daComunidade Ruah Adonai, aos amigos da Diocese de Campo Limpo e de todaa Renovação Carismática Católica do Brasil. A todos a minha eterna gratidão.

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Agradecimentos

Não quero ser injusto ao ponto de esquecer alguma pessoa que colaboroucomigo ao longo desse tempo formativo, por isso quero agradecer a todas pessoas quepassaram minha vida ao longo destes últimos.

Houve momentos em que sinceramente pensei que não ia conseguir avan-çar, mas Deus veio a meu encontro e me sustentou com seu amor e sua graça. Oprimeiro agradecimento é a Deus, por ter me proporcionado uma experiência viva comEle através de seu imenso amor. Este amor dá sentido a minha vida e é ele que movea enfrentar todas as dificuldades para anunciá-lo, pois sei que o este amor é capaz defazer.

No meu coração eu tinha o desejo de falar sobre muitas coisas, mas na horade escrever sobre determinados assuntos o que faltava não era bibliografia e sim ainspiração. Até que comecei a ouvir muitas pessoas da vida acadêmica falando emescrever sobre aquilo que se tem paixão. Eu não tenho somente uma paixão pela vidacomunitária ou pelo tema, mas tenho ciência das crises que envolvem este tema eda necessidade de se produzir sobre o mesmo, porém o caminho para chegar a esteponto foi um pouco demorado, mas quando cheguei aqui a coisa fluiu.

Agradeço muito ao professor Sergio Alejandro Ribaric, meu orientador, que tevecomigo uma grande paciência nestes momentos de indecisão.

Agradeço muito a minha família, por sempre me incentivarem e por se orgulha-rem de mim ao completar esta segunda graduação. Agradeço a minha comunidade,que na prática foi me dando muitos elementos para a minha reflexão.

Que Deus abençoe a todos!!!

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Resumo

Os tempos atuais mostram que na sociedade contemporânea as pessoas temvivido um individualismo feroz onde a luta é sempre num nível pessoal para se alcançaros degraus do sucesso e bastar a si mesmo. Esse individualismo tem atingido os maisdiversos grupos no que diz respeito ao engajamento de seus membros e por sua vezas comunidades cristãs tem sido afetadas também por esta realidade. O ser humanopossui a necessidade de pertencer a uma comunidade, seja qual for a sua forma: grupode amigos, família, clube, partidos políticos e no cristianismo não estamos isentosdisso. A Igreja é uma comunidade de comunidades, porém percebemos hoje umagrande deficiência na vida comunitária motivada não somente pelo individualismo, maspela perda de identidade e sentido. Através deste trabalho pretendo mostrar, a partirda Escritura, da Tradição, do Magistério, da Teologia e da própria práxis, que a nóscristãos, não basta estarmos reunidos, como acontece, por exemplo, numa assembleiadominical reunida para a liturgia, precisamos estabelecer vínculos mais sólidos apartir de relacionamentos fraternos, do cuidado de uns para com os outros a quechamo de pastoreio e o testemunho desse amor que nos alcançou e que é praticadona comunidade precisa ser anunciado até os confins da terra e neste ponto trabalhoa realidade missionária que envolve por natureza a comunidade cristã. A essênciado cristianismo passa pela vida fraterna em comunidade e para que esta mensagemchegue a todos os povos não podemos desviar o nosso olhar destes pontos queatualmente encontram-se fragilizados nas mais diversas comunidades cristãs. Paraque a mensagem anunciada tenha sua credibilidade, o testemunho de amor fraterno eo pastoreio precisam hoje estar entre as nossas prioridades.

Palavras-chave: Comunidade. Fraternidade. Amor. Pastoreio. Missão.

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Abstract

The present times show that in contemporary society people have lived a fero-cious individualism where the struggle is always on a personal level to reach the stepsof success and suffice oneself. This individualism has reached the most diverse groupswith regard to the engagement of its members and in turn the Christian communitieshave also been affected by this reality. The human being has the need to belong toa community, in whatever form: group of friends, family, club, political parties and inChristianity we are not exempt from it. The Church is a community of communities, buttoday we see a great deficiency in community life motivated not only by individualism, butby the loss of identity and meaning. Through this work I intend to show, from Scripture,Tradition, Magisterium, Theology and praxis itself, that it is not enough for us Christiansto be united, as is the case, for example, in a Sunday assembly gathered for the liturgy,we must establish stronger bonds based on fraternal relationships, caring for eachother, which I call grazing, and the witness of this love that has reached us and which ispracticed in the community needs to be announced to the ends of the earth and at thispoint I work the reality missionary nature that surrounds the Christian community. Theessence of Christianity passes through fraternal life in community and for this messageto reach all peoples we can not divert our gaze from these points that are currentlyfragile in the most diverse Christian communities. For the announced message to haveits credibility, the witness of brotherly love and shepherding must today be among ourpriorities.

Keywords: Community. Fraternity. Love. Grazing. Mission.

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Sumário

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Sumário

Introdução 9

Capítulo Primeiro: A Santíssima Trindade modelo para todas as Comunidades 11

Capítulo Segundo: Comunidade lugar de pastoreio e discipulado para missão 28

Capítulo terceiro: Comunidade lugar de missão 44

Conclusão 57

Referências 59

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INTRODUÇÃO

O ser humano criado a imagem e semelhança de Deus não foi criado para

viver sozinho. A revelação divina, a condescendência de Deus e o mistério da

Trindade nos revelam que o ser humano enquanto um ser de relações não foi criado

para viver na solidão ou no isolamento, mas sim para comunicar o amor de Deus

vivido em suas relações fraternas na comunidade cristã.

O presente trabalho, “Comunidade, lugar de relacionamentos, pastoreio e

missão”, visa mostrar a importância que as comunidades cristãs têm na sociedade,

com a incumbência de conservar a preocupação com o outro, sendo sinal profético

de que o individualismo além de nocivo, não cabe na vida cristã.

Este trabalho está organizado em três partes. O capítulo primeiro à luz da

Santíssima Trindade, fala de Deus enquanto amor em essência, sob a orientação da

Sagrada Escritura, da Tradição e do Magistério. Na segunda parte do mesmo

capítulo aborda-se as relações trinitárias como modelo para os relacionamentos

humanos e na terceira parte enfoca-se o chamado do homem, enquanto imagem e

semelhança de Deus a se abrir ao outro, a ir ao encontro, a comunicar-se e

estabelecer relações fraternas em âmbito comunitário, como forma também de

testemunhar e comunicar o amor que Deus tem por cada um de nós.

Na segunda parte aborda-se a comunidade enquanto lugar de pastoreio.

Relacionamentos fraternos autênticos exigem a preocupação e o cuidado com os

pequenos e mais fracos, que em nossas comunidades não são pessoas a serem

descartadas, mas pessoas a serem cuidadas, recuperadas, formadas para que se

tornem testemunhas autênticas do Evangelho. Esta abordagem tem uma base

histórica partindo das primeiras comunidades cristãs, especificamente o texto dos

atos dos apóstolos. Na segunda parte deste capítulo trabalho a forma de Jesus

pastorear e cuidar dos pobres e pequeninos a luz do evangelho e de alguns

documentos magisteriais e na última parte deste capítulo falo sobre o cristão

inserido na comunidade e pastoreado pela mesma que vai sendo discipulado para a

missão.

Por fim o último capítulo dedica-se sobre a comunidade enquanto lugar de

missão, fazendo uma abordagem missiológica a partir da própria natureza

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missionária da Igreja e o fim último da missão que consiste em fazer com que toda a

criação se torne partícipe do amor da Santíssima Trindade, revelado na história,

através das Escrituras e da Tradição e testemunhado na comunidade cristã a partir

da experiência com a pessoa de Jesus Cristo que nos comunicou e revelou o amor

do Pai. Na segunda parte falo sobre a constituição de comunidades cristãs, como

consequência do amor anunciado e que nos leva a viver com outras pessoas que

realizaram a mesma experiência. Abordo aqui também a necessidade das

comunidades cristãs a não se descuidarem da sua dimensão fraterna como

testemunho vivo para a evangelização na atualidade.

Em tempos onde a sociedade tem criado suas barreiras e estereótipos, a

partir de determinados preconceitos; em tempos onde as grandes instituições tem

passado por crises; em tempos em que tem crescido a rejeição ao evangelho, a

religião, a Igreja e a Palavra de Deus, enquanto Igreja precisamos ser audaciosos

para anunciar o evangelho de maneira prática, testemunhado no amor e na unidade

vivida pela comunidade, “para que o mundo creia que me enviastes” (cf. Jo 17, 21).

CAPÍTULO PRIMEIRO: A SANTÍSSIMA TRINDADE MODELO PARA TODAS AS COMUNIDADES

1.1 – O amor enquanto essência divina

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João Paulo II, no dia 28 de janeiro de 1979, falando a assembleia do CELAM

disse: “Já se disse, de forma bela e profunda, que nosso Deus em seu mistério mais

íntimo não é uma solidão, mas uma família. Pois leva em si mesmo a paternidade, a

filiação e a essência da família que é o amor. Este amor na família divina, é o

Espírito Santo”.

Na mesma linha o autor francês Jean-Noel Bezançon reafirma que Deus não

é solitário1. Diante de declarações tão profundas nos questionamos: Afinal, quem é

Deus? Tomás de Aquino afirmava que a respeito de Deus é mais fácil dizer aquilo

que ele não é do que aquilo que ele é (ST I, q. 3. a.4.)2. Deus é mistério, mas a

respeito de Deus existe uma certeza: “Deus é amor” (cf. I Jo 4, 8). Se nos parece

difícil entender tudo isso, não esqueçamos aquilo que Hilário de Poitiers diz quando

afirma que “Deus pode ser aquilo que não podemos entender”3, ou ainda como

afirma Karl Barth:

Religião é a possibilidade que a humanidade tem de receber uma impressão da revelação divina mantendo vivo o movimento de retorno do homem velho para o homem novo. E a religião que retrata e reaviva esse retorno, desdobrando-o e o apresentando em forma compreensível, ou perceptível, ao ser humano, quer isoladamente, como indivíduo, quer em seu conjunto, como coletividade4.

Por mais pretencioso que seja a busca da compreensão daquilo que é

transcendente, o termo mistério, por sua vez muito presente na Igreja antiga, nos

ajuda a entender a realidade daquilo que buscamos: “Mistério na Igreja antiga não

significava uma realidade escondida e incompreensível ao intelecto humano.

Mistério era o desígnio de Deus revelado a pessoas privilegiadas como os grandes

místicos5...”.

O amor é a essência de Deus e para se manifestar o amor precisa de

relações. Ao falarmos que Deus é amor, estamos testemunhando que este amor nos

atrai, que é algo que dá sentido à nossa vida. O ser humano por natureza possui

uma abertura ao transcendente, nós só podemos ser atraídos por algo

1 BEZANÇON, J. N. Deus não é solitário. São Paulo: Loyola, 2003. p. 12.2 AQUINO, Tomas. Suma Teológica. Trad. Aimom- Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. v. I.3 HILARIO DE POITIERS. Tratado sobre a Santíssima Trindade. São Paulo: Paulus, 2005. Livro 11, N. 43.4 BARTH, K. Carta aos Romanos. São Paulo: Fonte Editorial, 2008. P. 287.5 BOFF, L. A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. São Paulo: Vozes, 1988. P. 40.

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convenientemente bom e agradável a cada um de nós e ao olharmos para o amor

como essa força que nos atrai, é difícil não sermos atraídos por Ele. Podemos

inclusive dizer que o amor dentro dessa perspectiva não é um simples sentimento,

Ele vai além daquilo que podemos contemplar. O amor nunca está concluído e

completo; transforma-se ao longo da vida, amadurece e por isso mesmo permanece

fiel a si próprio6. Deus é fonte e raiz de todo amor, nós amamos porque Deus nos

amou primeiro (cf. I Jo 4, 19), o amor é a melhor forma de se participar da vida de

um Deus que por excelência é santo e cuja santidade se dá em sua capacidade de

amar.

No livro do Levítico, o próprio Deus fala: “Sede Santos, porque Eu, o Senhor

vosso Deus sou santo” (cf. Lv 19, 1). Santidade neste caso não tem relação com

isenção de pecado. Santidade vem do hebraico kadosh que significa separado. Ao

participarmos da santidade de um Deus que é três vezes santo, somos separados

ou escolhidos para amar e toda a raça humana é capaz de amar, pois fora criada a

imagem e semelhança de seu criador uma vez que a santidade de Deus está ligada

a sua capacidade em nos amar. Definimos então que Deus é santo, pois grande é

sua capacidade em nos amar.

O Deutero Isaías durante o cativeiro da Babilônia vai nos dizer que uma mãe

pode esquecer seu filho, mas Deus jamais será capaz de nos abandonar (cf. Is 49,

15). O amor de Deus é algo que misteriosamente foge a nossa compreensão

humana. O amor é algo próprio do ser de Deus. O amor caracteriza o ser de Deus e

se participamos da vida de Deus, podemos viver o amor com essa mesma

intensidade. Fomos criados por amor para amar.

O termo amor tornou-se hoje uma das palavras mais usadas, e mesmo

abusadas, a qual associamos significados completamente diferentes7. Na língua

portuguesa amor é uma palavra limitada, pois a utilizamos para expressar diferentes

maneiras de amar. No amor existem proporções diferentes ou formas diferentes de

se amar, ninguém ama um amigo, da mesma maneira a qual se ama o próprio filho,

ninguém ama um animal na mesma proporção que se ama o cônjuge, mas

costumeiramente todo afeto positivo chamamos de amor. O Papa Bento XVI na

6 BENTO XVI. Deus Caritas Est. São Paulo: Loyola, 2006. P. 24.7 ibidem. P. 9.

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Encíclica Deus Caritas Est nos ajuda a refletir sobre isso quando fala sobre o amor

Eros, Filia e Ágape. O Antigo Testamento grego usa apenas duas vezes a palavra

eros, o Novo testamento por sua vez nem a usa: “das três palavras gregas

relacionadas com o amor, os escritos neotestamentários privilegiam a última, que

por sua vez na linguagem grega era quase posta de lado”8.

O amor Eros9, diz Bento XVI, é um amor que em nossos tempos precisa ser

purificado devido a visão deturpada que a sexualidade acabou adquirindo, pois o

eros é um amor que possui traços do amor divino, pois assim como numa relação

sexual, o parceiro deve levar a parceira a satisfação, no amor de Deus também

temos um amor desinteressado, que deixa de pensar em si, para pensar no outro. O

eros torna-se assim cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não

busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, em vez disso, o bem do

amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes, procura-o. O amor eros

tem esse rastro de atração, de sedução como diz o profeta Jeremias (Cf. Jr 20, 7):

“Seduziste-me Senhor e eu me deixei ser seduzido”. O pseudo-Dionísio já afirmava

que Deus é eros10, pois o amor de Deus nos atrai, nos seduz, nos arrasta, em outras

palavras, o amor de Deus é irresistível.

O amor filia também possui traços do amor divino, trata-se de um afeto, de

um carinho. Deus é este amigo que está próximo de nós e que nos trata com carinho

e afeto. No Evangelho de João, Jesus nos diz: “Já não vos chamo servos, vos

chamo amigos” (Cf. Jo 15, 15) e em outra passagem ele também diz: “não há maior

amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (cf. Jo 15, 13).

Porém, é no amor ágape que a novidade do amor cristão se faz presente. Um

amor de entrega, de doação, de aniquilação, de kenósis segundo o texto grego e é

fato que Deus também nos amou com este amor, quando permitiu que seu Filho se

entregasse de uma forma livre por amor a nós. O Filho também nos amou e amou a

seu Pai quando entregou livremente sua vida por nós. Deus consegue nos amar

com todas as possíveis dimensões do amor e mostra-nos que é possível também

amarmo-nos uns aos outros e consequentemente comunicarmos o seu divino amor

através de nossas relações.

8 ibidem. P. 10.9 Ibidem. P. 11.10 Pseudo DIONISIO. (2004). Dos nomes divinos. São Paulo: Attar.

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Deus é em si um amor tão grande e ao mesmo tempo tão misterioso que foge

a nossa razão humana e como o amor não consiste em palavras, mas em gestos

concretos é oportuno também falarmos sobre este amor numa linha mais prática. Na

cruz temos a revelação primeiramente de quem é Jesus, pois Ele é o Filho que se

entrega nas mãos do Pai. A cruz nos diz também quem é o Pai, aquele cujo ícone é

Jesus, inteiramente doado, aquele que, em Jesus, ama até o extremo (cf. Jo 13, 1).

1.2 – As relações trinitárias como modelo para as relações comunitárias

A Santíssima Trindade é um mistério. Como pode um ser três? Falar da

Trindade não é falar de uma simples conta matemática que não fecha, é penetrar na

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reflexão do mistério e ao mesmo tempo devemos olhar para a Trindade e fazer a

pergunta: Porque Três são um?

Nossa reflexão será pautada a partir dos relacionamentos que há em Deus e

que o próprio dogma trinitário nos ajuda a refletir, além da própria vida em

comunidade, que precisa ser mais explorada nos tempos atuais, pois se o amor

precisa de relações para se manifestar e se entendemos que a vida comunitária é

este meio para que as relações de amor aconteçam, nos encaminhamos então para

a compreensão da Santíssima Trindade, como comunidade perfeita e família de

Deus.

Karl Rahner afirma que a Trindade econômica é a Trindade imanente11, ou

seja, o Deus Trino que se revela na história, o é tal como ele é em si mesmo.

A trindade na história da salvação e revelação é a Trindade “imanente, visto que, na auto comunicação de Deus à sua criatura pela graça e encarnação, Deus realmente se doa a si mesmo, então, tendo em vista o aspecto histórico e econômico-salvífico presente na história da auto revelação de Deus no Antigo e Novo Testamento, podemos dizer: na história da salvação, quer coletiva, quer individual, vem ao nosso encontro imediato não quaisquer forças numinosas que representem a Deus, mas novem ao encontro e nos é dado na verdade o próprio Deus único...

Em alguns textos do antigo testamento, verificamos uma difícil compreensão

acerca de Deus. Se nos prendêssemos a estes textos poderíamos ter dificuldades

para acreditar em tão grande amor, principalmente quando vemos Deus sendo

descrito por antropomorfismos ou antropopatismos12 com atitudes contrárias ao

amor, cito como exemplo a vingança. Diante de uma situação como essa temos que

nos voltar ao mistério para contemplarmos a imensidão desse amor.

Uma vez que o amor é uma decisão e que precisa de relações e das

adversidades para se expressar, para também falar que Deus é amor precisamos

olhar para suas relações ad intra. Deus é a comunhão de três seres relacionais que

existem, cada um, em função do outro. O amor já não é apenas um mandamento,

mas a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro.13 Francisco

nos fala de uma cultura do encontro que na verdade é uma cultura trinitária por

11 RAHNER, K. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulus, 1989. P. 168.12 O antropomorfismo ou personificação é a atribuição de formas e ações humanas a Deus. O antropopatismo é a atribuição de sentimentos humanos a Deus.13 BENTO XVI. Deus Caritas Est. São Paulo: Loyola, 2008. P. 8.

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excelência. “Temos de ser servidores da comunhão e da cultura do encontro. Quero

vocês quase obsessivos neste aspecto! E fazê-lo sem serem presunçosos, impondo

as “nossas verdades”, mas guiados pela certeza humilde e feliz de quem foi

encontrado, alcançado e transformado pela Verdade que é Cristo, e não pode deixar

de anunciá-la”14.

A fé cristã professa sua fé num Deus único que ao mesmo tempo é trino e a

Trindade é justamente isso, a relação de três pessoas numa única essência divina.

As relações são as conexões que existem entre as três divinas Pessoas. O Pai em

relação ao Filho possui a paternidade; o Filho em relação ao Pai possui a filiação;

Pai e Filho em relação ao Espírito Santo possuem a espiração ativa; o Espírito Santo

em relação ao Pai e ao Filho possui a espiração passiva. Deus só existe como ser

em relação. A grande novidade cristã é que a divindade só existe comunicada,

partilhada. Deus é relação.

Embora a Escritura não utilize o termo Santíssima Trindade, a tradição

joanina dá indícios para compreendermos as relações de comunhão entre as

pessoas divinas. Jesus mesmo afirma “Eu e o Pai somos um” (cf. Jo 10, 31). A

comunhão entre as três pessoas da Santíssima Trindade é a origem de toda a

comunhão humana, consequentemente o modelo perfeito de unidade para nós.

Na Tradição oriental tudo em Deus é relacional. Não há primeiro um Pai,

depois um Filho que em seguida entrariam em relação. Eles são Pai e Filho pela

relação que faz um ser o Pai e o outro Filho. A única natureza divina só existe na

comunhão que procede de que o Pai faz nascer de si um Filho tão Deus como ele, e

um Espírito tão Deus como ele e que, no entanto, possuem toda a natureza divina.

Se há comunhão, há comunidade, pois quem ama faz Comunidade, já dizia Teresa

D’Ávila.

Jesus experimenta Deus como Abbà, que significa literalmente papaizinho, exprimindo assim uma intimidade inusitada. E esta intimidade que Jesus manifesta para com o Pai transparece em todos os momentos de sua vida. Não apenas quando Jesus se retira da companhia das multidões e até mesmo dos apóstolos para rezar a sós. Esta singular intimidade se deixa entrever também no fino trato de Jesus para com as pessoas, na sua sensibilidade para com as

14 FRANCISCO. (2016). Exortação apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus. N.

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necessidades delas, na atenção que Ele reserva a cada pessoa que encontra, no seu modo respeitoso de dialogar com cada um. [...] A experiência de Deus que é Pai e que, por isso, se revela tão próximo de sua vida faz com que Jesus não o contemple como alguém separado dos seres humanos nem tampouco alguém indiferente a sorte sua e das demais criaturas15.

Ricardo de São Vitor afirmava que se não houvesse a Trindade e tivéssemos

assim somente a pessoa do Pai poderíamos olhar para um Deus solitário e sem

relacionamentos e se Deus não tem relacionamentos como poderíamos caracterizá-

lo como um Deus de amor? Se ao invés da Trindade tivéssemos somente o Pai e o

Filho, então entre duas pessoas o amor teria como ser caracterizado, porém uma

relação entre somente duas pessoas poderia fazer desse amor algo egoísta, o que

não é próprio do amor, por isso então temos na Trindade, uma terceira pessoa que é

o Espírito Santo que é o amor entre o Pai e o Filho e que faz com os Divinos três

vivam entre si uma autêntica relação de amor, sem egoísmo, sem apego, sem posse

e uma doação não canalizada a uma só pessoa. “O amor é perfeito quando os dois,

Pai e Filho, se unem para juntos amarem um Terceiro”16

De ninguém se diz que possuiria o amor perfeito, se amasse simplesmente a si mesmo de modo privado como um indivíduo isolado. O amor (amor) deve por isso dirigir-se ao outro para ser amor desinteressado, amor autêntico (caritas). Onde não existe, portanto, uma pluralidade de pessoas, não pode existir nem mesmo qualquer verdadeiro amor17.

Deus é revelação, comunicação e comunhão. Ele só existe voltado para o

outro. Ninguém é alguém sozinho. Nem sequer Deus. Alguém só é pessoa por seu

relacionamento com o outro18.

Leonardo Boff afirma que se houvesse uma única pessoa o que existiria seria

a solidão19. Se houvessem dois, o Pai e o Filho haveria primeiramente a separação,

um seria distinto do outro e em seguida haveria a exclusão, pois um não seria o

outro. Faltaria a comunhão entre eles, portanto a união entre Pai e Filho. Com a

Trindade então se alcança a perfeição, pois se dá a união e a inclusão. Pela

Trindade se evita a solidão do Um, se supera a separação do Dois (Pai e Filho) e se

15 TAVARES, S. S. Trindade e criação. Petrópolis: Vozes, 2007. P. 33-34.16 BOFF, L. A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. São Paulo: Vozes, 1988. P. 142.17 CRISTIANISMO. cristianismo.org.br. Disponivel em: <http://www.cristianismo.org.br/r-trintt.htm>.18 BEZANÇON, J. N. Deus não é solitário. São Paulo: Loyola, 2003. P. 26.19 BOFF, L. A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. São Paulo: Vozes, 1988. P. 31.

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ultrapassa a exclusão de um do outro (Pai do Filho, Filho do Pai). A Trindade

permite a comunhão e a inclusão. A Terceira Figura revela o aberto e a união dos

opostos. Por isso, o Espírito santo, a terceira Pessoa divina, sempre foi

compreendida como a união e a comunhão entre o Pai e o Filho, sendo a expressão

da corrente de vida e de interpenetração que vigora entre as Três pessoas.

A Santíssima Trindade é a comunidade perfeita, a família divina onde o Pai é

o eterno AMANTE, O Filho é o amado e o Espírito Santo é o amor entre o Pai e o

Filho20. Pai e Filho são unidos pelo Espírito Santo no amor. É impossível falar da

Igreja, enquanto comunidade de Comunidades, sem falar da Santíssima Trindade,

pois a Igreja é o povo de Deus, reunido na unidade do Pai, do Filho e do Espírito

Santo (cf. LG 4).

Para Boaventura, Deus decide criar o ser humano, pois quer de maneira livre

se autodifundir: “Deus sendo bom, quer difundir-se; e querendo difundir-se, quer

produzir a criatura”21. E assim então Deus cria o ser humano para participarmos de

seu amor e para que no amor nossa vida tenha sentido. O amor compreende a

totalidade da existência em toda a sua dimensão, inclusive a temporal22.A Trindade é

o amor que o Pai tem pelo Filho no Espírito. Quando o Pai: decide nos criar Ele diz:

“Vou dar vida fora de nós”, pois só Deus é! Tudo que eu criar terá lógica, harmonia,

beleza. Tudo o que eu fizer será no meu Filho, com meu Filho, para o meu Filho. O

prólogo joanino diz: Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito (Cf. Jo 1, 3).

O amor não se fecha em si mesmo, ele precisa circular.

Deus criou tudo numa perfeita unidade. A unidade é o modo correto das

coisas serem, pois estão dentro de uma lógica. Deus criou as coisas em unidade e

não unificadas. Deus é uma unidade e não uma unificação, Eles não se misturam,

Eles não se confundem. Deus criou os anjos pensando no Filho, criou o universo

pensando no Filho, criou a nós pensando no Filho. Tudo tem lógica, tem a sabedoria

divina, pois o Filho é a sabedoria do Pai. Deus não tinha necessidade de nos criar.

Nos criou de maneira livre. Isso é característica de Deus.

20 SANTO AGOSTINHO. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995, 2ª edição, Livro VIII, Cap. 10, parágrafo 14, p. 284; Cf. ibid., Livro IX, Capítulo 2, parágrafo 2, pp. 287-289.

21 TAVARES, S. S. Trindade e criação. Petrópolis: Vozes, 2007. P. 168 citando a obra 2 Sent., d. 1, p. 2, a. 3, q. 2 e dub. 1.)22 BENTO XVI. Deus Caritas Est. São Paulo: Loyola, 2006. P. 13.

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O Pai, o Filho e o Espírito Santo se amam de tal forma e estão

interpenetrados entre si de tal maneira, que estão sempre unidos. A unidade divina é

comunitária, porque cada Pessoa está em comunhão com as outras duas. São João

Damasceno definiu a Pericorese em primeiro lugar como a ação de envolvimento de

uma Pessoa com as outras duas. Cada Pessoa divina penetra a outra e se deixa

penetrar por ela. Essa interpenetração é expressão do amor e da vida que

constituem a natureza divina. É próprio do amor comunicar-se; é natural para a vida

que ela se expanda e queira multiplicar-se. Assim os Três se encontram desde toda

a eternidade numa infinita eclosão de amor e de vida um em direção ao outro. O

efeito desta recíproca interpenetração é que cada Pessoa mora na outra. Este

é o segundo sentido de pericorese: o Pai está sempre no Filho, comunicando-lhe a

vida e o amor. O Filho está sempre no Pai conhecendo-o e reconhecendo-o

amorosamente como Pai. Pai e Filho estão no Espírito Santo como expressão mútua

de vida e de amor. O Espírito Santo está no Filho e no Pai como fonte e

manifestação da vida e do amor. O Concílio de Florença em 1441 definiu que: “O Pai

está todo no Filho, todo no Espírito Santo. O Filho está todo no Pai e todo no Filho.

Ninguém precede o outro em eternidade ou excede em grandeza ou sobrepuja em

poder23.

O amor e as relações trinitárias nos revelam um Deus apaixonado. Um Pai

que cria tudo o que cria, inclusive o ser humano para que nós nos tornássemos

partícipes desse amor. Um Pai que na história não desiste dos seus filhos, por

maiores que venham a ser suas infidelidades, um Pai que quanto mais seus filhos se

afastam de si, Ele se doa, Ele se lança, Ele vai atrás, ele vai ao resgate. Um Pai que

liberta seus filhos da escravidão dos egípcios, que os conduz a uma Terra

prometida, um Pai que está ao lado do seu povo nos momentos mais difíceis de sua

história e que na plenitude dos tempos assume a nossa humanidade através da

encarnação de seu Filho para redimir o gênero humano em todas as suas

dimensões. Somos redimidos pelo amor, uma vez que no amor seu Filho único, na

sua liberdade de homem e de Deus assume a nossa vida na totalidade incluindo a

morte por amor a seu Pai e a cada um de nós, pois não tem maior amor do que

aquele que dá a vida pelos seus amigos (cf. Jo 15, 13). Friso a questão da entrega

23 DENZINGER, H.; HUNERMANN, P. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Loyola, 2013. N. 1300.

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na liberdade, pois se a mesma acontecesse na obrigação seria coação, mas como

não acontece dessa maneira falamos de uma entrega livre e gratuita por amor. É o

próprio Jesus que nos revela que nós somos filhos, ao podermos nos dirigir a Deus

como um Pai.

Deus é relação. Deus é só relação. Ele é só amor. Por isso mesmo ele só

pode suscitar, nada mais quer suscitar, senão o amor. A onipotência de Deus só

pode e só quer traduzir-se na vulnerabilidade do amor. Pela comunhão a Trindade

vem habitar em nós e nós entramos na Trindade, nesse movimento do amor

livremente permutado.

Em relação ao Espírito Santo, São Paulo vai que “o amor de Deus foi

derramado em nossos corações, pelo Espírito Santo que nos foi dado” (cf. Rm 5, 5).

Afinal, se o Espírito Santo é o amor entre o Pai e o Filho, porque não haveria de ser

o vínculo de amor que nos une como irmãos, os filhos de Deus. O Espírito é a força

interior que harmoniza o coração daqueles que creem com o coração de Cristo e

leva-os a amar os irmãos como Ele os amou, quando se inclinou para lavar os pés

dos discípulos e sobretudo quando deu a sua vida por todos24. No relato da criação

do capítulo 2 do Genesis, quando Deus sopra nas narinas do homem e ele se torna

um ser vivente, sabemos que Deus sopra seu sopro, seu hálito de vida (cf. Gn 2, 7),

seu espírito, portanto falamos de um princípio divino no ser humano, ou seja, se a

vida em Deus é eterna, compreendemos que este princípio divino nos leva a

imortalidade e o amor é essa força que deixa marcas eternas, pois o amor tem sabor

de eternidade.

Existem quatro lugares privilegiados de revelação do Espírito Santo. O

primeiro é a Virgem Maria, pois nela Ele habitou e fecundou. O segundo lugar é o

próprio Cristo, uma vez que o exercício de sua missão se dá na plenitude do

Espírito. O terceiro lugar é a missão, pois o Espírito Santo desce sobre os apóstolos

em Pentecostes, os tira do mundo e os impulsiona na missão. O quarto lugar é a

comunidade humana e eclesial, pois dentro dela aparecem serviços e habilidades,

na comunidade nos colocamos a serviço, na comunidade o amor se manifesta25.

24 BENTO XVI. Deus Caritas Est. São Paulo: Loyola, 2006. P. 27.

25 BOFF, L. A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. São Paulo: Vozes, 1988. P. 54-55.

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O verdadeiro amor consiste em amar o diferente. Na Trindade temos três

pessoas distintas que se amam. Por pessoa entendemos a individualidade que

existe em si, voltada para os outros, numa existência singular, distante das outras.

Assim o Pai é distinto do Filho embora não seja outra coisa que o Pai, pois possui a

mesma natureza26. Deus será sempre o modelo daquele que ama verdadeiramente,

pois nos ama com nossas diferenças e dificuldades. O amor enquanto virtude

teologal, um dom de Deus, se torna uma decisão, a maior prova de que Deus nos

ama é que Ele decidiu nos amar e com um amor incondicional, que não põe ou pede

condições para nos amar.

As três pessoas divinas são distintas e irredutíveis. Um não é o outro. Mas ninguém se afirma em exclusão do outro. Cada Pessoa divina se afirma afirmando a outra Pessoa e se entregando totalmente a ela. As Pessoas são distintas para poderem se entregar as outras e estarem em comunhão. Assim há riqueza na unidade e não mera uniformidade. A Trindade é modelo de toda e qualquer comunidade: respeitando cada individualidade surge, pela comunhão e pela mútua entrega, a comunidade. Bem o entenderam os cristãos das bases, melhor que qualquer teólogo, e souberam expressar com grande acerto: “a Santíssima Trindade é a melhor comunidade”27.

O mundo de hoje reflete muitas vezes uma cultura de solidão e de isolamento.

“Precisamos passar da solidão do Um à comunhão das Três pessoas divinas, Pai,

Filho e Espírito Santo”28. Nós “Viemos da Trindade, do coração do Pai, da

inteligência do Filho e do amor do Espírito Santo”. O homem carrega em si uma

predisposição ao amor e essa predisposição nos insere na vida divina, que só pode

alcançar seu sentido pleno a partir de nossa pertença a uma comunidade, pois é na

comunidade, seja familiar ou eclesial, que viveremos a intensidade do amor trinitário.

Só a fé num Deus comunidade e comunhão pode nos ajudar a criar uma

convivência fraterna. A Trindade tem que ser o espelho nestes tempos para relações

eclesiais e comunitárias mais sólidas e de melhor qualidade. Em tempos em que

nossas comunidades priorizam tantos planos e projetos, em tempos onde as

relações humanas têm sido ditadas pelo individualismo, nossas comunidades são

chamadas a tecer um olhar para si mesmo e consequentemente prezar pela

qualidade de seus relacionamentos, pois é o amor é que faz de nós cristãos. No

26 Ibidem. P. 67.27 Ibidem. P. 97.28 Ibidem. P. 25.

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evangelho de João, Jesus vai nos dizer: Nisso reconhecerão que sois meus

discípulos, se vos amardes uns aos outros. (Cf. Jo 13, 35). Cipriano de Cartago na

sua obra sobre a unidade da Igreja Católica nos diz: “Eis, pois, a simplicidade deve

haver na Igreja, a caridade que deve ser mantida, para que o amor do convívio

fraterno imite as pombas e se iguale, em mansidão e brandura, a cordeiros e

ovelhas”29. Para ficar parecido com o Mestre é necessário assumir a centralidade do

mandamento do amor30. A essência de Deus é amor, a essência do cristianismo é o

amor, a essência do cristão é a comunidade.

Crer na Trindade significa: na raiz de tudo o que existe e subsiste, vigora

movimento; há um processo eterno de vida, de extrojeção e de amor. Se Deus

significa três Pessoas divinas em eterna comunhão entre si, então devemos concluir

que nós também, seus filhos e filhas, somos chamados à comunhão. Somos

imagem e semelhança da Trindade, somos seres comunitários. A Comunidade

resulta de relações pessoais, onde cada um é aceito como é, cada um se abre ao

outro e dá o melhor de si mesmo.

A Igreja provém da Trindade, é estruturada à imagem da Trindade e ruma

para o fim trinitário da história. Vinda do alto, plasmada pelo alto e rumo ao alto, a

Igreja não se reduz às coordenadas da história, do visível e do disponível31. A Igreja

é a realidade da Nova Aliança, a união dos homens que, reconciliados com Deus no

Cristo, morto e ressuscitado por nós, são chamados a viver com Deus a vida de

filhos, de cidadãos da cidade celeste, e a entrar na partilha dos bens patrimoniais de

Deus32.

29 CIPRIANO DE CARTAGO. Obras Completas I - A unidade da Igreja Católica. São Paulo: Paulus, 2016. N. 9.30 CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de

Aparecida: texto conclusivo da V Conferência geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007. N. 138.

31 FORTE, B. A Igreja ícone da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005. P. 9.32 CONGAR, Y. M. J. Introdução ao mistério da Igreja. São Paulo: Herder, 1966. P. 7.

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1.3 - Não é bom que o homem esteja só

O capítulo primeiro do livro do Genesis, de tradição sacerdotal, nos fala a

respeito da obra da criação, obra de seis dias com o descanso de Deus no sétimo

dia. No versículo 26 Deus cria o homem a sua imagem e semelhança. Muitas

pessoas hoje têm reduzido essa termologia de ser imagem e semelhança de Deus a

uma simples questão de aspecto ou aparência física. Teologicamente vamos

observar que ser Imagem e semelhança de Deus não tem relação a aspecto físico,

mas sim a participação na vida divina.

A revelação divina mostra para nós que Deus é livre, até porque a liberdade é

própria do amor, se Deus é livre, sabemos que somos livres, pois participamos da

liberdade de Deus. Ao falar da liberdade divina, compreendemos também o quanto

somos amados por Deus, pois por amor Deus nos cria dotados de liberdade está

nos possibilita inclusive rejeitar todo amor que Deus tem por cada um de nós. Se

Deus nos criasse sem liberdade, não haveria amor e sem amor Deus não seria Ele

mesmo, porém mesmo diante da possibilidade de pecado e rejeição, o Deus que

nos ama não deixa de nos criar.

O amor precisa de relações para se manifestar. Como filhos de Deus somente

o amor pode dar sentido a nossa vida, podemos afirmar que fomos criados por Deus

por amor e para amar, para a realização e para a felicidade, porém da mesma

maneira que as relações trinitárias comunicam o amor, também nós somos

chamados a comunicar o amor que Deus tem por cada um de nós.

Ao olharmos para o segundo relato da criação, que na verdade é o mais

antigo, o hagiógrafo afirma que Deus percebe que não é bom que o homem esteja

só e por esse motivo lhe dá uma companheira (cf. Gn 2, 19), para que eles sejam

fecundos e se multipliquem, mas também para que ele deixe seu pai e sua mãe e se

una a sua mulher e eles se tornem uma só carne, sejam amigos, fiéis e

companheiros e povoando o mundo, o encham da atmosfera do amor.

Este texto é uma referência clara a uma vocação incutida no coração do

homem pelo próprio Deus. Deus não nos fez para ver sozinhos, isolados, para

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vivermos na solidão. Deus nos criou como seres de relacionamento, de abertura, de

diálogo, de comunhão, pois o próprio amor necessita dessas condições para mostrar

a sua força e Deus é assim, comunhão, relação, abertura. Me atrevo a dizer que a

vida comunitária é algo deixado pelo próprio Deus para nos relacionarmos com os

irmãos e que o amor vivido entre nós deve ser um reflexo do próprio amor de Deus.

O ser humano tem uma tendência natural a viver em grupos, a viver em

comunidade. Isso significa que o ser humano vive em comunidade não só em razão

de necessidades como a defesa e a busca de sobrevivência, mas porque isso faz

parte de sua natureza. Viver em comunidade seria uma “herança humana

evolucionária33”. Essa é a mais alta vocação do homem: entrar em comunhão com

Deus e com os outros homens seus irmãos34.

Na Sagrada Escritura, o casamento não é simplesmente a união entre o

homem e a mulher, mas entre Deus e o seu povo e entre o Cristo e a sua Igreja. No

livro do profeta Oseias, Deus pede a Oseias que despose uma mulher infiel para

simbolizar o seu amor sempre fiel e por maior que seja a infidelidade da esposa,

Oseias não a abandona, assim como Deus não abandona seu povo, pois o

verdadeiro amor não acaba nunca. Em Oseias o amor que é eros também é ágape,

pois além de uma doação gratuita há também o perdão.

Entender que Deus nos criou para não vivermos só, é entender que fomos

criados por amor, par amar. Fomos criados para nos relacionarmos, como na

Trindade temos a relação de amor e comunhão entre as três pessoas, também nós

fomos criados para vivermos em comunidade uma relação de amor sincera que

supere as dificuldades, tal como deve ser a união matrimonial.

O mistério trinitário acena para formas sociais onde se valorizam todas as

relações entre as pessoas e as instituições, de forma igualitária, fraterna e

respeitadora das diferenças. Só assim superar-se-ão as opressões e triunfarão a

vida e a liberdade. Deus é comunhão e comunidade de pessoas. A pessoa humana

carrega em todo o seu ser e em seu agir os traços das três Pessoas divinas. Toda

33 Oliveira, J. L. Viver em comunidade para a missão - Um chamado a vida religiosa consagrada. São Paulo: Paulus, 2013. P. 7.34 CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES APOSTÓLICAS. A vida fraterna em comunidade. São Paulo: Paulinas, 2007. P. 22.

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pessoa humana nasce de uma família. A família se constrói sobre a comunhão e

sobre o amor, por isso ela é a primeira expressão da comunidade humana.

Na família encontramos as principais dimensões da Santíssima Trindade: a

distinção (pai, mãe e filhos) e a união de uma só vida, de um só amor e de uma

mesma comunhão, no entrelaçamento dos três que constituem uma só família.

Nascemos no seio de uma família e viveremos eternamente como filhos e filhas na

família divina. A unidade da família é semelhante à da Santíssima Trindade. A

unidade se torna expressão do amor, da saída de cada pessoa na direção da outra.

De maneira análoga vemos, por exemplo, o quanto um filho é capaz de unir uma

família, um casal, neste caso se assemelha ao Espírito que na Trindade une o Pai e

Filho.

A comunidade resulta de relações pessoais, onde cada um é aceito como é,

cada um se abre ao outro e dá ao outro o melhor de si mesmo. As comunidades

hoje não podem dispensar um olhar somente sobre a coletividade, sobre a

instituição, mas precisam dispensar um olhar sobre o indivíduo, sobre a pessoa.

Nossas comunidades refletem o amor trinitário e dessa maneira não podem se

assimilar a reality shows de nosso tempo onde eliminamos o diferente. É preciso

entender que uma comunidade que vive o amor trinitário recupera pessoas ao invés

de despreza-las. O próprio ser de Deus não permite que se elimine as diferenças.

A comunhão é a realidade mais profunda e fundadora que existe. É por causa

da comunhão que existe o amor, a amizade, a benquerença e a doação entre as

pessoas humanas e divinas. É próprio do amor comunicar-se; é natural para a vida

que ela se expanda e queira multiplicar-se.

Cada pessoa humana carrega em todo o seu ser e em seu agir os traços das

três pessoas divinas, se esses traços fossem melhor trabalhados em nossas

comunidades, de fato, teríamos comunidades com relações mais sólidas e vínculos

mais concretos e sinceros, porém a atual conjuntura comunitária nos mostra o quão

grande é o caminho que ainda temos a seguir, o quão longe estamos deste amor

trinitário.

Na história toda forma de vida comunitária sempre fora muito querida por

Deus. No Antigo Israel Tribal onde se predominavam as relações fraternas e

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solidárias de partilha e vida em Comunidade percebemos o quão importante fora

este tempo na história do povo de Deus. No clã as pessoas cuidavam uma das

outras, o patriarca era aquele que cuidava civilmente e religiosamente dos membros

de sua tribo, o excedente da produção era partilhado e assim ninguém passava

necessidade, mas infelizmente tudo isso foi se perdendo ao longo da história. O

período tribal não durou mais que duzentos anos em Israel.

A Igreja é comunhão, a Igreja é comunidade de comunidades, na história da

Igreja percebemos que todas as formas de vida solitária, muitas delas com

características positivas e louváveis, como a própria forma de vida eremítica, ficaram

no meio do caminho ao longo da história, pois já mostram para nós que a Igreja não

subsiste a partir de relacionamentos intimistas.

Nos tempos atuais presenciamos que as realidades religiosas que mais tem

atraído seguidores são aquelas que tem proposto uma espiritualidade intimista

centrada em torno de si e da satisfação de seus interesses. Consequentemente isso

tem diminuído o interesse, o valor e a inserção numa comunidade, pois o outro já

não importa mais, o que importa é o próprio indivíduo.

A Igreja é a continuadora da missão de Jesus e se a missão de Jesus foi

anunciar o Reino, a Igreja está no mundo para ser sinal do Reino que tenha Deus

por seu governante e onde Deus reina deve reinar o amor. Nossas Comunidades

estão no mundo para transmitirem este amor e para anunciarem o Reino através de

relacionamentos de amor concretos e a Comunidade de Jesus soube muito também

transmitir isso a nós.

O cristão ao conceber a Igreja como tangibilidade histórica da presença do

Deus que se auto comunica, experimenta-a como lugar do amor, do amor para com

Deus e para com o próximo35. A Igreja, como comunidade de amor é chamada a

refletir a glória do amor de Deus, que é comunhão e assim atrair as pessoas e os

povos para Cristo36. Deus é amor e a Igreja é comunicadora deste amor, ela deve

ser a expressão histórica de que Deus nos ama.

35 RAHNER, K. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulus, 1989. P. 462.36 CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de

Aparecida: texto conclusivo da V Conferência geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007. N. 159.

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A compreensão de comunidade para a fé cristã deriva da vida e do

ensinamento de Jesus, assimilados pelos apóstolos e pelas primeiras comunidades.

Na base da experiência comunitária, proposta por Jesus, está a experiência da

comunhão. Jesus inicia seu ministério chamando os discípulos para viverem com

ele. Todo o itinerário do discípulo, desde o chamado, é sempre vivido na comunhão

com o mestre, que se desdobra na comunhão com os outros. A dimensão

comunitária é fundamental na Igreja, pois se inspira na própria Santíssima Trindade,

a perfeita comunidade de amor. Sem comunidade, não há como viver

autenticamente a experiência cristã37.

A Igreja, por definição, é a comunidade de fé, esperança e amor que procura

viver o ideal de união proposto pelo próprio Jesus Cristo. Quanto mais a Igreja beber

de sua fonte eterna que é a comunhão trinitária, pela qual as três pessoas se

unificam e são um só Deus, tanto mais ela superará as divisões internas. A vida em

comunidade deve nos inserir no mistério da Trindade, deve nos levar a contemplar a

essência de Deus que é o amor. Dessa maneira viveremos cheios do amor de Deus

e nossos próprios relacionamentos e comunidades transmitirão a Deus a partir

desse modus operandi tão necessário hoje em dia.

“Onde estão o Pai, o Filho e o Espírito Santo, aí também se encontra a Igreja que é

o corpo dos Três” (Tertuliano)

37 CNBB. Comunidade de Comunidades: Uma nova paróquia. São Paulo: Paulinas, 2014. N. 42.

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CAPÍTULO SEGUNDO: COMUNIDADE LUGAR DE PASTOREIO E DISCIPULADO PARA MISSÃO

2.1 – O relacionamento de Jesus para com seu povo

A transformação da vida comunitária deve ter como modelo aquilo que o

próprio Jesus e sua maneira de ser suscitou para nós. A vida comunitária deve ser

organizada e orientada a partir da perspectiva do Reino de Deus. Nele, com Ele e a

partir d’Ele mergulhamos no mistério trinitário construindo nossa vida pessoal e

comunitária.

A Igreja nos mostra, antes de tudo, uma vida de grupo, que se adapta em certa medida, ao desenvolvimento da sociedade humana, mas que tem seu próprio ritmo, sua existência especial, suas leis, seus usos, seus ritos, sua organização, suas obras, sua hierarquia. Quem faz parte deste grupo vive no seio de uma comunidade paroquial na qual todos os atos da vida tem seu lugar: nascimento seguido de batismo, infância com iniciação ao catecismo e a primeira comunhão, missa aos domingos, diversos ofícios, solenidades do ano religioso, pregações extraordinárias, casamento, iniciação de uma outra geração na oração e nos sacramentos, luto, unção dos doentes e “viático”, orações e cerimônias dos funerais, e o crucifixo no cemitério, onde, diversas vezes por ano, principalmente no domingo de Ramos e nos dia de Finados, os vivos visitam aqueles, que já se foram embora38.

Jesus é a plenitude da revelação divina e nos revela isso a partir de sua

encarnação e do exercício de seu ministério. Jesus traz a nós aquilo que estava

escondido. Ele nos assegura que Deus é amor (cf. I Jo 4, 8). Santa Terezinha do

Menino Jesus vai nos dizer que é próprio do amor se abaixar39, e em Jesus, Deus se

abaixa e se despoja de sua condição divina (cf. Fl 2, 9), assume a nossa

humanidade e possibilita assim que o homem retorne ao seu estado original pela

manifestação da graça divina que se dá no encontro entre o divino e o humano.

Toda a vida de Jesus pode ser entendida numa missão de serviço e

consequentemente de rebaixamento.

38 CONGAR, Y. M. J. Introdução ao mistério da Igreja. São Paulo: Herder, 1966. P. 45.39 SANTA TEREZINHA DO MENINO JESUS. História de uma alma. 10 ed. São Paulo. Loyola, 2003. P. 29.

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Em Jesus, criação e encarnação estão profundamente ligadas entre si já que

a criação obtém na encarnação seu sentido e cumprimento. Criação e encarnação

são como que desdobramento e transbordamento do amor trinitário por nós40.

Na encarnação do Verbo, Deus assume a nossa humanidade e vem a nosso

encontro desprovido de todo poder, completamente dependente do cuidado dos

seus pais. Aprouve Deus que seu Filho viesse ao mundo a partir de uma família já

para valorizar esse aspecto soteriológico da Comunidade familiar. Ao iniciar seu

ministério vai a João Batista para ser batizado no Jordão (do hebraico jordanit =

aquele que desce), sua missão começa na Galileia e termina na Judeia, mais um

trajeto de descida, sua atitude perante ao povo será sempre a de se abaixar, de se

compadecer, de ir ao encontro, como fez com aquela mulher flagrada em adultério,

além de assumir a nossa morte, desce a mansão dos mortos para possibilitar a

salvação aqueles que a aguardavam. Toda sua vida é um itinerário de descida e se

é próprio do amor se abaixar, Jesus soube manter essa identidade.

Jesus trás em plenitude essa certeza para nós e as primeiras comunidades

cristãs souberam muito bem assimilar essa dimensão em seus relacionamentos. Se

existe uma certeza em relação a Deus é justamente essa: DEUS É AMOR. Esse

amor foi revelado dentro da história. A Teologia da Revelação nos ensina que Deus

se comunica, se auto doa dentro da história e fala aos homens como quem fala a

amigos41.

No tempo de Jesus, a estrutura secular da sinagoga já não correspondia ao

objetivo inicial de ajudar o povo israelita a experimentar a eleição amorosa de Deus,

claramente a estrutura religiosa clamava por uma renovação. Bento XVI diz que

Deus ama Israel com amor eros, que, no entanto, é também ágape42. A vida

comunitária estava se desintegrando. As relações estavam se tornando cada vez

mais rígidas ao ponto de que a Lei de Deus era interpretada para legitimar a

exclusão. Isso fazia com que a imagem de Deus, transmitida pela estrutura religiosa

e pela interpretação da lei já não fosse mais a ideia de amor e misericórdia, mas um

Deus rigoroso e rigorista, consequentemente distante de seu povo.

40 BEZANÇON, J. N. Deus não é solitário. São Paulo: Loyola, 2003. P. 22.41 CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997. N. 2.42 BENTO XVI. Deus Caritas Est. São Paulo: Loyola, 2006. P. 17.

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No anúncio do Reino Jesus traz uma grande novidade, além de com suas

palavras, chamar a Deus de Pai, através do seu jeito de ser, de viver e de acolher as

pessoas, Ele também revela a seu povo que Deus é amor e misericórdia. Jesus era

o retrato vivo de Deus. Sua bondade e ternura eram reflexos da experiência que Ele

mesmo tinha do seu Pai, por isso Ele é aquele que revela a face Dele: “Eu e o Pai

somos um” (cf. Jo 10, 30). Jesus além de anunciar e ensinar sobre Deus

testemunhava uma grande intimidade para com Ele, a partir da oração, das reuniões

em comunidade na Sinagoga, na família, nas peregrinações ao Templo e tudo isso

Ele fazia em Comunidade, uma vez que a experiência de seu povo era sustentada

pela vida comunitária.

Quando é batizado nas águas do Jordão, o Pai diz: “Este é meu Filho muito

amado, ouvi-o” (Cf. Mc 1, 9-11) e imediatamente o Espírito desce sobre Ele em

forma de uma pomba. Essa imagem trinitária no início do ministério de Jesus vem

afirmar, que a ação evangelizadora de Jesus, que tem em seu pano de fundo o

anúncio do Reino e a prática do evangelho, deve ser vivida em Comunidade, pois a

Comunidade reúne aqueles que se identificaram e aderiram a proposta de Jesus, na

Comunidade nos relacionamos como irmãos e somos irmãos, pois somos filhos de

um mesmo Pai: “É no Espírito que chamamos a Deus de Pai: E porque sois filhos,

enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho que clama: Abba, Pai!” (Cf.

Gl 4, 5). Da mesma forma nossa missão começa a partir de nosso Batismo, onde

recebemos o Espírito Santo e somos assim recebidos numa Comunidade e nos

tornamos então membros do Corpo místico de Cristo que é a sua Igreja, aquela que

é a continuadora da missão do Senhor. Congar nos diz: “Como percebemos que no

homem há uma alma e um corpo, e no entanto, os membros são diversos, assim

também é a Igreja Católica um só corpo, e entretanto, os membros são diversos.

Mas a alma que dá vida a este corpo é o Espírito Santo”43.

Impelido pelo Espírito, após o Batismo, Jesus se põe a anunciar e sua

pregação atraía muita gente. Vemos assim que ao seu redor, começou a nascer

uma pequena Comunidade. Os doze apóstolos, por exemplo, são escolhidos para

viver em comunhão com Ele. Ele convidou os discípulos e os apóstolos também a

anunciarem este Reino e de maneira implícita percebemos seus valores:

43 CONGAR, Y. M. J. Introdução ao mistério da Igreja. São Paulo: Herder, 1966. P. 50.

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- No Reino todos são irmãos e irmãs, ninguém deve aceitar o título de mestre, nem

de pai, nem de guia, pois um só é vosso Mestre e todos vós sois irmãos (cf. Mt 23,

8)

- No seu Reino, a relação homem-mulher é elevada a um patamar de igualdade.

- No seu Reino há partilha de bens. Em sua comunidade ninguém tinha nada de

próprio. Jesus mesmo não tinha onde reclinar a cabeça. Havia o caixa comum que

era utilizado na partilha com os mais pobres. Na missão, a confiança na providência

e o despojamento das seguranças humanas, fazia com que seus discípulos

confiassem na acolhida daqueles que os receberia.

- Em seu Reino a relação é de amizade e não profissional.

- Em seu Reino o poder é exercido como serviço. O poder dado a Pedro, aos

apóstolos e as Comunidades não é poder de excluir, mas o poder de perdoar. O

perdão de Deus passa pela comunidade, que é lugar de perdão e reconciliação, já

não mais de exclusão e condenação.

- Em seu Reino se faz a oração comum.

O Reino de Deus anunciado por Jesus é a expressão do amor do Pai. É o

dom de Deus que precisa ser acolhido pela humanidade. Tal acolhida supõe novas

relações entre as pessoas, na comunidade e na sociedade.

A medida com que o Reino era anunciado, aumentava o número de pessoas

que vinham até Jesus. Sua mensagem atraiu a muita gente. No envio dos setenta e

dois discípulos, Ele dá quatro recomendações para a vida comunitária:

Hospitalidade, comunhão de mesa, acolhida aos excluídos e partilha44.

Hospitalidade

Nos tempos atuais a questão da hospitalidade passa por vezes despercebido

a nós. Para muitos cristãos e também para muitas comunidades a hospitalidade

inclusive é visto como uma espécie de fardo, como algo que adentra para quebrar

uma rotina e consequentemente não acolhemos as pessoas como deveriam ser

acolhidas. No evangelho não vemos Jesus oferecendo diretamente a hospitalidade

44 CNBB. Comunidade de Comunidades: Uma nova paróquia. São Paulo: Paulinas, 2014. N. 19-20.

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do seu lar, mas nos ensina que aquele que recebe o pequenino é a Ele que recebe.

O catecismo dos primeiros cristãos nos ensina que todos aqueles que vem em nome

do Senhor, devem ser acolhidos45. A hospitalidade cristã precisa ser a do bom

samaritano (cf. Lc 10, 29-37) que estende a mão para ajudar o necessitado seja ele

quem for, principalmente em tempos onde vivemos uma grave crise migratória.

Comunhão de mesa

No judaísmo receber uma pessoa para uma refeição era dar a ela o direito

dela pedir tudo aquilo que ela quisesse. Fazer uma refeição com uma pessoa era a

oportunidade de fazer comunhão com o próprio Deus46. Em muitos textos nos

evangelhos, Jesus aparece fazendo uma refeição com pecadores, como na

conversão de Mateus. Também no evangelho de Mateus temos a parábola do

banquete nupcial que prefigura o banquete escatológico preparado e reservado os

eleitos.

Para os discípulos de Jesus o valor comunitário da convivência fraterna

prevalece sobre a observância de normas rituais. Isso supõe aceitar a comunhão de

mesa. Ao redor da mesa, digo também fora do Templo e do espaço eclesial também

fazemos comunidade.

Acolhida aos excluídos

O ministério de Jesus era o sinal vivo do que o amor é capaz de fazer. O

amor pode recuperar pessoas. Os doentes que eram curados por Jesus, como por

exemplo, os leprosos, faziam em Jesus uma experiência de amor e de misericórdia

com o próprio Deus, experiência que a religiosidade judaica daquele tempo já não

era mais capaz de fornecer. A acolhida aos excluídos e marginalizados refazia a

vida comunitária destes, uma vez que eram reabilitados para o convívio social.

Jesus tinha um cuidado todo especial para com os doentes até porque no seu tempo

a enfermidade era considerada como uma espécie de castigo divino. Jesus falava de

Deus a partir da sua experiência de Deus e a partir da sua experiência com a vida

do povo. Ele sabia que um Deus que é amor não exclui os mais pobres por causa de

quaisquer que seja a sua condição.

45 ZILLES, U. DIDAQUE Catecismo dos primeiros cristãos. Petropolis: Vozes, 2003. P. 32.46 SANTE, C. D. Liturgia Judaica Fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus, 2004. P. 160.

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Jesus supera as barreiras de sexo, de religião, de etnia e de classe. Ele não

se fecha dentro da sua própria cultura, mas sabe reconhecer as coisas boas que

existem em todas as pessoas. Por isso dentro de uma perspectiva universalista, sua

comunidade não será somente constituída a partir de judeus, mas será uma

comunidade aberta a todos os povos e nações, pois a salvação é para todos, uma

vez que Ele não veio para salvar um indivíduo, mas sim todo um povo.

Partilha

Na partilha do pouco feito com amor, Jesus também nos dá uma lição do que

é a comunidade cristã. Além de partilhar a atenção, o carinho, o cuidado, a

oportunidade de restauração da dignidade humana. Jesus nos ensina que não é

necessário ter muito para que a partilha generosa aconteça. Vemos a partilha nos

relatos da instituição da Eucaristia e nos relatos que a prefiguram como os milagres

da multiplicação dos pães. A partilha além de fazer comunidade nos revela também

o novo modo de ser pastor apresentado pelo próprio Jesus.

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2.2 – O pastoreio de Jesus

No evangelho de João, Jesus se apresenta como o Bom Pastor (Cf. Jo 10).

Com bondade e ternura além de acolher o povo, sobretudo os mais pobres. Ele

revela um novo jeito de cuidar das pessoas, jeito este que precisa ser encarnado

nos tempos atuais. O discurso do Bom Pastor é um retrato do modelo de pastoreio

exercido pelo próprio Jesus. Ele é o Bom Pastor, aquele que conhece as ovelhas,

aquele que dá a vida por elas. Em nossas comunidades, uma liderança que se

coloque a serviço é cada vez mais requisitada. Quando Jesus se revela como o Bom

Pastor, Ele também fala que não é ladrão e mercenário, como as autoridades

religiosas judaicas de seu tempo. Ele é aquele que dá a sua vida, suas ovelhas

ouvem a sua voz e o seguem.

Ao revelar-se como Bom Pastor, Jesus indica o modelo de pastoreio que fora

estabelecido pelo próprio Deus. A maneira de Jesus cuidar do seu povo revelará a

forma que Deus cuida de cada um de nós e de seu próprio povo ao longo de toda a

história. Deus só pode pedir algo que Ele vive por excelência e sendo Deus amor e

misericórdia, as ações de Jesus que por sua vez revelam Deus, serão ações onde

prevalecem o amor e a misericórdia.

A ação pastoral de Jesus foi a mesma ação estabelecida pelo Pai e que

presenciamos em alguns textos do Antigo Testamento. No livro do Êxodo ao se

revelar a Moisés e indicar qual seria sua missão. Deus mostra o quanto ele se

compadece de seu povo:

Iahweh disse: "Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor por causa dos seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel, o lugar dos cananeus, dos heteus, dos amorreus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus. Agora, o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo. Vai, pois, e eu te enviarei a Faraó, para fazer sair do Egito o meu povo, os filhos de Israel." Então disse Moisés a Deus: "Quem sou eu para ir a Faraó e fazer sair do Egito os filhos de Israel?" Deus disse: "Eu estarei contigo; e este será

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o sinal de que eu te enviei:' quando fizeres o povo sair do Egito, vós servireis a Deus nesta montanha."

Alguns pontos podem ser destacados: Deus viu a miséria do seu povo, ouviu

seu clamor, conhece suas angústias e por isso desce para libertá-los. Neste mesmo

trabalho parafraseei Santa Terezinha quando ela diz que é próprio do amor se

abaixar. O modelo de relação de Jesus com seu povo será o mesmo estabelecido

pelo Pai, Ele utilizará de uma pedagogia divina, encarnando a prática pastoral do

Pai. Mesmo sendo uma divindade, Deus não fala com seu povo olhando de cima,

Ele desce para falar, ele entra na realidade do seu povo.

O modo de Jesus se relacionar com as pessoas e de cuidar do povo, fazia

com que realmente o povo olhasse para Ele e visse nele o Bom Pastor. Sua práxis

estava sempre de acordo com seu ensinamento, pois Ele vivia aquilo que ele

pregava. No relato do primeiro milagre da multiplicação dos pães percebemos

claramente o zelo que Jesus tinha para com os mais pobres. No Evangelho de

Marcos há uma clara distinção entre o discípulo e a multidão. O discípulo é aquele

que faz a experiência de proximidade e escuta da palavra do mestre e a multidão

aquela que segue por interesses ou por curiosidade.

Os apóstolos reuniram-se a Jesus e contaram-lhe tudo o que tinham feito e ensinado. Ele disse: “Vinde vós, sozinhos, a um lugar deserto e descansai um pouco”. [...] Assim que Ele desembarcou, viu uma grande multidão e ficou tomado de compaixão por eles, pois estavam como ovelhas sem pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coisas. [...] Jesus lhes respondeu: “Dai-lhes vós mesmo de comer”. Disseram-lhe eles: “Iremos nós e compraremos duzentos denários de pão para dar-lhes de comer?” Ele perguntou: “Quantos pães tendes? Ide ver”. Tendo-se informado, responderam: “Cinco, e dois peixes”. Ordenou-lhes então que fizessem todos se acomodarem, em grupos de convivas, sobre a grama verde. E sentaram-se no chão, repartindo-se em grupos de cem e de cinquenta. Tomando os cinco pães e os dois peixes, elevou Ele os olhos ao céu, abençoou, partiu os pães e deu-os aos discípulos para que lhes distribuíssem. E repartiu também os dois peixes entre todos. Todos comeram e ficaram saciados. E ainda recolheram doze cestos cheios dos pedaços de pão e de peixes. E os que comeram dos pães eram cinco mil homens. (cf. Mc 6, 30-44)

A perícope começa dizendo que os apóstolos estavam reunidos ao redor do

Senhor e Jesus os leva para um lugar deserto para que eles descansem. O Bom

Pastor conhece suas ovelhas e compreende também os seus limites. Diante de

todos os sinais extraordinários que Jesus estava realizando a multidão acorreu ao

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seu encontro e os precedeu no lugar o qual Jesus e os seus iriam desembarcar.

Quando chegam ao local e se deparam com a multidão, o texto afirma que Jesus

teve compaixão, pois estavam como ovelhas sem Pastor.

A palavra compaixão, do latim compassio, significa sofrer com. Jesus se

compadece, não no sentido de ter dó ou pena do seu povo, Jesus se compadece

porque sofre junto, pois está perto e além disso assume para si as necessidades do

seu povo. O agir de Jesus revela um novo jeito de cuidar das pessoas. Ele vai ao

encontro e estabelece com elas uma relação direta através da prática do

acolhimento. Quando anuncia o Reino ele não exclui ninguém diferentemente da

religiosidade judaica de sua época. Ele oferece um lugar aos que não tinham lugar

na convivência humana.

Quando afirma que a multidão era como ovelha sem pastor, Jesus faz uma

crítica a religiosidade de seu tempo que além de não cuidar, marginalizava e oprimia

as pessoas. Infelizmente também em nossos tempos, muitas comunidades não têm

esse cuidado com o seu redil, muitas lideranças não dão a atenção que o nosso

povo tanto necessita e por isso presenciamos um êxodo em nossas Comunidades.

O pastoreio de Jesus não era um pastoreio filantrópico ou assistencialista.

Embora a narrativa expresse uma preocupação com a fome, Jesus é aquele que

ensina muitas coisas inclusive a partilha. Nossas Comunidades precisam transmitir o

amor trinitário. O cuidado de uns para com os outros precisa ter seu modelo no

pastoreio do Cristo Jesus. Dessa forma a Igreja levará a cabo a sua missão de

anunciar o amor de Deus e fará consequentemente que a vivência desse amor se dê

na Comunidade. A prática do novo mandamento é que une os discípulos entre si,

reconhecendo-se como irmãos e irmãs, obedientes ao mesmo mestre, membros

unidos a mesma cabeça e por isso chamados a cuidarem uns dos outros47. Disso

resulta como fundamental que as pessoas da comunidade aprendam a saber cuidar

uma das outras. O cuidado faz parte da natureza e da constituição do ser humano.

Sem o cuidado, a pessoa deixa de ser humana e vira um monstro. Se não receber

cuidado e não cuidar dos outros, ela se desestrutura por completo e pode até

morrer. Por isso, é de suma importância que se dê mais atenção à dimensão

47 CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007. N. 161.

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antropológica da vocação e se tenha presente os aspectos psicológicos da vida

fraternas em comunidade48.

Uma vez que o amor precisa de relações para não se fechar, para circular e

para ser comunicado, a Comunidade se torna então este lugar primeiro de vivência,

abertura ao próximo e relacionamento com o diferente, lugar de doação, de ferida,

de crescimento e de perdão. A eclesiologia do evangelho de Mateus nos mostra que

além do perdão ser dado todas as vezes que for necessário, a correção do irmão

precisa também ser feita com muita cautela. As nossas Comunidades precisam ter

em mente que a correção precisa ser feita com verdade, mas com caridade e sem

exposição e constrangimento daquilo que errou.

Numa comunidade verdadeiramente fraterna, cada um se sente co-

responsável pela fidelidade do outro; cada um dá seu contributo para um clima

sereno de partilha de vida, de compreensão, de ajuda mútua; cada um está atento

aos momentos de cansaço, de sofrimento, de isolamento, de desmotivação do

irmão; cada um oferece seu apoio a quem está aflito pelas dificuldades e pelas

provações49.

48 Oliveira, J. L. Viver em comunidade para a missão - Um chamado a vida religiosa consagrada. São Paulo: Paulus, 2013. P. 43.49 CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES APOSTÓLICAS. A vida fraterna em comunidade. São Paulo: Paulinas, 2007. P. 78.

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2.3 – O discipulado

No discurso de despedida joanino, encontramos no capítulo 15 o texto da

videira verdadeira, Jesus se apresenta como videira, o Pai é o agricultor e nós

somos chamados a ser os ramos, uma vez que os ramos que não estiverem ligados

a videira não poderão dar frutos. A ligação a Jesus se dá através da Igreja, mais

especificamente de uma comunidade, pois nela exercemos o nosso ser cristão

através de relacionamentos de amor e fraternidade. Neste capítulo 15 encontramos

o verbo permanecer por onze vezes e por três vezes Jesus está dizendo:

Permanecei em meu amor, permanecereis no meu amor e permaneço no seu amor.

A comunidade é o lugar onde permanecemos no amor.

A Igreja está no mundo para comunicar o amor de Deus e este amor precisa

ser vivido por seus membros. Para Ambrósio a Igreja nasce do lado aberto de Jesus

na cruz, quando seu peito é transpassado pela lança e jorra sangue e água (cf. Jo

19, 34), referência ao sacramento do Batismo e da Eucaristia que dão vida a Igreja.

Consequentemente podemos dizer que a Igreja nasce na cruz e aos pés do

crucificado há uma comunidade que contempla todo este amor, para assim mostrar

que a Igreja em suas comunidades deve ser a difusora do amor da cruz (cf. Jo 19,

25-27).

Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena. Jesus, então, vendo sua mãe e, perto dela, o discípulo a quem amava, disse à sua mãe: "Mulher, eis o teu filho!" Depois disse ao discípulo: "Eis a tua mãe!" E a partir dessa hora, o discípulo a recebeu em sua casa.

Esta mesma comunidade contempla as aparições do Ressuscitado e

obediente a Palavra do Senhor permanece em Jerusalém esperando o cumprimento

da promessa que é a vinda do Espírito Santo, pois Ele é o comunicador do amor do

Pai e do Filho. A narrativa na qual Tomé tem dificuldades para crer que o Senhor

ressuscitou nos mostra que Ele não se encontrava com a Comunidade na primeira

aparição e daí provém sua dificuldade (cf. Jo 20, 19-29). Ele é a prova que a

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comunidade é o lugar onde fazemos a experiência com o ressuscitado e se

estivermos fora dela teremos dificuldades para viver essa experiência.

Não poderemos jamais limitar e restringir a graça de Deus, haja visto que uma

experiência com o amor de Deus pode se dar através de maneiras e até mesmo em

situações que estão fora de parâmetros pré-estabelecidos, certo é que a experiência

com o amor de Deus precisa ser alimentada dentro de uma comunidade para que

essa experiência pessoal de salvação, com o auxílio da graça e dos irmãos possa

ser vivida em sua plenitude.

Entendemos que a fé é uma adesão pessoal do homem a Deus, ela é uma

virtude teologal, portanto dom de Deus nos concedido por graça. Para abrirmo-nos a

fé é necessário o anúncio da Palavra e quem anuncie, por isso já nos diz São Paulo

que a fé provém da pregação (cf. Rm 10, 17). Uma vez que a fé está ligada a escuta

e recepção da palavra anunciada é necessário também aquele que anuncia não fale

de si, mas testemunhe todo este amor que permeou a sua vida e transformou a sua

história: “Eles não têm desculpa, mas como poderiam invocar aquele em quem não

creram? E como poderiam crer naquele que não ouviram?” (cf. Rm 10, 14)

O primeiro passo da fé é a experiência. Eu faço uma experiência com alguém

ou com uma pessoa, é aquilo que chamamos de uma fé objetiva (fides qua). Uma

vez que a Palavra é anunciada e para nós cristãos a Palavra é uma pessoa, o

próprio Cristo me leva a uma experiência com o amor do Pai, pois Ele veio para nos

revelar esse amor. Semelhante ao que acontecia na Igreja primitiva, as pessoas que

faziam uma experiência com este amor se agrupavam em comunidades para se

ajudarem, para viverem e partilharem este amor. Para Bruno Forte “a comunhão

eclesial é o lugar de encontro da história trinitária de Deus e da história humana,

onde uma passa continuamente pela outra, para transformá-la e unifica-la e onde as

vicissitudes deste mundo são conduzidas para a conclusão em Deus”50.

A experiência para não ser superficial, precisa ser aprofundada e o

aprofundamento da mesma se dá a partir do processo de formação, da busca do

conhecimento, neste caso, naquilo que vou acreditar, falamos assim de uma fé

subjetiva (fides quae). Entra aqui então o caminho de discipulado no qual gostaria de

50 FORTE, B. A Igreja ícone da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005. P. 51.

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me ater. A fé exige a livre adesão do homem, mas tem de ser proposta, já que as

multidões têm o direito de conhecer as riquezas do mistério de Cristo, nas quais toda

a humanidade – assim acreditamos, pode encontrar, numa plenitude inimaginável,

tudo aquilo que procura, às apalpadelas, a respeito de Deus, do homem, do seu

destino, da vida e da morte, da verdade51.

Em nossa vida não podemos pular etapas, não posso ser missionário, se não

sou discípulo, primeiro se é discípulo e depois missionário e na verdade

continuamos sendo discípulos conforme o documento de Aparecida nos afirma:

Discípulos e missionários. O termo discípulo vem do grego mathetai que aparece

aproximadamente em 200 ocasiões na Sagrada Escritura. Este termo também é a

raiz da palavra mathema, que por sua vez é a raiz da palavra matemática, cuja

tradução pode ser entendida como o esforço que se faz para aprender. Quem é o

discípulo? Aquele que se esforça para ouvir a voz ou o ensinamento dos seus

mestres.

Jesus chamou os discípulos para que os mesmos colaborassem com a sua

missão, mas também para que vivendo com Ele, testemunhassem tudo aquilo que

Ele fazia, falava e realizava. Chamou-os para perto de si para lhes falar ao coração,

na intimidade. Também hoje o encontro dos discípulos com Jesus na intimidade é

indispensável para alimentar a vida comunitária e a atividade missionária. O Mestre

formou a partir de sua própria vida e por isso os mesmos se tornaram continuadores

de sua missão de anunciar o Reino de Deus após a sua glorificação. No Evangelho

de Mateus, onde Jesus não sobe aos céus e nem envia o Espírito Santo, mas

permanece conosco, Ele envia dizendo: “Ide, portanto, e fazei que todas as nações

se tornem discípulos” (cf. Mt 28, 19).

Nos evangelhos percebe-se claramente a distinção entre multidão e

discípulos. Assim como os discípulos são caracterizados por essa experiência de

proximidade, a multidão era caracterizada pela experiência superficial fixada no

extraordinário e que por sua vez não aprofundava. A multidão era um grupo que

seguia a Jesus por interesses e não por uma adesão livre e radical. A multidão não

gera missionários, o discipulado sim, mas da multidão podem sair discípulos desde

51 JOÃO PAULO II. Redemptoris Missio. A validade permanente do mandato missionário. 9. ed. São Paulo: Paulinas, 2008. (Voz do Papa, 125). N. 7.

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que a experiência passe por um aprofundamento. O discípulo se esforça para ouvir,

mas a multidão não se esforça para ouvir.

A experiência do discípulo missionário é uma experiência de existência e não

de momento. Todo discípulo é missionário, pois Jesus o faz partícipe de sua missão,

ao mesmo tempo que o vincula como amigo e irmão52. Discipulado e missão são

como duas faces da mesma moeda: quando o discípulo está apaixonado por Cristo,

não se pode deixar de anunciar ao mundo que só Ele salva53. A missão da Igreja é

tornar presente em todo tempo, a defronte a toda situação, o encontro do Espírito e

da carne, de Deus e dos homens, tal qual se atuou no Verbo Encarnado54.

A vocação ao discipulado missionário é con-vocação à comunhão em sua

Igreja. Não há discipulado sem comunhão. Diante da tentação, muito presente na

cultura atual, de ser cristãos sem Igreja e das novas buscas espirituais

individualistas, afirmamos que a fé em Jesus chegou até nós através da comunidade

eclesial55. A Igreja, como comunidade de amor é chamada a refletir a glória do amor

de Deus, que é comunhão, e assim atrair as pessoas e os povos para Cristo56.

A exportação apostólica Redemptoris Missio vai nos dizer:

O homem contemporâneo acredita mais nas testemunhas do que nos mestres, mais na experiência do que na doutrina, mais na vida e nos fatos do que nas teorias. O testemunho da vida cristã é a primeira e insubstituível forma de missão. A primeira forma de testemunho é a própria vida do missionário, da família cristã e da comunidade eclesial, que torna visível um novo modelo de se comportar57.

Maria é o modelo claro de discípulo missionário, mulher de fé, na obra lucana,

ela é aquela que ouve a Palavra de Deus através do anjo, ela dá adesão a esta

Palavra sem mensurar as dificuldades, quando diz: “Eis aqui a serva do Senhor,

faça-se em mim segundo a tua palavra” (cf. Lc 1, 38). Considerando o evangelizado

52CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007. N. 144

53 Ibidem N. 146.54 FORTE, B. A Igreja ícone da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005. P. 68.55 CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007. N. 15656 Ibidem N. 159.57 JOÃO PAULO II. Redemptoris Missio. A validade permanente do mandato missionário. 9. ed. São Paulo: Paulinas, 2008. (Voz do Papa, 125). N. 42.

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35

como aquele que fez uma experiência com a Palavra, Maria é então a primeira

evangelizada, discípula e consequentemente a primeira evangelizadora e

missionária, pois sai de Nazaré e vai até a Judeia ao encontro de sua parenta Isabel,

ao entrar onde ela estava, Isabel e a criança a qual gerava ficaram cheias do

Espírito Santo. Na perícope seguinte vemos Maria, mulher de fé, mulher de

experiência com a Palavra, primeira discípula, evangelizada, evangelizadora e

missionária a rezar com a Palavra o magnificat que é uma coletânea de pouco mais

de dez versículos do antigo testamento.

Maria, membro supereminente da Igreja e de todo singular, é o tipo da

comunidade eclesial, virgem e mãe. Como ela, crendo e obedecendo... gerou na

terra o próprio Filho do Pai, sem conhecer varão, coberta pela sombra do Espírito

Santo58, assim a Igreja, mediante a Palavra de Deus recebida na fé, torna-se

também ela mãe59. A experiência comunitária de Maria, discípula missionária, é

destacada nos textos sagrados quando ela está aos pés da cruz com sua irmã, com

Maria de Clópas e Maria Madalena, além do discípulo amado que a acolhe em sua

casa e também na sala do cenáculo (cf. At 1, 14). O discípulo não pode parar no

Cenáculo, mas precisa ir até o calvário, pois a pessoa que verdadeiramente é

impelida pelo Espírito Santo leva sua missão até a última consequência. A Igreja,

comunidade de comunidades é mãe e como Maria que acolhe o discípulo amado,

ela é também aquela que acolhe os discípulos amados dos tempos atuais.

Se é um fato histórico que a Igreja saiu do Cenáculo no dia de Pentecostes, também pode dizer-se que, em certo sentido, ela nunca o abandonou. Espiritualmente o acontecimento do Pentecostes não pertence só ao passado: a Igreja está sempre no Cenáculo, que traz no seu coração. A Igreja persevera na oração, como os Apóstolos, juntamente com Maria, Mãe de Cristo, e com aqueles que, em Jerusalém, constituíam o primeiro núcleo da comunidade cristã e aguardavam, orando, a vinda do Espírito Santo60.

A Igreja como comunidade de amor é chamada a refletir a glória do amor de

Deus, que é comunhão, e assim atrair as pessoas e os povos para Cristo. A Igreja

58 CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM. Documentos do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997. N. 63.59 FORTE, B. A Igreja ícone da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005. P. 58.60 JOÃO PAULO II. Vatican.Va. Dominum et vivificantem, 1986. Disponivel em: <http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_18051986_dominum-et-vivificantem.html>. Acesso em: 29 Novembro 2018. N. 66,

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cresce, não por proselitismo, mas por atração: Como Cristo atrai tudo para si com a

força do seu amor, pois o mesmo disse quando eu for elevado da terra, atrairei todos

a mim (cf. Jo 12,32). A Igreja atrai quando vive em comunhão, pois os discípulos de

Jesus serão reconhecidos se amarem uns aos outros como Ele nos amou61.

Já dizia Paulo VI:

Sendo assim uma tal adesão que não pode permanecer abstrata e

desencarnada manifesta-se concretamente por uma entrada visível

numa comunidade de fiéis. Assim, aqueles cuja vida se transformou

ingressam, portanto, numa comunidade que também ela própria é

sinal da transformação e sinal da novidade de vida: é a Igreja,

sacramento visível da salvação62.

A comunidade é dessa forma o lugar teológico no qual vivenciamos de

maneira primeira o nosso ser cristão amando-nos uns aos outros, nos relacionando

com o diferente, pastoreando os irmãos, formando discípulos e enviando-os para a

missão que será o tema abordado no próximo encontro.

61 CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007. N. 15962 PAULO VI. Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi sobre a evangelização no mundo contemporâneo. 22 ed. São Paulo : Paulinas, 2011. N. 23.

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37

CAPÍTULO TERCEIRO: COMUNIDADE LUGAR DE MISSÃO

3.1 – A origem da missão da Igreja

A Igreja é no mundo sinal e instrumento de salvação para a humanidade. Um

dos símbolos que se referem a Igreja é justamente a arca de Noé, uma vez que no

Antigo Testamento a arca preservou e guardou aqueles que viriam a ser salvos do

dilúvio. No contexto atual, a Igreja é também aquela que preserva ou guarda aqueles

que aceitaram a salvação no Cristo Jesus. A Comunidade que por sua vez é o lugar

teológico onde os relacionamentos e a fraternidade acontecem e que também é

aquela realidade que cuida e pastoreia os discípulos é a mesma que nos envia para

a missão e que também nos recebe quando retornamos da mesma.

O discípulo precisa anunciar e testemunhar a experiência pessoal de

salvação com o Senhor vivida em comunidade através do amor dos irmãos, pois

existimos para tal. A comunhão trinitária é fonte e meta da missão da Igreja, o amor

da Trindade deve ser anunciado para que todas as pessoas da face da terra possam

fazer uma experiência com este amor e consequentemente possam participar da

vida de Deus. A sua missão se resume no mandamento de levar todo a criação ao

Pai por Cristo no único Espírito63.

No livro do Atos dos apóstolos identificamos que a base do apóstolo Paulo

era a cidade de Antioquia. A Comunidade cristã antioquena enviava o apóstolo para

a missão e o recebia quando o mesmo voltava, sua comunidade era a sua

referência. O texto chega a afirmar que na cidade de Derbe era bom o número de

discípulos que haviam se formado (cf. At 14, 21-22).

A Igreja é por natureza missionária. O decreto conciliar Ad gentes do Concílio

Vaticano II afirma que: “A Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária, visto que

tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na missão do Filho e do Espírito

Santo”64.. O documento de Aparecida fala que a evangelização é um chamado à

participação na comunhão trinitária65. A comunhão e a missão estão profundamente

ligadas entre si, compenetram-se e integram-se mutuamente, a ponto de a

63 FORTE, B. A Igreja ícone da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005. P. 60.64 DECRETO CONCILIAR AD GENTES. (1997). Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São

Paulo: Vozes. N. 2.65 CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007. N. 157.

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comunhão representar a fonte e simultaneamente, o fruto da missão: a comunhão é

missionária e a missão é para a comunhão66.

O Concílio Vaticano II nos diz que: “A Igreja provém da Trindade, é

estruturada a imagem da Trinidade e ruma para o acabamento trinitário da história.

Vinda do alto, plasmada pelo alto e rumo ao alto, Ela é Reino de Deus presente em

mistério”67. Bruno Forte complementa dizendo: “Ela é obra divina no tempo dos

homens preparada desde as origens reunida pela Palavra Encarnada, sempre

vivificada pelo Espírito Santo”68. Uma comunidade não é um simples aglomerado de

cristãos em busca da perfeição pessoal. Em sentido muito mais profundo, é

participação e testemunho qualificado da Igreja-Mistério, enquanto expressão viva e

realização privilegiada de sua peculiar “comunhão”, da grande koinonia trinitária de

que o Pai quis fazer participar os homens no Filho e no Espírito Santo69.

A missão não se limita a um programa ou projeto, mas é compartilhar a

experiência do acontecimento do encontro com Cristo, testemunhá-lo e anuncia-lo

de pessoa a pessoa, de comunidade a comunidade e da Igreja a todos os confins do

mundo70. A missão é a oportunidade de anunciar o amor de Deus que nos alcançou.

Duas tarefas cabem a Igreja no que diz respeito a sua missão: Dar testemunho do

evangelho (evangelização) e o serviço aos homens (diaconia). O ser humano é

chamado a se transcender na liberdade do amor71. O ser humano, para realizar-se

plenamente, precisa sair de si e encontrar "outro", interagindo com ele e acolhendo-o

na sua especificidade e singularidade72.

O ministério de Jesus é a prova viva que a Igreja, historicamente dizendo,

começa em sua missão, ainda que teologicamente ela já estivesse prefigurada no

Antigo Israel. O Decreto ad gentes a este respeito nos diz: “O Senhor Jesus, logo

66 JOÃO PAULO II. Exortação apostólica Christifideles laici. São Paulo: Paulinas, 2011. P. 86.67 CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM. Documentos do Concílio Vaticano II. São Paulo:

Paulus, 1997. N. 3.68 FORTE, B. A Igreja ícone da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005. P. 9.69 CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES APOSTÓLICAS. A vida fraterna em comunidade. São Paulo: Paulinas, 2007. P. 9.70CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007. N. 145.71 Oliveira, J. L. Viver em comunidade para a missão - Um chamado a vida religiosa consagrada. São

Paulo: Paulus, 2013. P. 30.72 ibidem. P. 16.

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desde o princípio “chamou a si alguns a quem ele quis e escolheu doze para

caminharem com ele e os mandar em pregação”73.

A missão me impele a anunciar algo do qual estou completamente

convencido, por isso, de maneira poética, falamos que a vocação é o encontro entre

duas vontades: a do Deus que chama e a do homem que responde. Por isso, o

missionário é alguém que tem um chamado divino específico para tal. A Sagrada

Escritura nos traz claramente a ideia de um Deus que envia. No livro do Êxodo,

Moisés é o enviado de Deus para libertar o povo da escravidão, Jeremias é o

enviado de Deus para falar as nações, Jonas é o enviado de Deus para anunciar

aos ninivitas e no evangelho Jesus é o missionário do Pai que age em sintonia com

o Espírito e que vem ao homem para anunciar a boa nova do Reino através da

pregação do evangelho e concomitante a isso vem para nos revelar quem é o Pai.

Francisco na Evangelli Gaudium, quando nos fala de ser uma Igreja em saída, ele

fala sobre esse dinamismo de saída que provoca a cada um de nós a um chamado a

missão. A pessoa é chamada por Deus a ser alguém que se insere numa

comunidade específica que foi vocacionada para realizar uma missão bem concreta

em favor da própria comunidade ou da humanidade. Isso porque "ninguém é

chamado para nada. A vocação implica uma missão. O chamado é enviado para

alguém e para algo74".

Na Palavra de Deus, aparece constantemente este dinamismo de «saída», que Deus quer provocar nos crentes. Abraão aceitou a chamada para partir rumo a uma nova terra (cf. Gn 12, 1-3). Moisés ouviu a chamada de Deus: «Vai; Eu te envio» (Ex 3, 10), e fez sair o povo para a terra prometida (cf. Ex 3, 17). A Jeremias disse: «Irás aonde Eu te enviar» (Jr 1, 7). Naquele «ide» de Jesus, estão presentes os cenários e os desafios sempre novos da missão evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova «saída» missionária. Cada cristão e cada comunidade há-de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho75.

73 DECRETO CONCILIAR AD GENTES. (1997). Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Vozes. N. 5.

74 Oliveira, J. L. Viver em comunidade para a missão - Um chamado a vida religiosa consagrada. São Paulo: Paulus, 2013. P. 58.75 FRANCISCO. (2016). Exortação apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do evangelho no

mundo atual. São Paulo: Paulus. N. 20.

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Jesus também nos envia em missão quando diz: Ide por todo mundo e pregai

o evangelho a toda criatura (cf. Mc 16,15). Entende-se assim que a Igreja é

continuadora da missão de Jesus e pelo batismo todos nós assumimos uma

vocação ou missão específica no corpo de Cristo.

No interim entre a ascensão do Senhor e Pentecostes, a Comunidade

permanece reunida, realiza a eleição para a substituição de Judas Iscariotes, mas o

medo ainda lhes tomava o coração. Antes de subir aos céus, Jesus já prenuncia a

vinda do Espírito Santo como uma dinâmica que vai leva-los para além de seus

limites e coloca-los como anunciadores da boa nova: “Mas recebereis uma força, a

do Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em

Jerusalém, em toda a Judéia e a Samaria, e até os confins da terra" (cf. At 1, 8).

Ele deixa aos seus um mandato missionário e a certeza de que o Espírito

Santo os acompanharia nesta missão, “a própria palavra mandato é equivalente a

missão, pois une diretamente a missão confiada por Jesus aos discípulos, com

aquela que ele mesmo recebeu do Pai: “assim como o Pai me enviou, também eu

vos envio (cf. Jo 20, 21)”76. Essas palavras refletem tanto o itinerário da missão

apostólica no cristianismo primitivo, bem como uma possível organização do livro

dos Atos dos Apóstolos com a missão começando em Jerusalém, se estendo a

Judéia e a Samaria e depois aos pagãos.

Duas palavras são dignas de um comentário neste texto. A primeira delas é a

palavra força: no grego a palavra é “dunamis” cuja tradução nos remete a

dinamismo ou movimento. O Espírito Santo é aquele que nos coloca em movimento

ou nos envolve no dinamismo da missão. A outra palavra é testemunha, que no

grego vem de martirya, cuja tradução é mártir. O Espírito Santo é aquele que nos

movimenta para anunciar a Palavra de Deus, ao ponto de enfrentarmos todas as

dificuldades e situações adversas para que a pessoa de Jesus Cristo seja conhecida

e amada. “O discípulo sabe oferecer a vida inteira e jogá-la até ao martírio como

testemunho de Jesus Cristo, mas o seu sonho não é estar cheio de inimigos, mas

antes que a Palavra seja acolhida e manifesta sua força libertadora e renovadora”77.

76 JOÃO PAULO II. (2008). Redemptoris Missio. A validade permanente do mandato missionário. 9. ed. São Paulo: Paulinas. N. 22.

77 FRANCISCO. (2016). Exortação apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus. N. 24.

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No dia de Pentecostes temos então a vinda do Espírito Santo sobre a

Comunidade Primitiva de Jerusalém. O Espírito Santo além de lhes tirar do medo, os

animará e os enviará para a missão, tirando-os da realidade de reclusão e

fechamento na qual se encontravam (cf. At 2, 1-6). A Boa nova de Jesus Cristo

precisa ser anunciada, esta Palavra precisa ir ao encontro daqueles que ainda não a

conhecem e em Pentecostes o Espírito realizará justamente esse envio missionário

da Igreja e aí tem início a sua missão.

Tendo-se completado o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído como o agitar-se de um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia se exprimissem. Achavam-se então em Jerusalém judeus piedosos vindos de todas as nações que há debaixo do céu. Com o ruído que se produziu a multidão acorreu e ficou perplexa, pois cada qual os ouvia falar em seu próprio idioma.

É impossível falar de missão sem falar da pessoa do Espírito Santo. A missão

nos remete a pessoa do Espírito Santo. Ele é alma da Igreja, ou seja, aquele que

anima, motiva, impulsiona, a missão tem as dificuldades que lhe são próprias, por

nossas próprias forças não conseguiremos desempenhá-la, precisamos estar sob o

impulso da graça do Espírito. Paulo VI na Evangelli Nuntiandi fala que nunca será

possível haver evangelização sem a ação do Espírito Santo78.

No ápice da missão messiânica de Jesus, o Espírito Santo aparece-nos, no Mistério pascal, em toda a sua subjetividade divina, como aquele que deve continuar, agora, a obra salvífica, radicada no sacrifício da cruz. Esta obra, sem dúvida, foi confiada aos homens: aos apóstolos e à Igreja. No entanto, nestes homens e por meio deles, o Espírito Santo permanece o sujeito protagonista transcendente da realização dessa obra, no espírito do homem e na história do mundo. Verdadeiramente, o Espírito Santo é o protagonista de toa a missão eclesial: sua obra brilha esplendorosamente na missão ad gentes79

Em Pentecostes o Espírito encontra uma comunidade amendrotada, mas

socorre-a derramando sobre ela o ânimo necessário para o exercício de sua missão.

Em Pentecostes a Igreja é inaugurada, se manifesta ao mundo e auxiliada pelo

78 PAULO VI. (1970). Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi sobre a evangelização no mundo contemporâneo. São Paulo : Paulinas. N. 75.

79 JOÃO PAULO II. (2008). Redemptoris Missio. A validade permanente do mandato missionário. 9. ed. São Paulo: Paulinas. N. 21.

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Espírito começa então a sua missão. Paulo VI nos diz: “Dar a conhecer Jesus Cristo

e o seu Evangelho àqueles que os não conhecem, é precisamente a partir da manhã

do Pentecostes, o programa fundamental que a Igreja assumiu como algo recebido

do seu Fundador”80.

Uma vez que Ele é o amor entre o Pai e o Filho, e o amor além de essência

divina e cristã é relacional portanto para se manifestar precisa de relacionamentos a

luz da Trindade, é na Comunidade que vivemos a plenitude da participação na vida

divina.

A teologia da relação em Deus mostra-nos que ele existe na plenitude da vida e da comunhão, que o Deus uno e único é o contrário de uma mônada fechada em si mesma. É claro que ao pensar na relação em Deus nos vêm necessariamente à lembrança nossas múltiplas relações humanas (...). Em nossa experiência cotidiana nós, em primeiro lugar, somos, e depois, entramos em relação, por mais que reconheçamos a importância da relação. Em todo caso, nosso ser não se identifica com nenhuma relação inter-humana. Nossa relação com Deus determina o que somos, mas trata-se sempre de uma relação contingente: Deus nos criou porque quis, poderíamos não existir. As relações em Deus, dada a suma simplicidade da essência divina, identificam-se com a essência mesma (...) Deus é amor, sua vida é essencialmente comunicação81.

Por isso a Igreja está no mundo para comunicar esse amor e aquele que faz

uma experiência pessoal de salvação com esse amor também precisa viver e

testemunhar esse amor numa comunidade. Entra aqui a importância do anúncio

querigmático: O homem é amado por Deus! Este é o mais simples e o mais

comovente anúncio de que a Igreja é devedora ao homem82.

O anúncio do querigma convida a tomar consciência desse amor vivificador de Deus que nos é oferecido em Cristo morto e ressuscitado. Isso é o que por primeiro necessitamos anunciar e também escutar, porque a graça tem primado absoluto do na vida cristã e em toda a atividade evangelizadora da Igreja83.

Pedro ao sair da sala do Cenáculo em Pentecostes (cf. At 2, 14-36), ele não

anunciou uma instituição ou um dogma por excelência, mas anunciou o amor de

80 PAULO VI. (1970). Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi sobre a evangelização no mundo contemporâneo. São Paulo : Paulinas. N. 51.

81 LADARIA, L. F. O Deus vivo e verdadeiro o mistério da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005. P. 26182 JOÃO PAULO II. Exortação apostólica Christifideles laici. São Paulo: Paulinas, 2011. P. 92.83 CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007. N. 148.

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Deus revelado na pessoa de Jesus Cristo, crucificado pelos homens e ressuscitado

pelo Pai ao terceiro dia. O poder da sua pregação, segundo o texto, faz com que

3.000 pessoas aderissem à fé e recebessem o batismo (cf. At 2, 41).

Uma vez que não fomos nós, mas foi Deus quem nos amou primeiro,

precisamos anunciar este amor que tem a força de dar um sentido a nossa vida. A

experiência com este amor por sua vez também exige do homem o anúncio aqueles

que ainda não o experimentaram e o testemunho para que nossa palavra seja

verdadeira e se torne práxis de vida, “pois se Deus assim nos amou, devemos, nós

também, amar-nos uns aos outros” (cf. I Jo 4, 11). Anunciar que Deus é amor (cf. I

Jo 4, 8) e viver este amor em nossos relacionamentos tem poder de salvação em

nossos dias. Francisco na Evangelli Gaudium diz: “ao início do ser cristão, não há

uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento,

com uma Pessoa que dá a vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo,

porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que

pode conter o desejo de comunica-lo aos outros”84?

Quando falamos da realidade ad extra da missão entendemos que é somente

o amor, que nos leva a sair da nossa zona de conforto e irmos ao encontro daqueles

que ainda não fizeram uma experiência com o amor de Deus, pois o fim último da

missão é fazer participar na comunhão que existe entre o Pai e o Filho: os discípulos

devem viver a unidade entre si, permanecendo no Pai e no Filho, para que o mundo

conheça e creia (Jo 17, 21-23). Trata-se de um texto de grande alcance missionário,

fazendo-nos entender que somos missionários sobretudo por aquilo que se é, como

Igreja que vive profundamente a unidade no amor e não tanto por aquilo que se diz

ou faz85.

84 FRANCISCO. (2016). Exortação apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus. N. 7-8.85 JOÃO PAULO II. (2008). Redemptoris Missio. A validade permanente do mandato missionário. 9.

ed. São Paulo: Paulinas. N. 23.

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3.2 A evangelização estabelece comunidades

A vida fraterna em comunidade precisa ser um elemento identitário para

nossas comunidades cristãs. Nos Atos dos Apóstolos percebemos que a

comunidade primitiva tem o amor fraterno como elemento de união que realmente os

identifica. Alguns textos vão mostrando isso para nós.

Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações. " Apossava-se de todos o temor, pois numerosos eram os prodígios e sinais que se realizavam por meio dos apóstolos. Todos os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham tudo em comum: vendiam suas propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo as

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necessidades de cada um. Dia após dia, unânimes, mostravam-se assíduos no Templo e partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria? e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e gozavam da simpatia de todo o povo. E o Senhor acrescentava cada dia ao seu número os que seriam salvos (cf. At 2, 42-47).

João Paulo II na Redemptoris missio por sua vez afirma que:

O Espírito impele o grupo dos crentes a constituírem comunidades, a serem Igreja. Depois do primeiro anúncio de Pedro, no dia de Pentecostes, e as conversões que se seguiram, forma-se a primeira comunidade. Com efeito, uma das finalidades centrais da missão é reunir o povo de Deus na escuta do Evangelho, na comunhão fraterna, na oração e na Eucaristia86.

A identidade desta primeira comunidade era garantida pela assiduidade ao

ensinamento dos apóstolos, as orações, a comunhão fraterna e a fração do pão. A

comunhão fraterna fazia com que o Senhor acrescentasse outros ao número dos

que seriam salvos. O amor fraterno vivido em comunidade também era um sinal da

ação do Espírito Santo. Outro texto ressaltará essa marca da comunidade primitiva a

nós: “A multidão dos que haviam crido era um só coração e uma só alma. Ninguém

considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum” (Cf

At 4, 32).

Os apóstolos criam comunidades nas quais a essência de cada cristão se

define como filiação divina. É o Espírito quem realiza nos corações a condição para

que alguém se torne seguidor de Jesus Cristo, filho de Deus, e membro da

comunidade cristã87. A Evangelli Nuntiandi parafraseia Santo Agostinho e diz:

“pregaram a palavra da verdade e geraram as Igrejas”88.

Aqueles que acolhem com sinceridade a Boa Nova, por virtude desse

acolhimento e da fé compartilhada, reúnem-se, portanto, em nome de Jesus para

conjuntamente buscarem o Reino, para o edificar e para o viver89. Diante de nós

temos algo muito belo, pois a salvação em Jesus Cristo enquanto iniciativa divina

precisa por nós ser acolhida pela graça divina, porém cientes das dificuldades de

caminharmos sozinhos, nos ajuntamos a outras pessoas com o mesmo ideal para

que possamos ajudar uns aos outros. O encontro com Cristo não se dá no

86 Ibidem N. 26.87 CNBB. Comunidade de Comunidades: Uma nova paróquia. São Paulo: Paulinas, 2014. 88 PAULO VI. (1970). Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi sobre a evangelização no mundo contemporâneo. São Paulo : Paulinas. N. 59.89 Ibidem N. 13.

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isolamento, na interioridade de cada pessoa, mas na assembleia da comunidade,

mesmo quando essa comunidade é formada apenas por duas ou três pessoas (cf.

Mt 18,19-20)90.

No século II, Tertuliano afirma que os pagãos olhavam para dentro das

comunidades cristãs e diziam: “Vejam como eles se amam”91. O cristianismo ganha

força nos primeiros séculos e cresce em meio as adversidades porque era

verdadeiro o testemunho dos discípulos de Cristo, que amavam uns aos outros

como o Mestre também amou. Essa premissa deve nos levar a um questionamento

acerca dos valores pautados por nossas comunidades na atualidade. Não existe um

sentido para a vida em Comunidade se não há relacionamentos fraternos de amor e

perdão e um consequente pastoreio e cuidado sobretudo para com os mais fracos.

No evangelho de Marcos dois episódios falam de maneira profunda a respeito

da importância de se constituir comunidades. Em Marcos 5, temos a narrativa que

nos conta a respeito do homem de Gerasa que habitava um cemitério, ele estava

possuído por um espírito impuro e Jesus o liberta expulsando os demônios e os

enviando para uma manada de porcos que se precipitam no mar. Este texto além de

mostrar o esforço missionário que Jesus faz, uma vez que ele sai da Galileia e vai

até a Decápole para levar a salvação a uma só vida necessitada de um encontro

com Deus, também mostra para nós a importância de exercermos a missão na

realidade em que nós estamos, uma vez que Jesus recomenda ao homem liberto

que fique na sua terra e dê testemunho para os seus. Por analogia poderíamos aqui

fazer uma relação com a missão ad intra e a consequente importância de

evangelizar, dar testemunho e constituirmos comunidades na realidade na qual nós

estamos. Após a experiência que aquele homem tinha feito com o Senhor, o mesmo

foi até o barco e queria ir com Jesus, mas Jesus recomenda-lhe que ficasse para

que desse testemunho aos seus a respeito de tudo aquilo que Deus em sua

misericórdia tinha feito em seu favor (cf. Mc 5, 18-20).

Experiência semelhante fará a mulher samaritana do capítulo 4 do evangelho

de João. A beira do poço no qual Jacó conheceu Raquel, o maior amor de sua vida,

também ela fará uma experiência com o amor de Deus na pessoa de Jesus Cristo e

90 Oliveira, J. L. Viver em comunidade para a missão - Um chamado a vida religiosa consagrada. São Paulo: Paulus, 2013. P. 8.91 TERTULIANO, N. 39, 7.

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o próprio texto vai afirmar que muitos creram em Jesus a partir do testemunho

daquela mulher (cf. Jo 4, 39).

Vivemos uma profunda crise da vida comunitária nos tempos atuais. As

reuniões comunitárias se restringiram a celebração da liturgia, mas na celebração

por vezes o que temos é uma comunidade reunida, mas sem relacionamentos, uma

vez que as pessoas na sua grande maioria nem se conhecem, não dialogam, não

entram na realidade umas das outras e também não há pastoreio. O nosso desafio é

alargar essa visão para que a comunidade se torne o lugar e a possibilidade do

exercício de um cristianismo pleno. A dimensão litúrgica é um aspecto da vida cristã,

mas há também o serviço e o testemunho. A Comunidade que celebra junto é a

mesma que deve testemunhar o amor fraterno e servir ao próximo.

É próprio do discípulo de Jesus gastar a vida como sal da terra e luz do

mundo. Diante do individualismo, Jesus nos convoca a viver e caminhar juntos. A

vida cristã só se aprofunda e se desenvolve na comunhão fraterna92. Não dá para

vivermos sozinhos, a Comunidade celebra e perpetua a presença de Jesus, pois

“Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estarei eu no meio deles”

(cf. Mt 18, 20)

Jesus faz dos discípulos seus familiares, porque compartilha com eles a

mesma vida que procede do Pai e lhes pede, como discípulos, uma união intima

com ele, obediência a palavra do Pai, para produzirem frutos de amor em

abundância93.

O missionário é o homem da caridade: para poder anunciar a todo o irmão

que Deus e que ele próprio pode amar, ele terá de usar de caridade para com todos,

gastando sua vida ao serviço do próximo. Ele é o irmão universal, que leva consigo

o espírito da Igreja, sua abertura e amizade por todos os povos e por todos os

homens, particularmente pelos mais pobres e pequenos. É sinal do amor de Deus

no mundo que é um amor sem qualquer exclusão ou preferência. Por fim, como o

Cristo, o missionário deve amar a Igreja: Cristo amou a Igreja e se entregou por ela

(cf. Ef 5, 25)94.

92 CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007. N. 110.93 Ibidem. N. 133.

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O cristão que é missionário por natureza, impelido pelo Espírito que é o amor

entre o Pai e o Filho, como autêntico discípulo de Jesus, precisa ser um arauto da

misericórdia. Nossas comunidades precisam ser fonte de vida, amor, restauração de

realidades destruídas, precisam ser o lugar da misericórdia, misericórdia esta que

define Deus e precisa ser anunciada como Francisco afirma:

“Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que, muitas vezes, disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada, por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos”95.”

O cristianismo deve ser para o mundo uma graça de humanidade para o

homem amar, socorrer e defender os outros homens96. O ideal comunitário não deve

fazer esquecer que toda a realidade cristã se edifica sobre a fraqueza humana. A

comunidade ideal, perfeita, ainda não existe: a perfeita comunhão dos santos é meta

na Jerusalém celeste97.

94 JOÃO PAULO II. (2008). Redemptoris Missio. A validade permanente do mandato missionário. 9. ed. São Paulo: Paulinas. N. 89.95 FRANCISCO. (2016). Exortação apostólica Evangelii Gaudium sobre o anúncio do evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus. N. 49.96 HAMMAN, A. _. A vida cotidiana dos primeiros cristãos II ed. São Paulo: Paulus, 2017. P. 117.

97 CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E AS SOCIEDADES APOSTÓLICAS. A vida fraterna em comunidade. São Paulo: Paulinas, 2007. P. 41.

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CONCLUSÃO

A vida comunitária é uma das características mais marcantes do cristianismo.

Um olhar crítico para dentro de nossas comunidades nos faz perceber o quão

distante estamos do ideal da vida em comunidade.

As estruturas paroquiais, das congregações tradicionais e das novas

comunidades, bem como as demais expressões eclesiais cristãs precisam se voltar

urgentemente para aquilo que é essencial. A necessidade de comunhão com o outro

é o que há de mais fundamental no ser humano

Os membros de nossas comunidades se reúnem para celebrar a liturgia, para

reuniões pastorais, para reuniões de planejamento, mas muitas vezes não vivemos

a unidade e a fraternidade, nos falta a consciência do que é viver em comunidade. A

mesa da Eucaristia que nos reúne para celebrar o mistério da Paixão, Morte e

Ressurreição de Jesus Cristo e que nos envia para a missão, precisa se estender

para dentro de nossas casas, a fim de proporcionar momentos de oração, de partilha

e de convivência fraterna.

O testemunho do amor fraterno vivido em comunidade, precisa ser assumido

como missão, isso implica numa conversão pastoral que exigirá dos membros de

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cada comunidade um sentimento de pertença e de co-responsabilidade, ao mesmo

tempo relacionamentos sadios e sólidos, a busca do conhecimento de cada irmão

que por vezes nos passa despercebido em nossas assembleias dominicais, o

cuidado para com os mesmos, a formação e a capacitação destes, visando uma

pertença definitiva e o envolvimento na missão.

As comunidades se tornam verdadeiras quando se abrem aos outros, quando se tornam vulneráveis e humildes, quando seus membros crescem no amor, na compaixão e na humildade. E deixam de sê-lo quando seus membros se fecham em si mesmos, certos de serem os únicos a possuir a sabedoria e a verdade.98

Num mundo individualista, precisamos ser uma profecia, constituindo

comunidades que se amam, onde os membros cuidam um dos outros e que formam

discípulos missionários, por si só evangeliza e dá mostras do que o amor pode

realizar. A sociedade espera esse testemunho dos cristãos.

A comunidade é lugar da partilha, do amor e do acolhimento, da preocupação com o outro e do crescimento no amor. O individualismo e o materialismo conduzem a rivalidade, à competição e a rejeição do fraco; a comunidade por sua vez, conduz a abertura e ao acolhimento. Se a comunidade não existe, os corações se fecham e morrem99.

A vida em comunidade antecipa e nos proporciona o ensaio daquilo que

viveremos na eternidade. Não desistamos de nossas comunidades, por mais

imperfeitas que sejam, pois não é possível a vida plena sozinho.

“Vede: como é bom, como é agradável habitar todos juntos, como irmãos” (cf. Sl

133,1).

98 VANIER, J. Comunidade, Lugar do perdão e da festa. São Paulo: Paulinas, 2009. P. 36.99 Ibidem p. 23.

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