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FALA DA CRIADA DOS NOAILLES QUE NO FIM DE CONTAS VAMOS DESCOBRIR CHAMAR--SE TAMBÉM SÉVERINE NUMA NOITE DO INVERNO DE 1975 EM HYÈRES JORGE SILVA MELO

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encenação

Jorge Silva Melo

cenografia e figurinos

Rita Lopes Alves

desenho de luz

Pedro Domingos

maquilhagem

e cabelos

Eva Silva Graça

Ana Duarte

(com o apoio de

Alexandra Viveiros)

assistência de

encenação

Pedro Lamas

(com o apoio de

Andreia Bento)

interpretação

Elsa Galvão

Vânia Rodrigues

Pedro Lamas

Pedro Mendes

António Simão

Jessica Anne

João Delgado

Miguel Aguiar

Ricardo Batista

Susana Oliveira

Tiago Correia

Ruben Correia

e os alunos do 2.º

ano do Curso de

Teatro da ESMAE

Adriana Carvalho

Ana Lúcia Magalhães

Ana João Regueiras

Diana Barnabé

Elsa Pinho

Inês Espinhaço

Inês Simões Pereira

Isabel Quaresma

Helena Carneiro

Joana Amaral

Sílvia Barbosa

Silvana Brochado

Simão Ramos

Tiago Moreira

Vítor Silva

co ‑produção

Artistas Unidos

Culturgest

estreia [16Jul2010]

Culturgest (Lisboa)

qui-sáb 21:30

dom 16:00

dur. aprox.

[1:00]

classif. etária

M/16 anos

Os Artistas Unidos são

uma estrutura financiada

por Ministério da Cultura/

Direcção ‑Geral das Artes

Teatro Carlos Alberto

16-19 Set 2010

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Zervos, dos Cahiers d’Art, pôs ‑me em contacto com Georges ‑Henri Rivière, que por sua vez me apresentou aos Noailles, que conhecia bem e que tinham “adorado” Un Chien Andalou. Comecei por responder, como ficava bem, que não esperava nada dos aristocratas. “Está enganado, disseram ‑me Zervos e Rivière, são pessoas fantásticas e deve absolutamente conhecê ‑las.” Finalmente, aceitei ir jantar a casa delas na companhia de Georges e Nora Auric. O palacete dos Noailles, na Place des États ‑Unis, era esplêndido e continha uma colecção de obras de arte quase inconcebível. Depois de jantar, junto à lareira, Charles de Noailles disse ‑me:– Propomos que realize um filme de cerca de vinte minutos. Total liberdade. Uma só condição: temos um compromisso com Stravinski e ele fará a música.– Lamento imenso, respondi, mas como podem imaginar que eu possa colaborar com um senhor que se põe de joelhos e dá murros no peito?Era de facto o que se dizia de Stravinski.Charles de Noailles teve uma reacção que eu não esperava e que me deu o primeiro motivo para o ter em boa estima.– Tem razão, disse ‑me ele sem levantar a voz. Stravinski e o senhor são incompatíveis. Escolha então o músico que quiser e faça o seu filme. Encontraremos outra coisa para Stravinski. Aceitei, recebi até um adiantamento sobre o meu salário e fui ter com Dalí a Figueras.Estávamos no Natal de 1929.

[…] Fiquei ligado a Charles de Noailles até ao fim. Quando ia a Paris, almoçávamos ou jantávamos juntos.Da última vez, convidou ‑me para o palacete onde me recebera cinquenta anos antes. Parecia outro mundo. Marie ‑Laure tinha morrido. Nas paredes e nas prateleiras não sobrava nada dos tesouros de outrora.Charles ensurdecera como eu e ouvíamo ‑nos com dificuldade. Jantámos frente ‑a‑‑frente, falando muito pouco. •

Luis Buñuel Excerto de O Meu Último Suspiro. Tradução de Tomás Schmitt Cabral. Lisboa: Fenda, cop. 2006. p. 141, 155.

Diz que é espanhol.Espero que não seja aquele pequenito e entroncadoque me apalpava o rabo sempre que eu o ia servire que vinha cá com uma mulher diferente sempremesmo que fosse hoje e no dia seguinte e depois de amanhãera sempre uma mulher diferente grande rabo grande peito mais altas que ele sempreque ele era pequenito e entroncado quase careca ou rapava o cabeloera pintor. •

Jorge Silva Melo Excerto de Fala da criada dos Noailles… Lisboa: Cotovia, 2007.

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Pois é, não tem qualquer importância esta peça, nenhuma mesmo. Nem resolve problemas das periferias, nem integra novas linguagens, a tecnologia é a do pão com manteiga, nem sequer forma, informa, educa para o que quer que seja, nada, nem dá créditos curriculares, nem com ela se aprende a comer à mesa – é só uma horita e não serve para nada, nem é multi ‑étnica, cultural, nada, nem tem vídeo nenhum, nem o seu título é em inglês, vê ‑se logo, não tem qualquer importância.

Pois se nem tem filosofia – nenhuma, mas nenhuma mesmo.

Nem frases soltas de antropólogos (que ficam tão bem quase sempre).

É só uma peça de teatro. E não tem qualquer importância, passa ‑se em

França, só entram mortos, e mesmo os mortos já tinham pouco dinheiro quando vieram ao nosso encontro, mortos que falavam francês, língua de velhos em trem de desaparição, de onde nem já galicismos conseguimos importar, os poucos que ainda tentam ler o falido Le Monde ou mandar vir aquele último CD da Françoise Hardy – que, lembro ‑me agora, ainda não me chegou.

É uma peça de teatro (Só isso? E porquê mais uma? E para quê?) e foi escrita já lá vão três anos e meio, editada há três, só agora a conseguimos montar, ninguém mais entretanto a quis, o dossier arrastou ‑se por várias mesas, só agora a estreámos. E até posso suspeitar que foi por amizade que a escolheram, o Miguel Lobo Antunes e o Francisco Frazão, em Julho, na Culturgest, obrigadinhos, pá.

Três dias em Lisboa, quatro em Setembro no Porto (que o Nuno Carinhas se juntou a nós), e pronto, fica a coisa arrumada.

Não tem qualquer importância.É uma peça escrita em casa, eu cá para comigo,

com muito café quente, sozinho, sem ser no meio dos ensaios de um hipotético colectivo. Não é porque não ache bem, mas que querem?, gosto de escrever de manhãzinha, antes de o sol se levantar, ainda ninguém está acordado a essas horas que eu possa convidar para vir escrever comigo, quatro‑‑cinco da manhã, e eu depois, à tarde, fico cansado, nos ensaios gosto é de olhar para os actores, se me pusesse a escrever no ensaio, nem via as raparigas, e ainda me enganava, como tantos, com a conjugação do maldito verbo haver.

É uma peça pacatamente escrita em casa, no meu escritório, com muitas saudades, ai tantas

Uma peça sem qualquer importância (segunda via)

Jorge Silva Melo

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– e a pensar numa actriz minha muito amiga, Elsa Galvão (é maravilhosa, marota!), uma actriz que gosto de ver, de ter por perto, maravilhosamente meiga, uma actriz ‑como ‑não ‑há ‑pessoas ‑assim, é que não há, não.

São coisas que não têm importância, escrever peças sem prémios para uma actriz sem globo, peças que não aumentam o PIB nem o turismo cultural, peças (mais uma, benza ‑o Deus!), só isso.

É porque é só uma peça tremendamente fora ‑de ‑moda.

Antiquadita, pois.Como será antiquado este meu gosto pelos

actores, gosto tanto deles, mon Dieu, comme je les aime! E com o reumático que avança, olhem, perdi o juízo e gosto de todos, búlgaros, croatas, mexicanos, ribatejanos ou lisboetas, gosto de todos, franceses e italianos, são tão improváveis, tão bonitos de se ver, vaidosinhos, audazes.

Ah, e querem saber uma coisa séria? “A frivolidade só é frívola para aqueles que não

são frívolos”, dizia a Darrieux naquele filme de vir ‑às ‑lágrimas que é a Madame De de Max Ophüls.

Mas se já nem o João Bénard da Costa pode vir rir ‑se connosco, não é? Com aquele riso gutural que lhe sacudia o corpo inteiro, já não vem.

E eu fico triste, sim. Por esta peça ser assim, sem qualquer importância.

P.S. 1 Esta peça com o seu título e tudo, lembrei ‑me de a escrever depois de um convite que me fez a Maria João Seixas para organizar a sessão Mecenas, Mecenas na Fundação Gulbenkian, em 2007. O texto foi editado pelo André Jorge nos Livros Cotovia – e o Pedro Proença fez quatro ilustrações que eu achei belíssimas. Não, não foi uma encomenda, uma tarefa, uma comissão, um mestrado, doutoramento, nada disso. Apeteceu ‑me. Dão licença?

P.S. 2 Foi assim que, em Julho, na estreia da Culturgest, apresentei o espectáculo. E tinha razão: nem uma crítica saiu, nadinha. Uma menção calorosa da Maria João Avillez na Sábado, mais nada, nicles, não teve qualquer importância. E tem a sua graça: foi no mesmo ano em que a Associação de Críticos, na sua anual cerimónia de sobrevivência, me deu prémio. Mas depois, que é feito dos críticos, desapareceram, desmaiaram, sumiram ‑se, intimidaram ‑se, desistiram, que é feito? Para quando o seu regresso? •

Agosto de 2010

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Falando na sua autobiografia dos tempos de Madrid na Residência de Estudantes, Luis Buñuel conta ter uma vez conduzido um grupo de americanos em fraudulenta visita guiada ao Museu do Prado:

Conduzindo ‑os pelas salas do museu, contava‑‑lhes o que me vinha à cabeça, que Goya era toureiro e estabelecera funestas relações com a duquesa de Alba, ou que o quadro de Berruguete Auto da Fé é um excelente quadro porque nele se podem contar cento e cinquenta personagens. E todos devem estar cientes de que o valor de uma obra pictórica decorre do número de personagens que representa. Os americanos ouviam ‑me com um ar sério e alguns até tiravam apontamentos.Outros, ainda assim, queixaram ‑se ao director. (O Meu Último Suspiro, p. 82)

Este discurso desviado, lúdico e perverso, que explora a credulidade inocente dos visitantes, partilha algumas características com o que Jorge Silva Melo (JSM), partindo de um episódio posterior do livro de Buñuel, constrói na Fala da criada dos Noailles… A força dos números lá está para dar verosimilhança: às 150 personagens de Buñuel juntam ‑se os 356 desenhos e as 203 lâmpadas de JSM. Se Goya era toureiro, aqui o surrealismo é uma gripe, e de Wagner assobia ‑se

Uma música muito complicadaQue o senhor conde também gostava muitoA música da Isolda, morte dela ou assim,A Isolda era uma cadela da senhora condessa que

dormia com elae um dia morreue fizeram esta músicaa morte da Isolda.

Mas se o jogo é o mesmo, as regras são outras. A “inocência americana” (é a expressão de Buñuel) passa a pertencer à criada que fala, e onde Don Luis era o único a rir, agora é o leitor/espectador que deve reconhecer a referência a Wagner para que a

Cantar ao nosso lado

Francisco Frazão

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piada funcione. Abre ‑se o jogo, a começar pelo nome que se lhe dá: o texto, publicado na Cotovia, tem como subtítulo “pequena paródia” e o espectáculo é uma “paródia inconsequente”. A etimologia, em vez da acepção comum de “imitação cómica”, é aqui particularmente útil: para (ao lado, contra, para além) + ode (canção). Mas se a visita guiada de Buñuel se faz com a subversão do contra, o texto de JSM é mais ambíguo, embora se escreva sobretudo ao lado. O projecto, pensado para uma sessão na Gulbenkian, era escrever sobre artistas e mecenas; o ponto de vista da criada será assim sempre lateral. É a terceira pessoa, testemunha próxima, às vezes participante, como inspiração e musa, noutras invisível como uma câmara, mas presença que acompanha, voz que nos faz companhia.

É, nos dois sentidos da palavra, uma visão parcial, importando tanto o que mostra como o que esconde. Já se viu no exemplo acima como era fundamental não dizer “Wagner”, e o mesmo acontece à maioria dos apelidos célebres: uns têm só nome próprio (Monsieur Jean, Monsieur Maurice), outros são perifrasticamente referidos (“o espanhol pequenito e entroncado”, “o rapaz do peito sem pêlos”) e mesmo as excepções (Breton e Beckett) têm antes um “Monsieur” que as tira da capa das obras completas e as põe a comer sopa. Só perto do final é que surgem alguns nomes completos, mas são de mecenas – famosos, mas não tanto como os artistas que apoiaram. Quanto à parcialidade que expressa opiniões e preconceitos, esta fala é surpreendentemente ecuménica e sem hierarquia. Não que não haja uma ideia antiga da arte como deve ser, em vez destas “coisas assim meio rabiscadas / […] Só três tracitos, nem sombras, nem curvas, nem relevo, nem drapeados dos lençóis”. Ou alguma exasperação perante as perversões sexuais dos convidados de Hyères (“cama ‑cama, nada”). Desvios da arte e do sexo, no fim de contas, equivalem ‑se: “Assobiavam, assobiavam, o outro desenhava, vinham ‑se com isso, / eram artistas”. E são acolhidos com a mesma bonomia: nem especialmente a favor nem contra, ao lado.

Na terceira parte da peça, no entanto, a que narra o acontecimento central, o jantar entre Buñuel e o seu mecenas Charles de Noailles cinquenta anos depois de L’Âge d’Or, a voz que acompanha passa a adversária, contraria ou corrige a versão dos factos tal como surge em O Meu Último Suspiro. Mas mesmo aqui não assistimos a uma substituição: as

duas versões coexistem na página ou alternam ‑se no espectáculo, justapõem ‑se, são contíguas. Este monólogo afinal é um diálogo. E se a sua “inocência” nos faz desconfiar das certezas que traz, não deixa ao mesmo tempo de pôr em causa a autoridade do discurso autobiográfico de que se alimenta. JSM serve ‑se do livro de Buñuel como este da fortuna dos Noailles: de forma produtiva.

Também o espectáculo precisa deste balanço, de uma voz que se faz duas vozes. A criada fala sentada a uma mesa à direita (posição lateral, deixando vazio o centro…); à esquerda, num plano superior, está o outro elemento do cenário, um lustre. Não o da casa dos Noailles, o das 203 lâmpadas fundidas, mas outro, mais modesto, que funciona – e fala. Entre as partes da peça, nos silêncios da criada que fica no escuro, acende ‑se e diz com a voz de JSM os títulos (transformados) dos capítulos da Fala: voz ‑off como no cinema, o mesmo artifício que era usado na produção dos Artistas Unidos de Esta Noite Improvisa ‑se para colocar a vertigem daquele teatro‑‑no ‑teatro num passado onde ainda era possível. A fala do lustre enquadra a da criada, situa ‑a, e cobre ‑a com o véu da memória.

Por mais vívido que seja este discurso, valsa musette que avança e recua, repete e volteia (os refrãos: “Ay caray” e “sublime, delicioso”), é quase sempre do passado que se fala, um tempo áureo por mais que a criada não lamente a passagem do tempo (e não participou ela na rodagem precisamente de L’Âge d’Or?). As duas primeiras partes da peça, que pintam os anos loucos em que a casa se enchia de gente, antecedem a chegada de Buñuel para o derradeiro jantar, mas a terceira, que se chama “O jantar do artista D. Luis Buñuel com o seu antigo mecenas e amigo o Conde de Noailles”, e que deveria passar ‑se durante, decorre, já o vimos, também ela depois, já publicada a autobiografia. O próprio título longo – Fala da criada dos Noailles que no fim de contas vamos descobrir chamar ‑se também Séverine numa noite do Inverno de 1975 em Hyères – parece pícaro, mas recupera uma forma que já tinha surgido noutros textos de JSM onde o lugar de onde se falava era normalmente depois da morte. No Prometeu havia, por exemplo, a “fala do republicano baleado na guerra civil de espanha tal como foi captado na fotografia de robert capa”, ou “A fala de uma mulher às portas da Europa”, africana morta numa praia de Cádiz. Voz dos que não têm voz, sim, mas de além ‑túmulo. O modelo é talvez a “Fala de um

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homem afogado ao largo da Senhora da Guia no dia 31 de Agosto de 1971” de Ruy Belo. É verdade que na Criada, ao contrário dos textos anteriores, se troca o modo elegíaco pelo paródico. Mas se a voz é cheia de vida (aquela que lhe insufla a actriz Elsa Galvão), serve para animar fantasmas. “Vamos descobrir”, diz ‑se no título. Mas quando esse futuro chega já tínhamos descoberto…

Século Passado, poderia então chamar ‑se, como a recolha de textos de JSM que a Cotovia publicou em 2007. Num deles fala ‑se de uma fotografia do salão de Gertrude Stein (também convocada para a Fala da criada, mas “está na américa de automóvel, nunca veio”): parece “apartamento antiquado com salamandra e pouca electricidade, em que algum coleccionador amontoou umas quantas obras de arte a condizer” (p. 144), mas está cheio de Picassos e outras obras moderníssimas que só conhecemos do ambiente esterilizado dos museus. O novo no meio do velho, sim, mas também onde foi vida, com o “fumo ininterrupto dos charutos por perto”. Mesmo no passado, JSM fala pela voz da criada da arte a fazer ‑se, e a desaparecer dos lugares que eram os seus. As paredes não são as do Prado ou de Orsay, são as da mansão de Hyères que se esvaziam: “Aquela pintura onde se via a pila do senhor conde” porque “o artista quis elogiar o senhor conde” está agora “num museu da américa”. Foi para longe o que estava mesmo ali ao lado. E se os quadros e as tapeçarias que revestiam as paredes se vão embora não é a própria casa que se extingue, como as 203 lâmpadas? O anfitrião acolhe os artistas, mas a casa do mecenas já era feita de arte, que o abriga a ele.

Texto feito de outros textos, a Fala da criada faz ‑se também de filmes: ao pôr em cena este jantar de dois velhos amigos, quase ‑fantasmas à luz de velas, JSM está a fazer o mesmo que Manoel de Oliveira em Belle Toujours, reunindo Husson e Séverine (vistos pela última vez na Belle de Jour de Buñuel). Em Oliveira, Bulle Ogier diz várias vezes a Michel Piccoli que já não é a mesma pessoa (e não é mesmo, porque antes Séverine era interpretada por Catherine Deneuve); e também na Fala da criada Buñuel parece outro, já não reconhece as botinas que o teriam inspirado a fazer o Journal d’une femme de chambre (“Se calhar, curou ‑se”). As perversões foram ‑se, o masoquismo de uma, o fetichismo de outro. Agora só resta o convento, surdez e pescada cozida? À Séverine de Oliveira ainda a anima um fogo antigo, quando sai porta

fora; será esta centelha de vida aquilo que fez JSM dar o mesmo nome à sua criada? (Identidade na oposição: a burguesa que vive na angústia de não saber o que saberia o marido na cadeira de rodas e “também Séverine”, aquela que não esquece as pernas do amante Gaston…)

No final, a cortina ao fundo abre para os fantasmas virem ao nosso encontro, e o tempo abre também, vertiginoso, e recua ainda mais, para outros séculos passados: tableau vivant (com citação de Manet e tudo), como se costumava dizer, mas vivo e morto ao mesmo tempo, um instante congelado de um tempo que passou. É essa abertura para um passado anterior que torna possível o apêndice, a “Cantiga da Harmonia Conjugal”, em pleno século XVIII. Na cantiga (paródia sem para?) encomenda ‑se um quadro a Hogarth para corrigir um bêbado – em vão. As últimas palavras são “A arte não serve para nada. / Só para gastar dinheiro”. Mas antes voltou a escancarar ‑se o tempo, para o futuro de quem fala, nosso passado, até chegar à Nora de Ibsen que bate com a porta (como a Séverine de Oliveira) para dar ao mundo o divórcio. Arte que serviu? Ou servimo ‑nos nós à sua mesa, como os artistas à dos mecenas que já não há? O melhor é reivindicar a inconsequência nestes tempos de pescada cozida. •

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Os Noailles

Charles de Noailles nasceu em 1891. A sua mulher Marie ‑Laure

de Noailles (cuja família ainda descendia do Marquês de Sade)

nasceu em 1902. Casaram em 1923. Antes do casamento já

eram amigos de Jean Cocteau e, em 1923, Charles de Noailles

encomendou um retrato da mulher a Picasso. Nesse mesmo

ano, contrataram o arquitecto Robert Mallet ‑Stevens para lhes

construir uma casa de Verão nas colinas por cima da cidade de

Hyères. As obras demoraram três anos e acabaram por incluir

um jardim cubista desenhado por Gabriel Guevrekian. Apesar

dos rumores de que Charles de Noailles preferia sexualmente

homens, o casal teve duas filhas. Entre 1920 e 1930, os Noailles

foram importantes mecenas da arte moderna, especialmente do

surrealismo. Apoiaram projectos de Man Ray, Salvador Dalí, Luis

Buñuel e encomendaram obras a Balthus, Giacometti, Brancusi,

Miró e Dora Maar. Financiaram os filmes Les Mystères du Château

de Dé de Man Ray, Aubade de Poulenc, L’Âge d’Or de Buñuel e

Le Sang d’un Poète de Cocteau. Em 1940, a propriedade dos

Noailles foi ocupada pelo exército italiano e transformada em

hospital. A casa continuou a ser a residência de Verão de Marie‑

‑Laure até 1970. Charles de Noailles morreu em 1981. A casa é

agora um centro de artes. •

L’Âge d’Or

Filme realizado por Luis Buñuel em 1930, escrito por este em

colaboração com Salvador Dalí. Custou um milhão de francos

e foi Charles de Noailles que o encomendou em 1929 para o

aniversário da mulher. Quando se estreou, no Studio 28 em

Paris, recebeu uma chuva de protestos. Para conseguir a

autorização da censura, Buñuel teve de o apresentar como

sendo o sonho de uma senhora. A 3 de Dezembro de 1930, um

grupo de membros da Liga de Patriotas atirou tinta para o ecrã,

atacou o público e destruiu obras de Dalí, Miró, Man Ray, Yves

Tanguy, entre outros, que estavam a ser exibidas no foyer. A 10

de Dezembro, o Prefeito da Polícia de Paris conseguiu proibir

as projecções do filme. Um jornal espanhol condenou o filme

por ser “a maior corrupção repulsiva da nossa era […], o novo

veneno que o judaísmo, a maçonaria, o fanático sectarismo

revolucionário queriam para corromper o povo”. A família

Noailles retirou o filme de circulação durante quase 50 anos. •

Elsa Galvão

Começou a trabalhar em 1980 no Teatro Emarginato, tendo

iniciado, a partir de 1988 (com Maria Não Me Mates que Sou Tua

Mãe), uma colaboração regular com Fernando Gomes (Como é

Diferente o Amor em Portugal, Klassikus Kabaret, Amor Também

de Perdição, Goodbye Século XX, Até as Coristas Falam, Uma Noite

no Paraíso, O Gato das Notas, Os Três Mosqueteiros, A Vida Trágica

de Carlota, Drakula Com, O Sangue, Vou Dar de Beber à Dor,

O Corcunda de Notre Dame, A Ilha do Tesouro, Viva o Casamento,

Divina Loucura). Trabalhou também com João Mota (El Grande

de Coca ‑Cola; Guerras do Alecrim e Manjerona, de António José

da Silva; A Pulga Atrás da Orelha, de Feydeau; A Senhora Klein,

de Nicholas Wright), Adriano Luz (Um Certo Plume, a partir

de Michaux), Fernanda Lapa (Top Girls, de Caryl Churchill;

As Bacantes, de Eurípides), Graça Correia (Eleanor Marx; Câmara

Ardente, de Harold Pinter; Queima Isto, de Lanford Wilson),

Teresa Sobral (Elefantes no Jardim, de Virgílio Almeida),

Diogo Infante (Um Vestido para Cinco Mulheres, de Alan Ball),

João Lagarto (Por Favor Deixe Mensagem, de Michael Frayn).

É presença regular na televisão em séries (Médico de Família,

Super Pai, Jornalistas, Inspector Max, etc.) e novelas (Ganância,

Olhos de Água, Amanhecer, Queridas Feras, entre outras). No

cinema, trabalhou com Luís Filipe Rocha e Jorge António.

Com os Artistas Unidos, participou em No Papel da Vítima, dos

irmãos Presniakov; Conferência de Imprensa e Outras Aldrabices

– espectáculo de homenagem a Harold Pinter; Os Animais

Domésticos, de Letizia Russo; Amador, de Gerardjan Rijnders;

Hamelin, de Juan Mayorga; Mecenas, Mecenas; Noruega ‑Lisboa‑

‑Noruega; O Peso das Razões, de Nuno Júdice. •

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F ICHA TéCNICA TNSJ

coordenação de produção

Maria João Teixeira

assistência de produção

Eunice Basto

direcção de palco (adjunto)

Emanuel Pina

direcção de cena

Cátia Esteves

maquinaria de cena

António Quaresma

Joel Santos

luz

João Coelho de Almeida

António Pedra

José Rodrigues

som

João Oliveira

electricistas de cena

Júlio Cunha

Paulo Rodrigues

Artistas Unidos

Rua Campo de Ourique, 120

1250‑062 Lisboa

T | F 21 387 60 78

www.artistasunidos.pt

[email protected]

Teatro Nacional São João

Praça da Batalha

4000 ‑102 Porto

T 22 340 19 00 | F 22 208 83 03

Teatro Carlos Alberto

Rua das Oliveiras, 43

4050 ‑449 Porto

T 22 340 19 00 | F 22 339 50 69

Mosteiro de São Bento da Vitória

Rua de São Bento da Vitória

4050 ‑543 Porto

T 22 340 19 00 | F 22 339 30 39

www.tnsj.pt

[email protected]

edição

Departamento de Edições do TNSJ

coordenação

João Luís Pereira

documentação

Paula Braga

design gráfico

João Faria, João Guedes

fotografia

Jorge Gonçalves

impressão

Empresa Diário do Porto, Lda.

Não é permitido filmar, gravar ou fotografar

durante o espectáculo. O uso de telemóveis,

pagers ou relógios com sinal sonoro é

incómodo, tanto para os intérpretes como

para os espectadores.

Apoios Artistas Unidos

Agradecimentos Artistas Unidos

Teatro Nacional de São Carlos

Teatro Nacional D. Maria II

Teatro Nacional São João

Festival de Almada

Culturgest

António Durães

Apoios TNSJ

Agradecimentos TNSJ

Polícia de Segurança Pública

Parceiro Media

Apoios à Divulgação

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