Falácias e mitos do desenvolvimento social; 2002

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Bernardo Kliksberg FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL Tradução: Sandra Trabucco Valenzuela

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Bernardo Kliksberg

FALÁCIAS E MITOS DODESENVOLVIMENTO SOCIAL

Tradução:Sandra Trabucco Valenzuela

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FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

Bernardo Kliksberg

Capa: Edson Fogaça

Preparação de originais: Carmen Tereza da Costa

Revisão: Maria de Lourdes de Almeida

Composição: Dany Editora Ltda.

Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

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Impresso no Brasil — novembro de 2001

ISBN: 85-249-0823-8

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SUMÁRIOSUMÁRIO

Prólogo de Jorge Werthein (Unesco) .................................................. 7

Introdução ......................................................................................... 9

CAPÍTULO 1Dez falácias sobre os problemas sociais da América Latina ........... 13

CAPÍTULO 2Confrontando as realidades da América Latina: pobreza,desigualdade e deterioração da família............................................ 47

CAPÍTULO 3Como reformar o Estado para enfrentar os desafios sociais doséculo XXI? ....................................................................................... 69

CAPÍTULO 4Capital social e cultura. Chaves esquecidas do desenvolvimento . 105

CAPÍTULO 5Ética e economia. A relação esquecida ............................................ 149

CAPÍTULO 6O crescimento da criminalidade na América Latina: um temaurgente ............................................................................................... 157

Bibliografia ........................................................................................ 167

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PRÓLOGOPRÓLOGO

Este é o quarto livro de Bernardo Kliksberg que a UNESCO editano Brasil, o que permite conferir-lhe crescente credibilidade e respei-to. De fato, seus estudos, reflexões e propostas sobre políticas de de-senvolvimento social em geral e, de forma mais específica, sobre a situa-ção social da América Latina têm despertado o mais vivo interesse dopúblico e dos especialistas e estudiosos na área de políticas públicas.

Esse êxito crescente se deve em grande parte à visão prospectivade suas idéias e à solidez de suas teses que se apóiam em bases teóricasde qualidade inquestionável, em farta documentação e evidências re-colhidas de inúmeras experiências em curso. Não apenas isso. Os estu-dos de Kliksberg têm a vantagem de indicar caminhos e explorar possi-bilidades e alternativas com vistas à redução dos índices de pobreza naAmérica Latina.

Neste livro estão inseridos seis estudos recentes de BernardoKliksberg – Dez Falácias sobre os Problemas Sociais da América Latina;Confrontando as Realidades da América Latina: pobreza, desigualdadee deterioração da família; Crescimento da Criminalidade na AméricaLatina; Capital Social e Cultura; Ética e Economia e Como Reformar oEstado para Enfrentar os Desafios Sociais do Século XXI. Em todos eles,sobressai o ethos da redução da pobreza que constitui um dos princi-pais eixos norteadores da obra de Kliksberg. Daí a sua insistência emdesfazer mitos e equívocos e de alertar sobre as conseqüências de abor-dagens ortodoxas do pensamento econômico.

No primeiro estudo, sobre as falácias do desenvolvimento, Kliks-berg, com rara clareza, desfaz mitos e equívocos da ortodoxia econômi-ca, contrapondo argumentos e indicando alternativas; no segundo, apon-

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ta as conseqüências do modelo vigente no processo de deterioração dafamília; em seguida, chama a atenção para o crescimento da criminali-dade e da violência, mostrando a coincidência entre a evolução dosíndices de violência e a deterioração dos dados sociais básicos, em quepese outros fatores que devem também ser considerados; no quartoestudo, discute a importância do capital social e cultural das comuni-dades como condição imprescindível para o sucesso de projetos dedesenvolvimento; no artigo seguinte, examina as relações entre ética eeconomia, alertando como o problema da ética e da moral tem sidonegligenciado no planejamento das políticas econômicas da AméricaLatina; e no último, procura repensar o papel do Estado, de forma aprepará-lo para enfrentar os desafios mais urgentes do desenvolvimen-to social e econômico.

São seis estudos indispensáveis para a redefinição das políticassociais públicas na América Latina. Se esta redefinição não se operarnos próximos anos, seguramente a incerteza em relação ao futuro seampliará e colocará em risco aspirações e ideais de grande legitimida-de popular.

Como diz Kliksberg no início do artigo sobre as falácias do desen-volvimento, “é hora de ouvir as pessoas”. Não se pode mais pensar empolíticas públicas sem considerar a dimensão subjetiva, sem a cons-ciência de que todos devem e podem participar, pois a essência de umapolítica de desenvolvimento é a melhoria da qualidade de vida.

Jorge WertheinDiretor da UNESCO no Brasil

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INTRODUÇÃO 9

INTRODUÇÃOINTRODUÇÃO

As cifras obrigam a refletir. Aproximadamente um de cada dois la-tino-americanos está abaixo da linha de pobreza. A situação das crian-ças é ainda pior: seis de cada dez são pobres. Os jovens se encontramnuma situação difícil. A taxa de desemprego juvenil duplica a elevadataxa de desemprego geral, superando em muitos países os 20%. Apenasum de cada três jovens cursa o ensino médio (contra quatro de cadacinco no sudeste asiático). Formou-se um vastíssimo contingente de jo-vens que tiveram de abandonar seus estudos mas que também não têmlugar no mercado de trabalho. Os problemas de saúde são delicados. Umterço da população da região carece de água potável, condição preventi-va básica. Também há sérios déficits quanto aos sistemas de esgoto. Cer-ca de 18% dos partos são realizados sem assistência médica de qualquertipo. A taxa de mortalidade materna é cinco vezes a dos países desenvol-vidos. Sob o embate da pobreza, as famílias entram em crise e muitasvezes se desarticulam. A criminalidade cresce fortemente. É quase seisvezes o que se considera internacionalmente uma criminalidade mo-derada. Surge intensamente ligada a fatores como o aumento do de-semprego juvenil, à baixa educação, e à deterioração da família. A tudoisso soma-se a expansão rápida de um novo tipo de pobreza, amplossetores das classes médias sofreram uma queda socioeconômica pro-nunciada e constituem os chamados “novos pobres”. Assim, entre ou-tros casos, na Argentina, que contava com uma grande classe média,estima-se que sete milhões de pessoas dos estratos médios se transfor-maram em pobres na década de 90 (por 38 milhões de habitantes), eprocessos similares se observam em muitos outros países.

Estes dados significam sofrimento humano em grandes propor-ções. O documento base da Reunião de Bispos Católicos de todo o Con-

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tinente (XXVIII Assembléia do CELAM, maio de 2001) ressalta “a cres-cente pauperização que está se abatendo sobre a maioria da populaçãoem todos os povos em que nós vivemos”. Destaca entre suas causas “osefeitos da globalização econômica descontrolada e o crescenteendividamento externo e interno, com cargas que em vários países su-peram atualmente um terço de seu Produto Interno Bruto.

O que está acontecendo? Por que não se cumpriram os prognósti-cos feitos no início dos anos 80, que afirmavam que, seguindo certaspolíticas, os resultados econômicos e sociais estavam assegurados? Oque fracassou? Por que um Continente com recursos naturais privile-giados, com fontes de energia baratas e acessíveis em grande quantida-de, com grandes capacidades de produção agropecuária, com uma óti-ma localização geoeconômica, e que tinha um bom desenvolvimentoeducativo há décadas atrás, tem indicadores sociais tão pobres? Porque, ainda, uma dimensão que todas as análises coincidem em assina-lar como grande entrave para o progresso da região, seus altos níveis dedesigualdade, em vez de melhorar, piorou, constituindo-se a AméricaLatina na zona mais polarizada do planeta?

O pensamento convencional parece ter esgotado sua possibilida-de de dar respostas a interrogações como as indicadas. Faz-se necessá-rio recuperar o que foi uma das maiores tradições deste Continente, acapacidade de pensar de forma criativa e por conta própria, aprenden-do da realidade e buscando caminhos novos.

Esta obra tenta estimular e contribuir para uma discussão dessetipo. Se sairmos dos âmbitos de análise estáticos, que estão gerandopermanentemente políticas que “são mais do mesmo”, e que, por ex-tensão, não resolvem os problemas, é possível que surjam vias renova-doras.

O livro apresentado percorre cinco momentos de análise diferen-ciados. No primeiro, colocam-se em foco dez falácias que hoje impe-dem um pensamento independente criativo em matéria de desenvolvi-mento na América Latina e têm sérias conseqüências sobre as políticaspúblicas. No segundo, examina-se um plano da difícil situação da po-pulação: os impactos que a pobreza está tendo sobre a família. No ter-ceiro e no quarto, examinam-se as possibilidades de respostas inova-doras nos dois campos: a reforma do Estado e das políticas sociais, bemcomo o papel que pode desempenhar a sociedade civil, se mobilizar ogrande capital social latente na região, e se potencializar sua cultura.Finalmente, o último momento está dedicado à necessidade de tornar a

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INTRODUÇÃO 11

refletir sobre os vínculos entre ética e economia, que foram marginali-zados nas últimas décadas.

Trata-se, através destas abordagens, de mostrar a necessidade deincorporar novas dimensões ao debate sobre o desenvolvimento paramelhorar sua qualidade e poder fazer emergir políticas muito mais efe-tivas em termos da meta final de sociedades democráticas: a dignidadee desenvolvimento de seus povos.

Os erros cometidos em termos de âmbitos conceituais desmenti-dos pela realidade, políticas baseadas neles que demonstraram ser in-competentes para o bem-estar humano e para o crescimento econômi-co sustentado, e um dogmatismo agudo que impediu o arrazoamentoautocrítico tiveram custos muito fortes para a população. É hora derepensar coletivamente o desenvolvimento, de forma aberta, sem falá-cias, mitos nem tabus. Isso é uma exigência que dia a dia, nas ruas, dosmúltiplos rostos da dura pobreza latino-americana: as crianças de rua,as crianças que trabalham, as mães humildes que ficaram sozinhas àfrente do lar, os jovens sem oportunidades de trabalho, os indígenas epopulações afro-americanas discriminadas, os deficientes semi-aban-donados, os idosos desprotegidos. Ouçamos seu clamor e vamos ten-tar, todos juntos, o quanto antes, devolver-lhes a esperança.

Bernardo Kliksberg

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Capítulo 1

DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS SOCIAISDA AMÉRICA LATINA

Capítulo 1

DEZ FALÁCIAS SOBRE OS PROBLEMAS SOCIAISDA AMÉRICA LATINA

Hora de ouvir as pessoas

O que os latino-americanos pensam sobre o que está acontecendona região? Ao serem questionados sobre algo tão concreto como se elesacreditavam estar vivendo melhor ou pior que seus pais, apenas 17%afirmaram que viviam melhor, pois a grande maioria sentia que suasituação havia piorado (Latín Barómetro, 1999). Esta resposta eviden-cia um profundo sentimento de descontentamento. A maioria tem muitoclaro no continente quais são as causas de sua inconformidade. Encon-tram-se bem conscientes delas. E distinguem perfeitamente causas apa-rentes de outras mais profundas. Ao serem interrogados sobre se crêemque a democracia é preferível a qualquer outro sistema de governo,demonstram um apoio maciço ao sistema democrático e a seus ideais.Dois terços preferem-no, e apenas 20% continuam exibindo inclina-ções ao autoritarismo. No entanto, quando se aprofunda, expressamque estão fortemente insatisfeitos com o modo como a democracia estáfuncionando em seus países. Somente 35% estão satisfeitos com seufuncionamento. Na União Européia, apenas para efeito de compara-ção, a cifra é de 47%, na Dinamarca é de 84%. Os latino-americanosescolheram a democracia como forma de vida e a respaldam de formaconsistente, porém “democraticamente” estão bastante descontentescom seu desempenho concreto.

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Entre as causas de insatisfação, algumas são políticas, mas as eco-nômico-sociais têm um peso decisivo. A grande maioria considera queos problemas vinculados com a pobreza vêm piorando. Referem-se acarências em oportunidades de trabalho, acesso à saúde, à educação deboa qualidade, incerteza trabalhista, baixos salários. Acrescentam a issotemas como o agravamento da corrupção, a delinqüência e o tráfico dedrogas. Além disso, revelam que sentem ser esta uma região onde hágrandes desigualdades e se ressentem agudamente dessa situação.

Os dois únicos países cujas médias de satisfação com o desempe-nho do sistema democrático revelam-se maiores que as da União Euro-péia são Costa Rica e Uruguai, onde mais de 60% da população mostra-se satisfeita com seu funcionamento. Ambos os países se caracterizampor possuir os mais baixos níveis de desigualdade de toda a região epor terem desenvolvido alguns dos mais avançados sistemas de prote-ção social da mesma.

As pesquisas refletem que a população está clamando por mudan-ças, através da democracia e não por outro meio, que permitam enfren-tar os agudos problemas sociais.

Os avanços nesse caminho parecem encontrar obstáculos formi-dáveis na região, a julgar-se pelos limitados resultados alcançados.

Alguns têm a ver com a existência de fortes interesses criados e deprivilégios que se beneficiam da manutenção da situação vigente. Ou-tros, com dificuldades derivadas da inserção econômica da região nanova economia internacional. Outros, ainda, com o funcionamentodefeituoso de instituições e organizações básicas. A estes e aos demaisque podem ser acrescentados, soma-se a circulação profusa de certasfalácias sobre os problemas sociais que levam à adoção de políticaserrôneas e a empreender caminhos que afastam a saída do longo túnelao qual se submete boa parte da população. Não são o único fator deatraso, mas claramente seu peso muito forte em setores com muita in-fluência na tomada de decisões obstrui seriamente a busca de alterna-tivas renovadoras e a passagem para uma nova geração de políticaseconômicas e sociais.

O objetivo deste trabalho é chamar a atenção sobre estas falácias,para estimular a discussão ampla e aberta sobre as mesmas, visando asua superação.

Apresentamos a seguir algumas das principais, ao mesmo tempo queprocedemos à análise de alguns de seus efeitos no desenho de políticas eexaminamos sua consistência. Trata-se, sobretudo, de buscar colocá-lasem foco e convidar à uma reflexão coletiva sobre elas.

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1. Primeira falácia: a negação ou a minimização da pobreza

Existe uma intensa discussão metodológica sobre como medir apobreza na região. Entretanto, apesar dos resultados diversos que sur-gem de diferentes medições, os estudos tendem a coincidir em dois as-pectos centrais: a) as cifras de população localizada sob a linha de po-breza são muito elevadas; b) há uma tendência consistente ao cresci-mento das referidas cifras nos últimos vinte anos. As cifras se deteriora-ram severamente nos anos 1980, melhoraram discretamente em partedos ano 1990, porém nos anos finais da década aumentaram significa-tivamente. Em seu conjunto, a pobreza é maior no ano 2000 do que a quea região apresentava em 1980, tanto em termos de número de pobres,como no percentual que representam os pobres sobre a população total.

A Cepal estima, em seu Panorama Social de América Latina 2000,que a população em situação de pobreza cresceu, de 1997 até início de2000, de 204 milhões a não menos de 220 milhões. Analisando a estru-tura da força de trabalho em oito países da região que compreendem75% de sua população total (Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, ElSalvador, México, Panamá e Venezuela), a Cepal constata que 75% dapopulação que possui ocupação “recebe uma renda média que na maio-ria dos países não é suficiente por si só para tirar da pobreza uma famí-lia de tamanho e composição típica”.

A evolução da pobreza na América Latina foi a seguinte, confor-me cita o BID (1998):

Fonte: BID, Informe de progresso econômico e social, 1998.Nota: Linha de pobreza de 2 (ppp ajustado) em dólares de 1985 per capita.

Gráfico 1Evolução da pobreza na América Latina 1970-1995

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Como se pode observar, a partir dos anos 1980 se produz umafirme elevação do número de pessoas que ganham menos de dois dóla-res diários. Verrier (1999) assinala que em toda a América havia, entre1970 e 1980, 50 milhões de pobres e indigentes, mas que em 1998 jáeram 192 milhões. A Comissão Latino-Americana e do Caribe para oDesenvolvimento Social, presidida por Patricio Aylwin (1995), consi-dera que se encontra em situação de pobreza “quase a metade dos habi-tantes da América Latina e do Caribe”.

Diversas medições nacionais assinalam com as diferenças própriasde cada realidade a extensão e a profundidade da pobreza. Um informedetalhado sobre a América Central (PNUD/União Européia, 1999) indi-ca que são pobres: 65% dos guatemaltecos, 73% dos hondurenhos, 68%dos nicaragüenses e 53% dos salvadorenhos. As cifras relativas à po-pulação indígena são ainda piores. Na Guatemala, estão abaixo da li-nha de pobreza 86% da população indígena frente a 54% dos não-indí-genas. Na Venezuela, estimava-se a pobreza entre 70% e 80% da popu-lação. No Equador, 62,5%. No Brasil, estima-se que 43,5% da popula-ção ganha menos de dois dólares diários e que 40 milhões de pessoasvivem na pobreza absoluta. Ainda em países onde tradicionalmente ascifras de pobreza têm sido baixas, como na Argentina, o Banco Mun-dial estimou que encontra-se na pobreza quase um terço da populaçãoe 45% das crianças. Nas províncias mais pobres como as do nordeste, ataxa é de 48,8%.

Um dos tantos indicadores do grau de “rigidez” da pobreza latino-americana é proporcionado pelas projeções sobre níveis de educação erenda. A Cepal (2000), baseando-se base nelas, afirma que “dez anos deescolaridade parecem constituir o umbral mínimo para que a educaçãopossa cumprir um papel significativo na redução da pobreza; com umnível educativo inferior a dez anos de escolaridade e sem ativos produ-tivos, são muito poucas as probabilidades de superar os níveis inferio-res de renda ocupacional”. A média de escolaridade na região é estima-da em 5,2 anos, virtualmente a metade do mínimo necessário para seter condições de emergir da pobreza.

Diante dessas realidades, a alternativa lógica é partir delas e tratarde encontrar vias inovadoras para enfrentá-las. Entretanto, no discursopúblico latino-americano das duas últimas décadas, reiterou-se a ten-dência de alguns setores a optar por outra via, a negação ou minimizaçãodo problema. A falácia funciona através de diversos canais. Um deles éa relativização da situação. “Pobres há em todos os lugares”, costuma

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afirmar um mandatário de um país latino-americano frente ao cresci-mento das cifras de pobreza em seu país durante sua gestão governa-mental. Em relação ao aspecto econômico-social, o conveniente é sem-pre desagregar os dados e ter uma perspectiva comparada e históricapara saber qual é a situação real. Os países desenvolvidos têm efetiva-mente também percentuais de população situados abaixo da linha depobreza. Porém, há várias diferenças. Por um lado, as cifras diferem demodo bastante acentuado. A população pobre nesses países é normal-mente inferior a 15%. É muito diferente possuir entre um sexto e umsétimo da população em situação de pobreza e ter quase a metade nes-se estado. Não é apenas uma diferença quantitativa, é outra escala queimplica consideráveis diferenças qualitativas. Nos países desenvolvi-dos fala-se de “ilhas de pobreza”, ou de “focos de pobreza”. Em vastasáreas da América Latina é muito difícil refletir a realidade com essalinguagem. A pobreza é extensa, diversificada, e tem atualmente inclu-sive uma forte expressão nas classes médias, em que a deterioração desuas bases econômicas gerou um estrato social em crescimento deno-minado “os novos pobres”.

Não há “focos de pobreza” a erradicar, mas um problema muitomais amplo e generalizado que requer estratégias globais.

Por outro lado, a comparação estrita poderia levar a identificarque a brecha é ainda muito maior. As linhas de pobreza utilizadas nospaíses desenvolvidos são muito mais altas que as empregadas normal-mente na América Latina. Assim, a difundida tendência a medir a po-breza considerando pobres aqueles que ganham menos de dois dólarespor dia é bem questionável. Em todos os países da região, a linha depobreza está muito acima dessa cifra.

Outra passagem usual do discurso negador é a afirmação de “quepobres existiram sempre”, portanto não se entende por que tanta ênfa-se em relação à situação atual. Ali a falácia adquire o tom da histo-ricidade. Um dos arrazoamentos mais utilizados quando se trata derelativizar um problema grave é tirar-lhe a base histórica. A pobrezaexistiu na América Latina desde a sua origem, mas o tema é: quais sãoas tendências presentes? Em que direção apontam, estão diminuindo,estancando ou aumentando? Nos últimos vinte anos parecem haversuficientes evidências para preocupar-se. Os indicadores experimen-taram uma deterioração; com altos e baixos e variações nacional, ascifras cresceram. São muito poucos os casos em que houve reduçõesconsideráveis.

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A falácia de desconhecer ou relativizar a pobreza não é inócua.Tem severas conseqüências em termos de políticas públicas. Se hápobres em todos os lugares, e sempre existiram, por que dar ao tematão alta prioridade? Há que atenuar os impactos, mas não assustar-se.Basta com políticas de contenção de rotina. A política social não é amais importante. É uma carga da qual não é possível desprender-se,mas como se trata de enfrentar um problema que sempre existirá etodos os países o têm, é preciso cuidado com superestimá-lo. O enfoqueconduz a políticas sociais de muito baixo perfil e a uma desierarquizaçãode toda a área social. Em algumas das expressões mais extremas dafalácia, procurou-se na década passada eliminar das agendas de reu-niões importantes a “pobreza”, vendo-a, já em si, como demasiadamentecarregada de conotações.

Além de conduzir a políticas absolutamente incapazes de enfren-tar as realidades de pobreza, a falácia exposta entranha um importanteproblema ético. Não só não oferece soluções aos pobres, o que leva àperduração e acentuação de situações de exclusão humana antiéticas,que vai ainda mais longe, através da minimização e relativização, estáquestionando a própria existência do pobre.

2. Segunda falácia: a falácia da paciência

Com freqüência, o arrazoamento explícito ou implícito que se de-senvolve diante dos problemas sociais por parte de setores influentesgira em torno da necessidade de uma certa “paciência histórica”. Trata-se de etapas que devem suceder-se umas às outras. Haverá uma etapade “apertar os cintos”, mas logo virá a reativação e, posteriormente, elase “derramará” aos desfavorecidos e os retirará da pobreza. O socialdeve esperar, e é preciso entender o processo e ter paciência enquantoas etapas ocorrem. Independentemente do amplo questionamento quehá hoje, sobretudo esta visão do processo de desenvolvimento, quere-mos enfatizar aqui um de seus elementos. A mensagem que está sendoenviada é de fato que a pobreza pode esperar. Realmente pode esperar?A realidade indica que a mensagem tem uma falha de fundo; em mui-tos casos, os danos causados pela espera são simplesmente irreversíveis,depois não haverá conserto possível.

Vejamos: uma boa parte do peso da pobreza recai na América La-tina sobre as crianças e adolescentes. Em 1997, segundo a Cepal (2000),58% das crianças menores de cinco anos da região eram pobres, o mes-

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mo acontecia com 57% das crianças de seis a doze anos, e com 47%dos adolescentes de 13 a 19 anos. Formando os menores de vinte anos,em seu conjunto, 44% da população da região, representavam, por suavez, 54% de todos os pobres. As cifras verificam que efetivamente, comofoi sublinhado pelo Unicef, “na América Latina a maioria dos pobressão crianças e a maioria das crianças são pobres”.

Essa não é uma situação neutra. Como destaca Peter Tonwsed, “apobreza mata”. Cria fatores de risco que reduzem a expectativa de vidae pioram sensivelmente a qualidade de vida. As crianças são os pobresda América Latina, como se viu, e ao mesmo tempo, por natureza, asmais vulneráveis. Sobre essas crianças pobres operam vários fatoresque são geradores, entre outros aspectos, do que se denomina “um altorisco alimentar”, insuficiências no mais elementar a possibilidade deque possam alimentar-se normalmente. Os resultados de déficits destaordem causam danos múltiplos. Estima-se que nos primeiros anos devida se desenvolvem boa parte das capacidades cerebrais. A falta deuma nutrição adequada gera danos de caráter irreversível. Pesquisasdo Unicef (1995) sobre uma amostragem de crianças pobres determi-naram que, aos cinco anos, metade das crianças dessa amostra apre-sentava atrasos no desenvolvimento da linguagem; 30%, atrasos emsua evolução visual e motora, e 40%, dificuldades em seu desenvolvi-mento geral. A desnutrição causa ainda déficits no peso e estatura dascrianças e isso repercutirá acentuadamente em seu desenvolvimento.Entre os fatores geradores de risco alimentar encontram-se: a falta derecursos da família, o caráter monoparental da mesma e a baixa educa-ção das mães.

Existe uma forte correlação estatística entre estes fatores e a des-nutrição infantil. Na América Latina atual, os três fatores têm significa-tiva incidência. Como indicamos, numerosas famílias possuem rendainferior ao imprescindível. Estima-se que cerca de 30% dos lares estãosob a responsabilidade apenas da mãe; em sua grande maioria trata-sede lares humildes e o nível educativo das mães pobres é muito baixo. Apobreza do lar pode significar que muitas mães estarão, por sua vez,desnutridas durante a gravidez. É provável então que o filho tenha ane-mia, déficits de macronutrientes essenciais e peso baixo. Isso podeameaçar sua própria sobrevivência ou atentar contra seu desenvolvi-mento futuro. Se, além disso, a mãe está sozinha à frente da família,terá de lutar duramente para obter renda. Suas possibilidades de dedi-cação à criança nas críticas etapas iniciais serão limitadas. O fator edu-

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cativo influirá ainda em aspectos muito concretos. Assim, as mães combaixa escolaridade terão pouca informação sobre como atuar apropria-damente com respeito ao aleitamento materno, como fazer uma dietaadequada, como cuidar da higiene alimentar, como administrar ali-mentos escassos. Em 1999, em dez de dezesseis países da região, 40% a50% das crianças urbanas em idade pré-escolar faziam parte de larescujas mães não tinham completado o ensino fundamental (primário).Nas zonas rurais, em seis de dez países analisados, o percentual era de65% a 85%; nos quatro restantes, 30% a 40%. Ao verificar apenas ascrianças menores de dois anos de idade, em 1997, de 20% a 50% dascrianças da grande maioria dos países viviam em lares com renda pormorador inferior a 75% do valor da linha de pobreza e cuja mãe nãotinha completado o ensino fundamental (primário).

A ação combinada destes e outros fatores leva ao sombrio panora-ma captado pela Cepal (2000): “No ano 2000 estima-se que aproximada-mente 36% do total de crianças menores de dois anos da América Latinaestão em situação de alto risco alimentar”. Os quadros nacionais sãoalarmantes em diversos países. Na Nicarágua, estimativas do Ministérioda Saúde (1999) indicam que 59% das famílias cobrem menos de 70%das necessidades de ferro requeridas pelo ser humano, 28% das criançascom menos de cinco anos sofrem de anemia devido ao pouco ferro queconsomem, 66 crianças em cada cem apresentam problemas de saúdepor falta de vitamina A. 80% da população nicaragüense consome ape-nas 1700 calorias diárias, quando a dieta normal deveria ser não inferiora 2125 calorias. Na Venezuela, uma criança de sete anos dos estratosaltos pesa em média 24,3 kg e mede 1,219 m. Uma criança da mesmaidade dos setores pobres pesa somente 20 kg e mede 1,148 m. Emboraem países com tanto potencial alimentar, como é o caso da Argentina, asestatísticas informam que na grande Buenos Aires, uma das principaisáreas populacionais, uma em cada cinco criança está desnutrida.

Muitos dos países da região possuem importantes possibilidadesnaturais de produção de alimentos. Contudo, como vimos, um terçodas crianças menores apresenta níveis de deficiência alimentar pro-nunciada. Isso parece difícil de se entender. Influenciam fatores comoos identificados pela Organização Pan-americana da Saúde (OPS) e pelaCepal em pesquisa conjunta (1998): “Observa-se em quase todos ospaíses da região um crescimento de doenças não transmissíveis crôni-cas associadas com alimentação e nutrição. As medidas de ajusteimplementadas pelos países afetaram a disponibilidade nacional de

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alimentos e tiveram repercussões negativas sobre o poder de comprados grupos mais pobres ameaçando a segurança alimentar”.

Assim como a falta de alimentação causa danos não-reparáveisposteriormente, o mesmo ocorre com outras expressões da pobreza, comoos déficits que enfrentam os desfavorecidos na região em dois aspectosbásicos: a água potável e a existência de rede de saneamento e sistemade esgoto. Ambos são elementos decisivos para a saúde. Amplos seto-res da população pobre têm dificuldades muito grandes para obter águapotável ou têm de comprá-la a preços muito elevados. Ainda carecemde instalações sanitárias adequadas, o que significará graves riscos decontaminação através das galerias subterrâneas e de contaminação domeio ambiente em que se localiza a moradia. Segundo os cálculos daOPS, cerca de um terço da população da região carece de água potávele/ou rede de esgoto; 30% das crianças menores de seis anos vivem emmoradias sem acesso à água potável; 40% das moradias não possuemsistemas adequados de coleta de lixo e esgoto. Numa análise por paí-ses, observam-se dados como os que seguem, que descrevem as per-centagens de crianças menores de cinco anos de idade que viviam emresidências sem conexão com sistemas de evacuação de esgoto em 1998(Cepal, 2000): Paraguai, 87%; Bolívia, 66%; Brasil, 59%; Honduras, 47%;El Salvador, 45%; Venezuela, 26%; México, 24%. A ação desses fatoresgera mortalidade infantil e riscos graves de saúde, como os contágios einfecções intestinais. Em onze países, a diarréia é uma das duas princi-pais causas de morte em crianças com menos de um ano.

Novamente trata-se de danos de caráter irreparável. A falácia dapaciência, com respeito à pobreza, nega de fato a análise dairreversibilidade dos danos; leva a políticas em que, sob a idéia de queas coisas se consertam depois, não se dá a prioridade que corresponderiaa questões elementares para a sobrevivência. Novamente, além das ine-ficiências que significam essas políticas em qualquer visão a longo pra-zo de uma sociedade, há uma falta de ética fundamental. Frente à po-breza, deveria aplicar-se uma “ética da urgência”; não é possível espe-rar diante de problemas tão vitais como os descritos. Esta falácia des-conhece o caráter de urgência desta e de outras carências básicas.

3. Terceira falácia: com o crescimento econômico é suficiente

O pensamento econômico ortodoxo de grande difusão na regiãolança a mensagem básica de que todos os esforços devem ser voltados

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para o crescimento. Dirige os olhares aos prognósticos sobre o aumen-to do produto bruto e o produto bruto per capita.

Desperta as expectativas de que tudo está bem se eles cresceremnum bom ritmo. Propõe explicitamente, como se mencionou, que al-cançando as metas importantes de crescimento, todo o restante se re-solve. O mesmo fluirá para baixo, através do famoso efeito “derrame”,e isso solucionará os “restos” que possam existir no campo social.

O século XX ensinou muito duramente mais de uma vez que oúltimo juiz que decidirá se as teorias sobre o desenvolvimento são vá-lidas ou não, não é seu grau de difusão, mas o que conta são os fatos.Eles desmentiram fortemente que a realidade funcione como a ortodo-xia supõe que deveria funcionar. As promessas feitas para a AméricaLatina, no início dos anos 1980, sobre o que ocorreria ao aplicar o mo-delo convencional não foram cumpridas na prática. Descrevendo osprodutos concretos do que se chama a “forma de fazer economia”, quea “América Latina escolheu nos anos recentes”, assinala Ricardo FrenchDavis (2000): “O resultado é uma forte instabilidade do emprego e daprodução, uma maior diferenciação entre ricos e pobres e um cresci-mento médio modesto: apenas 3% neste decênio, e com uma profundadesigualdade”. Efetivamente, os dados indicam que o crescimento foimuito discreto, não se “derramou” automaticamente, a desigualdadeaumentou de modo significativo, a pobreza não se reduziu.

Diante deste juízo da realidade, não caberia rever o arrazoamentousual? Joseph Stiglitz (1998) sugere que chegou a hora de fazê-lo. Refe-re-se à visão geral, de cujos componentes essenciais um é a idéia deque o crescimento basta. Argumenta: “Muitos países aplicaram as re-comendações intelectualmente claras, embora não raro difíceis no as-pecto político, do Consenso de Washington. Os resultados não têm sido,porém, totalmente satisfatórios. Isto apresenta várias explicações. Seráporque alguns não seguiram corretamente as receitas econômicas? Tal-vez. Entretanto, eu argumentaria que a experiência latino-americanasugere que deveríamos reexaminar, refazer e ampliar os conhecimen-tos acerca da economia de desenvolvimento que são tomados comoverdade enquanto planejamos a próxima série de reformas”.

A experiência da América Latina e de outras regiões do globo in-dica que o crescimento econômico é imprescindível; é muito impor-tante tratar de aumentar o produto total de uma sociedade. São funda-mentais ainda o desenvolvimento das capacidades tecnológicas, dacompetitividade e um clima de estabilidade econômica. No entanto,

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ensina também que é simplificar extremamente o tema do desenvolvi-mento e de suas dimensões sociais aventurar que o crescimento econô-mico sozinho produzirá os resultados necessários. O informe do BancoMundial sobre a pobreza no ano 2000, que expressa a política oficialdessa instituição, propõe a necessidade de passar de uma vez a umavisão mais ampla da problemática do desenvolvimento. Comentandoseu enfoque diferencial, aponta um influente meio, o jornal Washing-ton Post (2000): “A publicação do Informe Mundial de Desenvolvimen-to do Banco Mundial representa um significativo dissenso do consensosustentado entre economistas de que o melhor meio para aliviar a po-breza é impulsionar o crescimento econômico e que a única via parafazê-lo é através de mercados livres e abertos. O Informe destaca quemesmo uma década após as economias planejadas da Europa Orientalterem sido desmanteladas e o comércio e investimento global teremalcançado níveis recordes, 24% da população mundial recebe rendainferior a um dólar diário. A conclusão ineludível, de acordo com oseconomistas e especialistas em desenvolvimento do Banco, é que en-quanto o crescimento econômico possa ser um ingrediente necessáriopara reduzir a pobreza, não poderá fazê-lo sozinho”.

Outro informe posterior do Banco Mundial, A qualidade do cresci-mento (2000), produzido por outras equipes do mesmo, propõe tam-bém vigorosamente o mesmo tipo de argumento básico. Afirma VinodThomas, diretor do Instituto do Banco (The Economist, 2000): “A expe-riência dos países em desenvolvimento e também dos industrializadosmostra que não é meramente mais crescimento, e sim um melhor cres-cimento o que determina em que medida aumenta o bem-estar, e obem-estar de quem. Países com renda e crescimento similares obtive-ram nas últimas três décadas conquistas muito diferentes em educa-ção, saúde e proteção do meio ambiente”. Sugere-se que é decisiva aestrutura do crescimento, suas prioridades, vias de desenvolvimento,setores beneficiados.

A falácia de que o crescimento basta transmite a visão de que seestaria avançando se o produto bruto per capita subir, e que os olharesdevem estar voltados para o mesmo. A ONU desenvolveu na última dé-cada um corpo conceitual amplamente difundido no âmbito internacio-nal, “o paradigma do desenvolvimento humano”, que ataca de modoradical este arrazoamento. O crescimento só não basta, ele é necessáriomas não suficiente; assim, caberia iniciar uma discussão maior. Pergun-tar-nos quando realmente uma sociedade avança e quando está retroce-dendo. Os parâmetros definitivos, é a sugestão, devemos encontrá-los

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no que está acontecendo com as pessoas. Aumenta ou diminui a ex-pectativa de vida? Melhora ou piora a qualidade de vida? A ONU apre-sentou um índice de desenvolvimento humano que veio sendo aperfei-çoado ano após ano, o qual inclui indicadores que refletem a situaçãode todos os países do mundo em áreas tais como: expectativa de vida,população com acesso a serviços de saúde, população com acesso aágua potável, população com acesso a serviços de coleta de esgoto edetritos, escolaridade, mortalidade infantil, produto bruto per capitaponderado pela distribuição de renda. Os ordenamentos dos países domundo segundo suas conquistas em desenvolvimento humano, quevêm sendo publicados anualmente pela ONU, através do PNUD, reve-lam um quadro que em diversos aspectos não coincide com o que de-corre dos simples recordes de crescimento econômico.

As conclusões resultantes enfatizam que quanto maior o cresci-mento e mais recursos existirem, ampliam-se as possibilidades para asociedade, mas a vida das pessoas, que é a finalidade última, não podeser medida por algo que é um meio, deve ser medida por índices quereflitam o que ocorre em âmbitos básicos da vida cotidiana.

A falácia de que o crescimento basta está em definitivo transfor-mando um meio fundamental, mas apenas um meio, em um fim últi-mo. É preciso desmistificá-la e retomar um debate a fundo sobre o queestá ocorrendo com o cumprimento dos fins. Amartya Sen ilustra oslimites desta falácia, analisando várias situações reais. Realiza a com-paração que se reflete no gráfico a seguir.

Como se observa, os três primeiros países do gráfico — o Estadode Kerala, na Índia (com 33 milhões de habitantes), China e Sri Lanka— tinham um produto bruto per capita muito reduzido. Os outros três— África do Sul, Brasil e Gabão — tinham um produto bruto cinco aquinze vezes maior que o dos anteriores. Contudo, a população viviamais anos nos três países pobres: 71, 69 e 72 anos, contra 63, 66 e 54anos.

O crescimento econômico sozinho não era o fator determinantenum dos indicadores mais fundamentais para verificar se uma socie-dade avança, no mais básico: a expectativa de vida. Que outras variá-veis intervinham neste caso? Sen identifica aspectos como as políticaspúblicas, que garantiam nos três primeiros países um acesso mais am-plo a insumos fundamentais para a saúde, como a água potável, asinstalações sanitárias, a eletricidade e a assistência médica. Ainda asmelhores possibilidades em matéria de educação, por sua vez, inci-

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dente na saúde. Junto a isso, um aspecto central era a melhor distribui-ção da renda nas três primeiras sociedades. Tudo isso levou a que ospaíses supostamente mais pobres em termos de renda fossem mais bem-sucedidos na saúde e na expectativa de vida. Sen afirma: “Eles registra-ram uma redução muito rápida das taxas de mortalidade e uma melho-ra das condições de vida, sem um crescimento econômico notável”.

4. Quarta falácia: a desigualdade é um fato da natureza e não um obstáculopara o desenvolvimento

O pensamento econômico convencional tendeu a eludir uma dis-cussão frontal a respeito da desigualdade e seus efeitos sobre a econo-mia. Apoiou-se para isso com freqüência na sacralização do “U” inver-tido de Kusnetz. De acordo com o mesmo, a desigualdade é simples-

Gráfico 2Produto Nacional Bruto e Expectativa de vida em países selecionados (1992)

300470 540

2670 2770

445071 6972

63 66

54

Kerala China Sri Lanka Áfricado Sul

Brasil Gabão

5000

4500

PN

B p

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cap

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s)4000

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0

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70

60

50

40

30

20

10

0

Expectativa de vida PNB per capita

Fonte: Amartya Sen, “Mortality as indicator of economic success and failure”. The EconomicJournal, jan. 1998.

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mente uma etapa inevitável da marcha para o desenvolvimento. Naprimeira fase do mesmo, produzem-se polarizações sociais, que depoisvão-se moderando e reduzindo. Alguns economistas convencionais maisextremos chegam ainda mais longe, e propõem que essa acumulaçãode recursos em poucas mãos favorecerá o desenvolvimento ao criarmaiores capacidades de investimento.

Esta discussão tem particular transcendência para a América Lati-na, porque é considerada por unanimidade a região mais desigual doplaneta. Se a tese dos ortodoxos mais inflexíveis estivesse correta, aregião deveria ter contado com taxas de investimento muito altas, da-das as “acumulações em poucas mãos” que gerou. Isso não se observa.Tampouco parece ser uma mera etapa do caminho ao desenvolvimen-to. Na América Latina, a desigualdade instalou-se e não só não se mo-derou, mas apresenta uma tendência consistente para o crescimento,particularmente nas duas últimas décadas. O “U” invertido parece nãofuncionar para a região.

Na verdade, Kusnetz nunca pretendeu que fosse aplicável meca-nicamente aos países não-desenvolvidos. Como tem ocorrido com fre-qüência, alguns de seus supostos intérpretes fizeram claro abuso desuas afirmações. Seus trabalhos referiam-se à observação dos EstadosUnidos, Inglaterra e Alemanha num período que compreendeu da pri-meira metade do século XIX até o final da Primeira Guerra Mundial.Adverte expressamente sobre o risco de generalizar as conclusões queextraiu. Afirma (1970): “É perigoso utilizar simples analogias; não po-demos afirmar que posto que a desigual distribuição da renda condu-ziu no passado, na Europa Ocidental, à acumulação de economias ne-cessárias para formar os primeiros capitais, para assegurar o mesmoresultado nos países subdesenvolvidos é preciso, portanto, manter einclusive acentuar a desigualdade na distribuição da renda”. E enfatizaem afirmação que na América Latina faz muito sentido hoje: “É muitoprovável que os grupos que recebam rendas superiores em alguns dospaíses hoje subdesenvolvidos apresentem uma propensão de consumomuito maior e uma propensão à economia muito menor do que as queapresentam os mesmos grupos de renda nos países hoje desenvolvidosdurante suas primeiras fases de crescimento”.

Além de ter desvirtuado o pensamento real do próprio Kusnetz, afalácia difundida com respeito à desigualdade choca-se fortemente comos dados da realidade. A desigualdade latino-americana transformou-se em nível internacional num caso quase de laboratório dos impactos

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regressivos da desigualdade. Diante da pergunta de por que um conti-nente com tantas potencialidades econômicas e humanas gerou resul-tados econômicos tão discretos e déficits sociais tão agudos, uma dasrespostas com crescente consenso científico é que um dos fatores fun-damentais em contrário tem sido o peso da desigualdade e seu cresci-mento. Assim, apontam Birdsall, Ross e Sabot (1996) sobre a região, “aassociação entre um crescimento lento e uma elevada desigualdadedeve-se em parte ao fato de que essa elevada desigualdade pode consti-tuir em si um obstáculo para o crescimento”.

Operam ativamente na América Latina entre outros cinco tipos dedesigualdades, a saber: um é a iniqüidade na distribuição de renda. 5%da população possui 25% da renda nacional; por outro lado, 30% dapopulação tem apenas 7,5% da renda nacional. É a maior brecha doplaneta. Medida com o coeficiente Gini de ineqüidade em renda, aAmérica Latina tem 0,57, quase três vezes o Gini dos países nórdicos.Em média, a metade da renda nacional de cada país da região vai paraas mãos dos 15% mais ricos da população. No Brasil, os 10% mais ricospossuem 46% da renda, enquanto os 50% mais pobres, apenas 14% damesma. Na Argentina, enquanto em 1975 os 10% mais ricos recebiamoito vezes mais renda que os 10% mais pobres, em 1997 a relação tinhamais que duplicado, era 22 vezes maior. Outra desigualdade acentua-da é a que aparece em termos de acesso a ativos produtivos. A extrema-mente ineqüitativa distribuição da terra em alguns dos maiores paísesda região, como Brasil e México, é uma de suas expressões. Uma tercei-ra desigualdade é a que rege no campo do acesso ao crédito, instru-mento essencial para poder criar oportunidades reais de desenvolvi-mento de pequenas e médias empresas. Há na América Latina 60 mi-lhões de PYMES, que geram 150 milhões de empregos. No entanto,apenas têm acesso a 5% do crédito. Uma quarta iniqüidade é a quesurge do sistema educativo. Os diferentes estratos socioeconômicos dospaíses alcançam recordes muito diversos em anos de escolaridade. Adeserção e a repetência provocadas pelas condições socioeconômicasdo lar minam diariamente a possibilidade de que os setores pobres com-pletem seus estudos. Segundo a Cepal (2000), no Brasil repetiam osdois primeiros anos do ensino fundamental 41% das crianças perten-centes aos 25% de menor renda da população, e por sua vez apenas4,5% das crianças dos 25% com maior renda. Ainda, tinham completa-do o ensino fundamental (de 1ª a 8ª série) aos vinte anos de idade ape-nas 8% dos jovens pertencentes aos 25% de menor renda, contra 54%dos 25% de maior renda. Tomando países da região (BID, 1998), surgia

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que os chefes de família dos 10% de renda mais elevada tinham 11,3anos de educação, os dos 30% mais pobres, apenas 4,3 anos. Uma bre-cha de sete anos. Enquanto na Europa a brecha de escolaridade entreos 10% mais ricos e os 10% mais pobres é de dois a quatro anos, noMéxico é de dez anos. A desigualdade educativa será um fator muitoimportante na iniqüidade na possibilidade de conseguir emprego e nossalários a serem recebidos. Os setores desfavorecidos estarão em con-dições muito desfavoráveis nesse item devido à sua frágil carga educa-tiva. A força de trabalho ocupada da região apresenta uma marcanteestratificação. Segundo a Cepal (2000), há um nível superior que são3% da população empregada que possui quinze anos de escolaridade,um nível intermediário que são os 20% da força de trabalho que possuientre nove e doze anos de escolaridade, e os 77% restantes que têmapenas 5,5 a 7,3 anos de estudo nas cidades e 2,9 nas zonas rurais. Umaquinta e nova cifra de desigualdade está surgindo das possibilidadestotalmente diferenciadas de acesso ao mundo da informática e Internet.A grande maioria da população não tem meios nem a educação requeridapara conectar-se com esse mundo, fazendo parte assim de uma novacategoria de analfabetismo, o analfabetismo cibernético”.

Todas estas desigualdades geram múltiplos efeitos regressivos naeconomia, na vida pessoal e familiar, e no desenvolvimento democrá-tico. Entre outros, segundo demonstram numerosas pesquisas: redu-zem a formação de poupança nacional, estreitam o mercado interno,conspiram contra a saúde pública, impedem a formação em grandeescala de capital humano qualificado, deterioram a confiança nas ins-tituições básicas das sociedades e na liderança política. O aumento dadesigualdade é, por outro lado, uma das causas centrais do aumento dapobreza na região. Birdsall & Londoño (1998) estimaram econometrica-mente que seu crescimento entre 1983 e 1995 duplicou a pobreza, quea mesma teria sido a metade do que foi se a desigualdade tivesse conti-nuado nos níveis anteriores, elevados porém menores.

A desigualdade latino-americana não é um fato natural próprio docaminho do desenvolvimento como pretende a falácia. É a conseqüên-cia de estruturas regressivas e políticas erradas que a potencializaram.Barbara Stallings (Cepal, 1999) considera que “as reformas econômicasaplicadas nos últimos anos agravaram as desigualdades entre a popu-lação” e sublinha que “é possível afirmar sem nenhuma dúvida que osnoventa são uma década perdida quanto à redução das já alarmantesdiferenças sociais existentes na região com mais desigualdade do mun-do”. Altimir (1994), depois de analisar dez países, propõe que “há ba-

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ses para supor que a nova modalidade de funcionamento e as novasregras de política pública destas economias possam implicar maioresdesigualdades de renda”. Albert Berry (1997) indica: “A maioria dospaíses latino-americanos que introduziram reformas econômicas pró-mercado, no curso das últimas duas décadas, sofreram também sériosincrementos na desigualdade. Esta coincidência sistemática no tempodos dois eventos sugere que as reformas foram uma das causas da de-gradação na distribuição”.

Por sua vez, a outra dimensão da falácia também é desmentidapela realidade. A desigualdade não se modera ou atenua sozinha. Pelocontrário, a instalação de circuitos de desigualdade em áreas-chavespossui uma tendência “contaminante”, propicia a geração de circuitossimilares em outras áreas. Entre outros casos, ilustra o fato a dificulda-de, apesar de todos os esforços, em melhorar a situação educativa dapopulação pobre. As desigualdades em outras áreas como ocupação erenda conspiram contra as reformas educativas. Ainda, as desigualda-des em educação reforçam, como já se viu, as brechas no mercado detrabalho. Os circuitos perversos de desigualdade mostram além dissouma enorme capacidade reprodutora. Eles se automultiplicam. Semações em contrário, as polarizações tendem a crescer e ampliar-se. Issoé mostrado pela conformação crescente em numerosas sociedades deuma dualidade central: incluídos e excluídos.

5. Quinta falácia: a desvalorização da política social

Um renomado ministro da Economia da América Latina, ao serquestionado sobre a política social em seu país, respondeu: “A únicapolítica social é a política econômica”. Estava refletindo toda uma ati-tude quanto à política social que teve conseqüências profundas no con-tinente. Há uma tendência a vê-la como um complemento menor deoutras políticas maiores, como as que têm a ver diretamente com odesenvolvimento produtivo, os equilíbrios monetários, o crescimentotecnológico, a privatização etc. Caberia a ela atenuar os impactos tran-sitórios que as anteriores produzem na sociedade. Deveria atacarfocalizadamente os desajustes sociais mais irritáveis para reduzi-los.No fundo, a partir deste arrazoamento, ela é percebida como uma “con-cessão” à política. Como a pobreza gera forte inquietude política, a po-lítica social faria o trabalho de “acalmar os ânimos” e mostrar que estãose fazendo coisas nesse fronte, mas o corolário conseqüente é: quanto

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menos concessões, melhor. Os recursos destinados ao social deveriamser muito limitados e destinados a fins muito específicos.

Albert Hirschman, em certa oportunidade, chamou esta forma deabordar o tema de “políticas pobres para pobres”. Dá lugar a reduzir osocial a metas muito estreitas, a constituir uma institucionalidade so-cial frágil em recursos, e pessoal, afastada dos altos níveis de decisão.Por outro lado, é também altamente vulnerável. Diante de reduçõesorçamentárias, mostra escassa capacidade para defender sua situaçãoe normalmente é candidata preferida para os cortes. Esta visão, aindasob outro aspecto, supõe em si um questionamento implícito da legiti-midade da política social. É desviar recursos de destinos mais impor-tantes, por “pressão política”.

Refletindo a situação, uma experiente ministra da área social deum país latino-americano narrou a respeito para uma platéia interna-cional: “Não éramos convidados ao gabinete onde eram tomadas asdecisões econômicas mais importantes. Depois de muitos esforços, con-seguimos ser convidados. Claro que apenas com direito a voz, não avoto”.

Considerar a política social nestes termos: de uma categoria infe-rior, concessão à política, uso subotimizante de recursos, conforma umafalácia que está afetando seriamente a região.

Em primeiro lugar, como se pode relegar o social num contextocomo o latino-americano, em que praticamente uma a cada duas pes-soas está abaixo da linha de pobreza e expressa diariamente de milmaneiras seu descontentamento e seu protesto por essa realidade? Aten-der ao social não é uma concessão, é em numa democracia tratar defazer com que os direitos fundamentais de seus membros sejam respei-tados. O que está em jogo, no fundo, como defende a ONU, é uma ques-tão de direitos humanos violados. Como ressalta o Informe de Desen-volvimento Humano 2000, do PNUD: “A erradicação da pobreza cons-titui uma tarefa importante dos direitos humanos no século XXI. Umnível decente de vida, nutrição suficiente, assistência médica, educa-ção, trabalho digno e proteção contra as calamidades não são simples-mente metas do desenvolvimento, são também direitos humanos”. Aspolíticas sociais são essenciais para a população na região e estratégiaspara a estabilidade do próprio sistema democrático. Ao consultar-se apopulação, ela não pede que se reduzam, estreitem ou eliminem, mas,ao contrário, exige maciçamente que se reforcem, ampliem e se incor-porem novas políticas.

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Em segundo lugar, é difícil sustentar no início deste novo séculoque se trata de uma destinação de recursos de pouca eficiência. Desti-nar recursos para assegurar-se de que todas as crianças concluam oprimeiro ciclo do ensino fundamental (antigo primário), para elevar ataxa de término do ensino fundamental (de 1ª a 8ª série), para desen-volver o sistema de educação superior, é ineficiente? As mediçõeseconométricas dão resultados muito diferentes. A taxa de retorno emeducação é uma das mais altas possíveis para uma sociedade. Hoje, acompetitividade dos países está fortemente ligada ao nível decapacitação de sua população. Alguns dos países mais bem-sucedidosdo planeta nos mercados internacionais estão exportando basicamenteprodutos como “high tech” totalmente baseados no capital educativoque souberam desenvolver. A absorção de novas tecnologias, a inova-ção local a partir delas, a pesquisa e desenvolvimento, o progresso tec-nológico dependem todos dos níveis de educação alcançados. Os cál-culos demonstram, assim, entre outros casos, que um dos investimen-tos macroeconomicamente mais rentáveis que um país pode fazer éinvestir na educação de meninas. Acrescentar anos de escolaridade àsmeninas desfavorecidas aumentará seu capital educativo e, através dele,reduzirá as taxas de gravidez na adolescência, de mortalidade mater-na, de mortalidade infantil e morbidade. Todas elas estão correlacio-nadas estatisticamente com os anos de escolaridade da mãe.

Nas condições latino-americanas, estender a possibilidade de aces-so à água potável a toda a população é um investimento deficiente? Oretorno ao fazê-lo será significativo em termos de saúde pública, o quelogo repercutirá na produtividade da economia.

Na verdade, toda a terminologia utilizada está equivocada e nova-mente vemos um erro semântico não casual. Assim como existiam aque-les que não queriam ouvir falar da palavra pobreza, na falácia que des-valoriza a política social, chegou-se a que toda a discussão a respeitoseja feita em termos de “gasto social”. Na realidade, não há tal gasto.Bem gerenciados, os recursos para o social constituem, na grande maio-ria dos casos, investimento de um alto retorno.

Hoje é difícil discutir as evidências de que o investimento socialgera capital humano e que o mesmo se transforma em produtividade,progresso tecnológico e é decisivo para a competitividade. Na verdade,a política social bem delineada e eficientemente executada é um pode-roso instrumento de desenvolvimento produtivo. Como sugere Touraine(1997): “Em vez de compensar os efeitos da lógica econômica, a políti-

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32 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

ca social deve ser concebida como condição indispensável do desen-volvimento econômico”.

Em terceiro lugar, discutiu-se a gravidade do tema da desigualda-de na América Latina. Superada a falácia que a nega ou minimiza, comose pode reduzi-la? Uma das vias fundamentais possíveis numa demo-cracia é uma agressiva política social que amplie fortemente as oportu-nidades para os pobres em setores cruciais. Deverá estar integrada, entreoutras, por políticas que universalizem possibilidades de controle defatores de risco-chaves em saúde na região, como a água, o saneamen-to, a eletricidade, o acesso à assistência médica; que atuem sobre osfatores que excluem parte da população do sistema educativo; que as-segurem serviços públicos de boa qualidade para todos. A política so-cial pode ser uma chave para a ação contra a desigualdade, provendouma base mínima de bens e serviços indispensáveis e contribuindo,assim, para abrir as oportunidades e romper círculos perversos.

Em vez de uma política social “borralheira”, como propõe a falácia,o que a América Latina precisa é de uma nova geração de políticas so-ciais com letra maiúscula. Isso implica dar prioridade efetiva às metassociais no desenho das políticas públicas; procurar articular estreitamenteas políticas econômicas e as sociais; montar uma institucionalidade so-cial moderna e eficiente; destinar recursos apropriados; formar recursoshumanos qualificados no social; fortalecer as capacidades de gerênciasocial, e hierarquizar em geral esta área de atividade pública.

A metáfora que se ouve em toda a região descreve bem a situação.Afirma que a política social é atualmente a “assistência pública” querecolhe os mortos e feridos deixados pela política econômica. A faláciaexaminada cultiva e racionaliza esta situação inaceitável. É preciso umapolítica social que potencialize o capital humano, base essencial deum desenvolvimento econômico sustentado. É um tema ético, políticoe, ao mesmo tempo, de lucidez histórica. Como aponta Birdsall (1998):“é provável que as taxas de crescimento da América Latina não sejamsuperiores a 3% ou 4%, muito distantes das necessárias, enquanto nãose contar com a participação e a contribuição da metade da populaçãoque está compreendida nos percentuais mais baixos de renda”.

6. Sexta falácia: a maniqueização do Estado

No pensamento econômico convencional circulante, tem-se feitoum esforço sistemático de vastas proporções para deslegitimar a ação

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do Estado. Associou-se a idéia de Estado com corrupção, com incapa-cidade para cumprir eficientemente as mínimas funções, com grandesburocracias, com desperdício de recursos. A visão apóia-se em gravesdefeitos existentes no funcionamento das administrações públicas emnumerosos países da América Latina, mas foi muito mais além disso e“maniqueizou” o Estado em seu conjunto. Projetou a imagem de quetoda ação tratada no terreno público seria negativa para a sociedade, e,por sua vez, a redução ao mínimo das políticas públicas e a entrega desuas funções ao mercado a levaria a um reino da eficiência e à soluçãodos principais problemas econômico-sociais existentes. Além disso,criou a concepção de que existia uma oposição de fundo entre Estado esociedade civil e havia que escolher entre ambos.

Como em outros campos, hoje é possível manter uma discussãosobre o tema para além das ideologias. O instrumental metodológicodas ciências sociais atuais traz evidências muito concretas que permi-tem estabelecer como funciona a realidade. A visão demonstrou sererrada. O Estado sozinho não pode fazer o desenvolvimento, e na Amé-rica Latina a ação estatal tem apresentado agudos problemas deburocratização, ineficiência e corrupção. Entretanto, o processo de eli-minação de numerosas funções do Estado, de redução a níveis míni-mos em muitos casos de suas capacidades de ação, como ocorreu comfreqüência nas áreas sociais, o enfraquecimento em geral do papel daspolíticas públicas, e a entrega de suas funções ao mercado, não levouao reino ideal suposto. Os problemas estruturais das sociedades latino-americanas e de outras do mundo em desenvolvimento continuaramse agravando, a corrupção acompanhou também com freqüência osprocessos de privatização. Identificou-se como uma lei operante quesempre que houver um corrupto no Estado, haverá, por sua vez, umcorruptor no setor privado, ou seja, o tema excede qualquer simplifica-ção. O funcionamento sem regulação do mercado levou ao aprofunda-mento das brechas, particularmente das de iniqüidade. Deu-se umaforte tendência, sob as novas regras de jogo, à constituição de monopó-lios que significaram, na prática, a imposição de cargas muito pesadasaos consumidores e às pequenas e médias empresas, liquidando comestas últimas.

A impressão é que as duas polarizações conduziram a becos semsaída. O Estado sozinho não pode resolver os problemas, mas suaminimização agrava-os. Essa é a conclusão, entre muitas outras vozes,do Banco Mundial no final desta década. Em seu informe especial dedi-cado ao papel do Estado (1998), ressalta como idéia fundamental que

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sem um Estado eficiente o desenvolvimento não é viável, e propõe umasérie de diretrizes orientadas a “reconstruir a capacidade de ação do Es-tado”. Por seu lado, autores como Stiglitz e outros chamaram a atençãopara as “falhas do mercado”, sua tendência a gerar desigualdades e àcartelização para maximizar lucros e seus desvios especulativos quandonão há eficientes controles regulatórios, como ocorre em Estados tãofragilizados pelas reformas das últimas décadas como os da região. Caus-ticamente, afirma uma autoridade mundial em como gerenciar com efi-ciência, Henry Mintzberg (1996), com respeito à concepção de que sepoderia prescindir do Estado e a visão de que tudo o que se faz no Estadoé ineficiente e no setor privado, eficiente: “o modelo representa a grandeexperiência dos economistas que nunca tiveram de gerenciar nada”.

Hoje há um ativo retorno à busca de uma visão mais equilibrada nodebate internacional de ponta sobre o tema do desenvolvimento e dopapel do Estado. Impossível desconhecer a importância das políticaspúblicas num contexto histórico em que a segunda economia do mun-do, o Japão, está colocando em marcha, uma após a outra, sucessivasiniciativas de intervenção ativa do Estado para dinamizar a economia, amais recente (outubro de 2000) injetando 100 bilhões de dólares para talefeito. Amartya Sen (1998) ressalta sobretudo o papel decisivo que temexercido a política pública no campo social em algumas das economiasde melhor desempenho a longo prazo do mundo. Sublinha: “De fato,muitos países da Europa Ocidental conseguiram assegurar uma amplacobertura de assistência social com a assistência à saúde e educaçãopública de maneiras até então desconhecidas no mundo; o Japão e aregião do Leste da Ásia tiveram um alto grau de liderança governamen-tal na transformação tanto de suas economias como de suas sociedades;o papel da educação e da assistência médica pública foi o eixo funda-mental para contribuir para a mudança social e econômica no mundointeiro (e de forma bastante espetacular no Leste e Sudeste asiáticos)”.

Uma área totalmente decisiva para a economia e para a sociedadeé a da saúde. Toda sociedade democrática tem a obrigação de garantir aseus membros o direito à assistência médica, é o direito mais básico.Além disso, melhorar os níveis de saúde da população exerce toda or-dem de impactos favoráveis sobre a economia, entre muitos outros as-pectos em redução de horas de trabalho perdidas por doença, aumentoda produtividade no trabalho, queda nos custos ligados a doenças etc.O recente informe sobre a saúde mundial 2000 da Organização Mun-dial da Saúde (OMS, 2000) estabelece o primeiro ranking dos países domundo, segundo o desempenho de seus sistemas de saúde. Entre ou-

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tros, constrói um índice muito significativo para essas medições: osanos que, em média, uma pessoa vive com boa saúde, sem doenças. Notopo da lista encontram-se países como Japão (74,5 anos), Suécia (73anos), Canadá (72 anos) e Noruega (71,7 anos). Em todos esses países, oEstado tem uma participação fundamental, tendo construído uma am-pla rede de proteção. No Japão, o gasto público é de 80,2% do gastototal em saúde; na Suécia é de 78%; na Noruega, de 82%, e no Canadá,de 72%. O gasto público per capita em saúde ultrapassa em todos elesos 1300 dólares anuais. O contraste com a atual situação em diversospaíses latino-americanos é marcante. O gasto público per capita emsaúde no Brasil é de 208 dólares; no México, de 172, no Peru, de 98. Osanos de vida saudável chegam em média a apenas 59 anos no Brasil,embora o país seja uma das maiores potências industriais do mundo.Por sua vez, ao procurá-lo na lista de desempenho dos sistemas de saú-de da OMS, o Brasil aparece em 125º lugar.

O caráter crucial da ação estatal em campos-chaves como saúde eeducação, pressupondo uma ação bem gerenciada e transparente, sur-ge com toda a força de uma pesquisa recente (Financial Times, 2000),que mostra o que ocorre quando se fixam como política alfandegária osserviços em áreas de população pobre, sob a idéia de “compartilharcustos” e de “financiamento comunitário”, reduzindo assim as respon-sabilidades do Estado. Na Tanzânia, seguindo as condições do BancoMundial, foram introduzidas tarifas para o ensino primário. O resulta-do, segundo indica a Igreja Evangélica Luterana da Tanzânia, foi umimediato descenso na assistência às escolas e a redução do orçamentototal para as mesmas à metade do previsto. Em Zimbábue, a condicio-nalidade centrou-se em que deveriam cobrar taxas nos serviços de saú-de, mas que os pobres estariam isentos disso. Uma avaliação do pró-prio Banco Mundial concluiu que apenas 20% dos pobres puderamconseguir as licenças para isenção necessárias. Em Gana, ao impor ta-xas na escola, 77% das crianças da rua de Accra, que assistiam às au-las, abandonaram as escolas.

A falácia da maniqueização do Estado leva a conseqüências muitoconcretas: ao deslegitimar sua ação deixa aberto o terreno para sua de-bilitação indiscriminada e para o desaparecimento paulatino de políti-cas públicas firmes em campos cruciais como os sociais. Causa, assim,danos irreparáveis a vastos setores de famílias, aumentando a pobrezae a desigualdade e limitando as possibilidades de um crescimento sus-tentado. Os dados da realidade sugerem que há outro caminho. Emalguns dos países mais bem-sucedidos econômica e socialmente, um

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dos pilares de suas economias é um Estado ativo de alta eficiência.Uma de suas características principais contradiz um dos eixos da falá-cia. É um Estado coordenado estritamente com a sociedade civil. Afalsa oposição Estado — Sociedade Civil, que preconiza a falácia comoum fato, é neles desmentida. Os laços de cooperação são múltiplos esurge uma ação integrada. Também na América Latina algumas dassociedades com melhores cifras de eqüidade, menores índices de po-breza e melhores taxas de desenvolvimento tiveram como base dessasconquistas Estados bem organizados, com burocracias consideradaseficientes, como Costa Rica, Uruguai e o Chile democrático. É impres-cindível reformar e melhorar a eficiência estatal e erradicar a corrupção.Porém, para isso, é necessário avançar em outra direção totalmentediferente à da falácia. Não satanizar o Estado, mas ir construindo ad-ministrações públicas descentralizadas, transparentes, abertas à parti-cipação comunitária, bem gerenciadas, com carreiras administrativasestáveis, fundadas no mérito.

7. Sétima falácia: a incredulidade sobre as possibilidades de contribuição porparte da sociedade civil

O pensamento econômico circulante envia às vezes explicitamen-te, e com freqüência implicitamente, uma profunda mensagem de des-valorização do possível papel que pode desempenhar a sociedade civilnos processos de desenvolvimento e na resolução dos problemas so-ciais. Sua ênfase está totalmente voltada para o mercado, a força dosincentivos econômicos, a gerência de negócios, a maximização de uti-lidades como motor do desenvolvimento, os sinais que podem atrairou afastar o mercado. O mundo da sociedade civil é percebido comoum mundo secundário, de segunda linha com respeito ao que ocorreno “mundo importante” conformado pelos mercados. Desse enfoquesurgirão políticas públicas de apoio muito limitado, quase “simbólico”e por “cortesia” às organizações da sociedade civil, e uma desconfiançaforte em depositar nelas responsabilidades realmente importantes.

A falácia arrazoa em termos de uma dualidade básica: Estado versusmercado. Nos fatos, a situação é muito mais matizada. Existe um sem-número de organizações que não são nem uma coisa nem outra. Foramcriadas com finalidades diferentes, os atores sociais que se encontrampor trás delas são outros, e as metodologias que utilizam não são de Esta-do nem de mercado. Este mundo compreende, entre outras: as organiza-

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ções não-governamentais em contínuo crescimento na América Latinaque foram denominadas com freqüência de terceiro setor e que realizammúltiplas contribuições no campo social; os espaços de interesse públi-co, que são fórmulas especiais muito usadas nos países desenvolvidosonde numerosas Universidades e hospitais foram fundados por eles —trata-se de empreendimentos a longo prazo animados por numerososatores públicos e privados, modelos econômicos que não são de merca-dos típicos como as cooperativas, que têm alta presença em diversoscampos, e o amplo movimento de luta contra a pobreza desenvolvidoem toda a região pelas organizações religiosas, cristãs, protestantes e ju-daicas que estão na primeira linha da ação social. A realidade não é só oEstado e o mercado como pretende a falácia. Inclusive alguns dos mode-los de organização e gestão social e geral mais efetivos de nosso tempoforam desenvolvidos nesta vasta área diferente de ambos.

Todas estas organizações possuem um grande peso e uma forte par-ticipação na ação social no mundo desenvolvido. Arrecadam recursosconsideráveis, a elas são delegadas funções crescentes por parte do Esta-do, estão inter-relacionadas com a ação pública de múltiplas formas.Estão baseadas fortemente em trabalho voluntário. Mobilizam milharese milhares de pessoas que dedicam anonimamente consideráveis horaspara levar adiante seus programas. Trazem importantes contribuiçõesao Produto Bruto Nacional com trabalho não-remunerado em países comoCanadá, Holanda, Suécia, Noruega, Dinamarca, Espanha, Israel e ou-tros. Assim, em Israel, que aparece entre os primeiros do mundo nestamatéria, uma em quatro pessoas faz trabalhos voluntários semanalmen-te, produzindo bens e serviços de caráter social, constituindo parte dopessoal paramédico nos hospitais, auxiliando pessoas inválidas, idosos,famílias desfavorecidas e outros setores com dificuldades. Também au-mentou no mundo desenvolvido a participação empresarial no apoio àação social da sociedade civil. As contribuições e iniciativas empresa-riais de solidariedade foram incrementadas e o crescimento de sua res-ponsabilidade social passou a fazer parte cada vez maior da legitimidadeda própria empresa. A afirmação feita há anos por Milton Friedman, oguru da Escola de Chicago, de que a única responsabilidade da empresaprivada é produzir utilidades para seus acionistas, tem sido refutadaconstantemente por empresários proeminentes e é hoje rejeitada maci-çamente pela opinião pública dos países desenvolvidos.

Na América Latina, a situação tende a ser muito diferente. Existeum imenso potencial de trabalho voluntário que caso fosse adequada-mente convocado e se se criassem condições propícias, poderia cum-

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prir papéis bastante significativos. Esforçadamente, setores da socie-dade civil estão tentando mobilizá-lo e é constante o surgimento demúltiplas iniciativas. Porém, tudo isso é, apesar das desconfianças e daincredulidade que surgem do arrazoamento desvalorizador, que ali-menta, por sua vez, erros grosseiros nas políticas. Não há, assim, entreoutros aspectos, apoios públicos firmes às iniciativas da sociedade ci-vil de ação social e os incentivos fiscais são muito reduzidos. Alémdisso, o movimento de responsabilidade social empresarial é fraco e ascontribuições muito reduzidas comparativamente. A proporção doslucros empresariais dedicados a fins de interesse público é muito me-nor em relação à dos países avançados. É notável o trabalho que, mes-mo com todas estas limitações, levam adiante numerosas organizações,entre elas as de fé já mencionadas, para conseguir auxiliar nas dificul-dades de sobrevivência de extensos setores da população.

No fundo, o que o pensamento econômico convencional está fa-zendo através de sua desvalorização das possibilidades da sociedadecivil é fechar a passagem para o próprio ingresso do conceito de capitalsocial. Diversas pesquisas de anos recentes, desde os primeiros estu-dos de Putnam e Coleman, até os efetuados em diversas realidades na-cionais de todo o planeta, revelam que há fatores cruciais para o desen-volvimento que não tinham lugar no pensamento econômico ortodo-xo, como os agrupados na idéia de “capital social”. São eles: o clima deconfiança entre as pessoas de uma sociedade e com respeito a suasinstituições e líderes, o grau de associatividade, ou seja, a capacidadede criar esforços associativos de todo tipo e o nível de consciência cívi-ca, a atitude quanto aos problemas coletivos, desde cuidar da limpezados lugares públicos até pagar os impostos. Estudos do Banco Mundialatribuem ao capital social e ao capital humano dois terços do cresci-mento econômico dos países e diversas pesquisas dão conta dos signi-ficativos impactos do capital social sobre a performance macroeco-nômica, a produtividade microeconômica, a governabilidade democrá-tica, a saúde pública e outras dimensões1.

Desenvolver o capital social significa fortalecer a sociedade civilatravés de políticas que melhorem a confiança, que, segundo dizem osmesmos estudos, em sociedades polarizadas é muito fortemente erodidapela desigualdade. Também implica propiciar o crescimento da

1. Pode-se encontrar a apresentação de uma série de pesquisas recentes sobre o capitalsocial e seus impactos em: Kliksberg, B. El capital social e la cultura. Claves olvidadas deldesarrollo. Buenos Aires, Instituto de Integración Latinoamericana/Intal/BID, 2000.

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associatividade e contribuir para fazer amadurecer a consciência cívica.O arrazoamento econômico convencional tem estado amarrado a idéiasmuito estreitas sobre os fatores que contam, que não consideram esteselementos, ou que os relegam. Por trás da falácia da incredulidade sobrea sociedade civil, encontra-se uma rejeição mais ampla da idéia de quehá outros capitais que se deve ter em conta, como o social. Um fechado“reducionismo economicista” obstrui a passagem para ampliar a visãodo desenvolvimento com sua incorporação e para extrair as conseqüên-cias conseguintes em termos de políticas de apoio ao fortalecimento epotencialização das capacidades latentes na sociedade civil.

8. Oitava falácia: a participação sim, mas não!

A participação da comunidade de forma cada vez mais ativa nagestão dos assuntos públicos surge nesta época como uma exigênciacrescente das grandes maiorias da sociedade na América Latina e ou-tras regiões. Os avanços da democratização, produto de longas lutashistóricas dos povos, criaram condições de livre organização e expres-são, que dispararam esta “sede” por participação. Por outro lado, existehoje uma convalidação mundial crescente da superioridade em termosde efetividade da participação comunitária sobre as formas organizativastradicionais de corte vertical ou burocrático. No campo social, isso émuito visível. Os programas sociais fazem melhor uso dos recursos,conseguem ser bem-sucedidos no alcance de suas metas e criam auto-sustentabilidade, se as comunidades pobres às quais se deseja favore-cer participam desde o início e ao longo de todo o seu desenvolvimen-to e compartilham do planejamento, da gestão, do controle e da avalia-ção. Assinala a respeito Stern, o economista-chefe do Banco Mundial,resumindo múltiplos estudos da instituição (2000): “Ao longo do mun-do, a participação funciona: as escolas operam melhor se os pais parti-cipam, os programas de irrigação são melhores se os camponeses parti-cipam, o crédito trabalha melhor se os solicitantes participam. As re-formas dos países são muito mais efetivas se forem geradas no país edirigidas pelo país. A participação é prática e poderosa”2.

2. Apontam-se diversos dados e pesquisas sobre a superioridade gerencial da participaçãoem: Kliksberg, B. “Seis tesis no convencionales sobre participación en instituciones y desarrollo”.Revista do Instituto Internacional de Gobernabilidad, n. 2, Barcelona, dez. 1998.

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Dois recentes trabalhos: Superando a pobreza humana, do PNUD(2000), e The voices of the poor, do Banco Mundial (2000), baseadonuma gigantesca pesquisa com 60 mil pobres de 60 países, chegam asimilar conclusão em termos de políticas: é preciso dar prioridade parainvestir e fortalecer as organizações dos próprios pobres. Eles carecemde “voz e voto” real na sociedade. Fortalecer suas organizações lhespermitirá participar de modo muito mais ativo e recuperar terreno emambas as dimensões. Propõe-se, entre outros aspectos: facilitar sua cons-tituição, apoiá-las, dar possibilidades de capacitação a seus líderes, for-talecer suas capacidades de gestão.

Na América Latina, o discurso político tende cada vez mais a reco-nhecer a participação. Seria claramente antipopular enfrentar a pres-são pró-participação tão forte na sociedade, e com argumentos tão con-tundentes a seu favor. Entretanto, os avanços reais quanto à imple-mentação efetiva de programas com altos níveis de participação comu-nitária são muito reduzidos. Continuam predominando os programas“chave na mão” e impostos verticalmente, onde quem tem poder dedecisão ou os que desenham são aqueles que sabem e a comunidadedesfavorecida deve acatar suas diretivas e ser sujeito passivo deste.Também são comuns os programas em que se fazem fortes apelos quan-do se trata de programas participativos, quando na verdade há um mí-nimo conteúdo real de intervenção da comunidade na tomada de deci-sões. O discurso diz “sim” à participação na região, mas os fatos comfreqüência dizem “não”.

Os custos desta falácia são muito fortes. Por um lado, está sendodesperdiçada uma enorme energia latente nas comunidades pobres.Ao serem mobilizadas, como ocorreu em experiências latino-america-nas reconhecidas — como o caso de Villa El Salvador, no Peru, as esco-las Educo, em El Salvador, ou o orçamento municipal participativo,em Porto Alegre3 —, os resultados são surpreendentes. A comunidademultiplica os recursos escassos, somando a eles incontáveis horas detrabalho, e é geradora de contínuas iniciativas inovadoras. Além disso,a presença da comunidade é um dos poucos meios que previne efetiva-

3. O caso de Villa El Salvador é analisado com detalhes por Carlos Franco em seu trabalho “Laexperiencia de Villa El Salvador: del arenal a un modelo social de avanzada”. In: Kliksberg, B.Pobreza, un tema impostergable. Nuevas respuestas a nivel mundial. 4. ed. Buenos Aires/Caracas,Fondo de Cultura Económica, 1997. Sobre o caso do orçamento municipal participativo em PortoAlegre, ver o texto de Zander Navarro, “La democracia afirmativa y el desarrollo redistributivo: elcaso del presupuesto participativo em Porto Alegre, Brasil”. In: Jarquin, E. & Caldera, A. (comp.).Programas sociales, pobreza y participación ciudadana. Washington, BID, 2000.

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mente contra a corrupção. O controle social da mesma sobre a gestão éuma grande garantia a respeito que se perde ao impedir a participação.Por outro lado, o divórcio entre o discurso e a realidade é claramentepercebido pelos pobres e eles se ressentem disso com descontentamen-to e frustração. Limitam-se, assim, as possibilidades de programas emque se ofereça a participação genuína, porque as comunidades estão“escaldadas” pelas falsas promessas.

O “sim”, mas “não” está baseado em resistências profundas a quedefinitivamente as comunidades pobres participem, que se disfarcemdiante de sua ilegitimidade conceitual, política e ética. Chegou a horana região de colocá-las em foco e enfrentá-las.

9. Nona falácia: a esquivança ética

A análise econômica convencional sobre os problemas da Améri-ca Latina extrapola normalmente a discussão sobre as implicações éti-cas dos diferentes cursos de ação possíveis. Pareceria tratar-se de umtema técnico, mas de caráter neutro, em que apenas devem predomi-nar arrazoamentos custo — benefício para resolvê-lo. A situação, po-rém, é muito diferente. O tema tem a ver com a vida das pessoas e asconsiderações éticas deveriam estar, por extensão, absolutamente pre-sentes. Do contrário, estar-se-ia incorrendo no grande risco sobre o qualprevine um dos maiores filósofos da nossa época, Charles Taylor. Taylor(1992) afirma que há uma declarada tendência a que a racionalidadetécnica, a discussão sobre os meios, substitua a discussão sobre os fins.A tecnologia é um meio para alcançar fins, que, por sua vez, devem serobjeto de outra ordem de discussão. Se a discussão sobre os fins desa-parecer, como pode estar ocorrendo, previne Taylor, e a racionalidadetecnológica predomina sobre a racionalidade ética, os resultados po-dem ser muito regressivos para a sociedade. Na mesma direção assina-lou recentemente outro destacado pensador, Vaclav Havel, presidenteda República Tcheca (2000): “é necessário reestruturar o sistema devalores no qual nossa civilização descansa”, e advertiu que os paísesricos, por ele chamados de “euro-americanos”, devem examinar suaconsciência. Segundo ele, estes países impuseram as orientações atuaisda civilização global e são responsáveis por suas conseqüências.

Estas vozes proeminentes sugerem um debate a fundo sobre os te-mas éticos do desenvolvimento. O chamado tem raízes em realidadesintoleráveis. A ONU (2000) chama a atenção para a imprescindibilidade

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de um debate desta ordem num mundo onde perecem diariamente 30mil crianças por causas evitáveis, imputáveis à pobreza. Afirma que sereage indignamente, e isso é correto, diante de um único caso de tortura,mas se passa por alto diariamente ante essa aniquilação em grande esca-la. O Fundo de População Mundial (2000) ressalta que morrem todo ano500 mil mães durante a gravidez, mortes também em sua grande maioriaevitáveis e ligadas à falta de assistência médica. Noventa e nove por cen-to delas ocorrem nos chamados países em desenvolvimento.

Na América Latina, é imprescindível debater, entre outros temas:o que acontece com as conseqüências éticas das políticas; qual é a“eticidade” dos meios empregados, se é eticamente lícito sacrificar ge-rações; por que os mais fracos, como as crianças e os idosos, são osmais afetados pelas políticas aplicadas em muitos países; a destruiçãode famílias está gerando a pobreza, e outras questões similares. É umaregião onde, como se tem visto, a maioria das crianças é pobre, ondemilhares de crianças vivem nas ruas, marginalizadas pela sociedade eonde, enquanto a taxa de mortalidade de crianças menores de cincoanos, em 1997, era no Canadá de 6.9 em cada 1000, atingia na Bolívia82.8, no Equador 57.7, no Brasil 45.9 e no México 36.4 (OrganizaçãoPanamericana da Saúde, 2000). Na América Latina, 17% dos partos sãorealizados sem qualquer tipo de assistência médica e com os conse-qüentes resultados em termos de mortalidade materna, que é cinco vezesmaior em relação à dos países desenvolvidos; ressalte-se que possuemcobertura apenas 25% das pessoas maiores de idade.

Surgem de tudo isso problemas éticos básicos: o que é mais im-portante? Como destinar recursos? Não deveriam ser reestudadas asprioridades? Não há políticas que deveriam ser descartadas por seuefeito “letal” em termos sociais?

Ao denunciar-se a fraqueza da falácia que esquiva a discussão éti-ca, ela toma com freqüência o rosto do “pragmatismo”. Argumenta-seque é impossível discutir ética quando não há recursos. Entretanto,mais do que nunca, quando os recursos são escassos deveria debater-se a fundo sobre as prioridades. Nos países em que esse debate ocorre,os resultados costumam ser muito diferentes em termos de prioridadese de resultados sociais daqueles onde o assunto é evitado. Quanto maisrecursos existirem, melhor, e se deve fazer o possível para aumentá-los, mas pode haver mais e continuar destinados sob os padrões de altadesigualdade próprios da América Latina. A discussão sobre as priori-dades finais é a única que garante um uso socialmente racional dosrecursos. A Comissão Latino-Americana e do Caribe, presidida por

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Patricio Aylwin (1995), realizou uma análise sistemática para a Cúpulasocial mundial de Copenhague sobre que recursos faziam falta pararesolver as brechas sociais mais importantes da região. Concluo quenão são tão quantitativos como se supõe imaginariamente e que umaparte importante deles pode ser obtida reordenando prioridades, forta-lecendo um sistema fiscal progressivo e eficiente, e gerando pactos so-ciais para aumentar os recursos para áreas críticas.

Num artigo do jornal New York Times, o renomado filósofo PeterSinger (1999) sustenta que não é possível que os estratos prósperos dassociedades ricas se livrem do peso de consciência que significa a con-vivência com realidades maciças de abjeta pobreza e sofrimento nomundo, e que devem encarar de frente sua situação moral. Sua suges-tão é totalmente extensiva aos estratos similares da América Latina.

10. Décima falácia: não há outra alternativa

Uma argumentação preferida no discurso econômico ortodoxo é aalegação de que as medidas que se adotam são as únicas possíveis, quenão haveria outro curso de ação alternativo. Portanto, os graves proble-mas sociais que criam são inevitáveis. A longa experiência do séculoXX é plena em fracassos históricos de modelos de pensamento que seauto-apresentaram como o “pensamento único”. Parece demasiadamen-te complexo o desenvolvimento, para que se acredite que só existe umúnico caminho. Por outro lado, em diferentes regiões do globo os fatosnão favoreceram o “pensamento único”. Resumindo a situação, afirmaWilliam Pfaff (International Herald Tribune, 2000): “O consenso inte-lectual sobre as políticas econômicas globais foi rompido”. Na mesmadireção, refletindo a necessidade de buscar novas vias, opina FelixRohatyn (Financial Times, 2000), atual embaixador dos Estados Uni-dos na França: “Para sustentar os benefícios (do atual sistema econô-mico) nos Estados Unidos e globalmente, temos de transformar osperdedores em ganhadores. Se não o fizermos, provavelmente todos nósnos transformaremos também em perdedores”. Amartya Sen (2000), porsua vez, destaca: “Tem havido demonstrações recentes não só frente àsreuniões financeiras internacionais, mas também na forma de protestosmenos organizados, mas intensos em diferentes capitais, desde Jacarta eBangcoc até Abidjã e México. As dúvidas acerca das relações econômi-cas globais continuam vindo de diferentes confins do planeta e há sufi-ciente razão para ver estas dúvidas sobre a globalização como um fenô-meno global; são dúvidas globais, não uma oposição localizada”.

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O clamor por mudanças nas regras do jogo globais que afetamduramente os países em desenvolvimento é muito intenso. Compreen-de uma agenda muito ampla, desde temas pelos quais já clamou o papaJoão Paulo II, colocando-se à frente de um vasto movimento mundialque exige o perdão da dívida externa para os países mais pobres, pas-sando pela exigência pelas fortes barreiras aos produtos dos países emdesenvolvimento, até o tema muito direto de que a ajuda internacionalao desenvolvimento foi reduzida (de 50 para 60 bilhões de dólares nosanos 1990) e está em seu menor ponto em muitas décadas. O presiden-te do Banco Mundial, Wolfensohn (2000), qualificou este fato como“um crime”. Destacou tratar-se de “cegueira dos países ricos que desti-nam somas insignificantes para auxiliar o desenvolvimento e não sedão conta do que está em jogo”. Defendendo a necessidade de umapolítica global alternativa, o PNUD (2000) assinala que se deve “formu-lar uma nova geração de programas centrados em fazer com que o cres-cimento seja mais propício aos pobres, este orientado a superar a desi-gualdade e destaque a potencialização dos pobres. As receitas antiqua-das de complementação do crescimento rápido com o gasto social eredes de assistência demonstraram ser insuficientes”. O economista-chefe do Banco Mundial, Stern (2000), também sugere: “o crescimentoeconômico é maior em países onde a distância entre ricos e pobres émenor e o governo possui programas para melhorar a eqüidade, comreforma agrária, impostos progressivos e bom sistema de educação pú-blica”. Todos eles vão além do pensamento único.

Neste ambiente, a falácia de “que não há outra alternativa” resultacada vez mais insustentável na América Latina atual. Por um lado, noplano internacional, como se vê, começa a haver uma cada vez maisativa busca de alternativas diferentes. Por outro lado, há no cenário his-tórico presente países que obtiveram desempenhos altamente bem-su-cedidos nos planos econômico e social, seguindo alternativas diferentesdo pensamento econômico ortodoxo preconizado na região; temos, en-tre eles: Canadá, vários países do Sudeste asiático, como Coréia do Sul,Japão, os países nórdicos, Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Israel,Holanda, e outros. No entanto, o argumento fundamental é a própriarealidade. O pensamento único produziu resultado muito duvidoso naAmérica Latina. A Cepal (2000) descreve assim a situação social presen-te: “Por volta do final dos anos 1990, as pesquisas de opinião mostramque percentuais crescentes da população declaram sentir-se submetidosa condições de risco, insegurança, e indefesos. Isso encontra amparo naevolução do mercado de trabalho, no desdobramento da ação do Estado,

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nas novas formas institucionais para o acesso aos serviços sociais, nadeterioração experimentada pelas expressões tradicionais de organiza-ção social e nas dificuldades da micro e pequena empresa para conse-guir um funcionamento que as projete econômica e socialmente”. Refle-tindo o desencanto com as políticas aplicadas em muitos casos, umapesquisa maciça do Latín Barómetro (2000) encontra, como descreveMulligan (Financial Times, 2000), resumindo seus resultados, que “oslatino-americanos estão perdendo a fé uns nos outros, bem como emseus sistemas políticos e nos benefícios da privatização”. Com respeito aeste último ponto, a pesquisa informa que 57% não estão de acordo como argumento de que a privatização beneficiou seu país. “Para muitos”,diz Marta Lagos, diretora da pesquisa, “a privatização significa custosmais altos e virtualmente o mesmo nível de serviços.”

A população latino-americana não aceita a falácia de que não háoutras alternativas senão as que conduzem necessariamente a altíssimoscustos sociais e ao desencanto. Aparece em seu imaginário com forçacrescente que é possível, como o fizeram outros países no mundo, avan-çar com as singularidades de cada país, e respeitando suas realidadesnacionais quanto a modelos de desenvolvimento com eqüidade, desen-volvimento compartilhado ou desenvolvimento integrado, em que sebusca harmonizar as metas econômicas e sociais. Isso implica configu-rar projetos nacionais que impulsionem, entre outros: a integração regio-nal, que pode ser um poderoso instrumento para o fortalecimento eco-nômico da região e sua reinserção adequada no sistema econômico glo-bal; o impulso vigoroso à pequena e média empresa; a democratizaçãodo acesso ao crédito; o acesso à propriedade da terra para os campone-ses; uma reforma fiscal orientada para uma imposição mais eqüitativa ea eliminação da evasão fiscal; a colocação ao alcance de toda a popula-ção da tecnologia informática; a universalização da cobertura em saúde;a generalização de possibilidades de acesso à educação pré-escolar e daconclusão do ensino fundamental e médio, e o desenvolvimento do sis-tema de educação superior; o apoio à pesquisa científica e tecnológica; oacesso de toda a população à água potável, saneamento e eletricidade; aabertura de espaços que permitam a participação maciça na cultura.

Marchar em direção a metas desta índole requererá, entre outrosaspectos: reconstruir a capacidade de ação do Estado, construindo umperfil de Estado descentralizado, transparente, responsável, com um ser-viço civil profissionalizado, potencializar as possibilidades de contri-buição da sociedade civil, abrindo todas as vias possíveis para favorecerseu fortalecimento; articular uma estreita cooperação de esforços entre

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46 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

Estado e sociedade civil; desenvolver a responsabilidade social doempresariado; praticar políticas ativas pró-apoderamento e participaçãodas comunidades desfavorecidas. Todos eles podem ser meios formidá-veis numa sociedade democrática, para mobilizar as enormes capacida-des de construção e progresso latentes nos povos da América Latina.

11. Um olhar de conjunto

Vimos como a existência de falácias de ampla circulação, que apre-sentam uma visão distorcida dos problemas sociais da América Latinae de suas causas e levam a graves erros nas políticas adotadas, é partedos retrocessos e da dificuldade para melhorar a situação. Não contri-buem para superar a pobreza e a desigualdade e, ao contrário, comfreqüência, reforçam-nas estruturalmente visões como: negar a gravi-dade da pobreza; não considerar a irreversibilidade dos danos que cau-sa; argumentar que o crescimento econômico sozinho resolverá os pro-blemas; desconhecer a transcendência do peso regressivo da desigualda-de; desvalorizar a função das políticas sociais; desqualificar totalmente aação do Estado; desestimar o papel da sociedade civil e do capital social;bloquear a utilização da participação comunitária; esquivar as discus-sões éticas e apresentar o modelo reducionista que se propõe, com suasfalácias implícitas, como a única alternativa possível.

Estas visões não são a causa única dos problemas, que possuemraízes profundas internas e externas, mas obscurecem a busca das cau-sas e pretendem legitimar algumas delas. Buscar caminhos diferentesexige enfrentar e superar estas e outras falácias semelhantes. Isto apare-ce em primeiro lugar como uma exigência ética. No texto bíblico, a vozdivina proclama: “não sujeitarás a julgamento o sangue do teu próximo”(Levítico, 19: 16). As sociedades latino-americanas e cada um de seusmembros não podemos ser indiferentes diante dos infinitos dramas fa-miliares e individuais que dia a dia surgem da problemática social daregião. Ademais, devem ser autocríticas com as racionalizações da situa-ção e dos auto-enganos tranqüilizadores. Ao mesmo tempo, atacar fron-talmente as causas da pobreza, não dando lugar às negativas e tergiver-sações, é trabalhar por restituir cidadania a grande parte dos habitantesda região, cujos direitos humanos elementares estão, de fato, aviltadospelas carências sociais. Por último, diante das falácias, permitam-noselevar a voz do grande escritor latino-americano, Carlos Fuentes: “Algose esgotou na América Latina, os pretextos para justificar a pobreza”.

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CONFRONTANDO AS REALIDADES ... 47

Capítulo 2

CONFRONTANDO AS REALIDADES DA AMÉRICA LATINA:pobreza, desigualdade e deterioração da família

Capítulo 2

CONFRONTANDO AS REALIDADES DA AMÉRICA LATINA:pobreza, desigualdade e deterioração da família

A visão de uma sociedade pluralista e uma aguda e silenciosa discriminação

A aspiração a uma sociedade entre cujos pilares estejam o plura-lismo e o respeito à diversidade encontra-se no centro do “sonho lati-no-americano”. Percorre toda a história do continente, tem profundasrepresentações em nível nacional em quase todos os países, e atual-mente é objeto de contínuas lutas. Nestes tempos em que, com grandessacrifícios, os povos conseguiram fazer avançar processos genuínos dedemocratização, sucedem-se os esforços para denunciar as discrimina-ções de qualquer espécie, e lutar para superá-las.

No entanto, sonhos não são suficientes para mudar as duras reali-dades da região, percorrida por graves tendências à pauperização e àpolarização social, que estão despertando grande preocupação no inte-rior dos países e em nível internacional, e constituem o contexto propí-cio para o aumento das discriminações. Assim, as extremas desigual-dades no acesso a oportunidades socioeconômicas mantêm e intensifi-cam dramas como a miséria em que vivem as comunidades indígenas,a marginalização da população de cor em alguns países, a subordina-ção da mulher, particularmente da mulher pobre, em diversas áreas, amarginalização dos portadores de deficiências e dos idosos. De tudoisso, surge uma sociedade com grandes fraturas, que geram exclusão,tensão social e com freqüência, ideologias intolerantes que visam justi-ficar tais fraturas.

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48 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

Desejamos focalizar neste trabalho um aspecto das discriminaçõesque percorrem a realidade da região e que deveria ser objeto de muitomais atenção. Tem-se falado das desigualdades que caracterizam aAmérica Latina em planos como o acesso ao trabalho, a distribuição derendas, as oportunidades de educação, o acesso à assistência de saúde,mas são limitadas as análises sobre o que está ocorrendo em uma ques-tão vital: as possibilidades dos diversos estratos sociais de constituiruma unidade familiar sólida e estável. Os números indicam que sãomuito diferenciadas, que ali se está produzindo um silencioso dramade grandes proporções.

Independentemente de sua vontade, numerosos casais jovens nãotêm reais oportunidades de constituir ou manter uma família. Muitasfamílias são destruídas ao se confrontar com a pobreza e a desigualda-de, algumas se degradam e outras nem sequer chegam a se formar. Háuma grande discriminação nesse campo, que é reforçada pela falta depolíticas públicas ativas centradas na proteção da unidade familiar.Tudo isso afeta visceralmente a visão de uma sociedade pluralista ediversificada. O direito fundamental à constituição e desenvolvimentode uma família deveria ser um dos pilares dessa sociedade.

Neste trabalho desejamos, sobretudo, estimular a investigação, areflexão e o intercâmbio a esse respeito. Para tanto, em um primeiromomento apresentamos alguns elementos sobre os papéis fundamen-tais que a família desempenha nas sociedades atuais e no próprio pro-cesso de desenvolvimento. Em segundo lugar, fornecemos alguns da-dos sobre os agudos problemas sociais que atingem a região, caracteri-zando o contexto em que vivem as famílias latino-americanas. Em ter-ceiro lugar, examinamos alguns impactos desse contexto sobre a uni-dade familiar. Finalmente, efetuamos uma reflexão de conjunto.

A redescoberta da família

Atualmente, existe uma crescente revalorização do papel da famí-lia na sociedade. Sob a perspectiva espiritual, a família sempre apare-ceu como a unidade básica do gênero humano. As grandes cosmovisõesreligiosas ressaltaram que o peso da família nos planos moral e afetivoera decisivo para a vida. Nos últimos anos, a essa perspectiva funda-mental agregaram-se conclusões das ciências sociais que indicam quea unidade familiar realiza, além disso, contribuições de grande valorem campos muito concretos.

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CONFRONTANDO AS REALIDADES ... 49

Entre outros aspectos, as pesquisas destacam o papel da famíliano desempenho educacional, no desenvolvimento da inteligência emo-cional, nas formas de pensar, na saúde e na prevenção da criminalidade.

A qualidade das escolas tem grande peso no desempenho educati-vo. O currículo, a qualificação dos professores, os textos didáticos, osoutros materiais de apoio utilizados, a infra-estrutura escolar, tudo issoinflui em todos os aspectos dos processos de aprendizagem. Contudo,há outros fatores que nele incidem, como mostram as pesquisas. Se-gundo conclusões da Cepal (1997), 60% das diferenças no desempe-nho estariam vinculadas ao clima educacional da família, a seu nívelsocioeconômico, à infra-estrutura da habitação (aglomeradas e não-aglo-meradas) e ao tipo de família. Aspectos básicos da estrutura familiarteriam, portanto, grande influência nos resultados educativos. Entreeles, estariam elementos como o grau de coesão do núcleo familiar, ocapital cultural que os pais trazem consigo, seu nível de dedicação aacompanhar os estudos de seus filhos, seu apoio e estímulo permanen-te a eles.

Muitos estudos corroboram essa tendência e o papel fundamentalda solidez do núcleo familiar. A Secretaria de Saúde e Serviços Huma-nos dos Estados Unidos realizou um estudo sobre 60 mil crianças. Wil-son (1994) informa sobre suas conclusões:

“Em todos os níveis de renda, exceto o muito alto (mais de 50 mildólares por ano), no caso dos dois sexos e igualmente para os brancos,negros e hispânicos, as crianças que viviam com uma mãe divorciada ouque nunca se casara estavam claramente em pior condição que as perten-centes a famílias com os dois pais. Em comparação com as crianças queviviam com os dois progenitores, as crianças de famílias com um só pro-genitor eram duas vezes mais propensas a ser expulsas ou suspensas naescola, a sofrer problemas emocionais ou de conduta e a ter dificuldadescom os colegas. Também eram muito mais inclinadas a ter uma condutaanti-social.”

As características da família também têm influência sobre outrotipo de educação, a emocional. Atualmente há um interesse significati-vo pelo tema da chamada “inteligência emocional”. Segundo indicamas pesquisas de Goleman (1995) e outras, o bom desempenho e o suces-so das pessoas, em sua vida produtiva, não estão ligados apenas a seuquociente intelectual, mas têm estreita relação com suas qualidadesemocionais. Entre os componentes desta ordem particular de inteli-

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50 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

gência, encontram-se o autodomínio, a persistência, a capacidade deautomotivação, a facilidade para estabelecer relações interpessoais sau-dáveis e para interagir em grupos, e outros semelhantes. Verificou-seque freqüentemente pessoas de inteligência emocional elevada têmmelhores resultados que outras com quociente intelectual maior, masreduzidas qualidades nessa ordem. A família tem um grande peso naconstituição e desenvolvimento da inteligência emocional. As crian-ças percebem nas relações entre seus pais, e destes com elas, maneirasde lidar com o emocional que vão incidir sobre seus próprios estilos decomportamento. Goleman destaca que: “A vida em família é nossa pri-meira escola para a aprendizagem emocional”.

Outro aspecto em que a família com sua dinâmica vai moldandoperfis de comportamento nas crianças é o que se produz no campo das“formas de pensar”. Naum Kliksberg (1999) assinala a esse respeito quea criança se vincula com seus pais e irmãos através de três modalida-des básicas: “de aceitação passiva, de imposição autoritária e de diálo-go democrático. Nas famílias, um desses modelos de interação tende apredominar”. O pesquisador enfatiza que, se predomina o modelo deaceitação passiva, gera-se uma forma de pensar “submissa” que aceitaargumentos e posições, sem perguntar muito sobre seus fundamentos.Se a interação habitual é a autoritária, desenvolve-se uma forma depensar que tende a impor o próprio pensamento ao outro, centradaunicamente nas coerções necessárias para atingir esse objetivo. Se, emcontrapartida, o modelo de interação é “de diálogo democrático”, a for-ma de pensar que se desenvolve é crítica, sabe-se ouvir o outro, pro-cura-se entendê-lo e explicar seu modo de agir.

No campo da saúde, Katzman (1997) assinala, resumindo estudosrealizados no Uruguai, que as crianças nascidas fora do casamento têmuma taxa de mortalidade infantil muito maior e que as crianças quenão vivem com seus pais sofrem maiores prejuízos em diferentes as-pectos do desenvolvimento psicomotor.

Uma preocupação central de nossa época é o aumento da crimina-lidade em diversos países. Em pesquisas sobre esse ponto, a famíliaaparece como um dos recursos fundamentais com que a sociedade contapara prevenir a criminalidade. Os valores inculcados nas crianças nafamília a esse respeito, nos primeiros anos, e os exemplos de condutaobservados vão influenciar consideravelmente suas decisões e condu-tas futuras. Um estudo nos Estados Unidos (Dafoe Whitehead, 1993)examinou a situação familiar dos jovens em centros de detenção juve-

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CONFRONTANDO AS REALIDADES ... 51

nil no país e verificou que mais de 70% provinha de famílias com paiausente.

Em suma, a família, juntamente com suas históricas e decisivasfunções afetivas e morais, exaltadas em religiões como a cristã e ajudaica, entre outras, cumpre funções essenciais para o bem-estar co-letivo.

A partir dessa visão, em diversos países desenvolvidos existe umativo movimento de criação de condições favoráveis ao bom desen-volvimento e fortalecimento da família. As políticas públicas da Co-munidade Econômica Européia oferecem, entre outros aspectos: ga-rantias plenas de atenção médica adequada para as mães durante agravidez, o parto e o período posterior, amplas licenças-maternidaderemuneradas, que vão de três meses em Portugal a 28 semanas naDinamarca, subvenções às famílias com filhos, deduções fiscais. Di-versos países, como os nórdicos, estabeleceram amplos serviços deapoio à família, como as creches e serviços de ajuda domiciliar a ido-sos e incapacitados.

A necessidade de fortalecer a instituição familiar e de apoiá-la demodo concreto tem muitos defensores. Refletindo muitas opiniões se-melhantes, um estudo espanhol (Cabrillo, 1990) afirma que “a famíliaé uma fonte importante de criação de capital humano. Por um lado,oferece serviços de saúde em forma de cuidado de doentes e criançasque teriam um custo elevado se tivessem de ser fornecidos pelo merca-do ou pelo setor público. Por outro, é ali que ocorre a primeira educa-ção que uma criança recebe, que é também a que tem uma rentabilida-de mais elevada”. Diante disso, ele se pergunta: “na prática, o setorpúblico está financiando grande parte dos gastos com educação namaioria dos países? A pergunta imediata é: então, por que só uma parteda educação, a realizada em escolas públicas ou privadas? Se esse tipode educação é subvencionado, não há razão nenhuma para que não sesubvencione também a educação dada em casa”. Outro trabalho(Navarro, 1999) reclama “a universalização (na Espanha) dos serviçosde ajuda à família”, e demonstra que ela é factível em termos de custoseconômicos.

Diante dessa revalorização internacional do papel da família e daverificação de suas enormes possibilidades de contribuição para a so-ciedade, o que ocorre de fato na América Latina? Qual é o contextosocioeconômico atual e como afeta as famílias concretas da região?

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52 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

As agudas problemáticas sociais

A evolução da situação social da região gerou grande alarme emamplos setores. Diversos organismos internacionais, entre eles as Na-ções Unidas e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), cha-maram a atenção para os inquietantes déficits sociais. A Igreja, por in-termédio de suas maiores autoridades, fez reiterados apelos a dar amáxima prioridade às graves dificuldades por que passam extensosgrupos da população. A sociedade civil indicou, por diversos meios,que considera que seus problemas de maior gravidade se encontramna área social.

Efetivamente, estimativas nacionais próximas indicam que gran-des setores da população estão abaixo da linha de pobreza em numero-sos países. O informativo Estado da Região (PNUD-União Européia,1999) assinala que mais de 60% dos 34,6 milhões de centro-america-nos vivem na pobreza e 40% deles encontram-se na miséria. Os núme-ros respectivos revelam que se encontram abaixo do nível de pobreza75% dos guatemaltecos, 73% dos hondurenhos, 68% dos nicaragüen-ses e 53% dos salvadorenhos. Mais de 10 milhões de centro-america-nos (29% do total) não têm acesso a serviços de saúde, e dois em cadacinco carecem de água potável e saneamento básico. Um terço dos ha-bitantes é analfabeto. Segundo o informativo, os números são piorespara a população indígena. Na Guatemala, por exemplo, a pobreza é de86% entre os indígenas e de 54% entre os não-indígenas. No Equador,estima-se que 62,5% da população encontra-se na pobreza. NaVenezuela, estimativas oficiais situam a pobreza em cerca de 80% dapopulação. Estima-se (Fundacredesa, 1999) que 10 milhões de pessoas(41,74% da população) encontram-se em extrema pobreza. No Brasil,estimou-se que 43,5% da população ganha menos de dois dólares pordia, 40 milhões vivem em pobreza absoluta. Na Argentina, uma esti-mativa recente (1999) revela que 45% da população infantil, menor dequatorze anos, vive abaixo da linha da pobreza.

A região apresenta elevados níveis de desemprego e emprego in-formal, que são uma causa central da evolução da pobreza. A taxa dedesemprego médio subiu de 7,2%, em 1997, para 8,4%, em 1998, eem 1999 era estimada em 9,5%. A essas altas taxas soma-se o aumen-to da porcentagem de mão-de-obra ativa que trabalha na economiainformal, constituída em partes importantes por ocupações instáveis,sem base econômica sólida, com reduzida produtividade e baixas ren-das, e pela ausência de qualquer tipo de proteção social. A informa-

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CONFRONTANDO AS REALIDADES ... 53

lização implica, como ressalta Tokman (1998), um processo de quedada qualidade dos trabalhos existentes. Em 1980, 40,6% da mão-de-obra não-agrícola ocupada trabalhava na economia informal; atual-mente a porcentagem chega a 59%. A isso se alia a precarização. Há umnúmero crescente de trabalhadores sem contrato e sob contratos tem-porários. Cerca de 35% dos assalariados encontram-se nessas condi-ções na Argentina, Colômbia e Chile, e 74% no Peru. Um dos pontos depreocupação central, com múltiplas conseqüências, é que as sérias di-ficuldades de emprego são ainda maiores nos grupos jovens. É o queindica o quadro a seguir.

País Sexo Taxa de desemprego, Taxa de desemprego,total da população população entre

15 e 24 anos

Argentina Total 13,0 22,8

Homens 11,5 20,3

Mulheres 15,5 26,7

Brasil Total 17,4 14,3

Homens 16,4 12,4

Mulheres 18,9 17,0

Colômbia Total 18,0 16,2

Homens 15,4 11,9

Mulheres 11,6 21,0

Chile Total 16,8 16,1

Homens 15,9 14,0

Mulheres 18,4 19,3

Uruguai Total 19,7 24,7

Homens 17,3 19,8

Mulheres 13,0 31,5

Quadro 1Taxas de desemprego aberto entre os jovens

Áreas urbanas

Fonte: Cepal. Panorama social de América Latina, 1996. Apud: MINUJÍN, A. Vulnerabilidady exclusión en América Latina. In: BUSTELO & MINUJÍN, A. Todos entran. Unicef/Santillana,1998.

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54 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

Como se observa, o desemprego entre os jovens quase duplica emtodos os países cujas economias apresentam elevado desemprego mé-dio. Isso cria um foco de conflito muito sério. Além disso, observa-seuma clara disparidade de gênero, uma vez que o desemprego é maiorentre mulheres jovens que entre homens jovens.

Desemprego, subemprego e pobreza estão estreitamente ligadose levam a carências de todo tipo na vida cotidiana. Uma de suas ex-pressões mais extremas é a presença, em diversos países, de quadrosalarmantes de desnutrição. Na América Central, estima-se que umterço das crianças com menos de cinco anos apresenta peso e alturamenores que os que deveriam ter. Na Nicarágua, entre outros casos,estimativas do Ministério da Saúde (1999) indicam que 59% das fa-mílias cobrem menos de 70% das necessidades de ferro que o orga-nismo requer; 28% das crianças com menos de cinco anos sofrem deanemias em decorrência do baixo consumo de ferro; 66 crianças emcada cem apresentam deficiências de saúde por carência de vitaminaA; e 80% da população consome apenas 1700 calorias diárias, quan-do a dieta normal não deveria ser inferior a 2125 calorias. A desnutri-ção e outros fatores levam a pronunciadas diferenças de peso e altu-ra. Na Venezuela, uma criança de sete anos das camadas altas pesacerca de 24,3 kg e mede 1,219 m. Uma criança de mesma idade, dascamadas pobres, pesa 20 kg e mede 1,148 m. A desnutrição ocorre atémesmo em realidades como a da Argentina. Estima-se que uma emcada cinco crianças da área mais povoada do país, a grande BuenosAires, padece de problemas dessa ordem. Um informe da Organiza-ção Pan-Americana da Saúde e Cepal (1998) destaca sobre esse pro-blema:

“Em quase todos os países da região observa-se um aumento dasdoenças não-transmissíveis crônicas associadas à alimentação e nu-trição.”

A desnutrição e outros aspectos da pobreza levam as crianças aapresentar grandes atrasos, que afetarão toda sua existência. Estudosdo Unicef (1995) identificaram atrasos no desenvolvimento psicomotorde uma mostra de crianças pobres a partir dos 18 meses de idade. Comcinco anos, metade das crianças da mostra examinada apresentaramatrasos no desenvolvimento da linguagem, 40% em seu desenvolvi-mento geral e 30% em sua evolução visual e motora.

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CONFRONTANDO AS REALIDADES ... 55

Além da pobreza, a situação social da América Latina se caracteri-za por acentuadas desigualdades. Como ressaltou repetidamente Enri-que V. Iglesias, “pobreza e desigualdade são os dois tópicos pendentes”da região. A região se converteu, segundo indicam os números, no con-tinente de maior polarização social do mundo. O Informe do ProgressoEconômico e Social do BID (1998/99) oferece os seguintes números aesse respeito:

PIB per capita

Gráfico 1Renda dos 5% mais ricos

(porcentagem da renda total)

América Latina

África

Ásia Meridional

Ásia Oriental

Desenvolvidos

0.26

0.12

0.24

0.22

0.20

0.18

0.16

0.14Rend

a do

s 5%

mai

s ri

cos/

Rend

a to

tal

20000 14000120004000 6000 8000 10000

Na América Latina, como se observa, os 5% mais ricos da popu-lação recebem 25% da renda. A proporção supera o que recebem os 5%mais ricos em outras áreas do mundo. Por sua vez, é a região onde os30% mais pobres da população recebem a menor porcentagem de ren-da (7,6%) em relação a todos os outros continentes, como se verifica nográfico a seguir do BID.

Medida em termos do Coeficiente de Gini, que avalia o nível dedesigualdade na distribuição de renda de uma sociedade, a América

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56 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

Latina apresenta o pior Coeficiente de Gini, em nível mundial, como sepode ver a seguir:

PIB per capita

Gráfico 2Renda dos 30% mais pobres

(porcentagem da renda total)

América Latina

África

Ásia Meridional Ásia Oriental

Desenvolvidos0.13

0.07

0.12

0.11

0.10

0.09

0.08

Rend

a do

s 30

% m

ais

pobr

es/R

enda

tot

al

20000 14000120004000 6000 8000 10000

Fonte gráficos 1 e 2: BID-IPES, 1998.

Quanto menor o Coeficiente de Gini, melhor é a distribuição derenda em uma sociedade. O da América Latina supera amplamente os

Quadro 2Desigualdade comparada

(medida com o Coeficiente de Gini)

Países mais desenvolvidos em termos de igualdade(Suécia, Dinamarca, Países Baixos etc.) 0,25 a 0,30

Países desenvolvidos 0,30

Gini médio universal 0,40

América Latina 0,57

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CONFRONTANDO AS REALIDADES ... 57

dos países mais eqüitativos e é significativamente mais elevado que amédia mundial.

As acentuadas desigualdades sociais da região têm impactos re-gressivos em múltiplas áreas. Entre elas: reduzem a capacidade de pou-pança nacional, limitam o mercado interno, afetam a produtividade,têm diversos efeitos negativos sobre o sistema educacional, prejudi-cam a saúde pública, aumentam a pobreza, favorecem a exclusão so-cial, deterioram o clima de confiança interno e debilitam agovernabilidade democrática.

Desigualdade e pobreza estão estreitamente ligadas. A piora dadesigualdade atuou como um fator de grande peso no aumento da po-breza na região. É o que indicam, entre outros estudos, os realizadospor Birdsall e Londoño (1997). Os pesquisadores calcularam qual seriaa curva de pobreza da América Latina se a desigualdade tivesse segui-do, nos anos 1980, os mesmos níveis que apresentava no início dosanos 1970, que já eram elevados, mas depois se acentuaram. As con-clusões estão expressas no Gráfico 3, a seguir.

A linha sólida do quadro indica a evolução da pobreza em mi-lhões de pobres entre 1970 e 1995. A linha quebrada é uma simulaçãoeconométrica que indica qual teria sido essa evolução se a estrutura dedistribuição de renda do início dos anos 1970 tivesse se mantido. Nes-se caso, segundo estimam os autores, a pobreza teria sido a metade do

Gráfico 3O impacto da desigualdade sobre a pobreza na América Latina

1970-1995

Fonte: Birdsall & Londoño, 1997.

160

60

140

120

100

80

1970 1974 1978 1982 1986 1990 1994

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que efetivamente foi. Há um “excesso de pobreza”, de importantes di-mensões, causado pelo aumento da desigualdade.

Qual é o impacto da pobreza e da desigualdade sobre uma insti-tuição fundamental do tecido social, a família?

Alguns impactos da situação social sobre a família latino-americana

A família é um âmbito determinante dos graus de crescimento, rea-lização, equilíbrio, saúde e plenitude efetiva que as pessoas podem alcan-çar. A sociedade e seus membros apostam aspectos centrais de seu pro-gresso e bem-estar nas condições em que atuam as estruturas familiares.

A deterioração de parâmetros socioeconômicos básicos da vidacotidiana de amplos setores da população da região está incidindo si-lenciosamente em um processo de reestruturação de numerosas famí-lias. Está surgindo o perfil de uma família desarticulada em aspectosimportantes, instável, significativamente debilitada.

Esse tipo de família dificilmente pode cumprir as funções poten-ciais da unidade familiar, caracterizadas em uma seção anterior. Issofaz com que o último reduto com o qual a sociedade conta para fazerfrente às crises sociais careça, por sua debilidade, da possibilidade defazer o papel que poderia desempenhar.

Entre as principais expressões dos processos em curso, em rela-ção às famílias, encontram-se as que são apresentadas resumidamentea seguir.

Mulheres sozinhas chefes de família

Um número crescente de unidades familiares tem apenas um dosprogenitores à frente; na imensa maioria dos casos, a mãe. A correlaçãocom a pobreza é muito estreita. Uma grande porcentagem de mulhereschefes de família pertencem a camadas humildes da população. Umestudo BID-Cepal-PNUD (1995) descreve a situação assim:

“Na quase totalidade dos países da América Latina a porcentagem defamílias chefiadas por mulheres é superior a 20%, o que contribui acen-tuadamente para o fenômeno conhecido como ‘feminilização da pobre-za’. Os estudos da Cepal evidenciam a maior pobreza relativa — muitasvezes a indigência — das famílias a cargo de uma mulher.”

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CONFRONTANDO AS REALIDADES ... 59

Efeitos da família incompleta sobre os filhos

As conseqüências de pertencer a uma família em que o pai estáausente são muito consideráveis. Além de seu significado em termosafetivos, os pais trazem aos filhos ativos fundamentais para a vida. Emuma investigação pioneira sobre o tema, Katzman (1997) reconstrói oquadro resultante. Afirma sobre o papel do pai:

“A presença do pai é fundamental para prover ou reforçar certos ati-vos das crianças: i) como modelo forjador de identidades, especialmentepara os meninos; ii) como agente de contenção, de criação de hábitos dedisciplina e transmissor de experiências de vida; iii) como suporte mate-rial, já que a falta da contribuição do pai reduz consideravelmente asrendas da família, particularmente porque as mulheres ganham entre 20%e 50% menos que os homens, e iv) como capital social, na medida emque a ausência do pai implica a perda de um ponto de contato com asredes masculinas, tanto no mundo do trabalho como no da política e que,além disso, ao se cortar a ligação com as redes de parentes por parte dopai, diminuem significativamente os vínculos familiares potenciais.”

A ausência do pai significará a inexistência de todos esses ativos.As conseqüências podem ser muito concretas. Isso afeta o rendimentoeducacional em decorrência do empobrecimento do clima socioeducativoda família, pesa muito no desenvolvimento da inteligência emocional,abala a saúde, cria condições propícias para sentimentos de inferiorida-de, de isolamento, ressentimento, agressividade, elimina uma fonte fun-damental de orientação em aspectos morais. Pesquisando o caso de me-nores internados no Instituto Nacional do Menor, no Uruguai, Katzmanverifica que apenas um em cada três fazia parte de uma família normalquando se produziram os fatos que levaram a sua internação. O número,como assinala o autor, é sugestivamente similar ao que apresenta o estu-do sobre centros de detenção juvenil nos Estados Unidos: 63,8% dascrianças internadas no Uruguai viviam com sua mãe, 30,8% com umpadrasto ou madrasta, e 5,4% sem seus pais.

As grandes desvantagens relativas das crianças criadas em famí-lias desse tipo tornam-se mais agudas, como revela o pesquisador, nascondições dos mercados de trabalho modernos. Estes exigem um nívelde preparação cada vez maior, o que significa processos educativoscada vez mais extensos. Contar com uma família integrada, que apóieemocional e praticamente esse esforço prolongado, é estratégico paraobter tal nível de preparação. As crianças e jovens de famílias desarti-culadas carecem desse capital social-chave.

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A resistência a formar e manter famílias

Uma proporção crescente de homens jovens das camadas humil-des resiste a constituir famílias estáveis, o que aumenta as taxas defamílias irregulares e instáveis (concubinatos). Essa tendência parecemuito influenciada pelo crescimento da pobreza, do desemprego e dainformalidade na região. Em muitos desses casos, o jovem não vê apossibilidade de encontrar um emprego estável que lhe permita cum-prir o papel de provedor principal da renda familiar, que se esperadele. Por outro lado, uma porcentagem significativa da população, comemprego, ganha salários mínimos que se encontram abaixo das rendasque seriam necessárias para suprir os gastos básicos de uma família,mesmo que ela conte com a contribuição feminina. A situação geral,como indicam as pesquisas, mostra também um grande temor pela ins-tabilidade que caracteriza o mercado de trabalho. A tudo isso se so-mam dificuldades objetivas como as severas restrições para ter umacasa própria. Nessas condições, o jovem não se vê no papel de maridoe pai de uma família estável. Percebe que lhe será quase impossívelenfrentar as obrigações que isso supõe.

Um conflito semelhante parece ser um dos desencadeadores doabandono do lar por parte de jovens das zonas pobres urbanas. Katzman(1992) sugere que a aparente “irresponsabilidade” com que agem seriainfluenciada pela sensação de que estão perdendo legitimidade em seupapel de maridos e pais, por não poder cumprir com a obrigação deprover boa parte da renda familiar. Sentem prejudicada sua auto-esti-ma no âmbito externo, pela dificuldade de encontrar emprego estável,e no familiar, porque não estão agindo de acordo com o que se esperadeles. A isso se soma um crescente nível de expectativas de consumonos filhos de famílias humildes, influenciado pela mensagem dos meiosde comunicação de massa. O jovem cônjuge sente-se assim muito soli-citado, impotente para poder enfrentar as demandas, e desacreditado.Em psicologia social afirma-se que, nessas situações altamente opressi-vas, as pessoas ou tendem a enfrentá-las até as últimas conseqüênciasou a produzir os chamados mecanismos de “fuga”.

Nascimentos ilegítimos

Um claro sintoma de deterioração da unidade familiar é o au-mento do número de filhos ilegítimos. A resistência a formar família

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estimula o crescimento da taxa de nascimentos desse tipo. Os estudosde Katzman sobre o Uruguai mostram a seguinte tendência:

Como se observa, em apenas 18 anos o número de filhos ilegíti-mos em Montevidéu aumentou 65%. A ilegitimidade apresenta-se maiselevada entre as mães mais jovens, mas é alta em todas as idades.

Mães precoces

Aumentou significativamente na região o número de mães ado-lescentes.

Na grande maioria dos casos, a maternidade na adolescência nãoconstitui famílias integradas. Fica só a mãe, com os filhos. É também umacausa importante do aumento de crianças ilegítimas a que nos referimosantes e constitui, por si só, uma fonte de famílias extremamente frágeis.

Segundo os números disponíveis, está estreitamente ligada à po-breza. Nos centros urbanos, nos 25% mais pobres da população, 32%dos nascimentos são de mães adolescentes. Nas zonas rurais, a porcenta-gem chega a 40%. Nos 25% seguintes, em nível de renda, a porcentagemé de 20% nos centros urbanos e de 32% nas áreas rurais. No total, 80%dos casos de maternidade adolescente urbana, da região, estão concen-trados nos 50% mais pobres da população, ao passo que nos 25% maisricos só ocorrem 9% dos casos. Nas zonas rurais, os números são os se-guintes: 70% dos casos nos 50% mais pobres e 12%, nos 25% mais ricos.

Mesmo no interior dos setores pobres, observa-se que quanto maioré o nível de pobreza, mais alta é a taxa de maternidade adolescente.

Anos Taxas de ilegitimidade

1975 20,9

1984 23,8

1993 34,5

Fonte: Katzman, 1997.

Quadro 3Uruguai: ilegitimidade de nascimentos

Em Montevidéu, 1975, 1984 e 1993

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62 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

A forte correlação entre pobreza e maternidade adolescente per-mite inferir que aumentos na pobreza, como os que estão ocorrendo naregião, servirão de estímulos para esse tipo de maternidade e, portanto,para a geração de famílias muito frágeis.

Uma variável central nesse processo é um componente da pobre-za: as carências educacionais. Nos centros urbanos da região, a porcen-tagem de mães adolescentes entre as jovens urbanas com menos deseis anos de educação é de 40%. Supera as médias nacionais de 32%.No grupo que tem de 6 a 9 anos de estudo, a porcentagem de casos dematernidade adolescente diminui para 30%. Nas jovens com 10 a 12anos de estudo, diminui para 15%, e nas que têm 13 anos de estudo oumais, é inferior a 10%.

A situação que se esconde por trás da gravidez adolescente nossetores desfavorecidos configura um “círculo perverso regressivo”. Apobreza e a desigualdade influenciam severamente tais setores emmatéria educativa. Com limitada escolaridade (lembre-se que a escola-ridade média de toda a América Latina é de apenas 5,2 anos e a dossetores pobres é consideravelmente menor), verificam-se condições quefacilitam a gravidez adolescente. Por sua vez, a maternidade na adoles-cência vai levar essas jovens a interromper seus estudos. Os númerosindicam que as mães pobres adolescentes têm entre 25% e 30% menosde capital educativo que as mães pobres que não tiveram gravidez ado-lescente. Ao ter menor nível educativo, e filhos, as mães adolescentesverão reduzidas suas possibilidades de encontrar trabalho e ter renda,de modo que a situação de pobreza se consolida e se aprofunda.

Violência doméstica

O fenômeno da violência doméstica tem grande amplitude na re-gião. Segundo estimativas de Buvinic, Morrison e Shifter (1999), entre30% e 50% das mulheres latino-americanas — segundo o país em quevivem — sofrem de violência psicológica em seus lares, e entre 10% e35%, de violência física.

Além de sua crueldade básica, e de suas múltiplas repercussõessobre a mulher, a violência doméstica causa graves danos à estruturafamiliar e tem repercussões de todo tipo nos filhos. Um estudo realiza-do pelo BID na Nicarágua (1997) mostra que os filhos de famílias comviolência intrafamiliar são três vezes mais propensos a passar por con-sultas médicas e são hospitalizados com mais freqüência. Dentre essascrianças, 63% repetem anos escolares e abandonam a escola, em mé-

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dia, aos 9 anos de idade. As crianças de famílias sem violência perma-necem em média até os 12 anos na escola.

Por outro lado, a violência doméstica é também um modelo dereferência passível de ser reproduzido pelos filhos, o que os levará aconstituir famílias com sérias deficiências. Diversos estudos, entre eleso de Strauss (1980), indicam que a taxa de condutas dessa ordem, emcrianças que presenciaram esse comportamento em suas casas, superaamplamente a observada em filhos de famílias sem violência.

Embora o fenômeno seja muito complexo e sofra a influência denumerosas variáveis, a pobreza aparece claramente como um fator derisco-chave. De acordo com Buvinic (1997), no Chile, por exemplo, oscasos de violência física são cinco vezes mais freqüentes nos grupos debaixa renda, e a violência física grave é sete vezes mais comum neles.Essa relação também se verifica em outros países.

As realidades cotidianas de desemprego, subemprego, informali-dade, antes mencionadas, e outros processos de deterioração econômi-ca, tornam extremamente tensas as relações intrafamiliares e criam am-bientes propícios a esse fenômeno, fatal para a integridade da família.

Incapacidade da família de proporcionar uma infância normal

A pobreza e a desigualdade põem numerosas famílias em sériasdificuldades para poder dar a seus filhos a infância que desejariam e queseria ideal. A pressão das carências desencadeia uma série de situaçõesque afetam duramente as crianças, criam todo tipo de conflitos na uni-dade familiar e impedem que a família cumpra muitas de suas funções.

Uma das principais expressões da problemática que se apresentaé a figura da criança que trabalha desde cedo. Obedece em muitíssimoscasos a razões essencialmente econômicas. É mandada a trabalhar, ouprocura trabalho para poder levar algum dinheiro para a família caren-te de que provém e poder subsistir pessoalmente. Como assinalou rei-teradamente a OIT, a situação da criança que trabalha é muito dura econtradiz os acordos internacionais vigentes de proteção da criança eos objetivos básicos de qualquer sociedade. São jornadas extensas, gra-ves riscos de acidentes de trabalho, nenhuma proteção social, magrasremunerações. O trabalho da criança em muitos casos também implicao atraso escolar ou, diretamente, o abandono do sistema educacional, oque a colocará em condições de inferioridade para ingressar no merca-do de trabalho no futuro.

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Os dados nacionais disponíveis seguem a mesma tendência. Se-gundo um estudo da Comissão de Emprego e Bem-estar Social do Con-gresso do México (1999), nesse país pelo menos 5 milhões de criançastrabalham e a metade delas abandonaram a escola. Setenta por centotrabalha entre 5 e 14 horas diárias. Segundo Barker & Fontes (1996), emum estudo preparado para o Banco Mundial, no Brasil 50% dos jovensde 15 a 17 anos estavam trabalhando em 1990, e o mesmo ocorria com17,2% das crianças de 10 a 14 anos. No Peru, 54% de crianças e jovensurbanos de 6 a 14 anos de idade trabalhavam. Na Colômbia, em 1992,380 mil crianças e jovens de 12 a 17 anos trabalhavam em áreas urbanase 708 mil em áreas rurais. Os pesquisadores acrescentam uma categoriaespecial, oculta: as meninas que trabalham como empregadas domésti-cas. Na Colômbia, em 1990, 9% das meninas de 15 a 19 anos de idadeexerciam esse tipo de trabalho, vivendo longe de suas famílias, na casade seus patrões. No Haiti, segundo a OIT (1999), 25% das crianças de 10a 14 anos fazem parte da força de trabalho. Segundo dados do Unicef(1995), na Venezuela 1.076.000 menores trabalhavam na economia in-formal, e outros 300 mil, na economia formal. Na Argentina, 214 milcrianças de 10 a 14 anos trabalham. Segundo estimativas da OIT (1999),no total, 17 milhões de crianças trabalham na América Latina.

O vínculo entre pobreza e trabalho infantil é muito estreito. No Bra-sil, estima-se que 54% das crianças menores de 17 anos que trabalhamprovêm de famílias com renda per capita inferior ao salário mínimo.

Os menores abandonados

Existe na região uma população crescente de crianças que vivemnas ruas de muitas cidades. Elas podem ser encontradas no Rio de Janei-ro, São Paulo, Bogotá, México, Tegucigalpa, e em muitas outras cidades,sobrevivendo em condições brutais. A cada dia buscam o sustento paraviver. Estão expostas a todo tipo de perigos. São perseguidas por gruposde extermínio e estima-se que não menos de três menores abandonadossão assassinados diariamente em cidades do Brasil, entre outros países.Não se conseguiu quantificar seu número preciso, mas parece que tendea aumentar significativamente. O papa João Paulo II, que sempre denun-ciou esta situação desumana, as caracterizou como “crianças abandona-das, exploradas, doentes”. Bruce Harris, diretor de uma das organiza-ções não-governamentais com mais atividades e sucessos neste campo, aCasa Alianza, com sede na Costa Rica, destacou: “É um fenômeno socialnão atendido que se converteu em um problema, porque a resposta da

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sociedade em geral é repressiva, em vez de investir para que tenham asoportunidades que muitos de nós tivemos”.

A presença e o aumento de menores de rua estão relacionados amuitos fatores, mas denotam claramente uma ruptura profunda da es-trutura básica de contenção, a família. Os processos de erosão e dedesarticulação familiar, de constituição de famílias precárias e as ten-sões extremas que a pauperização gera no interior da família minamsilenciosamente a capacidade destas de manter essas crianças em seuseio. É uma situação limítrofe que indica a gravidade do silenciosoenfraquecimento de muitas unidades familiares da região.

Todas as manifestações regressivas mencionadas: mulheres sozi-nhas chefes de família, resistência de homens jovens a constituir famí-lias, nascimentos ilegítimos, mães precoces, violência doméstica, inca-pacidade das famílias de proporcionar uma infância normal, menoresabandonados, devem ser vistas, em seu conjunto, como parte desse qua-dro de enfraquecimento, devem ser privilegiadas nas políticas públicase por toda a sociedade, e devem-se buscar soluções urgentes para elas.

Uma reflexão de conjunto

É possível enfrentar o conjunto de problemas identificados?Não é admissível nenhuma declaração de impotência a esse res-

peito: a América Latina tem enormes recursos potenciais de carátereconômico e uma história plena de valores para encarar problemas dessaordem. Atualmente, conta também com um feito de proporções gigan-tescas, a democratização da região. Esse desafio deve ser prioridadepara as democracias estabelecidas em toda a região, com tanto esforçoe luta da população. É o que se espera de um sistema democrático.

Amartya Sen (1981) mostrou como as grandes fomes do século XXocorreram sob regimes ditatoriais. Em contrapartida, na democracia, apressão da opinião pública, dos meios de comunicação, de diversasexpressões da sociedade organizada obriga os poderes públicos a pre-veni-las.

Os Estados e as sociedades latino-americanas devem propor am-plos pactos sociais para fortalecer a família.

As políticas públicas na região devem levar na devida conta atranscendência dos papéis desempenhados pela família e atuar em con-sonância com eles. No discurso público habitual na América Latinafaz-se contínua referência à família, mas na verdade não há um regis-

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tro em termos de políticas públicas. São limitados os esforços paramontar políticas orgânicas de proteção e fortalecimento da unidadefamiliar, acossada pelo avanço da pobreza e da desigualdade. Existemnumerosas políticas públicas setoriais, dirigidas às mulheres, às crian-ças, aos jovens, mas poucas tentativas de armar uma política vigorosapara a unidade que os emoldura a todos, e que vai incidir profunda-mente na situação de cada um, a família.

A política social deveria estar fortemente voltada para essa unida-de decisiva. É preciso dar apoio concreto à constituição de famílias nossetores desfavorecidos, proteger detalhadamente as diversas fases damaternidade, respaldar a sobrecarga que se apresenta para as famíliascom problemas econômicos nos momentos fundamentais de sua exis-tência, dar-lhes apoio para erradicar o trabalho infantil e para que seusfilhos possam se dedicar à escola, desenvolver uma rede de serviços deapoio às crianças (creches, subsídios para idosos e portadores de defi-ciências etc.), ampliar as oportunidades de desenvolvimento cultural ede lazer familiar. Isto exige políticas explícitas e que se conte com ins-trumentos organizacionais para sua execução, atribuição de recursos,alianças entre setor público e setores da sociedade civil que podemcontribuir para esses objetivos.

O peso da pobreza e da desigualdade sobre os setores humildes daAmérica Latina está criando “situações sem saída”, que é imprescindí-vel enfrentar, através de políticas como as mencionadas e outras queabordem os planos transcendentais do emprego, da produção e diver-sos aspectos econômicos. É inadmissível que possam continuar atuan-do “círculos viciosos” como o que é captado por um informe da Cepal(1997b) sobre a família. Ali se assinala que “segundo o país, entre 72%e 96% das famílias em situação de indigência ou pobreza têm pais commenos de nove anos de instrução”. Isto significa que a pobreza acarretaa limitada educação na América Latina, que, por sua vez, leva a formarfamílias cujos filhos terão escolaridade reduzida, o que influirá paramanter destinos familiares de pobreza por gerações e gerações.

Poder-se-á argumentar que não existem recursos para levar adian-te políticas familiares renovadas. É necessário, desde já, fazer todo opossível para que os países cresçam, melhorem sua produtividade ecompetitividade, e para que os recursos sejam ampliados, mas ao mes-mo tempo se torna imprescindível não perder de vista as prioridadesfinais do desenvolvimento e deve-se procurar protegê-las. Socieda-des mais pobres que outras têm, contudo, melhores resultados emtermos de família, porque em suas políticas públicas e em suas atri-

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CONFRONTANDO AS REALIDADES ... 67

buições de recursos deram efetivo apoio às mães, às crianças e àsunidades familiares. Deve-se também ampliar os recursos convocan-do toda a sociedade a participar ativamente de políticas de respaldo àfamília. Diversas sociedades avançadas do mundo contam, nesse cam-po, com importantes contribuições da sociedade civil e do trabalhovoluntário.

Ao fortalecer a família, melhora-se o capital humano da socieda-de, eixo do crescimento econômico, e o desenvolvimento social, baseda estabilidade democrática. Além disso, agir nessa direção não é ape-nas melhorar um meio, mas sim o fim último de toda sociedade demo-crática. A família é uma base fundamental para múltiplas áreas de ati-vidade, mas é sobretudo um fim em si mesma. Fortalecê-la é dar umpasso efetivo para as possibilidades de desenvolvimento das potencia-lidades do ser humano, é dignificá-lo, é ampliar suas oportunidades, éaumentar sua liberdade real.

Cada hora que passa nesta América Latina, afetada pelos proble-mas sociais descritos, sem que haja políticas efetivas em campos comoesse, significará mais famílias destruídas, ou que nem chegam a se for-mar, mães adolescentes, crianças abandonando a escola, jovens excluí-dos. A ética, em primeiro lugar, a proposta de pluralismo da democra-cia e o ideário histórico da região exigem que se somem esforços paraagir com urgência para evitá-lo.

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COMO REFORMAR O ESTADO ... 69

Capítulo 3

COMO REFORMAR O ESTADO PARA ENFRENTAR OSDESAFIOS SOCIAIS DO SÉCULO XXI?

Capítulo 3

COMO REFORMAR O ESTADO PARA ENFRENTAR OSDESAFIOS SOCIAIS DO SÉCULO XXI?

Mais interrogações do que respostas

As reivindicações vêm bem lá de baixo, das populações maciçasde todo o globo, e têm sido expressas em alto e bom som por alguns doslíderes mais ouvidos do planeta. Figuras do porte do papa João Paulo IIe do secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Annan, desta-caram mais de uma vez em suas recentes aparições públicas que o sé-culo XXI abre-se com uma exigência fundamental: compatibilizar glo-balização econômica e crescimento tecnológico com eqüidade e de-senvolvimento humano para todos.

Os avanços científico-tecnológicos das últimas décadas têm sidoexcepcionais. Produziram-se mudanças radicais em diversos camposque empurraram em pouco tempo até limites totalmente imprevisíveisas fronteiras tecnológicas. Em áreas tais como: comunicações, infor-mática, robótica, biotecnologia, genética e muitas outras, a taxa de ino-vação não reconhece precedentes em profundidade e velocidade. Acapacidade conseguinte de produção de bens e serviços multiplica-secontinuamente e, por sua vez, abriu-se uma variedade de novos terre-nos para o investimento. Tudo isso veio se dando ao mesmo tempo quea economia mundial ia se reconformando sob o impetuoso processo daglobalização. A expansão acelerada dos grandes conglomerados em-presariais internacionais, sua tendência à fusão e concentração, sua

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70 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

operação sob estratégias regionais, intercontinentais e planetárias, dei-xando de lado os cálculos em nível nacional, foram mudandoparâmetros básicos do funcionamento das economias.

O processo é portador de potencialidades imensas de desenvolvi-mento tecnológico e melhoria dos níveis de competitividade e produti-vidade das unidades empresariais envolvidas, mas se apresenta, porseu lado, infinitamente complexo e contraditório em campos como odesemprego, eqüidade, pobreza e os problemas sociais em geral. O se-cretário-geral da OIT, Juan Somavía (2000), assinalou recentemente:“A globalização destrói as indústrias tradicionais e cria, em conseqüên-cia, um aumento do número de desempregados superior ao que os se-tores industriais de tecnologia avançada são capazes de absorver. Oresultado é a marginalização dos trabalhadores do mundo industriali-zado e também do menos desenvolvido que não dispõem de possibili-dades para adaptar-se à nova situação”. As cifras de pobreza aumenta-ram significativamente em muitas realidades nacionais. A desigualda-de alcançou níveis históricos recordes e se expandiu a numerosas esfe-ras. Ao mesmo tempo que os avanços em pesquisa em saúde são prodi-giosos, aumentou o número de pessoas que perdem a vida por doençasque cientificamente podem ser combatidas, mas que não são controla-das, por outras causas. Segundo anota Jeffrey Sachs (1999), doençascomo a malária e o paludismo de populações pobres ficam, por exten-são, fora da lógica do mercado, que não obteria benefícios maiores in-vestindo em suas pesquisas. Em outra área, a pobreza e, particular-mente, o desemprego juvenil estão incidindo num crescimento acele-rado da criminalidade, em especial da criminalidade, jovem, em diver-sas sociedades em desenvolvimento.

Este quadro global gerou uma infinidade de perguntas. Como afron-tar os novos desequilíbrios? Como conseguir capturar produtivamentepara benefício do gênero humano em geral os tão promissores avançostecnológicos e produtivos? Quais são as novas instituições e regras ne-cessárias?

A evolução da situação levou novamente a centrar aspectos dodebate nos papéis que o Estado deveria desempenhar. Nos anos 1980, adiscussão a respeito parecia encerrada. Predominavam correntes deopinião que consideravam que o Estado em quase todas as suas expres-sões era um “estorvo” para o mercado. Que este resolveria por si só osproblemas e que o Estado deveria, por extensão, desmantelar-se e re-duzir-se a sua mínima expressão. Estas visões vinham substituir as

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COMO REFORMAR O ESTADO ... 71

idéias de que o Estado sozinho poderia gerar o desenvolvimento, queforam características de décadas anteriores. Hoje, ambos os extremosdo pêndulo foram desmentidos pelos fatos concretos. Assim como foierrônea a concepção centrada na onipotência do Estado, a realidadedemonstrou que o mercado possui um grande potencial produtivo, masque se estiver carente de regulações, pode gerar desequilíbrios de enor-me envergadura. O Informe sobre Desenvolvimento Humano 1999 doPNUD focaliza alguns deles:

“Quando o mercado vai longe demais no controle dos efeitos sociaise políticos, as oportunidades e as recompensas da mundialização difun-dem-se de modo desigual e inócua, concentrando o poder e a riquezanum grupo seleto de pessoas, países e empresas, deixando à margem osdemais. Quando o mercado se descontrola, as instabilidades saltam àvista nas economias de auge e depressão, como a crise financeira da ÁsiaOriental e suas repercussões em escala mundial. Quando o afã de lucrodos participantes no mercado se descontrola, desafia a ética dos povos esacrifica o respeito pela justiça e pelos direitos humanos”.

O pêndulo girou de um extremo ao outro. Ambos os extremos pro-duziram conseqüências muito discutíveis, e hoje abre-se uma nova ondade perguntas sobre como alcançar um equilíbrio diferente entre Esta-do, mercado e outro grande ator, a sociedade civil, e que papel o Estadopoderia desempenhar a respeito. As linguagens estão mudando. O BancoMundial (1997) assinalou em seu informe especial sobre o Estado que,sem um Estado eficiente, o desenvolvimento é muito difícil: “sem umbom governo, não há desenvolvimento econômico nem social”. A no-ção do Estado de Bem-Estar, aparentemente totalmente deslegitimadadurante o providencialismo de mercado, está sendo reexaminada a partirde outras perspectivas. Defende-se a idéia de um Estado de Bem-Estarprodutivo, e são revistas experiências de países que conseguiram avan-ços nessa direção, obtendo, devido a isso, bons resultados econômicose a manutenção de elevados equilíbrios sociais como os nórdicos e paí-ses baixos.

Este trabalho insere-se nessa situação em que há mais perguntasque respostas, apontando basicamente para um plano da situação. Dian-te da magnitude dos desequilíbrios sociais presentes, particularmenteno mundo em desenvolvimento, desejamos focalizar alguns delinea-mentos que deveriam ser considerados no momento de repensar o pa-pel do Estado no campo do desenvolvimento social. Para isso, nos pro-

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pusemos a extrair lições dos erros cometidos nas últimas décadas namarcha quase tresloucada do pêndulo. Desenvolveremos a respeito trêsetapas de raciocínio. Em primeiro lugar, queremos reconstruir um qua-dro sintético dos novos desafios de privações e desigualdades que seapresentam em nível mundial. Em segundo lugar, no âmbito desse qua-dro, pontuar lições da experiência sobre linhas a serem consideradaspara repensar como o Estado poderia auxiliar para enfrentar estesdesequilíbrios. Por último, extrair algumas conclusões sobre como avan-çar em direção a esse perfil de Estado.

Um mundo de perdedores e ganhadores

Impulsionada pelas revoluções tecnológicas em curso em diversoscampos, a produção mundial de bens e serviços tendeu a ampliar-sefortemente, o comércio mundial, por sua vez, expandiu-se no âmbito dainternacionalização da economia e prossegue a escalada de inovaçõestecnológicas que criam novas possibilidades de satisfazer necessidades.Entretanto, a crua realidade indica que, em seu conjunto, a situação evo-luiu no sentido, bem denominado hoje no jargão popular, de “ganhado-res e perdedores”. Tanto em termos de países, como no interior destes,há aqueles que se beneficiaram consideravelmente com os novos desen-volvimentos, que estão ativamente incluídos nos mesmos e, por outrolado, há setores muito importantes que ficaram à margem, que em diver-sos casos foram golpeados em seus modos de sobrevivência e equilíbriotradicionais e que pertencem ao vasto campo dos excluídos. Estas dis-tâncias entre aqueles que ganharam e os que perderam tendem a aumen-tar e o problema em sua globalidade foi o eixo central nos mais impor-tantes foros mundiais recentes, como, entre outros, os da World TradeOrganization, Davos, UNCTAD e há um clamor generalizado por que selhe dê a mais alta prioridade e se busquem modos de enfrentá-lo.

Resenham-se a seguir algumas das múltiplas dimensões em quese expressa esta dualidade perdedores/ganhadores, inclusão/exclusão,que hoje percorre o planeta.

Aumento da pobreza

Segundo os dados do Banco Mundial (1998), quase 1,3 bilhão depessoas ganham menos de um dólar por dia, vivendo na pobreza extre-

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COMO REFORMAR O ESTADO ... 73

ma; 3 bilhões de pessoas, metade da população mundial, recebem umarenda que não excede os dois dólares diários, encontrando-se assimem situação de pobreza. Os pobres apresentam uma altíssimavulnerabilidade em termos de saúde. Carecem de elementos que sãobásicos para qualquer enfoque de saúde preventiva. Três bilhões depessoas não possuem serviços de saneamento, 2 bilhões carecem deeletricidade e 1,3 bilhão de pessoas não têm água potável.

Estudos recentes sobre esse último fator essencial para a vida, aágua, indicam a magnitude das privações. A Comissão Mundial da Água(1999) informa que em seu desespero para ter água, os pobres com-pram, pagando por ela em média doze vezes mais do que o que pagamos estratos médios e altos. Em Lima, as famílias pobres pagam aos ven-dedores de água 20 vezes mais por metro cúbico do que o que pagam asfamílias de classe média conectadas à rede de água corrente; em Jacar-ta, 60 vezes mais; em Karachi (Paquistão), 83. A água se transforma,assim, numa parte importante do mísero orçamento dos pobres. Re-presenta 18% em Onitsha (Nigéria) e 20% em Porto Príncipe (Haiti). Aágua que lhes chega é de qualidade duvidosa e isso os torna vulnerá-veis a epidemias e doenças. Estima-se que a cada ano morrem 3,4 mi-lhões de pessoas por infecção direta da água, alimentos contaminadosou organismos portadores de doenças, como os mosquitos que medramna água.

A pobreza atinge ainda severamente outro campo fundamentalque é a nutrição. Segundo estimativas da FAO (1998), 828 milhões depessoas dos países em desenvolvimento padecem de fome crônica eoutros 2 bilhões apresentam deficiências de micronutrientes como vi-taminas e minerais.

Disparidades no acesso a um bem decisivo: a saúde

Apesar dos enormes e tão positivos avanços da medicina em nu-merosos campos, o aumento da pobreza, as carências por parte dospobres, de condições mínimas de grande impacto em prevenção emsaúde, como o saneamento básico, a eletricidade e a água, como jámencionamos, os problemas de desnutrição e a falta de acesso a servi-ços de saúde (880 milhões carecem deles) eram alguns dos fatores inci-dentes nas profundas disparidades existentes. As mesmas podem serobservadas no quadro seguinte:

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74 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

Como se observa, em 1997 a expectativa de vida nos 26 países maisricos era de 78 anos. Nos países mais pobres, por sua vez, era de apenas53 anos; 25 anos a mais de vida, conforme sua pertinência a uma ououtra área do globo. Para as crianças, a situação é ainda pior. Os avançosda medicina conseguiram reduzir a mortalidade infantil, nos 26 paísesmais ricos, a 6 em cada mil (morrem apenas 6 crianças antes de comple-tar um ano de idade, a cada mil nascimentos). Já nos 49 países maispobres, morrem cem a cada mil antes de alcançar um ano, 16 vezes mais.

As doenças dos pobres são, ainda, muito diferentes das dos seto-res de melhor renda, como pode-se ver no gráfico a seguir.

Quase 60% das mortes dos 20% mais pobres da população mun-dial são causadas por doenças transmissíveis, pela desnutrição e pelamortalidade materna e perinatal. Essa cifra poderia ser reduzida se ospobres tivessem acesso à saúde preventiva e curativa e a uma nutriçãoadequada. Nos 20% mais ricos da população mundial, estas causas demorte apenas geram 8% das mortes, a maioria delas decorrem de doen-ças não-transmissíveis (cardíacas, câncer e outras).

O Banco Mundial (1993) estima que 7 milhões de adultos morremanualmente por doenças transmissíveis que poderiam ser prevenidas oucuradas com custos mínimos. Apenas a tuberculose causa 2 milhões demortes anuais e a malária, 1 milhão. As mortes de crianças poderiam sersubstancialmente reduzidas. Quase a metade das crianças que morremem países pobres, morrem devido a diarréia e doenças respiratórias, exa-cerbadas pela desnutrição. As taxas de mortalidade das mães, no nasci-

Gráfico 1Indicadores mundiais de saúde

1997

26 países mais ricos 49 países mais pobres

78 Expectativa de vida ao nascer 53(em anos)

8 Mortes antes dos 50 anos 73(percentuais do total de mortos)

8 Mortes antes dos 5 anos 144(a cada 1000 nascimentos)

6 Mortalidade infantil 100(mortes no primeiro ano de vida,

a cada 1000 nascimentos)

Fonte: Organização Mundial da Saúde, 1998.

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COMO REFORMAR O ESTADO ... 75

mento de seus filhos, também poderiam ser reduzidas de modo drásticose tivessem assistência médica adequada. São em média 30 vezes maio-res nos países em desenvolvimento do que nos ricos.

Segundo indicam os especialistas (Musgrave, 1996), junto a suasmúltiplas carências, os pobres padecem de “indigência médica”, seuacesso real a serviços de saúde razoáveis é muito reduzido.

A Organização Mundial da Saúde (1998) descreve vividamente asituação de conjunto:

“Os pobres suportam uma parte desproporcionalmente grande dacarga mundial de morbilidade e sofrimento. Costumam residir em mora-dias insalubres e fazendas, em zonas rurais ou favelas da periferia poucoassistidas. Estão mais expostos que os ricos à contaminação e a outrosriscos no lar, no trabalho e em suas comunidades. Ainda, é mais prová-vel que sua alimentação seja insuficiente e de má qualidade, que consu-mam fumo e que estejam expostos a outros danos para a sua saúde. Emgeral, esta situação reduz sua capacidade de levar uma vida social e eco-nomicamente produtiva e se traduz em uma distribuição diferente dascausas de mortalidade. As desigualdades e a crescente diferença entrericos e pobres, em muitos países e comunidades, ainda quando exista um

Gráfico 2Distribuição da mortalidade segundo suas causas entre os

20% mais ricos e os 20% mais pobres da população mundial(estimativas de 1990)

Perc

enta

gem

da

mor

talid

ade

tota

l

150

0

100

5059

32

85

8

79

20% mais pobres 20% mais ricos

Fonte: A saúde para todos no século XXI, Organização Mundial da Saúde, 1998.

Grupo I: mortes por doenças transmissíveis, mortalidade materna eperinatal e mortes por causas nutricionais

Grupo II: mortes por doenças não-transmissíveis

Grupo III: mortes como conseqüência de traumatismos

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76 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

crescimento econômico contínuo, ameaçam a coesão social e, em váriospaíses, contribuem para a violência e tensão psicossocial”.

A escalada da desigualdade

Assinalava recentemente James Wolfensohn (2000), presidente doBanco Mundial, alertando sobre o crescimento das polarizações: “A di-ferença entre os países ricos e os pobres está se tornando maior (...) osricos estão se tornando mais ricos e os pobres, mais pobres”. E sublinha:“O tema da pobreza e da eqüidade é realmente um problema de todos”.

Efetivamente, as cifras indicam que o aumento das desigualdadesé uma característica destes tempos.

Os dados apresentados pelo Informe de Desenvolvimento Humano1999 do PNUD são muito ilustrativos a respeito:

a) Cresceram consideravelmente as diferenças entre países. O cres-cimento tem sido muito desigual na última década. Mais de 80países têm renda per capita inferior ao que possuíam uma dé-cada atrás, ou mais; 55 países, a maioria deles na África sub-saariana, no Leste Europeu Oriental e na Comunidade dos Es-tados Independentes, sofreram uma redução de sua renda. Poroutro lado, 40 países tiveram um crescimento médio da rendaper capita superior a 3% anual desde 1990.

b) As distâncias entre os 20% da população mundial que vive nospaíses mais pobres e os 20% que vivem nos países mais ricossuperaram em muito todas as previsões. As diferenças de ren-da entre ambos, que eram de 30 para 1 em 1960, passaram a serde 60 para 1 em 1990, duplicando-se em apenas três décadas.No entanto, em 1997, já tinham chegado a 74 para 1. A taxa decrescimento da desigualdade continuava se acelerando.

c) É possível construir o seguinte quadro sobre as participaçõesdos 20% que vivem nos países mais ricos e dos 20% que vivemnos mais pobres, em aspectos-chaves.

d) As desigualdades não só se dão entre países e amplos setoresda população. As características do processo levaram a con-centrações em muito poucas mãos. O PNUD (1999) qualificaesse processo muito categoricamente. Afirma que “as desigual-dades globais em rendas e padrões de vida alcançaram propor-ções grotescas”.

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COMO REFORMAR O ESTADO ... 77

Entre outras cifras, podemos indicar:• Os ativos combinados das três pessoas mais ricas do mundo são

superiores ao Produto Nacional Bruto somando o dos 48 paísesmenos adiantados;

• Os ativos das 200 pessoas mais ricas são superiores à renda com-binada dos 41% da população mundial;

• A disparidade é tal que uma contribuição anual de apenas 1%da riqueza das 200 pessoas mais ricas do mundo permitiria daracesso à educação primária a todas as crianças do planeta.

e) Os coeficientes de Gini, medida que registra a desigualdade nadistribuição da renda (1 é a desigualdade total; 0, a igualdadetotal), cresceram fortemente em grande parte do mundo em de-senvolvimento. Enquanto nos países nórdicos estão ao redorde 0,25 e nos países desenvolvidos em geral em 0,30, na Améri-ca Latina o coeficiente está em 0,58%. Pode-se observar a gravi-dade das desigualdades no seguinte quadro:

Participação na renda 20% mais pobres 20% mais ricos Coeficiente de Gininacional do país

Peru 4,4 51,3 0,46

Equador 2,3 59,6 0,57

Brasil 2,5 63,4 0,59

Paraguai 2,3 62,3 0,59

Quadro 2Desigualdade em alguns países latino-americanos

Fonte: Informe de progresso econômico e social, BID, 1998.

Dimensão 20% mais ricos 20% mais pobres

Participação no Produto Interno Bruto Mundial 86% 1%

Participação na exportação de bens 82% 1%

Recepção de investimentos estrangeiros diretos 68% 1%

Quadro 1Brechas mundiais no final dos anos 1990

Os Gini pioraram sensivelmente também no Leste Europeu, comose pode ver no quadro a seguir.

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78 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

Desigualdades nas oportunidades tecnológicas

Os novos avanços tecnológicos como a Internet criaram oportuni-dades inéditas para a espécie humana. As possibilidades que se abremcom o acesso à informação e ao conhecimento, compartilhando esfor-ços de pesquisa e desenvolvimento técnico, educação a distância, co-mércio eletrônico e bens e serviços, e muitas outras, são poderosas eestão mudando a face de numerosas atividades produtivas.

Estão muito próximas também as possibilidades de interligar atelefonia avançada e os computadores, gerando novas oportunidadesainda mais amplas. Entretanto, o contexto histórico concreto está de-terminando que este seja um campo em que o eixo inclusão/exclusãofuncione com enorme força. Por um lado, estão aqueles que estão apro-veitando a fundo estas oportunidades e as mesmas passaram a fazerparte importante de seus recursos para inserir-se e competir na econo-mia. Por outro lado, enormes contingentes da população estão fora dapossibilidade real de ter acesso a elas, excluídos do poderoso mundovirtual em contínuo crescimento.

Ilustram a evolução da situação alguns dos indicadores geradospelo Informe sobre Desenvolvimento Humano do PNUD:

a) Acesso à Internet:• Os 20% mais ricos da população mundial possuem 93,3% dos

acessos à Internet, os 20% mais pobres, apenas 0,2% e os 60%intermediários, apenas 6,5%.

Quadro 3Leste Europeu

(Coeficiente de Gini)

Fonte: Milanovic, 1998; Ruminska-Zimny, 1999. In: Informe sobre DesenvolvimentoHumano, 1999, PNUD.

1997/98 1993/95 Aumento

Ucrânia 0,23 0,47 0,24

Rússia 0,24 0,48 0,24

Lituânia 0,23 0,37 0,14

Hungria 0,21 0,23 0,02

Polônia 0,26 0,28 0,02

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COMO REFORMAR O ESTADO ... 79

• Um fato decisivo de exclusão é a renda familiar. Comprar umcomputador significa para um habitante médio de Bangladeshmais de oito anos de renda. Para um norte-americano médio,significa metade do salário de um mês. Nos Estados Unidos, hámais computadores do que no resto do mundo combinado.

• Por sua vez, os custos de conexão com a Internet são muito dife-rentes. Em vários países africanos, o custo mensal médio da co-nexão e seu uso podem chegar até cem dólares em contrastecom os dez dólares cobrados nos Estados Unidos.

• Outro fator de exclusão é o nível educativo. Os 30% dos usuáriosda Internet no mundo têm pelo menos um diploma universitário.

• Também incide na exclusão o domínio do inglês. Esse idiomapredomina em 80% dos sites da web. Por outro lado, apenas10% da população mundial fala inglês.

A situação por regiões no mundo é descrita no quadro seguinte:

População regional Usuários da Internet(em porcentagem da (em porcentagem dapopulação mundial) população regional)

Estados Unidos 4,7 26,3

OCDE (exceto Estados Unidos) 14,1 6,9

América Latina e Caribe 6,8 0,8

Sudeste da Ásia e Pacífico 8,6 0,5

Leste da Ásia 22,2 0,4

Leste Europeu e CEI 5,8 0,4

Estados Árabes 4,5 0,2

África Sub-saariana 9,7 0,1

Ásia Meridional 23,5 0,04

Mundial 100 2,4

Quadro 4Usuários da Internet: levantamento mundial

(meados de 1998)

Nota: República Checa, Hungria, México, Polônia, República da Coréia e Turquia estãoincluídos na OCDE e não nos agregados regionais.Fonte: Baseado em dados fornecidos pela Nua, 1999, Network Wizards, 1998, e IDC, 1999.Incluído no Informe sobre Desenvolvimento Humano, 1999, do PNUD.

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80 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

Como se observa, as disparidades no número de usuários daInternet são de grande volume. Nos Estados Unidos, 26% da populaçãoera usuária da Internet. Na Ásia Meridional, onde vive 25% da popula-ção mundial, apenas 0,04% estava ligada à rede.

Numa visão de conjunto, em meados de 1998, os países industria-lizados que tinham menos de 15% da população do planeta contavamcom 88% dos usuários da Internet.

Finalmente, estão se gerando duas realidades totalmente diferen-tes que contribuirão para o fortalecimento dos altos níveis de desigual-dade já detalhados, a não ser que se atue efetivamente a respeito. Asituação é agudamente descrita pelo PNUD (1999): “Esta exclusividadeestá criando mundos paralelos. Os que têm renda, educação e — linear-mente — conexões, têm acesso barato e instantâneo à informação. Oresto fica com acesso incerto, lento e caro. Quando os habitantes des-ses mundos vivem e competem lado a lado, a vantagem de estarconectado relegará os marginalizados e empobrecidos, excluindo suasvozes e suas preocupações do diálogo mundial”.

b) Redes telefônicasAs redes telefônicas, fundamentais nos planos mais elementares

da existência, estão chamadas a ter um papel estratégico crescente, vis-to seu papel no mundo da informática e nos múltiplos planos de inter-relação que estão se configurando entre campos como a telefonia celu-lar e outras áreas da informação. O acesso é, aqui também, totalmentediferencial para os diversos setores da população mundial.

O número de telefones por cada 100 habitantes é totalmente dife-rente no mundo, como podemos apreciar no quadro seguinte:

Fonte: ITU, 1998, in: Informe sobre o Desenvolvimento Humano, 1999, do PNUD.

Quadro 5Linhas telefônicas principais por cada 100 habitantes

(em alguns países)

mais de 60 Suécia, Estados Unidos

mais de 50 França

entre 40 e 50 Taiwan, Itália

entre 10 e 20 Argentina, Costa Rica, Arábia Saudita

entre 0 e 10 China

menos de 1 Haiti, Quênia, Serra Leoa, Bangladesh, Tanzânia, Uganda, Afeganistão

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COMO REFORMAR O ESTADO ... 81

Como se observa, numerosos países possuem menos de um telefo-ne por 100 habitantes. Mônaco, por sua vez, possui 99 telefones porcada 100 habitantes. A Tailândia, sozinha, possui mais telefones celu-lares do que toda a África.

Em total, 20% da população mundial que vive nos países maisricos possui 74% das linhas telefônicas do mundo, enquanto os 20%mais pobres têm apenas 1,5%.

As grandes brechas em matéria de acesso a telefones, os custosdiferentes das ligações telefônicas e as distâncias de renda determinamum uso muito diferente deste meio básico de comunicação nos dife-rentes setores da população. Assim, produto fundamental num mundoglobalizado, a ligação telefônica internacional tem uma freqüência muitodesigual, como se pode observar no quadro a seguir:

Suíça 247

Canadá 100

Estados Unidos 60

Austrália 54

Costa Rica 18

Tailândia 4

Colômbia 3

Egito 2

Federação da Rússia 2

Benim 1

Gana 1

Paquistão 1

Quadro 6Minutos de ligações telefônicas internacionais por ano por habitante

(em alguns países, 1995)

Fonte: Statistical year book, da Unesco, 1998, in: Informe sobre o Desenvolvimento Humano,1999, do PNUD.

Como se vê, as distâncias existentes são enormes. Em diversospaíses, a média de ligações telefônicas internacionais chega a ser infe-rior a uma por habitante ao ano, ou seja, transforma-se numa possibili-dade quase inexistente.

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82 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

c) Um ponto central é o que tem que ver com o futuro das oportu-nidades tecnológicas. A base dos explosivos avanços tecnológicos emcurso é a pesquisa e o desenvolvimento. Os gastos respectivos estãohoje crescentemente concentrados nos países ricos. 84% do gasto mun-dial em pesquisa e desenvolvimento era realizado em 1993 em apenasdez países. Portanto, os mesmos estão orientando a definição de priori-dades e as agendas de pesquisa. Além disso, tendem a assegurar para sio controle dos produtos finais através dos novos regimes internacio-nais de patentes. Esses dez países controlavam 95% das patentes dosEstados Unidos dos dois últimos decênios. Por outro lado, 80% daspatentes outorgadas em países em desenvolvimento foram dadas a re-sidentes de países industrializados.

Ali, silenciosamente, está se produzindo uma forte exclusão dospaíses em desenvolvimento, do acesso à pesquisa do futuro e das pos-sibilidades de influir sobre a definição das linhas de pesquisa e conse-guir que suas necessidades básicas sejam incluídas entre elas.

O tema da vulnerabilidade

Uma das dimensões mais agudas das brechas de desigualdadescaracterísticas do cenário histórico geral atual é a diferente situaçãodos países ricos e pobres e dos diferentes setores de população destesúltimos, diante das crises econômicas e dos desastres naturais. A expe-riência histórica das últimas décadas foi muito rica neste item e algu-mas conclusões são claras.1

Ambos os tipos de problemas não são exceções que, por extensão,apenas requereriam um tratamento ad hoc. Demonstraram-se parte in-tegrante do devir histórico normal. As crises econômicas como a doSudeste asiático têm fortes efeitos em cadeia na economia internacio-nalizada, e as conseqüências sociais podem ser de extrema gravidade.Os níveis de vulnerabilidade são determinantes quanto ao peso quepodem ter, e os setores mais desprotegidos são rapidamente arrastadospor elas. Ainda em circunstâncias em que se resolvem, aspectos bási-

1. O problema dos diversos níveis de vulnerabilidade frente às crises econômicas e natu-rais e da necessidade de políticas especiais de proteção para os setores desfavorecidos foi desen-volvido pioneiramente nos trabalhos de Nora Lustig. Ver a respeito, entre eles: Lustig, N.“Economic crisis and the poor”. In: Social protection for equity and growth. Washington, Inter-American Development Bank, 2000.

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COMO REFORMAR O ESTADO ... 83

cos para esses setores, como o nível dos salários reais e as taxas deemprego, demoram muito em se recuperar.

Os desastres naturais têm uma presença ativa em todo o globo.Recorrentemente estão se apresentando em diversas zonas do planeta,em especial em áreas do mundo em desenvolvimento, e seus efeitos serepartem em forma totalmente desigual de acordo com o nível devulnerabilidade prévia da população. Caíram massivamente sobre ossetores de menores rendas e a imensa maioria das vítimas provinhadeles. Os graus de vulnerabilidade das famílias pobres e das de classemédia eram totalmente diferentes. Não basta responsabilizar pela cul-pa do problema desajustes não-previstos na natureza. Diante dedesajustes similares, o grau de proteção, qualidade das moradias e dasinfra-estruturas, as provisões de serviços de apoio e resgate, as medi-das de prevenção e outros fatores determinaram resultados totalmentediferentes.

Neste breve percurso por algumas das dimensões centrais dos ce-nários históricos contemporâneos, apreciamos a plena vigência dos ei-xos perdedores/ganhadores, incluídos/excluídos. Em todas as dimen-sões abordadas, crescimento da pobreza, saúde, desigualdade, acesso aoportunidades tecnológicas, vulnerabilidade, percebe-se que se encon-tram no meio da situação. Como enfrentar as imensas privações sociaisque implicam estes problemas? Todos os atores sociais deveriam assu-mir responsabilidades a respeito: Que papel especificamente cabe aoEstado frente a estas realidades do século XXI? Que atualizações lhesão necessárias para cumprir esse papel? A isso se dedica a seção se-guinte deste trabalho.

O papel do Estado no campo social. Algumas lições da experiência

As últimas décadas caracterizaram-se pela queda de diversas su-posições sobre como opera a realidade socioeconômica. As ilusões docrescimento fácil, e generalizado, impulsionado pela globalização tro-peçaram assim com um quadro muito mais complexo, onde, junto àsvastas potencialidades produtivas que a mesma desata, encontram-sedesequilíbrios sociais da magnitude dos antes referidos. Os erros nosâmbitos de análise da realidade têm sido também acompanhados porimportantes desacertos quanto a quais poderiam ser as soluções con-cretas mais apropriadas. Assim, referindo-se a um campo macroeconô-mico, a volatilidade financeira, assinala Hausmann (2000): “O velho

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84 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

paradigma está morto. Houve uma vez em que pensamos que o merca-do seria uma maquinaria que mediria as virtudes de um país. Se a eco-nomia de um país se comportasse responsavelmente, o mercado o re-compensaria. Se se comportasse irresponsavelmente, o mercado puni-ria. Aprendemos a dolorosa lição, durante a última década, de que osfluxos de capitais são muito voláteis”. A lógica da realidade se afastaneste campo das idéias predominantes a seu respeito.

Isto está ocorrendo de modo acentuado no campo social. Acredi-tou-se que os problemas poderiam ser resolvidos delegando-os em boaparte ao mercado. As respostas a respeito não foram alentadoras. Hánumerosas discrepâncias entre a lógica do mercado e característicasestruturais dos problemas sociais. Acreditou-se, por outro lado, quepelo simples caminho da mesma sociedade civil, poderiam ser solu-cionados os problemas. Este parece um caminho repleto de promessasinteressante, mas a experiência está indicando que sociedades civis,em muitos casos profundamente enfraquecidas pelos próprios proble-mas sociais, como as do mundo em desenvolvimento, têm limitaçõesfortes para, por si só, enfrentar esses problemas. Como destaca um es-tudo especializado a respeito (Kaztman, PNUD, Cepal, 1999): “Resulta,portanto, paradoxal que, no mesmo momento em que se afiança umapolítica que advoga pela redução das funções do Estado em matéria deproteção e assistência social, com o objetivo de transferi-las para a so-ciedade civil ou para as instituições solidárias geradas no seio da co-munidade, a família — como instituição primordial — mostre sinaisde não poder sustentar suas funções mais elementares, enquanto ascomunidades urbanas, através da segregação residencial, parecem terperdido o capital social comunitário no qual se apoiava sua capacida-de para contribuir para a formação da cidadania”.

Também outra apelação, mobilizar os ativos dos pobres, cheia deinteressantes perspectivas, tropeçou na prática com dificuldades mui-to concretas. Ainda mobilizando esses ativos, o que acontece com oacesso a oportunidades de mercado? Se não existe crédito, apoio tec-nológico e ajuda para chegar ao mercado, os progressos podem ser muitolimitados.

Tudo indica que é preciso fazer agir em todo o quadro um ator: apolítica pública, que pode auxiliar na potencialização de algumas dasvias anteriores e outras. Nas últimas décadas, a desvalorização dessapolítica e os severos cortes, em diversos países em desenvolvimento,de serviços públicos básicos criaram um vazio da ação pública em cir-

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COMO REFORMAR O ESTADO ... 85

cunstâncias contextuais, em que ela era mais demandada que nuncapelo crescimento da pobreza e da vulnerabilidade. Contrastando comisso, países desenvolvidos que mantiveram, apesar das restrições fis-cais, um investimento sustentado e importante em planos como a saú-de e a capacitação de sua população, tiveram, além de excelentes cifrassociais, altos créditos macroeconômicos, porque isso os coloca em sóli-das posições competitivas. O New York Times (Andrews, 1999) desta-cava em nota especial recente o caso da Suécia: excelentes resultadoseconômicos gerais e uma das mais baixas taxas de desemprego, devi-dos principalmente ao desenvolvimento permanente das capacida-des de sua mão-de-obra. O PNUD (1999) menciona o caso sueco comoexemplo:

“A formação de aptidões e a capacitação contribuíram para a eqüida-de e auxiliaram na prevenção do desemprego a longo prazo”.

Parece haver um amplo espaço para uma revalorização do papelque podem desempenhar as políticas públicas no mundo em desenvol-vimento em face dos problemas sociais. Não se trata de voltar às visõesonipotentes do Estado, mas de pensar num modelo estatal diferente,muito articulado em redes produtivas com a sociedade civil, em todasas suas expressões, e com as próprias comunidades pobres, tratandoem seu conjunto de encontrar soluções realmente válidas para os pro-blemas.

Há um clamor crescente nessa direção. Vai desde campos especí-ficos a propostas de conjunto. Entre muitos outros apelos que sugeremque há caminhos viáveis, Sachs (1999) afirma que se deve transformarnum problema público o desenvolvimento e a aplicação de vacinaspara epidemias: é inadmissível que continuem existindo, que o merca-do não os enfrentará pela falta de rentabilidade dos projetos respecti-vos. McGovern (2000) explica as conquistas que programas públicosobtiveram nos Estados Unidos, ministrando alimentos às criançasdesfavorecidas nas escolas e pede ação pública para programas simila-res em nível mundial para os 300 milhões de crianças em idade escolarcom fome. Assinala como as avaliações desta ordem de programas sãodeterminantes. Ao proporcionar almoço às crianças nas escolas, redu-zem-se as taxas de deserção, melhora o rendimento e sobe o número decrianças que concluem o ensino fundamental de 1ª a 4ª série. O PNUD(1999) traça um amplo plano de linhas de ação que os governos deve-riam impulsionar; entre elas:

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86 FALÁCIAS E MITOS DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL

• “Restaurar o pleno emprego e aumentar as oportunidades comoimportante prioridade da política econômica.

• Eliminar os preconceitos contra os pobres no âmbito macroeco-nômico.

• Investir na capacidade das pessoas pobres, reestruturando o gastopúblico e a tributação.

• Zelar pelo acesso das pessoas pobres a recursos produtivos, in-cluído o crédito.

• Aumentar a produtividade da agricultura em pequena escala.• Promover a microempresa e o setor não-estruturado.• Promover a industrialização com densidade de mão-de-obra para

aumentar as oportunidades de emprego”.

Para reduzir a desigualdade no mundo em desenvolvimento, pro-põe ainda as seguintes medidas por meio de alianças de governos, em-presas e ONGs:

• “Formar a capacidade humana mediante a educação e zelar peloacesso das pessoas pobres à educação. Demonstrou-se que a edu-cação é o ativo mais importante em que se baseia a disparidadede renda, e a dispersão salarial entre níveis de aptidão passou aser significativa.

• Fazer com que o abastecimento público de água limpa, a presta-ção de serviços de saúde e moradia sejam acessíveis às pessoaspobres.

• Colocar mais ativos financeiros e recursos produtivos à disposi-ção das pessoas pobres e criar empregos produtivos eremunerativos para eles.

• Reduzir a desigualdade mediante a tributação progressiva darenda e outras políticas redistributivas.

• Fazer transferências de renda e adotar outras medidas de prote-ção social durante os períodos de ajuste e crise, e executar pro-gramas contra a pobreza em benefício dos mais pobres”.

Para colocar em prática políticas destas características ou seme-lhantes, requer-se um Estado com linhas organizacionais renovadas.As últimas décadas indicaram a necessidade de políticas públicas, mastambém a urgência de atualizar as estruturas estatais executoras e desuperar a rigidez e a ineficiência demonstradas em diversos casos.

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Quais seriam algumas das linhas de reforma do Estado que pode-riam permitir que a política pública social cumprisse cabalmente pro-gramas como os sugeridos pelo PNUD e outros semelhantes?

Apresentamos, a seguir, resumidamente algumas delas. Configu-ram em seu conjunto o perfil do que se poderia chamar “um Estadosocial inteligente”.

a) Uma meta central: serviços públicos para todos

A pobreza não tem a ver apenas com o emprego e a renda de umgrupo familiar. Um componente central é a capacidade real de acesso aserviços públicos elementares. Já se viu, assim, como um fator de ris-co-chave em saúde pública nos países em desenvolvimento é a falta deacesso dos pobres a serviços que deveriam estar garantidos para toda apopulação, como saneamento, eletricidade e água potável. O mesmoocorre com o vital campo da educação. Se as políticas públicas nãointervierem ativamente na facilitação do acesso universal aos grausiniciais da educação, produzir-se-ão os mesmos desníveis grosseirosentre os diferentes setores sociais que fortalecerão a reprodução de “cír-culos perversos de desigualdade”. Assim, sem políticas públicas ati-vas, apenas as crianças dos estratos altos e médios poderão ter acessoao nível pré-escolar ou educação infantil, hoje considerado uma ins-tância ineludível e vital do processo de formação educativa. Por outrolado, o peso do acesso à educação tenderá a ser cada vez maior. Umtrabalho de pesquisa no Uruguai (Kaztman, 1999) conclui que na cida-de de Montevidéu, em 1981, jovens de 20 a 30 anos necessitavam denove anos de escolaridade para manter uma família sem pobreza. Hojesão necessários 17 anos de escolaridade.

A noção de serviços públicos deve incluir ainda a idéia que estáavançando no mundo desenvolvido de que é necessário garantir oschamados serviços de assistência, como serviços de cuidado diurnopara com crianças, cuidado para com os idosos, cuidado para com osdoentes, apoio à família em geral e proteção em caso de crise. Em di-versos países, alguns destes serviços são prestados pelas mulheres, semreconhecimento nem remuneração alguma, sobrecarregando-as dura-mente sua jornada. Estabelecem-se, desse modo, agudas desigualdadesde gênero.

Serviços públicos básicos de uma qualidade adequada para todosé uma das missões centrais da visão de um Estado social renovado.

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b) Criação de uma institucionalidade social forte e eficienteEspera-se dos governos dos países em desenvolvimento ativas e

efetivas políticas sociais. Porém, quais são os instrumentos organizacio-nais reais com que contam para isso? Em diversas ocasiões, são eleitospresidentes que fizeram do social o centro de sua proposta eleitoral etêm as melhores intenções de tratar de cumprir suas promessas. Narealidade, se deparam com o fato de que a institucionalidade existenteno Estado para isso é de grande fraqueza e que não podem, portanto,desenhar políticas ambiciosas, porque sua viabilidade organizacionalé muito baixa.

Em grande parte dos países em desenvolvimento o social éinstitucionalmente “a borralheira” da administração pública. Os mi-nistérios respectivos têm infra-estruturas muito antigas, carecem deum serviço civil profissionalizado, contam com recursos limitados. Poroutro lado, encontram-se de fato excluídos dos âmbitos de poder ondese tomam as grandes decisões de política econômica que vão incidirdecisivamente sobre o social. Agem no âmbito de parâmetros fixadosde fora, através das referidas decisões. Sua voz política é fraca e suascapacidades organizativas, precárias. Além disso, nos ajustes e recor-tes, costumam ser os primeiros na lista, destruindo-se com facilidadeprogramas que foram construídos com grande esforço ou perdendo-sevaliosas experiências.

O’Donnell (1999) descreve os danos institucionais causados ao se-tor público nas áreas sociais em anos recentes na América Latina empanorama que não difere muito em outras regiões em desenvolvimento:

“os salários, as condições de trabalho e as perspectivas profissionaisdos funcionários da área social que estão em contato direto com os po-bres e lhes prestam serviços (trabalhadores da limpeza, professores, as-sistentes sociais) se deterioraram tremendamente. Algo semelhante cabedizer dos funcionários da burocracia central que trabalham na políticasocial, tanto no plano nacional como especialmente no local. É sabidoque estas esferas do Estado têm sido amiúde bastiães de clientelismo eineficiência, mas a blitzkrieg desatada contra elas com o propósito dereduzir o déficit fiscal, ou por mero antiestatismo, não faz nada por me-lhorar sua situação. Pelo contrário, em vários países essa ofensiva prati-camente amputou o braço do Estado mais necessário para levar a cabopolíticas sociais razoavelmente eficazes”.

É preciso construir em muitos países em desenvolvimento a insti-tucionalidade social necessária. Remodelar a atual em direção à cons-

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tituição de ministérios e agências com características organizacionaismodernas. Criar uma gerência pública social de boa qualidade. Implan-tar um serviço civil baseado no mérito técnico neste campo. Dar realpeso político às áreas sociais, possibilitando-lhes participar, junto comos decisores econômicos, nas resoluções de fundo sobre políticas eco-nômicas que vão ter amplas implicações sociais.

c) Montagem de um sistema de informação para o desenho e mo-nitoramento das políticas sociais

Quais são os níveis de pobreza desagregados por regiões e municí-pios num país? Quais são as diversas formas da pobreza? Qual é emcada município a oferta de serviços sociais disponível frente à magni-tude da demanda? Como estão evoluindo variáveis básicas do social apartir dos níveis de ocupacionalidade, das formas de ocupação, até oscustos das cestas básicas de vida? Quais são os impactos sociais dediversas alternativas de política econômica? Que efeitos econômicosprodutivos podem ter, por sua vez, as diversas políticas sociais?

Estas e muitas outras perguntas-chaves para a formulação ade-quada de política social são de difícil resposta em muitos países emdesenvolvimento, pela carência de sistemas orgânicos de geração deinformação especializada sobre o social. Isto deixa os decisores sociaislivres para usar a informação produzida para outros propósitos, paravaler-se de dados não atualizados ou de qualidade duvidosa. A tudoisso soma-se um problema fundamental de monitoração. Uma gestãosocial eficiente requer informação em tempo real sobre quais são osresultados e impactos concretos que estão sendo produzidos. No so-cial, com freqüência surgem efeitos não planejados, alguns desfavorá-veis e outros positivos. O terreno é de alta imprevisibilidade. O moni-toramento cumpre funções essenciais.

O estabelecimento de sistemas de informação social com metodolo-gias modernas, processamento informático e contato contínuo com a rea-lidade deve ser um dos eixos da renovação da institucionalidade social.

d) Gestão interorganizacional dos programas sociaisA pobreza e a vulnerabilidade derivam de uma complexidade de

problemas que interagem entre si. Os fatores determinantes das priva-ções que afetam amplos setores atuam reforçando uns aos outros. As-sim, famílias em crise pelo peso da pobreza influirão sobre os baixosrendimentos das crianças ou deserção das mesmas da escola, o que vai

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fazer com que no futuro as possibilidades dessas crianças de ter traba-lho estável e formar famílias sólidas sejam, por sua vez, problemáticas.As políticas públicas deveriam ajustar-se à natureza estrutural da po-breza para poder realmente impactá-la. Se atuarem isoladamente, fo-calizando-se sobre determinado fator, suas possibilidades de influên-cia estarão extremamente limitadas. A maior produtividade e impactoem políticas e programas sociais se encontram na integraçãoorganizacional de esforços. A experiência comparada indica claramen-te que os programas sociais mais bem-sucedidos são os que apontaramesta combinação substantiva de esforços de diversa índole. Assim, porexemplo, os programas com mais impacto na redução da deserção noensino fundamental (primário) não são nunca programas que se limitama um enfoque puramente de “educação”, a atuar apenas na aula. Combi-nam-se ações sobre os grupos familiares, os níveis de nutrição e outrasdimensões. Os programas mais úteis em saúde preventiva são, por suavez, os que atuam com um enfoque que não é só médico, mas incorpo-ram ativamente variáveis educativas, culturais, psicológico-sociais.

Em muitos países em desenvolvimento, as estruturas estatais es-tão delineadas e orientadas em sentido quase oposto ao sugerido. Tudopredispõe à ação setorial isolada. Toma-se o cuidado em traçar frontei-ras estritas entre os diferentes ministérios. Delimita-se formalmente comdetalhes qual é o âmbito do Ministério da Saúde, o da Educação, da-quele que atua com gênero, jovens, família, moradia. Cada um defendeduramente sua jurisdição e trata de que os outros não a invadam. Otema não é somente formal. Predomina toda uma cultura de tipo “feu-dal”. Ergue-se uma infinidade de “torres e pontes levadiças burocráti-cas” para impedir a entrada de estranhos. No campo social, isto vaicontra a lógica básica da política social. A coordenação não só é desejá-vel, é imprescindível para poder atuar seriamente sobre as múltiplasformas da pobreza e da vulnerabilidade. Se os ministérios e agênciasnão integrarem sua ação através de fórmulas interorganizacionais, ha-verá um uso deficiente de recursos e parcos resultados.

Impõe-se levar adiante um trabalho sistemático para passar de umacultura de “castelos burocráticos” a uma “cultura de redes organizacionais”.

e) Rumo a um papel crescente dos Estados regionais e dos muni-cípios na política social

A descentralização de funções, responsabilidades e recursos paraos níveis mais próximos da cidadania surge como uma via de renova-

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ção organizacional do Estado tradicional de múltiplas virtudes. No cam-po social, parecem ser muitas as suas vantagens. A ação em áreas comosaúde, educação, luta contra a pobreza, fortalecimento da família, pre-venção da criminalidade, e outras, ajustar-se-á muito mais às realida-des concretas ao ocorrer em nível local. Não se tratará já de decisões alonga distância a partir dos grandes centros urbanos, mas de ações quetomarão dia a dia as estruturas institucionais locais, considerando asvariações de cada realidade. A ação social descentralizada facilitaráainda um contato “cara a cara”, que é muito relevante no campo social.Serão criadas também condições mais propícias para a participação dacidadania nos programas sociais e maior viabilidade para que efetiva-mente possa haver um controle social dos mesmos. Inclusive aintegração interorganizacional, a que se fez referência anteriormente,será mais fácil de realizar no nível mais limitado dos municípios.

Entretanto, a experiência internacional indicou que todas estas vir-tudes podem não se dar total ou parcialmente se não se atenderem cuida-dosamente a certos riscos inerentes aos processos de descentralizaçãono mundo em desenvolvimento. Os municípios apresentam, em muitoscasos, marcantes assimetrias entre si. Se nos processos de transferênciade recursos não forem tomadas medidas de reequilíbrio regional, fa-zendo uma discriminação positiva quanto aos mais fracos, a descentra-lização pode chegar a piorar a situação relativa prévia. O poder centraltem de garantir condições de eqüidade. Delegar atribuições impositivas,por exemplo, para financiar a saúde ou a educação, pode ter resultadosmuito diferentes, segundo as capacidades contributivas reais existen-tes nos diversos tipos de municípios. Outro risco é o que deriva deoutra ordem de assimetrias. Os níveis de polarização social para o inte-rior dos Estados regionais e dos municípios. Em diversos casos, há “oli-garquias” locais, pequenas, que controlam desde tempos imemoriais ofuncionamento da sociedade local. Caso não se consigam condiçõesdemocratizantes, o mais provável é que a descentralização seja “retida”por essas minorias a favor de seus próprios interesses. Outro problemaé o grau de fortaleza real dos municípios para executar políticas so-ciais. Não basta a boa vontade descentralizante do poder central e asintenções positivas dos prefeitos dos municípios. Deve desenvolver-seuma institucionalidade social local. Numerosos municípios do mundoem desenvolvimento não possuem nenhuma área institucional espe-cializada no social, ou ela faz parte de outras áreas. É preciso realizarum trabalho de “institutional building” social em nível municipal e ca-pacitar recursos humanos locais para dirigir os programas.

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A Cepal (1999) adverte sobre alguns destes riscos para o caso daAmérica Latina num trabalho recente. Afirma, em referência aplicáveltambém a outras realidades regionais: “A descentralização oferece teo-ricamente vantagens derivadas de uma provisão local de serviços quefomenta uma maior responsabilidade e um melhor controle por partedos usuários e das respectivas comunidades, o que pode se traduzirnuma gestão social mais eficaz. Em vista da disparidade de renda edisponibilidade de capital humano no interior dos países da região,esta transferência de responsabilidades sociais pode ter sério impactoem termos de eqüidade territorial”.

O caminho da descentralização deve ser firmemente adiantado, masé necessário adotar políticas para enfrentar os riscos mencionados.

f) Uma chave estratégica para renovar a institucionalidade so-cial: a participação comunitária

As medições comparadas são conclusivas. Os programas sociaiscom ativa participação comunitária em seu desenho, gestão e avalia-ção têm resultados muito superiores aos programas de tipo tradicionalburocrático vertical. Entre outros, um estudo do Banco Mundial(Narayan, 1994) analisou o rendimento sob diversas modalidadesorganizacionais de 121 projetos de dotação de água potável a gruposcamponeses pobres em 49 países da África, Ásia e América Latina. Osprojetos em que a participação comunitária foi elevada tiveram um altorendimento em 80% dos casos, um rendimento médio nos 20% restan-tes e nenhum apresentou baixo rendimento. Por sua vez, entre os pro-jetos com baixa participação comunitária, apenas tiveram um alto ren-dimento 2,7%, enquanto 40% apresentaram rendimento médio e 57,3%,rendimento baixo. Resultados semelhantes foram obtidos em diversasrealidades nacionais e regionais e diferentes campos sociais. Os proje-tos sociais mais bem-sucedidos das últimas décadas, tais como, entreoutros, o Grameen Bank em Bangladesh, as escolas EDUCO na Améri-ca Central e Villa El Salvador no Peru, são eminentemente participativos.

A participação acrescenta ao processo organizacional elementosmuito concretos que influenciam nessas diferenças. Entre eles, o dese-nho conjunto dos projetos com a comunidade pobre permite que elalhes incorpore suas verdadeiras prioridades. Sua intervenção na ges-tão do projeto lhe proporciona uma força singular. Sentindo-se donareal do projeto, a comunidade apresenta iniciativas, idéias, preocupa-se com cada detalhe de seu funcionamento. Sua integração à monitoria

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e avaliação permitem que o projeto tenha um “chão” permanente derealidade. Os beneficiados estarão dizendo continuamente em quemedida são cumpridos ou não os objetivos fixados, e que correçõesdeveriam ser introduzidas. A participação assegura ainda a transpa-rência do projeto. Ainda, acima de tudo, o ownership da comunidadegera um “apossamento” da mesma. Aprende, cresce, eleva sua auto-estima e se criam bases a favor da sustentabilidade do projeto quandofor retirada a ajuda externa.

Entretanto, apesar de suas notórias vantagens gerenciais, que sesomam a suas importantes conseqüências positivas quanto à democra-tização, a participação avança limitadamente no campo social nos paí-ses em desenvolvimento. Os aparelhos públicos afirmam, em muitoscasos, estar de acordo com ela e numerosas políticas públicas a defen-dem, mas na prática lhes colocam fortes impedimentos e dificuldades,e as frustrações que as comunidades pobres acumularam neste camposão incontáveis.

Uma das revoluções organizacionais mais importantes a seremfeitas pelo Estado, para transformá-lo num Estado social inteligente, éconseguir substituir a cultura burocrática atual aberta ou sorrateira-mente antiparticipativa por uma cultura realmente interessada na par-ticipação e disposta a promovê-la. Não se trata apenas de um problemaapenas formal. Não será por decretos ou regulamentos que poderão seralcançadas estas mudanças. Há algo mais profundo. Há toda uma cul-tura organizacional baseada na hierarquia, a verticalidade, com fortesimposições autoritárias, que se chocam com as propostas de gestãoconsultada, compartilhada e democrática que estão implícitas na par-ticipação. Essa mudança é possível utilizando-se as estratégias apro-priadas. Há já diversas experiências de trabalho participativo conjuntoentre a burocracia pública e a comunidade com excelentes resultadosem diferentes realidades. Como a do orçamento municipal participativona cidade de Porto Alegre, no Brasil, internacionalmente laureada. Tam-bém começa a haver significativas experiências de participação dosmesmos funcionários na gestão de suas próprias organizações, passa-gem que desde já assentará bases efetivas para uma cultura pró-partici-pação da comunidade, como as que estão se dando em serviços sociaisno Canadá (Kernagham, 1994).

Além de todas as vantagens mencionadas e outras que podem seracrescentadas, a participação tem um adicional muito relevante ligadoa nosso ponto anterior. A soma da descentralização mais a participa-

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ção comunitária é uma combinação poderosa. A intervenção ativa dascomunidades locais nos processos de descentralização, integrando-seao plano de políticas, à gestão e à avaliação do município, cria condi-ções muito mais propícias para que os objetivos básicos de descentrali-zar sejam cumpridos. Impede o estancamento da descentralização porelites de poder, incentiva e apóia a ação dos funcionários, enriquece acapacidade de gestão, é um potente método anticorrupção e acrescentauma instância de avaliação de alta eficiência.

g) Um Estado orientado a “tecer” redes inter-sociaisTem sido muito comum, nos países em desenvolvimento, perce-

ber problemas importantes, entre eles os sociais, como um jogo de ex-clusão do ponto de vista organizacional. Eles corresponderiam ou aoEstado ou à sociedade civil ou ao mercado. A um só deles. Nesta lógica,enfatizam-se os pontos fracos de cada um desses atores e se dá ênfaseaos conflitos históricos e potenciais. O tipo de arrazoamento observa-do: “com o Estado não é possível porque em tal oportunidade...”, ou“com as ONGs não se pode contar porque não são sérias como aconte-ceu com tal entidade...” etc. A realidade social é tão difícil que, emprimeiro lugar, exige-se imperativamente a responsabilidade de todosos atores sociais. Como sublinha, entre outros, Wolfensohn (2000), “to-dos devem cooperar”, porque concerne a todos o que vai acontecer. Poroutro lado, é preciso capitalizar o que cada um deles pode trazer, nãose pode deixar de lado capacidades que poderiam mobilizar-se. A cul-tura das “falsas posições” deveria ser substituída aqui pela de “utilize-mos o melhor de cada um e complementemo-nos”.

É necessária a construção de redes inter-sociais orientadas à reso-lução de problemas sociais concretos de envergadura. Nelas, a políticapública deve desempenhar um enérgico papel como convocante da rede,ponto de impulsão contínuo da mesma e ator relevante dela. Mas devetratar ativamente de aglutinar na rede os diversos atores possíveis. Asociedade civil pode dar contribuições de grande valor aos problemassociais. As comunidades religiosas, sindicatos, universidades, associa-ções de vizinhos, ONGs constituídas para trabalhar no campo social, emuitas outras de suas expressões podem trazer idéias, recursos huma-nos e recursos financeiros incalculáveis. A potência do voluntariadosocial em diversos países desenvolvidos e em países pequenos comoIsrael, por exemplo, onde quase um terço da população participa demodo ativo em tarefas voluntárias, gerando diversos serviços sociaisna área da saúde, educação, atendimento a portadores de deficiências

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e a idosos, e outros campos, é uma indicação das energias latentes arespeito. A tudo isso, deve-se somar a busca da mobilização da respon-sabilidade social do mundo empresarial para envolvê-lo diretamentecomo ator em esforços sociais de magnitude.

As redes inter-sociais são um tecido complexo. Significam diver-sos atores com experiências diferentes, linguagens diversas, pouca prá-tica de trabalhar uns com os outros, preconceitos mútuos.

Requer-se para montá-las e fazê-las funcionar uma ação sistemáti-ca e trabalhosa. O Estado social inteligente deveria desenvolver as ca-pacidades respectivas que implicam, entre elas, habilidades para reali-zar acordos, negociações, planejamento conjunto, para criar desenhosorganizativos muito ágeis e abertos.

h) Transparência, uma exigência generalizadaUma das maiores críticas ao Estado em décadas recentes foi a

existência de práticas corruptas e a falta de castigo para elas. Trata-sede um problema muito amplo que não afeta apenas o mundo em de-senvolvimento. Observe-se, por exemplo, a descoberta de práticas cor-ruptas sistemáticas na Itália há alguns anos e recentemente em diver-sos países do Sudeste asiático. Também não se limita de modo algumàs áreas sociais. As pesquisas modernas sobre corrupção ressaltam,além disso, que sempre que há um corrupto no setor público, há umcorruptor no setor privado. A corrupção tem a ver com combinaçõesintra-sociais às vezes de vastos alcances. Por exemplo, alguns dosepisódios de corrupção de maior envergadura na América Latina nosúltimos anos não se originaram no setor público. O desfalque de boaparte dos grandes bancos da Venezuela, há poucos anos, que signifi-cou uma perda significativa de recursos para o país, foi dinamizadopor práticas corruptas dos grandes banqueiros privados, amparadospela falha dos órgãos públicos de regulação. As corrupções que acom-panharam alguns processos de privatização em diversos países domundo em desenvolvimento estiveram ligadas a articulações de inte-resses público-privados.

Hoje, em nível mundial, há um clamor generalizado para pôr fimà corrupção. Seus custos para as economias dos países em desenvolvi-mento são totalmente intoleráveis e suas conseqüências morais, aindapiores. No campo social a corrupção implica um verdadeiro crime éti-co: estar subtraindo recursos de políticas e programas destinados aossetores mais desfavorecidos da sociedade.

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O Estado social inteligente deve sofrer uma transformação radicalneste campo. Devem-se empregar todas as estratégias anticorrupçãoque possam ser efetivas. Entre elas, em primeiro lugar, cabe desenvol-ver uma grande tarefa formativa a respeito. Devem-se criar espaços sis-temáticos para discutir o problema em todos os âmbitos de educaçãode funcionários públicos e estabelecer claros códigos de ética que pre-cisam ser rigorosamente implementados. Por outro lado, é necessáriotornar transparente para a cidadania toda a ação do Estado no camposocial. A informação a respeito deve ser plena, permanente e totalmen-te acessível. Os propósitos dos programas, os recursos que utilizarão,suas fontes de financiamento e os processos de execução devem serinformação tão acessível como qualquer informação administrativa ele-mentar. Ali, a informática e a Internet poderiam realizar contribuiçõesvaliosas. Ao mesmo tempo devem ser criados canais pelos quais o con-trole social da gestão pública possa se fazer sentir. Todo o sistema deveconter ainda instâncias de punição claras e garantidas. É preciso trans-formar a corrupção numa exceção, castigá-la moralmente, mas tam-bém deve ser objeto de sérios riscos penais, e numa ação muito difícilpelo permanente controle dos sistemas preventivos estabelecidos e daprópria cidadania.

i) O enfoque de gerência socialUm Estado social deve ter elevadas capacidades no terreno da ge-

rência social. O que é gerência social? Estamos falando de boa gerênciaempresarial? Acreditamos que, no campo social, há problemasgerenciais que são semelhantes a alguns que se apresentam na gestãonormal de qualquer ordem de organizações, mas há outros que são muitoespecíficos e que merecem uma atenção particular e critérios técnicosapropriados a eles.2 Alguns surgem dos pontos anteriores. Uma gerên-cia social eficiente deve tender a privilegiar a participação da comuni-dade, descentralizar para os municípios; propiciar a formação de redesinterorganizacionais para o interior do setor público, e redes inter-so-ciais com outros atores da sociedade; praticar sistematicamente a trans-parência; gerar, como se propôs, informação contínua sobre o social, elevar adiante organicamente o monitoramento e avaliação dos progra-mas. Tudo isso propõe a necessidade de capacidades, atitudes, orienta-

2. O autor trata com detalhes do tema gerência social em sua obra: Social management:some strategic issues. Nova York, ONU, Divisão de Economia Pública e Administração Pública,1998.

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ções e critérios gerenciais muito particulares, bem diferenciados dosque supõe a tradicional gerência hierárquica. Nesta, participação,descentralização e redes têm um significado limitado; na gerência so-cial são chaves para o êxito.

Mas a tudo isso deve-se somar que a missão organizacional dagerência social é de uma complexidade singular. Os objetivos que fi-nalmente perseguem as políticas e os programas sociais não são seme-lhantes aos que se buscam em outros campos organizativos. Quer-seque os programas sejam eficientes em termos de uso de recursos obje-tivos usuais, mas, ao mesmo tempo, que seus impactos finais sobre apobreza sejam os realmente esperados, o que implica outra ordem deeficiência de caráter quantitativo e qualitativo. Deseja-se que os pro-gramas contribuam para a melhoria efetiva da eqüidade, tema crucialhoje para o mundo em desenvolvimento, para o que devem atender amúltiplas considerações sobre quem são afinal os beneficiários. Aspi-ra-se também a que os programas gerem auto-sustentabilidade. Esteponto é muito relevante. Informes internos do Banco Mundial (Blustein,1996) indicam que cerca de 50% de seus projetos não cumpriam estacondição. Após cinco ou seis anos de os projetos serem completados,quando se retirava a ação do organismo internacional, os benefíciospara a comunidade eram interrompidos porque não se tinham desen-volvido forças que possibilitassem a auto-sustentação dos programas.

Por outro lado, a dinâmica dos programas sociais em funciona-mento costuma diferir claramente do que ocorre nos outros camposorganizacionais. Os programas caracterizam-se por uma alta volatili-dade. Iniciada sua gestão, podem se esperar contínuas mudanças nãoprevistas e, em alguns casos, sequer previsíveis. Intervêm neles múlti-plos atores, há em jogo interesses clientelistas, políticos, econômicos,as comunidades pobres têm instabilidades básicas. Tudo isso e outrosfatores determinam que surjam continuamente variações, algumas dasquais apresentam obstáculos impensados, e outras oportunidades quepoderiam ser aproveitadas. A situação caracteriza-se pelo que DennisRondinelli (1983) propõe, depois de analisar numerosos programasimplementados por organismos internacionais no mundo em desen-volvimento: “independentemente do que concerne ao planejamento doprojeto ou da forma em que se efetuou a análise técnica, raras vezes sefaz a observação de que os problemas encontrados eram totalmenteimprevisíveis”.

O Estado social inteligente necessita de um enfoque de gerênciasocial que atenda a todas estas especificidades: missão particular dos

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programas sociais, dinâmicas de alta volatilidade, orientação à partici-pação, descentralização, organização de redes, transparência. Isso darásuporte à formação especializada de gerentes sociais capacitados paraatendê-las, e uma cultura geral organizacional que as privilegie e estejapronta para encará-las.

Um Estado social inteligente implica reformas profundas do Esta-do no mundo em desenvolvimento nestas direções e em outras quepodem ser acrescentadas. Orientação clara a serviços públicos básicospara todos, criação de uma institucionalidade social forte e eficiente,montagem de um sistema de informação para o plano e monitoramen-to das políticas sociais, articulação interorganizacional, descentrali-zação, participação comunitária ampla, redes inter-sociais, transparên-cia, um enfoque de gerência social.

Quais as condições básicas exigidas para avançar reformas nestadireção e transformar o Estado no Estado necessário para aplicar polí-ticas públicas inovadoras do tipo das anteriormente mencionadas(PNUD, 1999), que permitam enfrentar os gravíssimos problemas deexclusão que hoje abalam os países em desenvolvimento? A seguir,formulamos algumas reflexões finais a respeito.

Algumas reflexões finais

Uma primeira condição de fundo essencial para progredir em di-reções desta ordem é que a causa de uma reforma nos papéis e caracte-rísticas do Estado social deve contar com um sólido apoio da socieda-de. A experiência comprovou reiteradamente em matéria de reformado Estado que as mudanças induzidas através da mera racionalidadetécnica têm “pernas curtas”. Podem ser obstruídas ou revertidas comfacilidade. As reformas profundas exigem contar com um correlato deapoio social e político ativo às mesmas. Estes apoios podem ser convo-cados, neste caso, dados os fins perseguidos, contar com um Estadoque possa ajudar de forma ativa e eficiente a enfrentar a pobreza, asbrechas em saúde, a desigualdade, o acesso diferencial às tecnologias,a vulnerabilidade e outros desenvolvimentos sociais alarmantes comoo rápido aumento da criminalidade. Entretanto, em numerosos paísesem desenvolvimento há que se abrir e ativar um grande debate sobreaspectos muito relevantes do problema. Assim, costuma haver umatendência consistente a ver os déficits sociais como problemas lamen-táveis, mas adiáveis, e que se resolverão automaticamente através do

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“derrame de benefícios” que se produzirá ao adotar as receitas econô-micas em voga nas últimas décadas. Nessa concepção, o social é vistocomo um gasto basicamente necessário, sobretudo por razões políti-cas, mas que deve limitar-se, porque desvia recursos do movimentoeconômico real.

Muito se tem avançado neste debate nos últimos anos, porém ain-da há um longo caminho a ser percorrido. Demonstrou-se que o socialnão se resolve através do “derrame”. Na maioria dos casos estudadospelos Informes sobre Desenvolvimento Humano da Organização dasNações Unidas, por exemplo, mesmo havendo crescimento econômi-co, em condições de alta desigualdade, ele não circula, tende a estacio-nar-se em certos setores da sociedade. Os perdedores continuam au-mentando e os ganhadores aumentam suas brechas relativas com res-peito a eles. Um caso típico é o da América Latina. Birdsall & Londoño(1997) demonstraram que é tal o peso da desigualdade no desenvolvi-mento social, que a elevada pobreza presente seria a metade se tives-sem sido mantidos os níveis de desigualdade (igualmente altos) do iní-cio da década de 1970 e não tivessem subido aceleradamente comoaconteceu. Assim, a proposta é que se os esforços imprescindíveis paraque uma economia cresça, tenha estabilidade, progresso tecnológico ecompetitividade não se acompanham com enérgicas políticas públicassociais, os déficits sociais não se resolverão.

A política social não é então um paliativo enquanto se produz oderrame, é um ator fundamental para um desenvolvimento equilibrado.

No entanto, o debate a ser empreendido no mundo em desenvol-vimento deve ir ainda mais longe. O que se deve discutir é que o socialnão é, em definitivo, um gasto, mas um investimento. Destinar recur-sos de forma conseqüente no tempo ao desenvolvimento da educaçãode uma população, elevar os anos de escolaridade e a qualidade dosconteúdos, melhorar os índices de saúde pública, aumentar a cobertu-ra de água potável e serviços de saneamento, é estar potencializando orecurso mais valioso com que conta qualquer economia no século XXI,a qualidade da população. Diversas medições recentes o estabeleceramquantitativamente. Assim se determina que um dos investimentos maisrentáveis do planeta é aquele direcionado à educação de meninas po-bres, porque redundará em reduzir a gravidez adolescente, aumentarsuas capacidades para as etapas pré-natal e parto, e suas possibilidadesde administração de recursos nutricionais escassos. Tudo isso reduzi-rá muito as taxas de mortalidade materna e infantil. Em outras áreas,

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como já se mencionou, a possibilidade de ter acesso a condições bási-cas da competitividade está fortemente ligada ao nível médio da mão-de-obra de um país. Nos últimos anos, diversos investimentos tecnoló-gicos de ponta escolheram, para instalar-se, um país latino-americanopequeno e pobre em recursos naturais, a Costa Rica. Um fator decisivode sua escolha foi tratar-se de um dos poucos países que têm investidosistematicamente, durante décadas, em saúde e educação, e por contarcom uma população de boa qualificação e um sólido sistema sanitárioe educativo.

A política social, além de imprescindível e urgente para enfren-tar os déficits neste campo, é, nas visões modernas do desenvolvi-mento, uma alavanca poderosa de crescimento sadio. Como defendeAlain Touraine (1997): “Em vez de compensar os efeitos da lógicaeconômica, a política social deve ser concebida como condição indis-pensável do desenvolvimento econômico”. É necessário promover estegrande debate nos países em desenvolvimento. Ele proporcionará umafirme base de apoio, na cidadania, à reforma do Estado social que senecessita.

Uma segunda condição de fundo para avançar nesta reforma éenfrentar outro tipo de argumento de enorme peso nos países em de-senvolvimento. Ouve-se com grande freqüência as alegações de queem definitivo não é possível fazer nada importante no campo socialpelas restrições severas de recursos. Os países em desenvolvimentotêm recursos escassos e estariam “condenados”, segundo este argumen-to, a que parte importante de sua população viva na pobreza. Sem dúvi-da, o tema dos recursos é fundamental, e é absolutamente necessáriofazer o que for preciso para que os países em desenvolvimento cres-çam com as maiores taxas possíveis, tenham estabilidade econômica,atraiam investimentos, progridam tecnologicamente. Contudo, AmartyaSen (1998) apresenta uma questão estrutural a respeito: como explicarque certos países, tendo produtos brutos per capita bastante inferioresa outros, tenham, no entanto, melhor expectativa de vida, que é umindicador decisivo? A expectativa de vida deveria ser considerada, as-sinala o Prêmio Nobel de Economia, como um indicador muito impor-tante de êxito ou fracasso econômico. Realiza a comparação seguinte.

Como se observa, comparam-se no gráfico dois grupos de três so-ciedades cada um. Um dos grupos compreende o Gabão, Brasil e Áfricado Sul. Eles têm um produto bruto per capita cerca de 5 a 10 vezesmaior que o do outro grupo, formado pelo Sri Lanka, China e pelo Esta-

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COMO REFORMAR O ESTADO ... 101

do de Kerala, na Índia (de 30 milhões de habitantes). Entretanto, nassociedades do segundo grupo, as pessoas vivem de 6 a 18 anos mais doque no primeiro. A escassez de recursos desaparece ali como argumen-to conclusivo. As segundas são bem mais pobres do que as primeiras.Tudo indica que há que se considerar junto com a magnitude de recur-sos outros fatores. Um deles é a ordem de prioridades que uma socie-dade fixa para si. Como destina seus recursos, mesmo sendo eles limi-tados. Que papel é atribuído, nessa destinação, a aspectos como saúde,educação, moradia etc. Outro é o nível de eqüidade existente numasociedade. Se for alto, os progressos econômicos, mesmo limitados,reverterão efetivamente na vida cotidiana das pessoas; se predomina adesigualdade, isto não ocorrerá. Outro fator-chave é o nível e a qualidadedas políticas públicas sociais. Nos três países com melhor expectativade vida, todos estes fatores jogam a favor dela. Assim, houve umapriorização do social, há melhores coeficientes Gini e há uma ativa

300470 540

2670 2770

445071 6972

63 66

54

Kerala China Sri Lanka Áfricado Sul

Brasil Gabão

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Expectativa de vida PNB per capita

Fonte: Amartya Sen, “Mortality as indicator of economic success and failure”. In: The EconomicJournal, jan. 1998.

Gráfico 3Produto Nacional Bruto e expectativa de vida em países selecionados, 1992

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política pública que garante à população serviços públicos básicos deampla cobertura. Sen sublinha que isso é possível, ainda com recursosreduzidos. Por exemplo, os custos relativos de componentes centraispara a saúde, como remuneração do pessoal médico e paramédico sãomuito mais baixos nos países em desenvolvimento do que nos desen-volvidos. Todos estes fatores incidiram em que as sociedades que men-ciona, e outras como a da Costa Rica, que cita com freqüência “registra-ram uma redução muito rápida das taxas de mortalidade e uma melhoriadas condições de vida, sem um crescimento econômico notável”.

Uma terceira condição para o avanço para o tipo de Estado neces-sário já não tem a ver com a discussão no meio ambiente geral, mascom as próprias orientações da reforma. A reforma deve respeitar adiversidade das condições nacionais. A estratégia deve ser seletiva egradual. Os estilos reformistas não devem ser elíticos, nem verticais, énecessário implicar ativamente os funcionários públicos nas reformas.O Estado com atitude participativa que se deseja conseguir deve serparticipativo não só para fora, mas também para dentro.

Um aspecto crucial é recuperar, na nova reforma, a discussão éti-ca sobre a função pública relegada nas reformas puramente tecnocrá-ticas. A quem devem servir as políticas públicas? Que dilemas éticosse apresentam? Como deve ser o código de ética do funcionário? Anecessidade de que perceba as potencialidades de serviço à comunida-de que sua tarefa possui e se sinta orgulhoso dela são todos temas quedevem ser incluídos. Como sublinha Argyriades (2000): “Não devemospassar por cima nem diminuir a importância de certos elementos cons-tantes, a necessidade de alta integridade, a crença no serviço público,valores e padrões profissionais, um ethos democrático e um genuínorespeito pelos direitos humanos básicos”.

Qual seria a força dinamizadora para criar condições como asmencionadas que podem favorecer a reforma? Como conseguir impul-sionar um debate público importante sobre prioridades da sociedade,papel do social, destinação de recursos escassos, reformas participativaspara o exterior e interior do aparelho público, ética e função pública eoutros temas correlatos? Parece que se pode esperar muito do fortaleci-mento contínuo dos processos de democratização. Há ali avanços im-portantes no mundo em desenvolvimento. As exigências por participa-ção genuína vêm crescendo cada vez mais e, lenta mas persistente-mente, estão melhorando as condições básicas para a democracia. Associedades civis estão se fortalecendo, aumenta o papel das instâncias

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COMO REFORMAR O ESTADO ... 103

descentralizadas como os municípios, há um controle social cada vezmais estreito sobre a ação pública, há exigências cada vez mais vigoro-sas pelo bom funcionamento da justiça e outras instituições-chaves,aumenta o repúdio à corrupção. Como ressalta Amartya Sen (1999), ademocracia tem, entre conseqüências, a geração de “incentivos políti-cos aos decisores para responder positivamente às necessidades e de-mandas da população”. Quanto mais ativa for a democracia, maiores emais efetivas serão as pressões destes incentivos sobre os decisores. Éconhecido o exemplo de Sen, não se conhecem episódios de fome ma-ciça neste século em países com bom funcionamento de suas institui-ções democráticas; no entanto, ela tem se produzido em toda ordem deditaduras.

Um Estado social inteligente, apoiado nos processos de democra-tização, pode desempenhar um papel muito importante diante da dra-mática recontagem de problemas que afligem os países em desenvolvi-mento aos quais nos referimos anteriormente. Seu papel é agora maisimportante do que nunca. Destaca Argyriades (2000), sintetizando osresultados dos informes sobre a reforma do Estado nas diversas regiõesdo mundo, produzidos pela Divisão de Economia e Administração Pú-blica da ONU: “...o que os informes regionais revelam, em termos pre-cisos, é que a globalização não é uma panacéia, não traz por si só abun-dância, nem ainda afirma promessa de progresso para a humanidade.Mais precisamente, como uma força da natureza, pode ser benéficapara aqueles que têm a capacidade de dominá-la, mas também podeser devastadora para aqueles que não estiverem preparados para ela.As lições e advertências que podem ser extraídas da experiência mun-dial da última década, especialmente, é que a construção de capacida-des em termos de instituições e de elevadas competências de governo eliderança raras vezes foi tão importante para todos”.

Os vastos contingentes de população submersos na pobreza, osamplos setores de população que estão sendo deixados fora do mundovirtual configurando um novo grupo marginalizado, “os analfabetoscibernéticos”, as populações vulneradas com toda facilidade pelas cri-ses econômicas e naturais, os “grosseiros níveis de desigualdade” atuais,como os chama o PNUD, exigem respostas imediatas porque entranhamum sofrimento social imenso. Como assinala o papa João Paulo II (1999):“o problema da pobreza é algo urgente que não pode ser deixado paraamanhã”.

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Capítulo 4

CAPITAL SOCIAL E CULTURA:chaves esquecidas do desenvolvimento

Capítulo 4

CAPITAL SOCIAL E CULTURA:chaves esquecidas do desenvolvimento

O novo debate sobre o desenvolvimento

No final do século XX, a humanidade conta com imensas forçasprodutivas. As revoluções tecnológicas em curso alteraram substan-cialmente suas capacidades potenciais de gerar bens e serviços. Os avan-ços simultâneos em campos como a informática, a biotecnologia, arobótica, a microeletrônica, as telecomunicações, a ciência dos mate-riais, e outras áreas, determinaram rupturas qualitativas nas possibili-dades usuais de produção, ampliando-as extensamente e com um hori-zonte de contínuo crescimento. Entretanto, 1,3 bilhão de pessoas care-cem das necessidades mais básicas e vivem em pobreza extrema, commenos de um dólar de renda por dia; 3 bilhões se encontram na pobre-za, tendo de subsistir com menos de dois dólares diários; 1,3 bilhão depessoas carecem de água potável; 3 bilhões de pessoas não possueminstalações sanitárias básicas e 2 bilhões não recebem eletricidade.

Alcançar a desejada meta do desenvolvimento econômico e socialé mais viável que nunca em termos de tecnologias e potencial produti-vo. Porém, ao mesmo tempo, o objetivo se encontra muito distante deamplas populações em diversos continentes, entre eles, na AméricaLatina.

A “aldeia global” em que se transformou o planeta, onde as inter-relações entre os países e os mercados se multiplicam continuamente,

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parece caracterizar-se por uma explosão de complexidade, direçõescontraditórias de evolução e altas doses de incerteza. Exploradores dasfronteiras das novas realidades, como Ilya Prygogine (1988), PrêmioNobel de Química, assinalam que, sendo a maior parte das estruturasda realidade atual “estruturas dissipativas de final aberto”, é difícil pre-dizer em que sentido evoluirão e as lógicas tradicionais são impotentespara explicar seu curso. Edgar Morin (1991) ressalta que, em vez do“fim da história”, vaticinado por alguns que alegaram que ao desapare-cer o mundo bipolar, a história seria previsível e até “cansativa”, o quetemos diante de nossos olhos é que “daqui em diante o futuro se chamaincerteza”. A história em curso está marcada por severas contradições.Assim, ao mesmo tempo, por exemplo, em que o conhecimento tecno-lógico disponível multiplicou as capacidades de dominar a natureza, oser humano está criando desequilíbrios ecológicos de grande magnitu-de, colocando em perigo aspectos básicos do ecossistema e sua própriasobrevivência. Enquanto as capacidades produtivas levaram a produ-ção mundial a mais de 25 quatrilhões de dólares, as polarizações so-ciais cresceram acentuadamente e, segundo informes da Organizaçãodas Nações Unidas (1998), 358 pessoas são possuidoras de uma rique-za acumulada superior à de 45% da população mundial. As disparidadesalcançam os aspectos mais elementares da vida cotidiana. Os acelera-dos progressos em medicina permitiram uma extensão considerável naexpectativa de vida, porém, enquanto nas 26 nações mais ricas estaalcançava, em 1997, os 78 anos de idade, nos 46 países mais pobresera, no mesmo ano, de 53 anos.

A idéia do progresso indefinido está sendo suplantada por visõesque destinam um papel maior às complexidades, contradições e incer-tezas e buscam soluções a partir da integração das mesmas às perspec-tivas de análise da realidade.1

Neste âmbito geral, há um novo debate em ativa ebulição no cam-po do desenvolvimento. Buscando caminhos mais efetivos, num mun-do onde a vida cotidiana de amplos setores está afetada por carênciasagudas e onde se estima que um terço da população ativa mundial seencontra atingida por sérios problemas de desemprego e subemprego,

1. Morin ressalta as dificuldades para ter uma visão clara de para onde avança a história:“Estamos no desconhecido, mais ainda, no inominado. Nosso conhecimento de tempos atuaismanifesta-se apenas no prefixo sem forma ‘pós’ (pós-industrial, pós-moderno, pós-estruturalis-ta) ou no prefixo negativo ‘anti’ (antitotalitário). Não podemos dar uma face a nosso futuro, nemsequer a nosso presente”.

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o debate está revendo supostos não convalidados pelos fatos, e abrindo-se a variáveis às quais se destinava escasso peso nas últimas décadas.

Há uma revalorização no novo debate de aspectos não incluídosno pensamento econômico convencional. Instalou-se uma potente áreade análise em vertiginoso crescimento que gira ao redor da idéia de“capital social”. Um dos focos dessa área, por sua vez com sua própriaespecificidade, é o reexame das relações entre cultura e desenvolvi-mento. Como assinala Lourdes Arizpe (1998), “a cultura passou a ser oúltimo aspecto inexplorado dos esforços que se desenvolvem em nívelinternacional, para fomentar o desenvolvimento econômico”. EnriqueV. Iglesias (1997) sublinha que se abre neste reexame das relações en-tre cultura e desenvolvimento um vasto campo de grande potencial.Ressalta: “há múltiplos aspectos na cultura de cada povo que podemfavorecer seu desenvolvimento econômico e social; é preciso descobri-los, potencializá-los, e apoiar-se neles, e fazer isto com seriedade signi-fica rever a agenda do desenvolvimento de um modo que resulte, pos-teriormente, mais eficaz, porque tomará em conta potencialidades darealidade que são de sua essência e que, até agora, foram geralmenteignoradas”.

Localizado neste contexto efervescente de exigências por rediscutira visão convencional do desenvolvimento e integrar novas dimensões,este trabalho procura colocar em foco um tema relevante do novo de-bate, as possibilidades de o capital social e a cultura contribuírem parao desenvolvimento econômico e social. Particularmente, o trabalho secentra em suas possíveis contribuições à América Latina, uma regiãocom graves problemas nos campos da pobreza (afeta a vastos setores dapopulação) e da iniqüidade (é considerado o continente mais desigualdo planeta). Certamente a integração destes planos tornará ainda maiscomplexa a busca por estratégias e planos adequados. No entanto, essaé a idéia. As políticas baseadas em planos que marginalizam aspectoscomo os mencionados demonstraram limitações muito profundas.

O trabalho se propõe a cumprir seu propósito através de váriosmomentos sucessivos de análise. Em primeiro lugar, apresentam-seaspectos da crise do pensamento econômico convencional. A nova aten-ção prestada a capital social e cultura inscreve-se nessa crise. Em se-gundo lugar, explora-se a idéia de capital social. A ênfase é colocada,neste caso, não na discussão teórica, mas na presença concreta da mes-ma em realidades atuais. Em terceiro lugar, com apoio nos desenvolvi-mentos anteriores, passa-se a observar “o capital social em ação” em

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realidades latino-americanas. Indaga-se, através de experiências con-cretas da região, como o capital social e a cultura constituem potentesinstrumentos de construção histórica. Por último, formulam-se algu-mas reflexões sobre possíveis contribuições da cultura ao desenvolvi-mento latino-americano.

A crise do pensamento econômico convencional

Encontram-se em plena atividade, atualmente, diversas linhas dediscussão sobre os pressupostos econômicos que têm orientado o de-senvolvimento nas últimas décadas. O debate em curso não aparececomo um debater no interior da academia, onde diversas escolas depensamento ou personalidades defendem determinados enfoques sur-gidos de sua própria especulação. Está fortemente influenciado pelasdificuldades do pensamento convencional na realidade. Foi dinamiza-do e urgido por processos como os severos problemas experimentadospelas economias do Sudeste asiático; as graves crises observáveis emeconomias em transição, como a russa; as instabilidades pronunciadasnos mercados financeiros internacionais; os desajustes e polarizaçõessociais em regiões como América Latina e outros. Surge graças aos im-portantes avanços na medição dos fenômenos econômicos e sociais,como um debate em que a especulação infinita a partir das própriaspremissas, característica de décadas anteriores, é substituída por aná-lises que partem da vasta evidência empírica que está gerando o instru-mental quantitativo e estatístico.

Uma primeira característica da crise em curso é o chamado, cadavez mais amplo, a respeitar a complexidade da realidade. Previne-secontra a “soberba epistemológica” com que o pensamento econômicoconvencional trabalhou múltiplos problemas, pretendendo capturá-los e resolvê-los a partir de âmbitos de referência baseados em gruposde variáveis limitadas, de índole quase exclusivamente econômica,que não deixavam espaço a variáveis de outras procedências. JosephStiglitz (abril de 1998) afirma que “um princípio do consenso emer-gente é que um maior grau de humildade é necessário”. Advoga porum novo consenso, pós-Washington, diante das dificuldades surgidasna realidade. Assinala a América Latina como um dos casos que evi-dencia as dificuldades, afirmando “eu argumentaria que a experiên-cia latino-americana sugere que deveríamos reexaminar, refazer eampliar os conhecimentos acerca da economia de desenvolvimento

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que são assumidos como verdade, enquanto planejamos a próximasérie de reformas”.

Outro aspecto que se destaca da nova discussão sobre o desenvol-vimento é o apelo cada vez mais generalizado a superar os enfoquesreducionistas e buscar, para captar a complexidade, perspectivasintegradoras de variáveis múltiplas. Enrique Iglesias (1997) adverte:“O desenvolvimento apenas pode ser encarado de forma integral; osenfoques simploriamente monistas não funcionam”. Joseph Stiglitz(outubro de 1998) destaca que o desenvolvimento tem sido visto comoum “problema técnico que requer soluções técnicas” e essa visão cho-ca-se com a realidade, que vai muito mais além dela. Afirma que “umevento definidor foi o de que muitos países seguiram os ditames deliberalização, estabilização e privatização, as premissas centrais dochamado Consenso de Washington, e, no entanto, não têm crescido.As soluções técnicas não são evidentemente suficientes”.

Um tema de destaque da discussão aberta é a ênfase em não con-fundir os meios com os fins, desvio no qual, se sugere, tem-se caídocom freqüência. Os objetivos finais do desenvolvimento têm a ver coma ampliação das oportunidades reais dos seres humanos de desenvol-ver suas potencialidades. Uma sociedade progride efetivamente quan-do os indicadores-chaves, como anos de vida das pessoas, qualidadede vida e desenvolvimento de seu potencial, avançam. As metas técni-cas são absolutamente respeitáveis e relevantes, porém são meios aserviço desses objetivos finais. Se for produzido um processo de subs-tituição silenciosa dos fins reais pelos meios, pode-se perder de vista ohorizonte para o qual se deveria avançar, e equivocar os métodos paramedir o avanço. A elevação do Produto Bruto per capita, por exemplo,aparece na nova perspectiva como um objetivo importante e desejável,mas sem deixar de considerar que é um meio a serviço de fins maiores,como os índices de nutrição, saúde, educação, liberdade e outros. Suasmedições não refletem, portanto, necessariamente, o que está aconte-cendo em relação às referidas metas. Amartya Sen (1998) analisadetalhadamente esta visão geral no caso dos recursos humanos. Assi-nala que constitui um progresso considerável a nova ênfase dada a eles,mas que deve ser entendido que o ser humano não é só um meio dodesenvolvimento e sim, sua finalidade última. Essa visão não deve seperder de vista. Sublinha: “se em última instância considerássemos odesenvolvimento como a ampliação da capacidade da população pararealizar atividades escolhidas livremente e valorizadas, seria totalmen-te inapropriado considerar os seres humanos como “instrumentos do

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desenvolvimento econômico. Há uma grande diferença entre os meiose os fins”.

Stiglitz (outubro, 1998) enfatiza que a confusão meios — fins temsido freqüente na aplicação do Consenso de Washington: “a privatizaçãoe a liberalização comercial têm sido tomadas como finalidades em simesmas mais do que como meios para alcançar um crescimento sus-tentável, eqüitativo e democrático. Tem-se centrado em demasia naestabilidade dos preços, mais que no crescimento e na estabilidade daprodução. Falhou-se em reconhecer que o fortalecimento das institui-ções financeiras é tão importante para a estabilidade econômica quan-to controlar o déficit orçamentário e aumentar a oferta de dinheiro.Centrou-se na privatização, mas deu-se pouca atenção à infra-estrutu-ra institucional que é necessária para fazer com que os mercados fun-cionem e, especialmente, à importância da competição”.

A partir destas percepções sobre a pequenez do enfoque mera-mente técnico e a necessidade de delimitar fins e meios, debatem-sevisões ampliadoras dos objetivos que deveriam ser perseguidos pelodesenvolvimento. Junto ao crescimento econômico, surge a necessida-de de alcançar o desenvolvimento social, melhorar a eqüidade, fortale-cer a democracia e preservar os equilíbrios do meio ambiente. O Con-senso dos Presidentes da América, em Santiago (1998), refletiu estaordem de preocupações, incluindo, em seu plano de ação, pontos queexcedem as abordagens convencionais como, entre outros: a ênfase napromoção da educação, a preservação e aprofundamento da democra-cia, a justiça e os direitos humanos, a luta contra a pobreza e a discri-minação, o fortalecimento dos mercados financeiros e a cooperaçãoregional em assuntos ambientais.

Ressalta-se, nas críticas ao pensamento econômico convencional,como as limitações de seu âmbito de análise criaram sérias insuficiên-cias de operação. Variáveis excluídas ou marginalizadas, como, entreoutras, as políticas e as institucionais, têm alto peso na realidade e vãoincidir fortemente, criando cenários não previstos. Queixar-se delascomo “intrusos indesejáveis” não conduz a nenhum caminho útil. Pa-rece que o que convém não é brigar com a realidade, mas rever o esque-ma conceitual com o qual se está analisando, para dar a eles seu devidolugar.

Alessina & Perotti (1994), entre outros, apontam a necessidade dese realizar um exame profundo das interseções entre política e econo-mia. Destacam: “... a economia sozinha não pode explicar integralmen-

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te a enorme variabilidade entre o crescimento dos países e muito me-nos os resultados econômicos e as alternativas de política. As escolhasde políticas econômicas não são feitas por planejadores sociais que vi-vem apenas entre documentos acadêmicos. A política econômica é,mais precisamente, o resultado de lutas políticas dentro de estruturasinstitucionais”.

Sen analisa, a respeito, como as realidades políticas são determi-nantes nas situações em que a fome maciça afligiu amplos grupos hu-manos no século XX. Segundo suas pesquisas (1981), a fome não tem aver necessariamente com escassez de recursos alimentícios. Vincula-se mais com fatores como as disparidades de preços relativos, os bai-xos salários e as manobras especulativas. O quadro de condições polí-ticas pesa fortemente a esse respeito. Examinando as correlações entrefome maciça e tipo de regime político, determina (1998) que “nenhumpaís dotado de um sistema de eleições multipartidárias, com partidosde oposição capazes de se expressar como tal, de uma imprensa capa-citada para informar e questionar a política governamental sem medode ser censurada, foi cenário de uma fome realmente importante”. Nes-ses países, funcionam poderosos “incentivos políticos” para que se to-mem decisões que evitem a fome. Por sua vez, observa que a fome demaiores proporções teve lugar em “territórios colonizados e governa-dos por autoridades imperialistas estrangeiras, ditaduras militares detipo moderno, sob o controle de poderosos autoritários, ou regimes departido único, onde não se tolera a dissidência política”.

Las instituciones cuentam é o título de um recente trabalho doBanco Mundial sobre a matéria (1998). Nele, desenvolve-se em deta-lhes a visão de que todo o tema das instituições deve ser incorporado àanálise das realidades econômicas e ao plano de políticas. Entende-se,como tais, o conjunto de regras formais e informais e seus mecanismosde execução que incidem sobre o comportamento dos indivíduos e dasorganizações de uma sociedade. Entre as formais, encontram-se as cons-tituições, leis, regulações, contratos etc. Entre as informais, estão a éti-ca, a confiança, os preceitos religiosos e outros códigos implícitos. Umadas fraquezas do Consenso de Washington teria sido, segundo o BancoMundial, a não inclusão das mesmas entre as políticas que recomenda.Assinala a respeito: “Com uma única exceção (a proteção dos direitosde propriedade), as prescrições de política do Consenso de Washing-ton ignoram o papel potencial que as mudanças nas instituições po-dem desempenhar para acelerar o desenvolvimento econômico e so-cial”. Um amplo número de pesquisas recentes dá conta de correlações

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estatísticas significativas entre bom funcionamento de instituições bá-sicas, como os mecanismos anticorrupção, a qualidade das instituiçõespúblicas, a credibilidade e outras, e os avanços no crescimento, desen-volvimento social e eqüidade.

Nas reformulações em curso do pensamento econômico conven-cional, ingressou como um tema central o do capital humano. Melho-rar o perfil da população de um país é um fim em si mesmo, comoressaltava Sen. Ao mesmo tempo, constitui uma via fundamental paraalcançar produtividade, progresso tecnológico e competitividade noscenários econômicos de final de século. Neles o papel do capital hu-mano na produção é decisivo. Em estruturas produtivas, cada vez maisbaseadas em conhecimento, como as presentes e prospectivas, os ní-veis de qualificação média de uma sociedade serão determinantes emsuas possibilidades de níveis de gerar, absorver e difundir tecnologiasavançadas. A educação faz uma diferença crucial, segundo as medi-ções disponíveis, tanto para a vida das pessoas, o desenvolvimento dasfamílias, a produtividade das empresas, como para os resultados eco-nômicos macro do país. É, como tem sido denominada, uma estratégia“vencedora” com benefícios para todos. A nutrição e a saúde são, porsua vez e antes de mais nada, condições de base para o desenvolvimen-to do capital humano.

Neste quadro de conjunto, em que as dificuldades da realidadeimpulsionaram uma crise e um processo de profunda revisão do pen-samento econômico, inscreve-se a integração ativa às análises do capi-tal social e da cultura. Uma onda de pesquisas dos últimos anos indica,com dados de campo a seu favor, como diversos componentes não visí-veis do funcionamento cotidiano de uma sociedade, que têm a ver coma situação de seu tecido social básico, incidem silenciosamente naspossibilidades de crescimento de desenvolvimento. Denominados decapital social, os analisaremos na seção seguinte. Estes começam a in-fluenciar no plano de políticas em alguns países avançados, já começa-ram a fazer parte da elaboração dos projetos de desenvolvimento, e ins-tituições de cooperação internacional estão incluindo os progressos emcapital social nos critérios de medição do grau de êxito dos projetos.

No centro do capital social encontram-se múltiplos elementos docampo da cultura. Como destaca Arizpe (1997), têm toda ordem deimplicações práticas e foram marginalizados pelo pensamento conven-cional. Destaca: “A teoria e a política do desenvolvimento devem in-corporar os conceitos de cooperação, confiança, etnicidade, identida-

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de, comunidade e amizade, já que estes elementos constituem o tecidosocial em que se baseiam a política e a economia. Em muitos lugares, oenfoque limitado do mercado baseado na competência e na utilidadeestá alterando o delicado equilíbrio destes fatores e, portanto, agravan-do as tensões culturais e o sentimento de incerteza”.

O capital social e a cultura começaram a instalar-se no centro dodebate sobre o desenvolvimento não como adições complementares aum modelo de alto vigor que se aperfeiçoa um pouco mais com eles.Todo o modelo está sofrendo severas dificuldades por suas distânciascom os fatos; e as críticas procedentes de diversas origens se encami-nham de um modo ou outro, a “recuperar a realidade” com vistas aproduzir, em definitivo, políticas com melhores chances de atingir asmetas finais. Nesse quadro, a entrada desses conceitos no debate partedo esforço por dar à realidade toda a reflexão sobre o desenvolvimento.

A rediscussão do modelo não está sendo feita apenas através dainclusão de diversas variáveis ausentes. Está em discussão um aspectosubjacente mais profundo, a lógica das inter-relações. Uma parte signi-ficativa do novo debate está concentrada na análise de como têm sidosubestimados os encadeamentos recíprocos entre as diversas dimen-sões e como isso gerou erros de consideração no preparo de políticas.Alessina e Perotti (1994), por exemplo, destacam uma inter-relação-chave: “... a desigualdade na renda é um determinante importante dainstabilidade política. Os países com uma renda mais desigualmentedistribuída são politicamente mais instáveis. Por sua vez, a instabilida-de política tem efeitos adversos sobre o crescimento”.

As áreas econômica, política e social estão intrinsecamente liga-das. O que ocorrer em cada uma delas condicionará severamente asoutras. A visão puramente economicista do desenvolvimento pode tro-peçar, a qualquer momento, em bloqueios muito sérios que surgem dasoutras áreas, e assim tem acontecido na realidade.

Há, em curso nesse âmbito, uma reavaliação integral das relaçõesentre crescimento econômico e desenvolvimento. Na visão convencio-nal, supunha-se que, alcançando taxas significativas de crescimentoeconômico, o mesmo se “derramaria” para os setores mais desfavo-recidos e os tiraria da pobreza. O crescimento seria, ao mesmo tempo,desenvolvimento social. As experiências concretas indicaram que asrelações entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento socialsão de caráter muito mais complexo. O acompanhamento da experiên-cia de numerosos países, efetuado pela ONU através de seus Informes

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de Desenvolvimento Humano, não encontra corroboração para os su-postos do chamado modelo de “derrame”. Não basta o crescimento parasolucionar a pobreza. Ainda que absolutamente imprescindível, o mes-mo pode ficar estacionado em certos setores da sociedade, e não chegaraos estratos submersos. Podem inclusive ocorrer taxas significativasde crescimento e, ao mesmo tempo, continuar em vigor agudas carên-cias para amplos setores da população. James Migdley (1995) afirmaque essa forma de crescimento caracterizou muitas nações desenvolvi-das e em desenvolvimento nos últimos anos e a denomina “desenvol-vimento distorcido”. O crescimento, constata, não foi acompanhadoali por um melhor acesso à assistência à saúde, educação, serviços pú-blicos e outros fatores que contribuem para o bem-estar social. Propõe-se então que, junto aos esforços necessários para crescimento, devemser praticadas ativas políticas de desenvolvimento social e deve me-lhorar-se a eqüidade. Farão parte dessas políticas investimentos, man-tidos no tempo e consideráveis, em educação e saúde, extensão dosserviços de água potável, instalações sanitárias e energia elétrica, pro-teção à família e outros. Para que o crescimento signifique bem-estarcoletivo, deve haver simultaneamente desenvolvimento social.

A análise das inter-relações entre ambos está indo, inclusive, maislonge. Ressalta-se que são interdependentes. James Wolfensohn (1996),presidente do Banco Mundial, defendeu o seguinte a respeito: “Semdesenvolvimento social paralelo, não haverá desenvolvimento econô-mico satisfatório”.

Efetivamente, o desenvolvimento social fortalece o capital huma-no, potencializa o capital social e gera estabilidade política, bases es-senciais para um crescimento sadio e sustentável. Alain Touraine (1997)sugere que é necessário passar a uma nova forma de arrazoar o tema:“Fica assim proposto o princípio central de uma nova política social:em vez de compensar os efeitos da lógica econômica, esta deve ser con-cebida como condição indispensável do desenvolvimento econômico”.

A visão que aparece é a de que não é viável o desenvolvimentosocial sem crescimento econômico, mas o mesmo, por sua vez, nãoterá caráter sustentável se não estiver apoiado num intenso crescimen-to social.

Outro eixo analisado são as relações entre grau de democracia edesenvolvimento social. Wickrama & Mulford (1996), entre outros, exa-minaram as correlações estatísticas respectivas. Seus dados indicamque, quando aumenta a participação democrática e se dispersa o poder

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político entre o conjunto da população, melhoram os indicadores dedesenvolvimento social. Os governos tendem a responder mais pronta-mente às necessidades da maioria da população.

Somando fatores, Wolfensohn (1998) sugere a imprescindibilida-de de ir além dos enfoques unilaterais:

“Devemos ir além da estabilização financeira. Devemos abordar osproblemas do crescimento com eqüidade a longo prazo, base da prospe-ridade e do progresso humano. Devemos prestar especial atenção àsmudanças institucionais e estruturais necessárias para a recuperação eco-nômica e para o desenvolvimento sustentável. Devemos ocupar-nos dosproblemas sociais.

Devemos fazer tudo isso. Porque se não tivermos a capacidade defazer frente às emergências sociais, se não contarmos com planos a maislongo prazo para estabelecer instituições sólidas, se não conseguirmosuma maior eqüidade e justiça social, não haverá estabilidade política. Esem estabilidade política, por mais recursos que consigamos acumularpara programas econômicos, não haverá estabilidade financeira”.

Como se observa, na imagem transmitida, a estabilidade financei-ra não é possível sem estabilidade política. Ela, por sua vez, está muitoligada aos graus de eqüidade e justiça social. A frente a ser abordada émuito ampla. É necessário atacar, ao mesmo tempo que os problemaseconômicos e financeiros, os sociais e avançar nas transformações ins-titucionais.

O capital social e a cultura são componentes-chaves destas intera-ções. As pessoas, as famílias, os grupos, são capital social e cultura poressência. São portadores de atitudes de cooperação, valores, tradições,visões da realidade, que são sua própria identidade. Se isso for ignora-do, saltado, deteriorado, importantes capacidades aplicáveis ao desen-volvimento serão inutilizadas, e serão desatadas poderosas resistên-cias. Se, pelo contrário, se reconhecer, explorar, valorizar e potencializarsua contribuição, pode ser muito relevante e propiciar círculos virtuo-sos com as outras dimensões do desenvolvimento.

A crise da reflexão convencional sobre o desenvolvimento emmarcha está abrindo, entre outras, a oportunidade de cruzar ativamen-te capital social, cultura e desenvolvimento. Até pouco tempo atrás, aprincipal corrente de trabalho sobre desenvolvimento prestava limita-da atenção ao que ocorria nesses campos. Por sua vez, neles, muitasindagações eram realizadas à margem de possíveis conexões com o pro-

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cesso de desenvolvimento. A crise, que busca ampliar o âmbito de com-preensão para poder superar a estreiteza evidenciada pelo âmbito usual,cria um vasto espaço para superar os isolamentos. Na seção seguinte,tentaremos avançar nessa direção, explorando algumas das múltiplasinter-relações possíveis.

Capital social, cultura e desenvolvimento

Segundo análises do Banco Mundial, há quatro formas básicas decapital: o natural, constituído pela dotação de recursos naturais comque conta um país; o capital construído, gerado pelo ser humano, queinclui diversas formas de capital, como infra-estrutura, bens de capi-tal, financeiro, comercial etc.; o capital humano, determinado pelosgraus de nutrição, saúde e educação de sua população, e o capital so-cial, descoberta recente das ciências do desenvolvimento. Alguns estu-dos atribuem às duas últimas formas de capital um percentual majori-tário do desenvolvimento econômico das nações do final do século XX.Indicam que ali há chaves decisivas do progresso tecnológico, acompetitividade, o crescimento sustentável, o bom governo e a estabi-lidade democrática.

O que é então o capital social? O campo não tem uma definiçãoconsensualmente aceita. De recente exploração, encontra-se, na ver-dade, em plena delimitação de sua identidade, daquilo que é, e da-quilo que não é. Entretanto, apesar das consideráveis imprecisões,existe a impressão cada vez mais generalizada de que, ao percebê-lo einvestigá-lo, as disciplinas do desenvolvimento estão incorporandoao conhecimento e à ação um amplo número de variáveis, que de-sempenham papéis importantes, que estavam fora do enquadramentoconvencional.

Robert Putnam (1994), precursor das análises do capital social,considera em seu difundido estudo sobre as dissimilitudes entre a Itá-lia do norte e a Itália do sul que, fundamentalmente, o conformam: ograu de confiança existente entre os atores sociais de uma sociedade,as normas de comportamento cívico praticadas e o nível de associati-vidade que a caracteriza. Estes elementos são evidenciadores da rique-za e fortaleza do tecido social interno de uma sociedade. A confiança,por exemplo, atua como um “economizador de conflitos potenciais”limitando o “pleitismo”. As atitudes positivas em matéria de comporta-mento cívico, que vão desde cuidar dos espaços públicos ao pagamen-

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to dos impostos, contribuem com o bem-estar geral. A existência dealtos níveis de associacionismo indica que é uma sociedade com capa-cidades para atuar cooperativamente, armar redes, acordos, sinergiasde toda ordem em seu interior. Este conjunto de fatores teria, segundoas observações de Putnam, maior presença e profundidade na Itália donorte em relação à Itália do sul, e teriam desempenhado um papel dedefinição na superioridade que a primeira teria evidenciado em maté-ria de performance econômica, qualidade de governo, estabilidade po-lítica e outras áreas.

Por outro dos precursores, James Coleman (1990), o capital socialse apresenta tanto no plano individual como no coletivo. No primeiro,tem a ver com o grau de integração social de um indivíduo, sua rede decontatos sociais, implica relações, expectativas de reciprocidade, com-portamentos confiáveis. Melhora a efetividade privada. No entanto,também é um bem coletivo. Por exemplo, se todos numa vizinhançaseguem normas tácitas de zelar pelo outro e de não-agressão, as crian-ças poderão caminhar até a escola com segurança, e o capital socialestará produzindo ordem pública.

Diferentes analistas atuais desta velha-nova forma de capitalenfatizam diversos aspectos. Entre outros, para Kenneth Newton (1997)o capital social pode ser visto como um fenômeno subjetivo, compostode valores e atitudes que influenciam como as pessoas se relacionamentre si. Inclui confiança, normas de reciprocidade, atitudes e valoresque auxiliam as pessoas a transcender relações conflituosas e competi-tivas para conformar relações de cooperação e ajuda mútua. StephanBaas (1997) afirma que o capital social tem a ver com coesão social,com identificação com as formas de governo, com expressões culturaise comportamentos sociais que fazem a sociedade mais coesiva e maisdo que uma soma de indivíduos. Considera que os arranjos institucio-nais horizontais têm um impacto positivo na geração de redes de con-fiança, bom governo e eqüidade social. O capital social desempenhaum papel importante ao estimular a solidariedade e superar as falhasdo mercado através de ações coletivas e uso comunitário de recursos.James Joseph (1998) entende o capital social como um vasto conjuntode idéias, ideais, instituições e arranjos sociais, através dos quais aspessoas encontram sua vez e mobilizam suas energias particulares paracausas públicas. Bullen & Onyx (1998) o vêem como redes sociais ba-seadas em princípios de confiança, reciprocidade e normas de ação.

Em visão crítica, Levi (1996) destaca a importância das descober-tas de Putnam, mas acentua que é preciso dar mais ênfase às vias pelas

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quais o Estado pode favorecer a criação de capital social. Consideraque o foco de Putnam em associações civis, longe do Estado, deriva desua perspectiva romântica da comunidade e do capital social. Esse ro-mantismo restringiria a identificação de mecanismos alternativos paracriação e uso do capital social e limitaria as conceitualizações teóricas.Wall, Ferrazzi e Schryer (1998) entendem que a teoria do capital socialprecisa de maiores refinamentos antes que possa ser considerada umageneralização mensurável. Serageldin (1998) ressalta que, enquantohouver consenso sobre o fato de que o capital social é relevante para odesenvolvimento, não há acordo entre os pesquisadores e praticantesacerca dos modos particulares com que contribui para o desenvolvi-mento, de como pode ser gerado e utilizado, e de como pode seroperacionalizado e estudado empiricamente.

Enquanto prossegue a discussão epistemológica e metodológicatotalmente legítima, visto que os estudos sistemáticos sobre o temaapenas tiveram início há menos de uma década, e o mesmo é de umaenorme complexidade, o capital social continua dando mostras de suapresença e ação efetiva. É nisso que queremos nos concentrar.

Uma ampla linha de pesquisas voltadas a “registrá-lo em ação”está lançando continuamente novas evidências sobre seu peso no de-senvolvimento.

Entre elas, Knack & Keefer (1996) mediram econometricamente ascorrelações entre confiança e normas de cooperação cívica e crescimentoeconômico, num amplo grupo de países, e encontraram que as primeirasapresentam um forte impacto sobre o segundo. Ainda, seu estudo indicaque o capital social integrado por esses componentes é maior em socieda-des menos polarizadas quanto à desigualdade e diferenças étnicas.

Narayan & Pritchett (1997) realizaram um estudo muito sugestivosobre o grau de associatividade e rendimento econômico em lares ru-rais da Tanzânia. Detectaram que, mesmo nesses contextos de alta po-breza, as famílias com maiores níveis de renda (medidos pelos gastos)eram as que tinham um grau maior de participação em organizaçõescoletivas. O capital social que acumulavam através dessa participaçãoos beneficiava individualmente e criava benefícios coletivos por diver-sas vias, entre elas:

• suas práticas agrícolas eram melhores que as dos lares que nãotinham participação; em conseqüência de sua participação, pos-suíam informações que os levavam a utilizar mais produtosagroquímicos, fertilizantes e sementes melhoradas;

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• tinham melhores informações sobre o mercado;• estavam dispostos a correr mais riscos porque se sentiam mais

protegidos por fazer parte de uma rede social;• influenciavam na melhoria dos serviços públicos; assim, parti-

cipavam mais na escola;• cooperavam mais em nível municipal.

Assinalam os pesquisadores em suas conclusões que “os canaisidentificados pelos quais o capital social incrementava a renda e a soli-dez econométrica da magnitude dos efeitos do capital social sugeremque o capital social é capital e não meramente um bem de consumo”.

La Porta, López de Silanes, Shleifer e Vishny (1997) trataram deconvalidar as teses de Putnam numa mostra ampla de países. Suas aná-lises estatísticas lançam significativas correlações entre o grau de con-fiança existente numa sociedade e fatores como a eficiência judicial, aausência de corrupção, a qualidade da burocracia e o cumprimentodos impostos. Consideram que “os resultados de Putnam para a Itáliaaparecem confirmados em nível internacional”.

Teachman, Paasch e Carver (1997) trataram de medir como o ca-pital social influi no rendimento educativo das crianças. Utilizaramtrês indicadores: a dinâmica da família, os laços com a comunidade e onúmero de vezes que uma criança trocou de colégio. Encontraram for-te correlação com um indicador-chave de rendimento, a probabilidadede evasão. Sua hipótese é que o capital social torna mais produtivasoutras formas de capital, como o capital humano e o capital financeiro.

A influência positiva de um componente central do capital social,a família, em numerosos aspectos tem sido verificada por diversas pes-quisas recentes. Quanto maior for a solidez desse capital social básico,melhores serão os resultados e vice-versa. Uma ampla pesquisa sobre60 mil crianças nos Estados Unidos (Wilson, 1994) indica que aquelasque viviam com apenas um dos pais eram duas vezes mais propensas aser expulsas ou suspensas na escola, a sofrer problemas emocionais oude conduta e a ter dificuldades com os colegas. Também eram muitomais inclinadas a ter uma conduta anti-social. Katzman (1997) afirmaque estudos no Uruguai mostram que as crianças concebidas fora docasamento apresentam uma taxa de mortalidade infantil muito maiordo que o resto e que as que não convivem com os dois pais biológicosexibem maiores danos em diferentes dimensões do desenvolvimentopsicomotor. Em pesquisa num meio totalmente diferente, na Suécia,

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em condições econômicas muito melhores, contudo, se mantém o pesodiferencial das famílias estáveis no rendimento da criança. Jonsson &Gahler (1997) demonstram que as crianças provenientes de famílias di-vorciadas mostram menor rendimento educativo. Há uma perda de re-cursos em relação àqueles com que conta a criança nas famílias estáveis.

Sanders & Nee (1996) analisam a família como capital social nocaso dos imigrantes nos Estados Unidos. Seus estudos indicam que oespaço familiar cria condições que tornam factível uma estratégia-cha-ve de sobrevivência, entre os imigrantes, o auto-emprego. A famíliaminimiza os custos de produção, transação e informação associadoscom o mesmo. Facilita o surgimento de empresas operadas familiar-mente. Hagan, MacMillan e Wheaton (1996) destacam que nas migra-ções, inclusive para o interior de um país, há perdas de capital social eque elas são menores em famílias com pais envolvidos com as criançase mães protetoras, e maiores, quando se trata de pais e mães que não sededicam intensamente às crianças.

Kawachi, Kennedy e Lochner (1997) dão conta de dados muitointeressantes sobre a relação entre capital social, eqüidade e saúdepública. O famoso estudo de Alameda County (Estados Unidos), con-firmado depois em estudos epidemiológicos em diferentes comunida-des, detectou que as pessoas com menos contatos sociais têm pioresprobabilidades, em termos de expectativa de vida, que aquelas comcontatos mais extensivos. A coesão social de uma sociedade, que faci-lita os contatos interpessoais, é, afirmam os autores, um fator funda-mental de saúde pública. Medem estatisticamente as correlações entrecapital social, representado por confiança, e mortalidade em 39 esta-dos dos Estados Unidos. Quanto menor é o grau de confiança entre oscidadãos, maior é a taxa de mortalidade média. A mesma correlação éobtida ao relacionar a taxa de participação em associações voluntáriascom mortalidade. Quanto mais baixa é a primeira, mais cresce a morta-lidade. Os pesquisadores introduzem na análise o grau de desigualda-de econômica. Quanto mais alto, demonstram, menor é a confiançaque os cidadãos têm uns nos outros. O modelo estatístico que utilizamlhes permite afirmar que, por cada ponto de aumento na desigualdadena distribuição da renda, a taxa de mortalidade sobe dois ou três pon-tos com respeito ao que deveria ser. Ilustram suas análises com diver-sas cifras comparativas. Os Estados Unidos, apesar de terem uma ren-da per capita das mais altas do mundo (US$ 24.680 em 1993), tem umaexpectativa de vida (76,1 em 1993) menor que a de países com menorrenda, como a Holanda (US$ 17.340 e expectativa de vida de 77,5 anos),

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Israel (US$ 15.130 e expectativa de vida de 76,6 anos) e a Espanha(US$ 13.660 e expectativa de vida de 77,7 anos). Uma distribuição maisigualitária da renda cria maior harmonia e coesão social e melhora asaúde pública. As sociedades com maior expectativa de vida no mun-do, como a Suécia (78,3) e o Japão (79,6), caracterizam-se por teremelevados níveis de eqüidade.

A desigualdade, concluem os pesquisadores, faz diminuir o capi-tal social e isso afeta intensamente a saúde da população.

O capital social, à margem das especulações e buscas de precisãometodológicas, por princípio válidas e necessárias, está operando narealidade cotidiana e tem grande peso no processo de desenvolvimen-to. Pode aparecer através das expressões mais variadas. Por exemplo,como destaca Stiglitz (out. 1998), são estratégicas para o desenvolvi-mento econômico as capacidades existentes numa sociedade para re-solver disputas, impulsionar consensos, consertar o Estado e o setorprivado. Hirschman (1986), de forma pioneira, propôs a respeito umponto que merece toda a atenção. Indica que se trata da única forma decapital que não diminui ou se esgota com seu uso que, pelo contrário,a faz crescer. Assinala: “O amor e o civismo não são recursos limitadosou fixos, como podem ser outros fatores de produção, são recursos cujadisponibilidade, longe de diminuir, aumenta com seu emprego”.

O capital social pode, ainda, ser reduzido ou destruído. Moser(1998) adverte sobre a vulnerabilidade da população pobre nesse as-pecto diante das crises econômicas. Nelas, ressalta, “enquanto os larescom suficientes recursos mantêm relações recíprocas, aqueles que en-frentam a crise se retiram de tais relações ante sua impossibilidade decumprir suas obrigações”. Fuentes (1998) analisa como em Chiapas,México, as populações camponesas deslocadas, ao ver-se obrigadas amigrar, se descapitalizaram severamente em termos de capital social,visto que se destruíram seus vínculos e inserções básicas. Pode, ainda,como apontam vários estudos, haver formas de capital social negativo,como as organizações criminosas, mas elas não invalidam as imensaspotencialidades do capital social positivo.

A cultura cruza todas as dimensões do capital social de uma so-ciedade. A cultura subjaz atrás dos componentes básicos consideradoscapital social, como a confiança, o comportamento cívico, o grau deassociacionismo. Como a caracteriza o informe da Comissão Mundialde Cultura e Desenvolvimento da Unesco (1996), “a cultura está nasmaneiras de vivermos juntos (...) molda nosso pensamento, nossa ima-

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gem e nosso comportamento”. A cultura engloba valores, percepções,imagens, formas de expressão e comunicação e muitos outros aspectosque definem a identidade das pessoas e das nações.

As inter-relações entre cultura e desenvolvimento são de toda aordem e assombra a escassa atenção que lhes tem sido prestada. Sur-gem potencializadas ao revalorizar-se todos estes elementos silencio-sos e invisíveis, mas claramente operantes, que envolvem a idéia decapital social.

Entre outros aspectos, os valores de que é portadora uma socieda-de incidirão fortemente sobre os esforços de desenvolvimento. Comoafirmou Amartya Sen (1997), “os códigos éticos dos empresários e pro-fissionais são parte dos recursos produtivos da sociedade”. Se estescódigos sublinham valores afins ao projeto requerido por amplos seto-res da população, de desenvolvimento com eqüidade, o favorecerãoou, ao contrário, o obstaculizarão.

Os valores predominantes num sistema educativo, nos meios dedifusão maciça e outros âmbitos influentes de formação de valores po-dem estimular ou obstruir a conformação de capital social que, por suavez, como se viu, tem efeitos de primeira ordem sobre o desenvolvi-mento. Como destaca Chang (1997): “Os valores colocam as bases dapreocupação de um pelo outro mais além do simples bem-estar pes-soal. Desempenham um papel crítico em determinar se avançarão asredes, as normas e a confiança”. Valores que têm suas raízes na culturae são fortalecidos ou dificultados por esta, como o grau de solidarieda-de, altruísmo, respeito, tolerância, são essenciais para um desenvolvi-mento sustentável.

A cultura incide claramente sobre o estilo de vida dos diversosgrupos sociais. Um significativo estudo realizado na Holanda (Rupp,1997) tratou de determinar diferenças no estilo de vida entre lares ope-rários de um mesmo nível socioeconômico, que se diferenciavam basi-camente num aspecto: Alguns deles enviavam seus filhos a escolas comuma forte ênfase no cultural e outros, a escolas inclinadas ao econômi-co. Os comportamentos que surgiram eram muito diferentes. Os paisculturalmente orientados utilizavam mais tempo e energia em formasde arte simples, como cantar, executar instrumentos musicais e ler umlivro por mês. Seu estilo de vida incluía o gosto por formas simples daarte e a busca de uma vida saudável, natural e descomplicada. Os paiscom orientação para o econômico centravam-se em suas conquistaseconômicas, bens materiais e em aspectos como a aparência externa.

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Tendo trabalhos e níveis de renda similares, a atitude cultural era avariável básica que estava impulsionando comportamentos muito di-versos.

Na luta contra a pobreza, a cultura surge como um elemento-cha-ve. Como agudamente destaca a Unesco, no informe já citado (1997):“Para os pobres, os valores próprios são freqüentemente a única coisaque podem afirmar”. Os grupos desfavorecidos têm valores que lhesdão identidade. Seu desrespeito ou marginalização podem ser total-mente lesivos à sua identidade e bloquear as melhores propostas pro-dutivas. Pelo contrário, sua potencialização e afirmação podem desen-cadear enormes potenciais de energia criativa.

A cultura é, ainda, um fator decisivo de coesão social. Nela, aspessoas podem reconhecer-se mutuamente, cultivar-se, crescer em con-junto e desenvolver a auto-estima coletiva. Como assinala a respeitoStiglitz (out. 1998), preservar os valores culturais tem grande impor-tância para o desenvolvimento, já que funcionam como uma forçacoesiva numa época em que muitas outras estão se enfraquecendo.

Capital social e cultura podem ser alavancas formidáveis de de-senvolvimento se forem criadas as condições adequadas. Seu desco-nhecimento ou destruição, pelo contrário, podem criar obstáculos enor-mes no caminho para o desenvolvimento. Entretanto, poder-se-ia per-guntar: conseguir essa potencialização não pertencerá ao reino das gran-des utopias, de um porvir ainda alheio às possibilidades atuais dassociedades? Na seção seguinte deste trabalho, tentaremos demonstrarque isso não é assim, que há experiências concretas que conseguirammobilizar o capital social e a cultura em escala considerável a serviçodo desenvolvimento e que se deve prestar a máxima atenção a elespara extrair ensinamentos a respeito.

O capital social em ação. Experiências latino-americanas

O que acontece quando se realiza um trabalho sustentado de lon-go prazo de mobilização de aspectos-chaves do capital social de umacomunidade? Quais são as respostas observáveis? Que oportunidadesnovas e que dificuldades aparecem? É possível obter indícios significa-tivos a respeito revendo experiências atualmente em curso. Existe umaampla gama delas em nível internacional. Algumas obtiveram celebri-dade mundial, como a do Grameen Bank de Bangladesh, dedicado aapoiar financeiramente camponeses pobres, que conseguiu surpreen-

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dentes resultados apoiando-se em elementos relacionados com o graude associatividade, confiança mútua e outras dimensões do capital so-cial. Concentrar-nos-emos em nosso trabalho em experiências da Amé-rica Latina que são indicativas do potencial latente na região nestamatéria e podem oferecer ensinamentos úteis para formular políticasde desenvolvimento social nelas. Escolhemos três casos que obtiveramresultados de alta relevância que são reconhecidos em seus países e emnível internacional, como “práticas sociais de grande êxito” e que sãocontinuamente analisados e visitados para buscar possibilidades decopiá-los total ou parcialmente.

Villa El Salvador, Peru: dos areais a uma experiência social avançada

Em 1971, várias centenas de pessoas pobres realizaram uma inva-são de terras públicas na periferia de Lima. Somaram-se a elas milha-res de habitantes de favelas de Lima. O governo interveio para expulsá-los e finalmente permitiu que se fixassem num vasto areal localizado adezenove quilômetros de Lima. Esses 50 mil pobres, que careciam derecursos de toda sorte, fundam ali Villa El Salvador (VES). Muitas ou-tras pessoas foram se juntando a eles e sua população atual se estimaem cerca de 300 mil habitantes. A experiência que desenvolvem é con-siderada muito particular em múltiplos aspectos. O plano urbanísticotraçado diferencia VES de outros bairros pobres. O projeto é o de 1300quarteirões, que configuram 110 grupos residenciais. Em vez de terapenas um centro, onde funcionam os edifícios públicos básicos, o es-quema é totalmente descentralizado. Cada grupo residencial tem seupróprio centro, onde se instalaram locais da comunidade e espaços paraesporte, atividades culturais e encontro social. Isso favorece a interaçãoe maximiza as possibilidades de cooperação. Dá-se um modeloorganizativo baseado na participação ativa. Partindo de delegados porquarteirão e por grupos residenciais, cria-se uma organização, CUAVES,que representa toda a comunidade e que terá um peso decisivo em seudesenvolvimento. Estabelecem quase 4 mil unidades organizativas parabuscar soluções e gerir assuntos comunitários. Nelas participa a gran-de maioria da população, chegando-se a que cerca de 50% dos maioresde 18 anos ocupam algum cargo de dirigente em termos organizacionais.

Desenvolvem nestes areais, carentes de toda ordem de recursos equase incomunicáveis (é preciso percorrer 3 km para encontrar umavia de acesso a Lima), um gigantesco esforço de construção baseado,

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centralmente, no trabalho voluntário da própria comunidade. Um in-ventário da situação de finais de 1989 afirma que em menos de duasdécadas tinham 50 mil moradias, 38 mil delas construídas pelos mora-dores, 68% com materiais nobres (tijolos, cimento, telhado de concretoetc.), tinham levantado com seu esforço 2,8 bilhões de metros quadra-dos de ruas de terra batida e construído, em sua maior parte com osrecursos e trabalho da comunidade, 60 pontos da comunidade, 64 cen-tros educativos e 32 bibliotecas populares. A isso se somavam 41 nú-cleos de serviços integrados de saúde, educação e recuperaçãonutricional, centros de saúde comunitários, uma rede de farmácias euma razoável estrutura viária interna, com 4 rotas principais e 7 aveni-das perpendiculares, que permitiam a comunicação interna. Meio mi-lhão de árvores foram plantadas.

Permanecendo pobres e com sérios problemas de desemprego,como em toda Lima, as conquistas sociais obtidas pela VES eram mui-to significativas. A taxa de analfabetismo havia descido de 5,8% para3,5%. A taxa de matrícula no primário havia alcançado 98% e, no gina-sial, era superior a 90%, todas cifras superiores às médias nacionais, emuito maiores que as das populações pobres similares. Em saúde, ascampanhas de vacinação realizadas com apoio da comunidade, quetinham coberto toda a população, a organização da comunidade para asaúde preventiva e o controle de natalidade tinham incidido num fortedecréscimo da mortalidade infantil para 67 por mil, cifra muito infe-rior à média nacional, que estava em 88 a 95 por mil. A taxa de morta-lidade geral era também inferior às médias nacionais. Registravam-se,ainda, avanços em matéria de obtenção de serviços de água, sanea-mento e eletricidade, num prazo que se estimou menor, em oito anos,ao qual outros bairros pobres demoravam para obtê-los e havia desen-volvido uma considerável infra-estrutura, equipamento e serviços co-munitários superior à de outros bairros.

O enorme esforço coletivo realizado pelo prefeito de VES, MichelAzcueta (1991), várias vezes foi descrito do seguinte modo: “O poderde Villa El Salvador, com seu esforço e sua luta, foi construindo umacidade a partir do nada, com centenas de quilômetros de redes de águae de luz, ruas, colégios, mercados, zona agropecuária e até um parqueindustrial, conseguido também com luta pelos pequenos industriais dazona”.

Apresenta-se uma pergunta de fundo: como foi possível conseguirestes resultados partindo da miséria, num âmbito natural tão difícil,

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em meio da aguda crise econômica que viveu o Peru, assim como todaa região, nos anos 1980, e de toda a ordem de dificuldades? As chavespara entender as conquistas, que não erradicaram a pobreza, mas me-lhoraram aspectos fundamentais da vida das pessoas da VES, e a trans-formaram num bairro pobre diferente, parecem encontrar-se em ele-mentos incluídos na idéia do capital social.

A população originária de VES estava formada, em sua maioria,por famílias vindas da serra peruana. Os camponeses dos Andes care-ciam de toda riqueza material, mas tinham um rico capital social. Le-vavam consigo a cultura e a tradição indígena e uma milenar experiên-cia histórica de cooperação, trabalho comunitário e solidariedade. As-pectos centrais dessa cultura, como a prática de uma intensa vida co-munitária, em que convive a propriedade comunitária de serviços úteispara todos, ao mesmo tempo que a propriedade familiar e individual,foram aplicados em VES. Essa cultura facilitou a montagem dessa ex-tensa organização participativa, em que todos os moradores foram con-vocados a ser atores das soluções dos problemas coletivos. Funcionoucom fluidez a partir das bases históricas favoráveis que tinha a culturacamponesa peruana. Até receitas técnicas, como as lagoas de oxidaçãoutilizadas pelos incas, foram empregadas intensamente em VES. Elaspermitem um processamento dos dejetos gerados através de um siste-ma de lagoas que leva à produção de adubo, que depois é usado paragerar zonas verdes e produção agrícola.

A visão ancorada na cultura dos moradores de VES, da transcen-dência do trabalho coletivo como meio para buscar soluções, impreg-nou desde o início a história da Villa. Aparece refletida vividamente naforma como foi enfrentado o problema de construir escolas. MichelAzcueta (Zapata, 1996) narra: “... a partir da própria instalação, a popu-lação organizou-se para que se construíssem escolas e as crianças nãoperdessem o ano escolar. Formaram-se doze comitês pró-escola nosprimeiros três meses e se iniciou a construção de muitas salas de aulanum esforço que, visto a distância, parece enorme e que não se enten-de sem acudir uma explicação sobre suas motivações subjetivas. Co-meçou-se a dar aulas em salas que usavam esteiras como paredes, asquais se impermeabilizavam com plásticos para minimamente comba-ter o frio do inverno, enquanto o chão era de terra batida, e os poucostijolos foram reservados para ser usados como precários bancos pelascrianças. Estas salas de aula foram construídas em jornadas coletivasdominicais, com um entusiasmo e fervor que deixaram uma lembran-ça inesquecível entre seus protagonistas”.

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A favor destas condições, criou-se em VES um amplo e sólido te-cido associativo. Construíram-se organizações de jovens, de mulheres,de mães, cooperativas de mercados, associações de pequenos indus-triais e comerciantes, rondas urbanas, coordenações e brigadas juve-nis, ligas desportivas, grupos culturais de toda ordem etc. Aassociatividade cobriu em VES os mais variados aspectos. Entre eles:produtores unindo-se para comprar insumos em conjunto, buscarmancomunadamente maquinarias, melhorar a qualidade; mais de umacentena de clubes de mães, que criaram e geriram exemplarmente 264bandejões populares e 150 programas de “copo de leite”; jovens quedirigem e levam adiante centenas de grupos culturais, artísticos, bi-bliotecas populares, clubes desportivos, associações estudantis, ofici-nas de comunicação etc.

O trabalho da própria comunidade, organizada em âmbitos cabal-mente participativos, esteve na base dos avanços que foi conseguindoem curto espaço de tempo. O processo “disparou” o capital social la-tente, que foi se multiplicando. A criação, a partir do nada, de ummunicípio inteiro por sua população gerou uma identidade sólida eimpulsionou a auto-estima pessoal e coletiva. Como afirma Carlos Fran-co (1992), a cidade que se criou era a expressão de seus habitantes. Nãoeram simplesmente seus moradores, mas seus construtores. Ao criarVES e desenvolvê-la, criaram a si próprios. Por isso como marca, quan-do se pergunta aos moradores de VES de onde são, não respondemcomo outros chegados do interior, fazendo referência a seu lugar denascimento, e sim dizem “sou da Villa”, o lugar que lhes deu uma iden-tidade que valorizam altamente. O processo de enfrentar desafios mui-to difíceis e avançar, foi ainda fortalecendo sua auto-estima, estímulofundamental para a ação produtiva. Descreve Franco: “... quando seassiste com alguma freqüência a reuniões de moradores e se conversacom os ‘fundadores’ da comunidade, ou seus dirigentes, não resultadifícil advertir expressões recorrentes de autoconfiança coletiva, certe-zas sobre sua disposição de um poder organizado, uma certa crençanas capacidades da comunidade de propor-se objetivos e unir-se parasua conquista”.

A auto-estima foi especialmente cultivada também nas escolas deVES. Os professores tentaram libertar as crianças de todo sentimentode inferioridade derivado de suas condições de filhos de famílias po-bres. Procuraram dar segurança às crianças, para que não se sentisseminferiorizadas.

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A cultura cumpriu um papel significativo na experiência desdeseu início. Em 1974, Azcueta criou e levou adiante o Centro de Comu-nicação Popular, espaço destinado a atividades culturaisextracurriculares de toda sorte. Ali surgiram primeiro Oficinas de Tea-tro e Música, e logo de outras áreas, desenvolvendo-se um intenso tra-balho. A partir desses espaços culturais, procurava-se estimular a par-ticipação da população nas assembléias de tomada de decisões e asatividades da comuna. O teatro de VES produziu, ao longo dos anos,peças que o levaram aos cenários metropolitanos e nacionais. A ativi-dade cultural fez parte da vida cotidiana da população. Descreve Fran-co: “... o intermitente funcionamento de 39 alto-falantes, as competi-ções esportivas internas, os programas de rádio da comunidade, as ofi-cinas de comunicação, os numerosos grupos artísticos e culturais, anova e moderna rádio do Centro de Comunicação Popular, e o crescen-te número de peñas (pequenos grupos folclóricos) e grupos musicais,contribuem para o desenvolvimento de uma intensa e efervescente vidacomunal”.

O esforço de construção comunitária de VES, realizado nas maisdifíceis condições, foi presidido e orientado por certos valores. A popu-lação definiu seu projeto como a conformação de uma comunidade deautogestão participativa. Uma visão coletiva centrada na promoção devalores comunitários, da participação ativa e da autogestão, marcou todoo esforço. Em 1986, VES transformou-se num município. Ao estruturá-lo, mantiveram-se todos os princípios anteriores. Assim, estabeleceu-seque as decisões comunais seriam a base das decisões municipais. Recen-temente VES fundou, com assistência de várias ONGs, o jornal El Co-mercio, e outras entidades, um sistema destinado a facilitar a participa-ção da população empregando a informática. Entre seus elementos: oConselho Municipal transmite suas sessões em circuito fechado à Villa;na mesma há terminais de computador, e os habitantes podem receber,através deles, informação sobre o que vai ser tratado nas referidas ses-sões, e elementos de juízo a respeito, e fazem chegar ao Conselho seuspontos de vista; o Conselho realiza, através do sistema de computação,referendos contínuos sobre as opiniões dos habitantes.

A experiência de VES tornou-se mundialmente reconhecida, sendoobjeto de contínuas distinções. Em 1973, a Unesco a premiou como umadas mais desafiantes experiências em educação popular; em 1986 o jor-nal La República (de Lima) a declarou “personagem do ano do país”; em1987, a ONU designou VES como Cidade Mensageira da Paz, distinguin-

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do-a como promotora exemplar de formas de vida comunitária. Tam-bém em 1987, lhe foi outorgado o Prêmio Príncipe de Astúrias, do rei daEspanha, pelo impressionante desenvolvimento alcançado pela comu-nidade na área social e cultural. Ainda, entre outros, recebeu o PrêmioNacional de Arquitetura e Desenvolvimento Urbano do Peru e um prê-mio por ser a comunidade com maior grau de florestamento e arborização.Em 1985, o papa João Paulo II visitou Villa El Salvador, destacando suasconquistas e assinalando: “Com grande alegria, soube da generosidadecom que muitos dos habitantes deste ‘povoado jovem’ auxiliam os ir-mãos mais pobres da comunidade, nos bandejões populares e familia-res, nos grupos para atender os doentes, nas campanhas de solidarieda-de para socorrer os irmãos atingidos pelas catástrofes naturais”.

Em VES, não se conseguiram resolver os problemas de fundo cau-sadores da pobreza, que têm ver com fatores que excedem totalmente àexperiência e fazem parte de problemas gerais do país. Entretanto, ob-tiveram-se avanços consideráveis com respeito a outros bairros pobres,e se criou um perfil de sociedade muito particular, que mereceu a lon-ga lista de prêmios obtida. A potencialização do capital social desem-penhou um papel decisivo nas conquistas de VES. Fatores não visí-veis, silenciosos, que atuam nas entranhas do tecido social, desempe-nharam aqui um papel positivo constante. Entre eles: o fomento per-manente de formas de cooperação, a confiança mútua entre os atoresorganizacionais, a existência de um comportamento cívico comunal,construtivo e criador, a presença de valores comuns orientadores, amobilização da cultura própria, a afirmação da identidade pessoal, fa-miliar e coletiva, o crescimento da auto-estima na própria experiência.Todos estes elementos foram dinamizados pelo modelo genuinamenteparticipativo adotado pela comunidade. Com os avanços e retrocessos,passando por momentos muito difíceis como os que se deram duranteo auge da violência no país, VES encontra-se em 1999, como dissemos,buscando formas ainda mais ativas de participação da comunidade, e,como indicam jornais do Peru, transformou-se, provavelmente, no pri-meiro Município da América Latina que somou às metodologias departicipação democrática usuais, a democracia virtual.

As feiras de consumo familiar da Venezuela: os dividendos do capital social

A pergunta de como baratear o custo dos produtos alimentíciospara os setores humildes da população teve uma resposta significativa

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na cidade de Barquisimeto, na Venezuela. Iniciadas em 1983, as feirasde consumo familiar conseguiram reduzir em 40% os preços de vendaao consumidor de produtos como frutas e hortaliças, e de 15% a 20%os preços dos víveres. Isso beneficia semanalmente 40 mil famílias dessacidade de 1 milhão de habitantes. Essas famílias, integrantes principal-mente de estratos baixos e médios, obtêm comprando nas feiras umaeconomia anual estimada em 10,5 milhões de dólares.

As feiras estão integradas por um amplo número de organizaçõesda sociedade civil. Formalmente, constituem parte da CECOSESOLA, aCentral Cooperativa do Estado Lara, mas em sua operação intervêm gru-pos de produtores, associações de consumidores e pequenas empresasde autogestão. Assim, nelas participam 18 associações de produtoresagrícolas, que agrupam cerca de 600 produtores, e 12 unidades de pro-dução comunitária. Esses pequenos e médios agricultores e os produto-res de víveres colocam sua produção através das feiras. As feiras com-preendem cinqüenta pontos de venda, que operam nos três últimos diasda semana, e vendem diretamente à população trezentas toneladas sema-nais de produtos hortifrutigranjeiros comuns para o consumo doméstico.

As feiras vendem, como produto básico, um quilo de produtoshortifrutícolas por um preço único. Isso simplifica ao máximo sua ope-ração. Entre os produtos encontram-se: batata, tomate, cenoura, cebo-la, pimentão, alface, inhame, aipo, ocumo, ayuma, mandioca, repolhoe banana. Os produtos chegam através de transportes e locais próprios,diretamente do pequeno produtor para o consumidor. Todos saem ga-nhando. O pequeno produtor, antes dependente de intermediários nacomercialização e de vaivéns contínuos, tem, através delas, asseguradaa venda de sua produção a preços razoáveis, e é um dos co-gestores detoda a iniciativa. Os consumidores recebem produtos frescos a preçosbem mais reduzidos que os do mercado.

As feiras cresceram rapidamente durante estes 15 anos e se trans-formaram no principal provedor de alimentos e produtos básicos dacidade de Barquisimeto.

Sua expansão pode ser observada no quadro seguinte, incluído nosistemático estudo, preparado por Luis Gómez Calcano (1998).

Como se observa, partindo de uma só feira, e quase sem capitalinicial, as feiras cresceram aceleradamente em todos os indicadoresincluídos no quadro. Entre 1990 e 1997, aumentou em 78% o númerode toneladas semanais de produtos verdes vendidos e foi duplicada aquantidade de famílias atendidas.

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Quais foram as bases destes êxitos econômicos e de eficiência deum conjunto de organizações de base da sociedade civil, sem capital,que se lançaram a um mercado como o de comercialização de produtosagroalimentícios de alta competitividade e escassas margens de lucro?

Na base do êxito, parece que se encontra elementos-chaves do ca-pital social. Os atores da experiência assinalam, como base de suasconquistas:

“Tratando de buscar as chaves para compreender as conquistas queobtivemos, podemos mencionar:

1) Uma história de formação de um capital social e humano;2) potencializar o capital social antes do financeiro;3) algumas formas novas de gestão participativa”.

(Feiras de Consumo Familiar, 1996)

As várias centenas de trabalhadores que levam adiante as feiras eas associações vinculadas a elas estabeleceram um sistema organiza-cional baseado na cooperação, participação, horizontalidade e forte-mente orientado por valores.

As feiras têm atrás de si uma concepção de vida que privilegia, se-gundo indicam seus atores, a solidariedade, a responsabilidade pessoal

* Inclui todo o Estado de Lara; aproximadamente a metade em Barquisimeto.** Inclui 50 feiras e 55 centros de abastecimento solidário.Fontes: CECOSESOLA. Feiras de Consumo Familiar. Estado Lara. Barquisimeto, 1990.CECOSESOLA. Apresentação do Programa de Feiras de Consumo Familiar em reunião doGrupo Santa Lucía. Puerto La Cruz, Venezuela. Out. 1997.

Ano 1984 1990 1997

Unidades de venda 1 87* 105**

Venda semanal de produtos hortifrutícolas(em toneladas) 3 168 300

Número de famílias atendidas 300 20.000 40.000

Número de empregados 15 400 700

Número de produtores agrícolas 15 100 500

Número de organizações de produtores 1 n/d 18

Número de unidades de produção comunitária 1 9 12

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e de grupo, a transparência nas relações, a criação de confiança, a ini-ciativa pessoal, o amor ao trabalho.

Esta tabela de valores não permanece confinada a alguma declara-ção escrita, como ocorre com freqüência, mas se trata de cultivar siste-maticamente na organização. Um observador externo (Bruni Celli, 1996)descreve assim a dinâmica cotidiana das feiras: “Os valores cooperati-vistas de crescimento pessoal, apoio mútuo, solidariedade, frugalidadee austeridade; de ensinar aos outros, de não ser egoísta e dar o melhorde si para a comunidade, são temas de reflexão contínua nas oito oumais horas de reuniões às quais assistem todos os trabalhadores deCECOSESOLA uma vez por semana. O alto número das horas dedicadasa reuniões poderia ser visto como uma perda na produtividade, mas é oprincipal meio pelo qual se obtém a dedicação, o entusiasmo e o com-promisso dos trabalhadores da organização”.

Envolvido por estes valores, o desenho organizacional adotadoparece ter desempenhado um papel decisivo nos resultados obtidos.Está centrado em princípios como a participação ativa de todos os inte-grantes da organização, na comunicação fluida, na análise e aprendi-zado conjunto e na rotação contínua de tarefas. Um de seus traços éque todas as centenas de trabalhadores da organização ganham a mes-ma remuneração, que é 57% superior ao salário mínimo nacional. Alémdisso, a organização criou um fundo de financiamento que emprestadinheiro com baixas taxas e um fundo integrado de saúde. Sendo umaremuneração modesta, os membros da organização indicaram que têmoutros incentivos, como participar de um projeto com estes valores,fazer parte de um ambiente de trabalho democrático e não-autoritário,ter possibilidades de formação e desenvolvimento.

Os mecanismos concretos de operação da organização incluem:reuniões semanais de cada grupo para avaliar e planejar; tomada dedecisões por consenso; informação compartilhada; disciplina e vigi-lância coletiva; trabalho descentralizado de cada grupo, e a menciona-da rotação de responsabilidades.

A isso somam-se os espaços de encontro denominados “convivên-cias”. Estão dedicados ao encontro pessoal e social.

Estes traços organizacionais coincidem com muitas das recomen-dações da gerência avançada. São propícios para criar o que se chamahoje “uma organização que aprende”, e “uma organização inteligente”.O modelo organizacional das feiras tem grande flexibilidade, permite-lhes absorver por todos os seus “poros” informação sobre o que ocorre

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na realidade e, ao partilhá-la internamente, aumenta a capacidade dereação diante das mudanças. Ainda, permite monitorar o andamentodos processos, detectando rapidamente os erros e corrigindo-os. O cli-ma de confiança criado entre seus integrantes evita o alto custo da des-confiança e o enfrentamento permanente, muito característicos de ou-tras organizações. Por outro lado, os elementos do modelo favorecemum sentimento profundo de pertinência que é um estímulo fundamen-tal para a produtividade e para a busca contínua de como melhorar atarefa.

As feiras resistiram a todos os prognósticos de que dificilmentepoderiam enfrentar os rigores do mercado. Pelo contrário, posicionaram-se numa situação de liderança no mercado respectivo, obrigando ou-tros competidores empresariais a tratar de ajustar seus preços para po-der ter um espaço. Transformaram-se no principal comércio de alimen-tos básicos da quarta cidade em número de habitantes da Venezuela e,apesar de sua dimensão local, pelas cifras com que trabalham, são umadas principais empresas no mercado de alimentos do país inteiro. Mos-traram-se como uma empresa com plena sustentabilidade, em quinzeanos, foi ampliando continuamente sua operação. Hoje, seu modeloestá inspirando réplicas em diversas cidades da Venezuela. As chavesda excelência alcançada não estão, neste caso, em grandes investimen-tos de capital movimentado com critérios empresariais clássicos demaximização da rentabilidade e com uma gerência vertical “dura”. Ocapital mobilizado é, essencialmente, “capital social”. Promoveramcertos valores latentes na sociedade civil, mostrando a possibilidadede um projeto coletivo, ao mesmo tempo eficiente produtivamente, útilsocialmente e atraente como âmbito de vida, e potencializaram, atra-vés de seu particular estilo gerencial, que elas denominaram “gestãosolidária”, elementos básicos da concepção social, como aassociatividade, a confiança mútua e normas de comportamento posi-tivas com relação ao comunitário.

Seu objetivo, na verdade, não se reduz ao econômico, conformedeclara um dos líderes da experiência, Gustavo Salas (1991): “... o obje-tivo fundamental do programa e sua maior contribuição para a organi-zação popular é dado pelo processo formativo que se tenta propiciar apartir de todas as suas atividades concretas”.

Quando são observadas a partir do exterior, parece que se estádiante de um mecanismo audaz e inovador de marketing. Mas, comoaponta um importante observador, Luis Delgado Bello (1998): “... na

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verdade, são uma escola de vida. Uma escola que potencializa o desen-volvimento humano em coletivo e impulsiona a felicidade nas rela-ções no trabalho, na vida familiar e pessoal”.

Analistas locais como Machado & Freyrez (1994) afirmam que,por sua vez, eles se apoiaram no vasto capital social existente no Esta-do de Lara. Existe ali uma velha tradição cooperativa, é o estado daVenezuela com maior presença de organizações cooperativas. Conta-va, em 1994, com 85 cooperativas, delas, 36 de serviços múltiplos. Alémdisso, apresenta uma densa rede de organizações não-governamentais(mais de 3500), numerosas associações de vizinhos e outras formas deorganização social. Há no Estado de Lara todo um hábitat “cultural”que favorece o desenvolvimento do capital social e que deu as basespara uma experiência dessas características.

O Orçamento Municipal Participativo de Porto Alegre: ampliando o capitalsocial existente

A experiência de Orçamento Municipal Participativo iniciada nacidade de Porto Alegre, Brasil, em 1989, transformou-se numa expe-riência “estrela” em nível internacional, despertando ampla atenção.Entre outras expressões desse reconhecimento, em 1996, a ONU a es-colheu como uma das quarenta mudanças urbanas eleitas, em todo omundo, para ser analisada na Conferência Mundial sobre Assentamen-tos Humanos (Habitat II, de Istambul) e, em 1997, o Instituto de Desen-volvimento Econômico do Banco Mundial realizou uma ConferênciaInternacional em Porto Alegre, com a presença de representantes denove países da região para examinar a experiência. Ainda, o BID a sele-cionou como uma das experiências incluídas em seu Livro Mestre so-bre Participação.

Em nível nacional, cerca de setenta municípios brasileiros estãoiniciando experiências similares, inspiradas em Porto Alegre.

Este impacto deve-se a resultados muito concretos. A cidade dePorto Alegre, 1,3 bilhão de habitantes, apresentava em 1989 importan-tes problemas sociais e amplos setores de sua população tinham limi-tado acesso a serviços básicos. O quadro era de grave falta de recursosfiscais. O novo prefeito eleito (e posteriormente eleito em 1999 gover-nador do Estado do Rio Grande do Sul) resolveu convidar a populaçãopara co-gerir o processo orçamentário de modo a administrar, de acor-do com suas reais prioridades, os recursos limitados e aumentar sua

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eficiência. A co-gestão oferecida seria realizada sobre os investimentosa serem realizados com o orçamento. Neste caso, o convite não foi mero“discurso”, mas se estabeleceu um complexo e elaborado sistema quepossibilitava a participação maciça. A cidade foi dividida em 16 re-giões, em cada uma das quais se analisam as cifras de execução orça-mentária, as estimativas futuras e se identificam, em nível de bairro,prioridades que logo vão sendo concertadas e compatibilizadas regio-nal e globalmente. Junto às regiões, há outro mecanismo de análise edecisão que funciona por grandes temas de preocupação urbana: de-senvolvimento urbano, transporte, assistência médica, tempo livre,educação e cultura. Rodadas, reuniões intermediárias, plenários e ou-tras formas de reunião vão se sucedendo durante todo o ano, com aparticipação de públicos amplos, em alguns casos, delegados escolhi-dos pelos mesmos, em outros, e a colaboração dos funcionários domunicípio. O orçamento que vai sendo formado de baixo para cima épor fim sancionado formalmente pela Câmara Municipal.

A população reagiu com uma “febre participativa”, como a chamaNavarro (1998), à convocatória do prefeito. Em 1995, estimava-se que100 mil pessoas participavam no processo.

Os resultados foram surpreendentes e lançaram por terra vaticí-nios pessimistas augurados por alguns setores que viam como umaheterodoxia inadmissível a entrega de uma questão tão técnica e deli-cada como o orçamento a um processo de participação popular. Porum lado, a população determinou suas reais necessidades. Isso gerouuma precisa identificação de prioridades, reorientando recursos paraos problemas mais sentidos. Por outro lado, todo o trajeto do orçamen-to, outrora impenetrável e fechado, abriu-se totalmente para a cidada-nia. Ao compartilhar com ela, toda a informação tornou-se transparen-te. Isso gerou condições propícias para a erradicação de toda forma decorrupção. A população, maciçamente, fez o controle social da execuçãoe confecção da partilha de investimentos, que significou 15% do orça-mento total e somou, no período 1989/95, 700 milhões de dólares. As-sim, ao existir regras de jogo claras sobre como seria o processo detomada de decisões, cortaram-se ao máximo os espaços para práticasclientelistas arbitrárias.

A correspondência do orçamento com as necessidades prioritá-rias e a melhoria de sua administração levaram a resultados muito sig-nificativos. Entre eles, de 1990 a 1996, o abastecimento de água potá-vel subiu de 40 mil lares atendidos para 484 mil, cobrindo-se 98% da

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população. Em matéria de rede de saneamento, enquanto em 1989 ape-nas 48% dos lares estavam ligados à rede de esgotos, em 1997 eram80,4%, enquanto a média do Brasil é de 49%. O programa de legitimaçãoda propriedade da terra a setores pobres e assentamentos humanosbeneficiou, entre 1990 e 1996, 167.408 pessoas, 13% de toda a popula-ção. O asfaltamento de ruas alcançou 30 quilômetros por ano nas áreaspobres da cidade. A matrícula nas escolas de primeiro e segundo ciclodo ensino fundamental subiu em 159% entre 1989 e 1997, e o municí-pio criou um programa de alfabetização de adultos que tinha, em 1997,5277 participantes.

A identificação das prioridades reais e todo o sistema tinham pro-duzido uma vasta redestinação de recursos que, somada à participaçãocoletiva no monitoramento dos processos de execução, possibilitaramresultados desta magnitude.

A população transformou-se num grande ator do orçamento mu-nicipal. Como descreve o Livro Mestre sobre Participação do BID (1997):

“Os cidadãos de Porto Alegre tiveram a oportunidade de passar porum processo plenamente participativo através de ter:

• expressado sua compressão dos problemas cruciais que a cidadeenfrenta;

• estabelecido prioridades dos problemas que merecem mais ime-diata atenção;

• selecionado as prioridades e gerado soluções práticas;• tido oportunidade de comparar com as soluções criadas em outras

regiões da cidade e em outros grupos de temas;• decidido, com o apoio de técnicos ligados à Prefeitura, investir nos

programas menos dispendiosos e mais factíveis de serem atendidos;• tomado a decisão definitiva sobre a aprovação ou não do plano de

investimentos, e• revisto os êxitos e fracassos do programa de investimentos para

melhorar seus critérios para o ano seguinte”.

A ampla base social de apoio a mudanças orçamentárias profun-das expressou-se também numa forte pressão para tornar mais progres-sivo e eficiente o sistema fiscal do município, e foram realizadas im-portantes reformas no mesmo que permitiram ampliar a arrecadação emelhorar a eqüidade fiscal.

Em seu conjunto, modificou-se sensivelmente a fisionomia políti-ca tradicional do município, semelhante à de muitos outros da região.

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Entre outras expressões desta mudança, encontram-se: uma nova dis-tribuição de funções entre município e sociedade civil, com a ativaçãoenérgica desta; instalação de formas de democracia direta junto à re-presentativa; forte redução da margem para a corrupção, ao tornar-setão transparente e vigiado o processo de aplicação das finanças públi-cas; condições desfavoráveis para as práticas clientelistas, e descen-tralização das decisões.

O processo baseou-se no capital social existente nessa sociedade.Havia nela uma tradição relevante de associações da comunidade, quese mobilizaram ativamente nesse processo, e desempenham um papelfundamental nos diversos níveis de deliberação criados. Como assina-la Navarro, o processo teve um eixo decisivo na vontade política doprefeito de superar os esquemas de concentração do poder usuais econvocar a população para essas associações de modo a, em últimainstância, “compartilhar o poder”. Esse chamado e a instalação de me-canismos genuínos de participação agiram como ampliadores do capi-tal social. Disparou-se a capacidade de cooperação, criou-se um climade confiança entre os atores, geraram-se estímulos significativos paraum comportamento cívico construtivo. A cultura associativa preexis-tente foi um cimento essencial para que a população participasse e,por sua vez, foi fortalecida enormemente pelo processo. O processodemonstrou as potencialidades que aparecem quando se superam asfalsas oposições entre Estado e sociedade civil e se produz uma aliançaentre ambos.

Em Porto Alegre, o capital social comportou-se de acordo com asprevisões de Hirschman, já citadas. Ao investir através do orçamentoparticipativo em mecanismo que implicam seu uso intensivo, o capitalsocial cresceu. Isto é o que afirma com precisão, o mencionado Livrodo BID (1997), destacando que o processo participativo: “... teve umenorme impacto na habilidade dos cidadãos para responder aos desa-fios organizadamente, como comunidade, e na capacidade de traba-lhar de forma conjunta para melhorar a qualidade da administraçãopública e, em conseqüência, a qualidade de vida”.

Alguns ensinamentos

As três experiências resenhadas, sumariamente, obtiveram impor-tantes impactos, demonstraram forte sustentabilidade e alcançarammúltiplos conhecimentos. Quais foram as chaves de seu êxito? As ex-

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periências se desenvolveram em meios muito diferentes e atacaramaspectos muito diversos. No entanto, é possível encontrar, como res-posta para esta pergunta alguns elementos comuns a todas elas queinfluíram significativamente nos resultados.

Em primeiro lugar, nos três casos, as estratégias utilizadas basea-ram-se na mobilização de formas de capital não-tradicional. Apelou-sea elementos intangíveis, não-captados pelas abordagens produtivasusuais. Promoveu-se o acionamento de forças latentes nos grupos so-ciais, que podem incidir consideravelmente em sua capacidade de ge-rar soluções e de criar. Em todas as experiências fez-se entrar em jogo acapacidade de buscar respostas e executá-las cooperativamente; criou-se um clima de confiança entre os atores; partiu-se de suas culturas,que foram cabalmente respeitadas; e se estimulou seu desenvolvimen-to, fomentando-se um estilo de conduta cívica solidário e atento aobem-estar geral. O estímulo a estes fatores e a outros semelhantes criouenergias comunitárias e organizacionais que puderam levar adianteamplos processos de construção, partindo da miséria em Villa El Sal-vador, de recursos ínfimos nas Feiras de Barquisimeto e de recursoslimitados e déficits em Porto Alegre.

Um segundo traço comum é a adoção de um desenho oganizacionaltotalmente não-tradicional, que se revelou na prática como formadorde um hábitat adequado para a mobilização de capital social e cultura,e para a obtenção de eficiência. Nos três casos, a base desse desenho foia participação organizada da comunidade. Analisamos em detalhes aspossibilidades organizacionais da participação, num trabalho recente(Kliksberg, 1998). Ali assinalamos com base na análise de experiênciascomparadas internacionais, e na ampla evidência empírica, que a par-ticipação tem vantagens competitivas relevantes com respeito aos de-senhos hierárquicos usuais, e se identificam os mecanismos atravésdos quais se geram tais vantagens. Por outro lado, a participação com-põe uma parte central dos modelos de gerência das organizações maisavançadas existentes.

Um terceiro elemento distintivo das três experiências é que, apósa mobilização do capital social e da cultura, e dos desenhos de gestãoabertos e democráticos, houve uma concepção em termos de valores.Isso é decisivo. Sem essa concepção, não teria sido possível resolver asmúltiplas dificuldades que derivaram do caminho inovador e não-tra-dicional seguido. Esses valores serviram de orientação contínua e, aomesmo tempo, motivaram poderosamente o comportamento e trans-

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mitiram a visão das metas finais para as quais se dirigiam os esforços,visão que atuou como inspiração permanente.

Na região, estão se desenvolvendo outras experiências que se ca-racterizam pelas marcadas especificidades de cada caso a ser seguido,total ou parcialmente, traços como os delineados, a agregação de ou-tros. Seus resultados são muito relevantes. Entre muitas outras pode-mos mencionar: o programa EDUCO, em El Salvador, baseado na auto-organização de famílias camponesas pobres para a gestão de escolasrurais; os programas de “Copo de Leite” (“Vaso de Leche”) no Peru; opapel de comunidades indígenas organizadas na Bolívia e no Equador;a participação dos pais no gerenciamento das escolas em Minas Gerais,e os diversos programas identificados e sistematicamente documenta-dos e avaliados no âmbito do Encontro Programas sociais, pobreza eparticipação cidadã, realizado pelo BID (1998b).

Pode-se argüir, como já se fez, que experiências desta ordem têmum alcance limitado. Contudo, a realidade mostra que, embora encon-trem dificuldades consideráveis e não possam ser estendidas com faci-lidade, trazem contribuições formidáveis: melhoram diretamente aqualidade de vida de amplos setores desfavorecidos, são um laborató-rio de formas sociais avançadas e implicam um chamado motivadorpara avançar nessa direção.

Por último, é possível extrair de todos estes programas a respostaà pergunta apresentada no final da seção anterior deste trabalho. Mobi-lizar o capital social e a cultura como agentes ativos do desenvolvi-mento econômico e social não constitui uma proposta desejável, mas,se acrescentado a outras utopias, é viável, dá resultados efetivos. Háreferências significativas nas quais pode se apoiar. Levar a cabo essamobilização em escala considerável, grande desafio para o futuro, re-quererá políticas orgânicas e amplos concertos entre Estado e socieda-de civil. Na última seção deste trabalho, refletimos sobre algumas li-nhas possíveis de ação no campo de potencializar a cultura para o de-senvolvimento.

Hora de mobilizar o potencial da cultura

A atividade cultural é vista com freqüência, a partir da economia,como um campo secundário alheio à via central pela qual se deve tra-tar de fazer avançar o crescimento econômico. É com freqüência trata-da, de fato, como uma área que consome recursos, que não gera retor-

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nos sobre o investimento, funcionais economicamente, que é de difícilmedição e cuja gerência é de duvidosa qualidade. Por sua vez, existetambém, a partir do terreno da cultura, uma certa tendência aoautofechamento, sem buscar ativamente conexões com os programaseconômicos e sociais. Tudo isso criou uma brecha considerável entrecultura e desenvolvimento. Essa situação significa perdas considerá-veis para a sociedade. Obstaculiza seriamente o avanço da cultura, quepassa a ser tratada como um campo secundário e de “gasto puro” e, aomesmo tempo, tem um grande “custo de oportunidade”, não empregasuas contribuições possíveis aos processos de desenvolvimento.

Devem empreender-se esforços sistemáticos para superar a bre-cha provocadora destas perdas. Como vimos nas seções anteriores, acultura constitui parte relevante do capital social, é portadora de múl-tiplas possibilidades de contribuição às ações do desenvolvimento eisso não é teorização, como indicaram as experiências resenhadas emuitas outras em curso. A crise do pensamento econômico convencio-nal abre uma “oportunidade” para que, na busca de um pensamentomais compreensivo e integral sobre o desenvolvimento, sejam incor-poradas em plena legitimidade suas dimensões culturais.

Antes de explorar algumas das interseções possíveis, uma adver-tência de fundo. A cultura pode ser um instrumento formidável de pro-gresso econômico e social. Contudo, ali não se esgota sua identidade.Não é um mero instrumento. O desenvolvimento cultural é um fim emsi mesmo das sociedades. Avançar neste campo significa enriquecerespiritual e historicamente uma sociedade e seus indivíduos. Comosublinha o Informe da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimentoda Unesco (1996): “é um fim desejável em si mesmo porque dá sentidoà nossa existência”. Essa perspectiva não deve ser perdida. Umarenomada economista, Françoise Benhamou (1996), faz a respeito aler-tas a serem atendidos: “Na verdade, apenas em áreas de um economi-cismo exacerbado, pode-se pretender justificar o gasto cultural em fun-ção dos recursos tangíveis que este possa gerar como contrapartida. Oslucros que a vida cultural pode trazer à coletividade nem sempre co-brem os gastos gerados. Evidentemente, o interesse destes gastos deveser avaliado em função de outros critérios que vão além da dimensãoeconômica”.

Benhamou pede critérios diferentes para medir o “rendimento” dealgo que é, sem dúvida, um dos fins últimos da sociedade. Adverte sobrea aplicação mecânica de critérios usualmente empregados no campo

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econômico, e as conseqüências “fáceis” e erradas que podem ser extraí-das deles. Destaca: “Seria lamentável que em momentos em que as ciên-cias da economia reconhecem o valor da dimensão qualitativa do objetoque estão avaliando, os economistas se empenhem em considerar ape-nas as repercussões comerciais do investimento cultural. Há que se quei-xar do custo da vida cultural que é realmente modesto? Não será precisover nele o símbolo de uma nação adulta e próspera?”.

Além de ser um fim em si mesma, a cultura tem amplos potenciaisa serem mobilizados para o desenvolvimento. Entre eles, encontram-seos que, sumariamente apresentamos a seguir.

Cultura e políticas sociais

A mobilização cultural pode ser de grande relevância para a lutacontra a pobreza que hoje aflige, através de diversas expressões, cercada metade da população da região. Os elementos “intangíveis”subjacentes na cultura podem cooperar de múltiplas formas.

Os grupos pobres não têm riquezas materiais, mas têm uma baga-gem cultural, em oportunidade, como ocorre com as populações indí-genas, de séculos ou milênios. O respeito profundo por sua culturacriará condições favoráveis para a utilização, no âmbito dos programassociais, de saberes acumulados, tradições, modos de vincular-se com anatureza, capacidades culturais naturais para a auto-organização, quepodem ser de grande utilidade.

Por outro lado, a consideração e valorização da cultura dos seto-res desfavorecidos é um ponto-chave para o crucial tema da identidadecoletiva e da auto-estima. Com freqüência, a marginalidade e a pobrezaeconômica são acompanhadas por desvalorizações culturais. A culturados pobres é estigmatizada por setores da sociedade como inferior, pre-cária, atrasada. Atribui-se, inclusive, “alegremente”, a pautas dessacultura as próprias razões da pobreza. Os pobres sentem que, além desuas dificuldades materiais, há um processo silencioso de “desprezocultural” com relação a seus valores, tradições, saberes, formas de rela-ção. Ao se desvalorizar a cultura, está se enfraquecendo a identidade.Uma identidade golpeada gera sentimentos coletivos e individuais debaixa auto-estima.

As políticas sociais deveriam ter como objetivo relevante a rever-são deste processo e a elevação da auto-estima grupal e pessoal daspopulações desfavorecidas. Uma auto-estima fortalecida pode ser um

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potente motor de construção e criatividade. A mediação imprescindí-vel é a cultura. A promoção da cultura popular, a abertura de canaispara sua expressão, seu cultivo nas gerações jovens, a criação de umclima de apreço genuíno por seus conteúdos, fará crescer a cultura e,com isso, devolverá identidade aos grupos empobrecidos.

Na América Latina, há interessantes experiências desta ordem.Entre elas, a pujante ação de formação de corais populares e conjuntosmusicais, realizada na Venezuela nas últimas décadas. Através de umtrabalho sustentado, formaram-se em diferentes comunidades, muitasdelas pobres, conjuntos que aglutinaram milhares de crianças e jovensa seu redor, sobretudo relacionados a temas da cultura popular. Estesespaços culturais, ao mesmo tempo que permitiam a seus membrosexpressar-se e crescer artisticamente, lhes transmitiam amor e valori-zação de sua cultura, e fortaleciam sua identidade. Ainda, tinham efei-tos não-previstos. A prática sistemática destas atividades fomentava,de fato, hábitos de disciplina, culto pelo trabalho e cooperação. Simila-res experiências foram realizadas em grande escala em períodos recen-tes na Colômbia e em outros países.

Cultura e integração social

Um dos problemas básicos das sociedades latino-americanas é aexclusão social. Ela implica dificuldades severas para ter acesso aosmercados de trabalho e de consumo, mas junto a elas, a impossibilida-de de integração a todos os âmbitos da sociedade. Alguns fatores refor-çam outros, configurando círculos perversos regressivos.

A democratização da cultura pode romper estes círculos num as-pecto relevante. A criação de espaços culturais acessíveis aos setoresdesfavorecidos e estimulados, especialmente, pode criar canais deintegração inéditos.

A cultura pode, ainda, reforçar significativamente o capital edu-cativo das populações pobres. A região caracteriza-se por altas taxas deevasão e repetência dessas populações na escola primária. Cerca dametade das crianças abandona a escola antes de completar a 6ª série.Devem ser realizados todos os esforços para melhorar esta situação,mas, ao mesmo tempo, as atividades culturais podem funcionar comoum “parassistema” educativo, que ofereça possibilidades de formaçãoinformal, que complementem e reforcem a escola. Um campo onde

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isso pode ser especialmente relevante é na ampla população de adultosque desertaram da escola na juventude.

A cultura pode ser um âmbito de integração atraente e concretopara os vastos contingentes de jovens latino-americanos que se encon-tram hoje fora do mercado de trabalho e que tampouco estão no siste-ma educativo. Constituem, de fato, uma população muito exposta aorisco da delinqüência. As análises sobre os fortes avanços da crimina-lidade na região, nas últimas décadas, indicam que um percentual cres-cente dos delinqüentes é jovem e responde ao perfil de desempregadoe de limitada educação. Nos espaços culturais, pode se dar a esta popu-lação alternativas de pertinência social e crescimento pessoal.

A cultura pode realizar uma contribuição efetiva à instituição maisbásica de integração social, a família. Pesquisas dos últimos anos dãoconta de que, junto a seu decisivo papel afetivo e espiritual, a famíliatem impactos muito relevantes em muitas outras áreas. Influi forte-mente no rendimento educativo das crianças, na formação da criativi-dade e na criticidade, no desenvolvimento da inteligência emocional,na aquisição de uma cultura de saúde preventiva. É, ao mesmo tempo,uma das principais redes de proteção social e o âmbito primário funda-mental de integração social.

Na América Latina, diante do impacto da pobreza, numerosas fa-mílias das áreas humildes da sociedade chegaram a uma tensão máxi-ma e ingressaram em processos de crise. Estima-se que cerca de 30%das famílias da região são unidades com apenas a mãe à frente. Nagrande maioria dos casos, trata-se de famílias de escassos recursos.Ainda, aumentaram os filhos extraconjugais, indicador da resistênciados casais jovens a formar famílias estáveis, em muitos casos influen-ciados pelas dificuldades econômicas para mantê-las.

Os espaços culturais podem auxiliar no fortalecimento desta ins-tituição, eixo da sociedade e de incalculáveis contribuições a ela. Aatividade conjunta dos membros das famílias, nos referidos espaços,pode solidificar laços. Neles, as famílias podem encontrar estímulos,respostas, enriquecer suas realidades, compartilhar experiências comoutras unidades familiares com similar problemática.

Cultura e valores

Atribui-se aos valores de uma cultura peso decisivo no desenvol-vimento. Elaborou-se longamente a respeito, em anos recentes, sobre o

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tipo de valores que auxiliaram países que obtiveram crescimento sus-tentável e conquistas sociais significativos.

Se os valores dominantes se concentram no individualismo, naindiferença frente ao destino do outro, na falta de responsabilidadecoletiva, no desinteresse pelo bem-estar geral, na busca como valorcentral do enriquecimento pessoal, no consumismo, e outros semelhan-tes, pode se esperar que estas condutas enfraqueçam seriamente o teci-do social e possam conduzir a toda ordem de impactos regressivos.Estes podem ir desde grandes iniqüidades econômicas, que, segundoindicam múltiplas pesquisas, geram poderosos entraves para um de-senvolvimento econômico sustentável, até, como já mencionamos, de-créscimo na coesão social, que pode, inclusive, influir negativamentesobre a expectativa de vida média.2 Um dos efeitos visíveis da vigênciade valores anti-solidários é a extensão da corrupção em diversas socie-dades. Como ressalta Lourdes Arizpe (1996): “A insistência monote-mática de que enriquecer é a única coisa que vale a pena na vida con-tribuiu em grande medida para essa tendência”.

Valores positivos conduzem a diversas direções. Assim, por exem-plo, sociedades que estimularam e cultivaram valores favoráveis à eqüi-dade, e os refletiram em múltiplas expressões, de seus sistemas fiscaisaté a universalização de serviços de assistência à saúde, e educação deboa qualidade, têm hoje nesse campo bons níveis que, por sua vez,facilitam seu progresso econômico e tecnológico e sua competitividade.Mencionam-se com freqüência, a respeito, casos como os dos paísesnórdicos, Canadá, Japão, Israel, entre outros.

A cultura é o âmbito básico onde uma sociedade gera valores e ostransmite de geração em geração. O trabalho em cultura na AméricaLatina para promover e difundir sistematicamente valores tais como: asolidariedade de profundas raízes nas culturas indígenas autóctones; acooperação; a responsabilidade de uns pelos outros, o cuidado conjun-to do bem-estar coletivo; a superação das discriminações, a erradicação

2. Uma pesquisa pioneira sobre a incidência dos valores na vida cotidiana e no tecido socialencontra-se no interessante trabalho do PNUD, Desarrollo Humano em Chile, 1998. Las paradojasde modernización (1998). O trabalho explora o mundo interno das pessoas e a qualidade de suasrelações com os outros e realiza descobertas de grande importância em termos de capital social,de cultura e de problemas de desenvolvimento. Identifica um extenso mal-estar social na socie-dade ligado, entre outros aspectos, ao enfraquecimento das inter-relações, da desconfiança emedo do “outro”. Muito provavelmente, encontrar-se-ia uma agenda de problemas da mesmaordem se a pesquisa fosse realizada em muitas outras sociedades atuais da região e de fora dela.

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da corrupção; atitudes em prol da melhoria da eqüidade numa regiãotão marcadamente desigual; atitudes democráticas,3 pode claramenteajudar no desenvolvimento, além de contribuir para o perfil final dasociedade.

São notáveis, a respeito, os resultados alcançados por sociedadesque cultivaram consistentemente o voluntariado nas novas gerações. Aação voluntária reúne muitos dos valores antes mencionados. Tem umgrande valor educativo, produz resultados econômicos significativosao acrescentar horas de trabalho sem salário a programas relevantespara a sociedade, e é um estímulo que promove sentimentos de solida-riedade e cooperação. Em diversos países, os voluntários constituemum percentual significativo da força de trabalho total do setor social,sua atividade é valorizada por toda a sociedade e se constitui numapossibilidade que pode atrair inúmeros jovens. Há amplos contingen-tes de voluntários em países como, entre outros, os nórdicos, Canadá,vários países da Europa Ocidental, nos Estados Unidos e Israel. Nesteúltimo caso, Faigon (1994) indica que 25% da população realiza tarefasvoluntárias de modo regular, particularmente no campo social, e gerabens e serviços equivalentes a 8% do Produto Nacional Bruto. As basesdestes resultados se encontram, como sublinha, na cultura judaica quehierarquiza o serviço voluntário à comunidade como um dever e naeducação sistemática de valores solidários no âmbito da escola israelita.

O cultivo dos valores através da cultura e da participação, desdeos primeiros anos, em atividades voluntárias e em tarefas comunitári-as, tem um peso considerável na aquisição de compromissos cívicosnas idades adultas, como indicam Youniss, McLellan e Yates (1997),com base em pesquisas recentes. Observa-se uma correlação estatísticaentre ter atuado em organizações nos anos de juventude e oenvolvimento na sociedade em épocas posteriores. Assim, um estudonos Estados Unidos evidenciou que aqueles que foram membros declubes 4H tinham, 25 anos depois, o dobro de probabilidade de inte-grar associações cívicas em relação àqueles que não passaram por elese uma probabilidade quatro vezes maior de participar em política. Outroestudo sobre graduados de escolas secundárias mostrou que, 15 anos

3. Pode-se encontrar uma exploração detalhada da transcendência dos valores culturaispara o fortalecimento de uma sociedade democrática e a necessidade de enfrentar e superar, naregião, atitudes culturais autoritárias nos trabalhos do Projeto Regional Cultura e Democracia,impulsionado pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Maryland, diri-gido por Saúl Sosnowski.

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depois, os que haviam participado de atividades extracurriculares naescola possuíam maior probabilidade de participar de associações vo-luntárias. Os valores e a participação vão moldando o que os autoreschamam uma “identidade cívica” orientada para assumir compromis-sos com a comunidade e contribuir continuamente com ela.

Uma interessante experiência orientada a promover valores cul-turais valiosos para a sociedade teve início há pouco tempo na Norue-ga. Em 30 de janeiro de 1998, esse país estabeleceu a Comissão Gover-namental de Valores Humanos, que tem por finalidades centrais: a)criar na sociedade uma consciência crescente sobre os valores e pro-blemas éticos; b) contribuir para um maior conhecimento acerca dodesenvolvimento de valores humanos em nossa cultura contemporâ-nea; c) identificar desafios atuais em matéria ética da sociedade e dis-cutir possíveis respostas, e d) promover que os diferentes setores dasociedade se integrem a este debate.

A Comissão é constituída por integrantes que procedem de diver-sos setores sociais e de diferentes gerações. Suas atividades orientam-se de modo que o tema dos valores esteja no centro da agenda pública,seja discutido pelas instituições tanto públicas como privadas, se iden-tifiquem e explicitem os dilemas éticos e se busquem respostas paraeles. Entre as primeiras iniciativas em andamento, encontra-se a deque todas as escolas do país discutam acerca de como os direitos pro-clamados na Declaração de Direitos Humanos da ONU estão sendoaplicados no âmbito local. Também está impulsionando estudos emnível municipal, em que descentralizará muitas de suas ações, sobre astensões que crianças e jovens sofrem entre os valores, com freqüênciacontraditórios, que recebem no lar, na escola e na igreja e aqueles quelhes chegam através dos meios maciços. Outro projeto está destinado aaumentar o grau de consciência em relação à responsabilidade, à soli-dariedade e à participação. Um dos projetos convidou os prefeitos dosmunicípios do país a iniciar um processo deliberativo no âmbito localpara responder a questão: quais são os traços básicos de uma boa co-munidade local?

Na mobilização das potencialidades culturais da América Latina,uma região com enormes possibilidades neste campo, como evidenciasua fecundidade em tantos outros artísticos, encontram-se importan-tes possibilidades de contribuição em campos tão fundamentais comoos apresentados: luta contra a pobreza, desenvolvimento da integraçãosocial, fortalecimento de valores comunitários, solidários e participati-

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vos. Essa mobilização requer uma ação concertada entre o Estado e asorganizações da sociedade civil. Ambos devem coordenar estreitamen-te esforços, trazendo o melhor de cada um, contribuindo assim, emconjunto, para liberar a enorme força popular de criatividade culturallatente na região e reforçar seu legado de valores positivos.

Há sérias falências na América Latina nesta matéria. Junto a gran-des esforços de alguns setores por avançar a cultura e importantesconcretizações, observam-se reservas e marginalizações por parte deoutros em incorporar a cultura à agenda central do desenvolvimento.Recursos lhe são subtraídos, é objeto preferencial nos cortes orçamen-tários, é submetida a contínuas mudanças sem permitir a estabilidadenecessária para assentar atividades e instituições. Argumenta-se ain-da, com freqüência, que se trataria de uma espécie de necessidade se-cundária que teria seu lugar quando outras prévias tivessem sido satis-feitas. Chega-se, em alguns casos, à situação tão bem descrita por PierreBourdieu (1986): “... a ausência de cultura se acompanha geralmenteda ausência do sentimento desta ausência”.

Estes arrazoamentos e práticas estão deixando de utilizar uma dasgrandes forças que podem fazer mudanças profundas nas realidadesde um continente com desafios tão difíceis abertos em campos decisi-vos na vida cotidiana das pessoas, como a pobreza e a desigualdade.4

Chegou a hora de superá-las e explorar ativamente as múltiplas contri-buições que a cultura pode trazer ao desenvolvimento.

4. Podem-se encontrar vários trabalhos recentes sobre as novas formas da pobreza na Amé-rica Latina em: Kliksberg, B. Pobreza. Un tema impostergable. Nuevas respuestas a nivel mun-dial. México, Fondo de Cultura Económica, 1997. Entre eles: Kliksberg, B. “Cómo enfrentar losdéficits sociales de América Latina?”; Minujín, Alberto. “Estrujados. La clase media en AméricaLatina”; Weinstein, José. “Desintegración y violencia urbana”. O autor trabalha detalhadamenteo tema da desigualdade em: Kliksberg, B. “Desigualdad y desarrollo en América Latina. El deba-te postergado”. Reforma y Democracia. Revista do CLAD, 1999.

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Capítulo 5

ÉTICA E ECONOMIA. A RELAÇÃO ESQUECIDA

Capítulo 5

ÉTICA E ECONOMIA. A RELAÇÃO ESQUECIDA

Poderíamos perguntar: com tantos problemas concretos importan-tes para a população, tem sentido falar de valores, de ética? Não seráesse um tema que pode ser deixado para depois, um tema não urgente?Pensamos que a pergunta deveria ser invertida. Como é possível plane-jar políticas econômicas, destinar recursos, determinar prioridades, semdiscutir os aspectos éticos, a moralidade do que se está fazendo à luzdos valores que deveriam nortear o desenvolvimento e a democracia?Na América Latina, essa discussão foi negligenciada. É hora de retomá-la, uma vez que pode lançar muitas luzes em uma época de grandesconfusões. Enfocaremos em primeiro lugar alguns problemas da regiãoque são econômicos e sociais, mas ao mesmo tempo profundamenteéticos. Em segundo lugar, questionaremos certos “álibis” comuns dian-te deles. Por fim, mencionaremos valores éticos que deveriam orientara seleção de políticas e a ação para o desenvolvimento.

Desafios à ética

A civilização ocidental tem firmes convicções em matéria de va-lores que permeiam a cultura, e que a população espera que dirijam avida pública e o comportamento individual. Certos acontecimentos naregião as violam diariamente. Identificaremos alguns de uma lista quepode ser muito mais ampla.

• Segundo nossa moral, as crianças deveriam ter todas as oportu-nidades para se desenvolver. A proteção de sua saúde e sua educação

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são prioridades indiscutíveis no Ocidente. Na América Latina, segun-do dados recentes, 6 em cada 10 crianças menores de cinco anos deidade são pobres. A pobreza implica negações concretas dos direitosbásicos das crianças ao mais elementar. Milhões de crianças menoresde 14 anos trabalham; aumenta dia a dia o quadro extremo que contra-ria todos os valores éticos, bem como o número de crianças que vivemnas ruas das grandes cidades, abandonadas pela sociedade; incrementa-se a utilização das crianças nos circuitos da dependência de drogas eda prostituição.

• Nossa civilização tem como fundamento básico a instituiçãofamiliar, que constitui o pilar do tecido social. As possibilidades deformar famílias e de levá-las a se desenvolver deveriam estar inteira-mente abertas. Na verdade, está se produzindo uma séria deterioraçãoda unidade familiar, ante as imensas tensões nela geradas pela pobrezaque afeta amplos setores da população. O problema não ocorre apenasnas camadas populares, mas afeta também fortemente os “novos po-bres”, as classes médias em declínio. As estatísticas dizem que o núme-ro de mães pobres que ficaram sozinhas e têm de manter a família vemaumentando; que aumentou o indicador de resistência dos jovens aformar famílias, diante das incertezas que implica poder sustentá-las;que é maior o número de crianças nascidas fora do casamento e que aviolência doméstica está atingindo índices alarmantes.

• O desemprego é um grave problema econômico e social, mas aomesmo tempo não pode deixar de ser considerado uma questão ética.Não só implica não receber uma remuneração, mas causa danos muitograves às pessoas em aspectos vitais. Assim, o Prêmio Nobel de Econo-mia Robert Solow (1995) observa que a economia convencional estáequivocada quando diz que é um caso de oferta e demanda. Tal econo-mia supõe que os desempregados por períodos prolongados vão buscarativamente trabalho, vão reduzir suas pretensões salariais e assim sealcançaria um novo equilíbrio no qual encontrariam trabalho. Solowmostra que quando alguém está desempregado por um bom tempo so-fre toda uma série de danos psicológicos. Sua auto-estima é atingida,sua família fica num estado de tensão muito grande, a pessoa se senteexcluída da sociedade. Segundo as pesquisas, em vez de buscar inten-samente por trabalho, ela tende a se retirar do mercado de trabalho pormedo de sofrer novas recusas e também a se retrair socialmente pela“vergonha” de não ter trabalho. São sofrimentos que afetam a dignida-de humana. Na América Latina, a taxa de desemprego é elevada, emtorno de 8%, e a dos jovens é mais que o dobro da taxa média.

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• A civilização judeu-cristã considera que todos os seres huma-nos são iguais, criaturas da divindade, que merecem o pleno acesso aoportunidades de se desenvolver. As desigualdades acentuadas aba-lam essa crença igualitária, e foram condenadas tanto no Antigo comono Novo Testamento. A América Latina apresenta agudas polariza-ções sociais. Como demonstraram numerosas pesquisas, elas consti-tuem um empecilho fundamental para o desenvolvimento, mas aomesmo tempo contradizem a crença da igualdade de oportunidades.Entre elas: os 10% mais ricos da população têm uma renda que é de84 vezes a dos 10% mais pobres (é a maior brecha social do planeta).Há desigualdade no acesso ao crédito. As pequenas e médias empre-sas só têm 5% do crédito do sistema financeiro. Há desigualdade noacesso a fatores básicos em matéria de saúde, como água potável (ospobres carecem dela e pagam muito mais caro por ela), sistemas desaneamento, eletricidade e assistência médica básica. Apesar dos avan-ços, as camadas sociais apresentam diferenças muito grandes de espe-rança de vida, mortalidade infantil e mortalidade materna. Há grandesdesigualdades quanto à possibilidade de concluir o ensino fundamen-tal e o médio e quanto à qualidade da educação recebida. Além disso,há também uma nova brecha, as desigualdades pronunciadas no aces-so à tecnologia de ponta, a informática. Menos de 1% da populaçãotem acesso à Internet.

Os falsos álibis

Diante desses e de outros problemas que constituem uma afrontaaos valores éticos de nossa civilização, costumam circular certos argu-mentos que podem ser considerados “álibis” destinados a atenuar ou aignorar os conflitos éticos existentes.

• Procura-se converter a pobreza em um problema individual. Ospobres seriam pobres por não terem feito esforços suficientes em suavida ou por serem inclinados ao alcoolismo, à indolência etc. Um di-fundido informe de uma Comissão de personalidades presidida porPatricio Aylwin (1995) afirma categoricamente que isso não tem ne-nhuma sustentação. Quando uma de cada duas pessoas é pobre, evi-dentemente há problemas do contexto que estão criando essa situação.Por outro lado, Aylwin destaca que é evidente que, quando as políticasaplicadas criam oportunidades reais, os pobres as aproveitam tão bemcomo qualquer outro setor da população.

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• Alega-se que as desigualdades são inevitáveis, que são uma es-pécie de lei da natureza e fariam parte do processo de modernização deuma sociedade. Um famoso economista, Atkinson (1998), diz que elassão claramente influenciadas por fatores como as políticas públicasimplementadas e as atitudes culturais predominantes diante da desi-gualdade. Quando ambas promovem a igualdade, a situação muda. Issoexplica os bons níveis de igualdade obtidos em países como Suécia,Noruega, Dinamarca, Japão, Canadá e Holanda, entre outros.

• Afirma-se que a solidariedade é uma espécie de anacronismo,um valor pré-moderno, e que se deve dar a máxima ênfase ao individu-alismo; que cada um deve tornar-se responsável por si mesmo. Os tex-tos bíblicos proclamam o contrário. A orientação para a solidariedadeé parte fundamental da qualidade humana e enobrece as pessoas. Poroutro lado, muitos dos países atualmente líderes do mundo em econo-mia e tecnologia possuem sociedades civis com altos graus de exercí-cio da solidariedade, com inúmeras organizações não-governamentaisde ação solidária e exércitos de trabalhadores voluntários.

• Diz-se que o fim justifica os meios; que os sofrimentos sociaisinfligidos destinam-se a obter fins superiores. Certamente esse era opensamento de Maquiavel, mas os textos bíblicos dizem o contrário.Proclamam que “o fim não justifica os meios”. Albert Einstein refletia aesse respeito: “Quem pode duvidar que Moisés (que entregou os DezMandamentos) foi melhor condutor de homens que Maquiavel?”.

Recuperar a ética

Um dos maiores filósofos da atualidade, Charles Taylor (1995),faz uma advertência sugestiva. Assinala que nossa época se caracterizapelo fato de a discussão ter se concentrado sobre os meios, como aeconomia e a tecnologia, e que é muito importante não esquecer quesão meios a serviço de fins últimos. Não se discute sobre eles e, alémdisso, adverte o filósofo, a discussão sobre os meios tende a eliminar esubstituir a que deveria ser realizada sobre os fins.

Esta última é o terreno da ética. Corresponde a voltar a se per-guntar: para onde vamos? Que tipo de sociedade queremos? Que valo-res são insubstituíveis? Que valores deveriam ser um ponto de referên-cia obrigatório no planejamento de políticas públicas? E outras per-guntas semelhantes.

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Enfrentar os problemas éticos e abrir o debate evitado por falsosálibis provavelmente levará ao resgate de valores que deveriam orien-tar os esforços pelo desenvolvimento. Dentre outros, destacam-se osseguintes:

• A pobreza é intolerável. A voz profética assinala na Bíblia: “Nãohaverá pobres entre vós”. Como ressalta um eminente filósofo, Y.Leibowitz (1999), o profeta não está dizendo o que vai ocorrer, e sim oque deveria ocorrer. Que haja ou não pobreza depende das sociedadesorganizadas.

• Somos todos responsáveis uns pelos outros. A falta de solida-riedade é contrária à dignidade humana. “Ama a teu próximo como a timesmo”, proclamava Jesus de Nazaré.

• É preciso superar todas as formas de discriminação que aindasubsistem ativamente na região, como as que são exercidas contra asmulheres, os índios, os grupos afro-americanos, os portadores de defi-ciências, os idosos, entre outras. Corresponde a todos os seres huma-nos o pleno respeito, e os mesmos direitos.

• Há muitas maneiras de ajudar o próximo. Maimônides as clas-sificou, tendo em conta a genuinidade da vontade de ajudar, o grau deanonimato, o respeito pelo outro e a utilidade final da ajuda. O grauinferior dos oito níveis de sua tábua é o que ajuda de má vontade, for-çado por outros. O superior é quem ajuda de tal modo que o outrodepois não necessite de mais ajuda. Essa deveria ser a meta.

• Em pesquisas recentes, os pobres reclamam que o que mais osincomoda na pobreza é que sentem que são menosprezados diariamenteem sua condição humana, até mesmo por algumas organizações quepretendem ajudá-los (The World Bank, 2000). Os sinais explícitos ouimplícitos que recebem são de desvalorização, menosprezo, considera-ção como pessoas de segunda classe, como seres inferiores. Precisa-sede uma solidariedade que respeite profundamente a cultura dos po-bres, seus valores, que abra espaços ao fortalecimento de suas própriasorganizações e ao crescimento de sua auto-estima.

• A pobreza deve ser considerada como um tema de direitos hu-manos violados. Ataca os direitos mais elementares das pessoas. Foi oque proclamaram recentemente as Nações Unidas.

• A constituição de sociedades democráticas estáveis e ativas re-quer a construção da cidadania. Um dos componentes centrais é a res-tituição dos direitos a oportunidades produtivas e de desenvolvimentoque são negados pela pobreza.

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Será ilusório pretender que valores como esses possam influir naspolíticas? Em primeiro lugar, eles estão na essência da identidade hu-mana. Por outro lado, parece haver nas democracias um amplo clamorpara que sejam levados em conta. Em resposta a esse clamor, começou-se a fazer questionamentos éticos e buscar soluções para eles em temaseconômicos chaves.

Essa consciência crescente está levando à organização de “fren-tes éticas” que empreenderam amplas mobilizações e obtiveram resul-tados concretos. Vejamos alguns casos recentes.

• Existem no mundo 36 milhões de pessoas com aids, 70% dasquais vivem na África. No ano 2000, cerca de 3 milhões de pessoasmorreram de aids, e mais de 5 milhões contraíram o vírus, 80% dosquais africanos. Se não se tomarem medidas profundas, países comoÁfrica do Sul, Zimbábue e Zâmbia verão devastada sua população esofrerão dezenas de milhões de mortes nos próximos anos. Cinco milafricanos morrem diariamente por causa da doença. Existem novasdrogas para combatê-la, mas seus preços de venda as colocam fora dealcance. Os africanos não podem pagar 10 mil dólares anuais pelo cha-mado coquetel antiaids. Laboratórios indianos e brasileiros demons-traram que ele pode ser produzido como genérico por menos de 500dólares. Diversos laboratórios internacionais processaram o governoda África do Sul por tentar produzi-lo. Um grande movimento de opi-nião pública pressionou, em nome do princípio ético básico: o direito àvida. Os laboratórios se viram obrigados a retirar seus processos.

• Sete milhões de pessoas morrem anualmente por doenças quepodem ser prevenidas ou curadas, como a tuberculose e a malária. Sãopobres em sua grande maioria, não são “mercado”. Os grandes labora-tórios não têm, portanto, interesse nesses temas. O último remédio con-tra a tuberculose lançado no mercado foi elaborado em 1967. Segundoinforma a American Medical Association, dos 1223 novos medicamen-tos lançados entre 1975 e 1997, apenas 13 destinavam-se ao tratamentode doenças tropicais. O questionamento ético levou ao projeto de cons-tituição de um Fundo Mundial público para buscar soluções maciçaspara a aids e para essas enfermidades.

• Cresce o movimento ético por regras de jogo econômicas dife-rentes. A exigência mundial liderada pelo papa João Paulo II pela redu-ção da dívida externa dos países pobres levou à alteração de princípiosdo sistema financeiro internacional que eram considerados imutáveis.Outra forte frente de protesto ético está questionando as barreiras pro-

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ÉTICA E ECONOMIA 155

tecionistas postas por muitos países desenvolvidos às exportações bá-sicas dos países pobres. As tarifas aduaneiras são discriminatórias,aumentam quando há valor agregado de processamento nos produtosdos países em desenvolvimento, e os subsídios à agricultura dos paísesricos são muito elevados. O economista chefe do Banco Mundial,Nicholas Stern, afirma: “O tipo de protecionismo praticado pelas na-ções industrializadas mais ricas é simplesmente indefensável. O custodos países em desenvolvimento em oportunidades de exportação per-didas é muito maior que a ajuda ao desenvolvimento que recebem”(apud Drozdick, 2001). O secretário-geral da ONU, Koffi Annan (2001),dirigindo-se aos países desenvolvidos, afirmou: “Os países pobres nãoquerem vossa caridade, simplesmente querem o direito de vender seusprodutos em vossos mercados a preços corretos”. Atendendo ao pedi-do, a União Européia tomou recentemente a decisão de abrir seus mer-cados para os produtos dos 48 países mais pobres do mundo.

• Em diversos países desenvolvidos surgem protestos éticos dian-te da aplicação de certas ortodoxias econômicas. Assim, nos EstadosUnidos, um abaixo-assinado de 200 proeminentes empresários expres-sou sua oposição ao projeto de eliminar o imposto à herança. Alegaramque isso beneficiaria apenas os 2% mais ricos da população, levaria areduções nos projetos públicos sociais, e que as ONGs sociais deixa-riam de receber quase 6 bilhões de dólares anuais em donativos(Responsible wealth, 2001). Outro abaixo-assinado denunciou a exis-tência nos Estados Unidos de 43 milhões de pessoas sem nenhum tipode seguro médico, e assinalou que as organizações empresariais, sindi-cais e as ONGs signatárias “pensamos que o direito de acesso a umaassistência médica viável e de boa qualidade para todos deve ser umaprioridade nacional”.

• Cresce o movimento mundial ético de protesto pelas extremasdesigualdades de nosso tempo e pela simultânea diminuição da ajudainternacional para o desenvolvimento. Tendo sido determinado que ospaíses desenvolvidos deviam aplicar 0,7% do PIB para tal ajuda, sóquatro países cumprem tal determinação: Noruega, Suécia, Dinamarcae Holanda. Os países desenvolvidos destinam em média apenas 0,25%de seu PIB, e os Estados Unidos, apenas 0,1%.

São inícios, porém estimulantes. O tempo com certeza é curto,particularmente na América Latina. Aqui deveria somar-se a outrosvalores a noção de que deve haver uma “ética da pressa”. Cada dia quepassa sem respostas adequadas aos sofrimentos da população significa

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danos em muitos casos irreversíveis. Crianças que, devido à desnutri-ção, terão danos para toda a vida, famílias que serão destruídas semque isso possa ser remediado, jovens que o desemprego permanenteincentivará à delinqüência, vidas perdidas ou mutiladas. Como diziaJoão Paulo II (1999): “A pobreza é algo urgente, que não pode esperar”.

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O CRESCIMENTO DA CRIMINALIDADE ... 157

Capítulo 6

O CRESCIMENTO DA CRIMINALIDADE NA AMÉRICA LATINA:um tema urgente

Capítulo 6

O CRESCIMENTO DA CRIMINALIDADE NA AMÉRICA LATINA:um tema urgente

Um clima de alerta em ascensão

Os índices de criminalidade da América dispararam nas duas úl-timas décadas. Segundo assinala a Revista The Economist, todas as ci-dades da região são hoje mais inseguras do que dez anos atrás. Os cida-dãos têm uma sensação de insegurança na grande maioria dos centrosurbanos. Inclusive cidades tradicionalmente consideradas seguras as-sistiram a uma rápida deterioração da situação. O problema apareceem todas as pesquisas de opinião como um dos que mais preocupam apopulação. Existem cidades onde percentuais significativos da popu-lação já tiveram a experiência de um assalto, um roubo em um táxi ououtras formas de ataque criminoso. A população se pergunta com an-siedade o que está acontecendo, como se pode enfrentar isso, o que sepode esperar? Estes climas de alarme generalizado são propícios aosurgimento de teses extremistas propondo resultados rápidos, que en-contram receptividade diante da desesperação que se estabelece emamplos setores. Este trabalho aspira, antes de mais nada, indicar que,apesar da premência, é imprescindível melhorar a qualidade do debateatual sobre um tema tão importante. Fazem-se necessárias análises ba-seadas em evidência séria sobre as características do problema. É in-dispensável contar com estudos objetivos que superem os chavões exis-tentes sobre os fatores que estão impulsionando estes inquietantes pro-

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cessos. É preciso também ter em conta a vasta experiência internacio-nal a respeito do tema. Apenas com base em abordagens profundas àcomplexidade do problema será possível conceber soluções realmenteefetivas. Tratando de contribuir para o estímulo à tarefa coletiva nestasdireções, desenvolvem-se a seguir vários momentos sucessivos de aná-lise. Primeiro se levantam informações básicas sobre a situação. Se-gundo, são feitas indagações sobre algumas de suas possíveis causas.Terceiro, colocam-se algumas das principais linhas de discussão exis-tentes sobre possíveis respostas. Finalmente, apresentam-se algumasconclusões, enfatizando especificamente certos riscos do rumo atualdo debate sobre o avanço da criminalidade na região.

Alguns fatos

Os dados disponíveis não deixam lugar a dúvidas sobre a gravida-de do tema. Estima-se que a América Latina tem 30 homicídios porcada 100.000 habitantes ao ano. Essa é uma taxa que multiplica porseis a dos países que têm uma criminalidade moderada, como a maio-ria dos países da Europa Ocidental. A magnitude da criminalidade naregião exige que se a considere como “epidêmica”. É a instalação deum problema estrutural que está se alastrando. As tendências são, poroutro lado, muito preocupantes. As taxas tendem a aumentar nos anosrecentes. Os estudos do BID e outras organizações indicam que a Amé-rica Latina é hoje a segunda zona com mais criminalidade do mundo,depois do Saara Africano. Na pesquisa Latinbarometro 2001, realizadaem 17 países da região, quatro de cada cinco entrevistados disseramque a delinqüência e a dependência de drogas haviam aumentado muitoem seus países nos últimos três anos. Este percentual é superior ao queobteve em uma edição similar da pesquisa em 1995 (65%). Mais alar-mante ainda, dois de cada cinco assinalaram que eles, ou algum mem-bro de sua família, haviam sido objeto de um delito nos últimos dozemeses.

Prestigiosas instituições internacionais, como a Organização Pan-americana da Saúde, consideram a criminalidade da região como umproblema central de saúde pública. As estatísticas mostram que, entreoutras conseqüências, ela se transformou em uma das principais cau-sas de morte da população jovem. Em alguns países, inclusive em pe-ríodos recentes, sua magnitude levou à redução da população jovemde certas faixas etárias.

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A reação diante de um fenômeno que ameaça diretamente a vidade boa parte da população teve envergadura. Dados recentes do BID(2001) estimam que o Brasil gasta anualmente, entre os fundos públi-cos destinados à segurança e os gastos privados com este fim, 43 bi-lhões de dólares, o que representa 10,3% de seu Produto Interno Bruto.Em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, o número de homicí-dios por cada 100 mil habitantes é quase o dobro da já muito alta taxade toda a região. O gasto com a segurança no Brasil é maior que toda ariqueza produzida em um ano por uma das economias mais vigorosasda região, o Chile.

Na Colômbia, a alocação de recursos públicos e privados para asegurança é ainda maior. Estima-se que se gaste neste item 24% doProduto Interno Bruto. No Peru, a alocação de recursos da economiapara este item significa 5,3% do Produto Interno Bruto.

O gasto com segurança está subindo fortemente em quase toda aregião. Em economias como as latinoamericanas que estão lutandoduramente para conseguir taxas de crescimento que superam os 3% ou4% anuais, dedicar proporções tão altas do Produto Nacional a esteproblema implica um peso fenomenal para a economia, e um desvioem grande escala de recursos dos quais as áreas produtivas necessitamcom premência.

Indagando causas

Por que estas tendências tão preocupantes? O que levou estas so-ciedades a tais níveis de desenvolvimento da delinqüência, levando-asà condição de ser das mais arriscadas em todo o planeta? Por que, ape-sar do enorme investimento em segurança pública e privada, e do fortecrescimento da população carcerária, as taxas de criminalidade nãoestão retrocedendo, mas, ao contrário, estão aumentando?

O tema é de grande complexidade e requer ser abordado de diver-sas perspectivas. São imprescindíveis análises do ponto de vista daeconomia, do desenvolvimento social, da cultura, da educação, dosvalores e de outras dimensões. Além disso, o fenômeno deve desagre-gar-se. Há diversos circuitos de criminalidade operando na região. Umque é muito relevante e que cresceu fortemente, segundo indícios, é ovinculado à droga, problema mundial, de implicações múltiplas e am-plamente estudado. Boa parte da criminalidade comum tem outras ca-

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racterísticas. São delitos cometidos em alta proporção por jovens. Suataxa cresce e, infelizmente, torna-se parte da crônica jornalística diáriade quase todas as sociedades da região.

É impossível não observar que, sem deixar de lado variáveis his-tóricas, culturais, demográficas e outras, os índices dessa criminalidade,de grave magnitude na região, subiram paralelamente à deterioraçãodos dados sociais básicos nas últimas décadas.

Esta é uma região onde a pobreza cresceu, segundo as análises daCEPAL, em termos tanto absolutos como relativos. As cifras indicamque o número de pobres é hoje maior que em 1980, e também quecresceu o percentual que eles representam no conjunto da população,chegando a ser quase a metade dela. Também subiram as taxas de de-socupação aberta, que é hoje, em média, 11%. As análises do PREALCda OIT (1999) assinalam que outro processo muito preocupante é adegradação da qualidade dos trabalhos disponíveis. Cerca de 60% damão-de-obra ativa trabalha hoje no setor informal, a grande maioriaem tarefas autogeradas para sobreviver, com poucas possibilidades defuturo, sem apoio tecnológico nem crédito. Como conseqüência de tudoisso, a produtividade destas ocupações é um quarto a um terço da pro-dutividade dos postos de trabalho na economia formal. Os ganhos dosinformais tendem a se reduzir. Ganham cada vez menos em poder aqui-sitivo e trabalham mais horas.

A tudo isso se somam graves problemas de cobertura e acesso, deamplos setores da população, a serviços adequados de saúde pública eeducação e à habitação. Um de cada cinco partos se faz sem assistênciamédica de qualquer tipo, o que leva a uma taxa de mortalidade mater-na que é cinco vezes a do mundo desenvolvido. A deterioração socialse expressa inclusive em deficiências nutricionais severas. Segundo oPanorama Social da CEPAL 2000, um terço das crianças da AméricaLatina com menos de dois anos de idade estão hoje em situação de“alto risco alimentar”.

A pobreza latino-americana não tem explicações fáceis. Não de-corre da escassez de recursos naturais ou de grandes guerras como aÁfrica. Trata-se de uma zona privilegiada, com imensas reservas dematérias-primas estratégicas, grandes possibilidades de geração de ener-gia barata, excelentes potenciais para a produção agropecuária e umbom posicionamento geoeconômico. Os fatores naturais estão a favor.Tampouco foi cenário de guerras cruentas como a Europa ou a África.A deterioração social está ligada a múltiplos fatores, porém um dos

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mais influentes, segundo indicam numerosas pesquisas recentes, é oaumento das polarizações sociais que levaram a que a América Latinahoje seja considerado o continente mais desigual de todo o planeta. Os10% mais ricos da população têm 84 vezes a renda dos 10% mais po-bres, e a região apresenta o pior coeficiente de desigualdade na distri-buição da renda. Além disso, registra pronunciadas desigualdades noacesso à terra e outros bens de capital, na possibilidade de obter crédi-tos, e no campo educacional.1 Segundo estudos do BID (1999), enquan-to a escolaridade média dos chefes de família dos 10% mais ricos dapopulação é de 12 anos, a dos 10% mais pobres é de 5 anos; há umabrecha de 7 anos que terá efeitos muito intensos nas chances de conse-guir trabalho, o que uns e outros vão ganhar, e em outros vários planos.

A desigualdade aparece, segundo alguns analistas como Birdsall,Ross e Sabot (1998), como a trava fundamental para que na região pos-sa se dar um crescimento econômico sustentado. A acentuação daspolarizações sociais teve como uma de suas conseqüências, a crise queexperimentam os estratos médios em diversos países. Este setor da so-ciedade, chave para o desenvolvimento, se viu muito afetado nas duasúltimas décadas. Assim, na Argentina, historicamente possuidora deuma grande classe média, segundo os cálculos de López (2001), 7 mi-lhões de pessoas deixaram de ser classe média na década de 1990-2000,passando a ser pobres. Cresceu fortemente na região um novo estratosocial indicador de mobilidade descendente, os “novos pobres”.

As amplas desigualdades geram, como é notório, agudas tensõessociais. A população se ressente fortemente com elas, segundo pesqui-sas de opinião. Tem consciência de sua envergadura e as considera, emsua grande maioria, injustas e inaceitáveis. A convivência da pobrezacom privações agudas e as amplas brechas na sociedade criam um cli-ma social com alto potencial de conflito.

Nesse clima estão acontecendo os processos atuais em matéria dedelinqüência. Sem cair em simplificações, é impossível deixar de obser-var que tal clima cria uma série de condições propícias a esses proces-sos de modo direto e indireto. Uma das mais estudadas recentemente éa sensação tida por amplos setores de que passaram a ser excluídos, deque se encontram fora dos marcos da sociedade.

1. Podem-se encontrar dados quantitativos detalhados sobre as tendências à desigualdadena região e sobre as pesquisas recentes sobre o tema em Bernardo Kliksberg (1999), Desigualdady Desarrollo en América Latina. El debate postergado. Reforma y Dmocracia, n. 19, Revista delCentro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo (CLAD), Caracas, Venezuela.

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Os estudos disponíveis permitem ver também como alguns compo-nentes deste processo de deterioração social incidem diretamente so-bre o aumento da criminalidade. Observam-se significativas correlaçõesestatísticas em três áreas, que de nenhum modo esgotam a causalidadeda criminalidade, mas que aparecem como chaves para entendê-la.

A primeira área foi estudada com freqüência. Há uma forte corre-lação entre o aumento da criminalidade e a taxa de desocupação juve-nil. Análises dos últimos anos em várias cidades dos Estados Unidosdemonstram claramente que a diminuição das taxas de delinqüênciateve como razão principal os bons níveis das taxas de ocupação e oaumento dos salários na economia. Na América Latina a tendência temsido inversa. As elevadas taxas de desocupação generalizada são aindamuito maiores entre os jovens. Em muitos países, a desocupação juve-nil duplica e até triplica a taxa de desocupação média, superior a 20%em boa parte da região. Os salários mínimos, por outra parte, perderamsubstancialmente o poder aquisitivo. Isso significa que um amplo setorda população jovem não tem possibilidade de inserir-se na economia,ou só pode alcançar uma renda que os coloca bem abaixo do umbral dapobreza. O potencial explosivo desta situação é muito grande. E faz-seainda mais intenso quando a desocupação dura períodos prolongados,o que é típico hoje de diversas realidades da região. Segundo as análi-ses do Prêmio Nobel de Economia Robert Solow (1985), os desocupa-dos nessas condições tendem a abandonar de vez a busca por trabalho.Sua autoestima fica prejudicada pela situação, sua personalidade seressente, e decidem não buscar mais trabalho para evitar novas rejei-ções que podem afetá-los ainda mais quando se encontram tão vulne-ráveis. Também tendem a retrair-se socialmente.

Uma segunda área de correlações intensas é a que vincula dete-rioração familiar com delinqüência. Uma pesquisa nos EUA sobre cri-minalidade juvenil (Dafoe Whitehead, 1993) examinou a situação fa-miliar de uma amplíssima amostra de jovens em centros de detençãojuvenil. Verificou que mais de 70% provinha de famílias desarticula-das, com pai ausente. Na América Latina, um estudo em uma das so-ciedades com melhores recordes sociais como o Uruguai (Katzman,1997) encontrou correlação similar. Dois terços dos jovens internadospor delitos vinham de famílias com um só cônjuge à frente.

A família é, claramente, uma instituição decisiva em matéria deprevenção do delito em uma sociedade. Se é uma família que funcionabem, transmitirá valores e exemplos de conduta nas idades tenras que

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serão mais tarde fundamentais, quando os jovens devam fazer opçõesem suas vidas diante de encruzilhadas difíceis. Se entra em processode desarticulação, deixa de cumprir tal função. Assim parecemevidenciá-lo os estudos mencionados.

Na região, esta instituição chave na ação antidelito está sofrendoseveras deteriorações sob o impacto da agravação da pobreza. O fenô-meno é complexo mas as cifras mostram que numerosas famílias po-bres e de classe média sofrem tensões extremas durante os períodos dedesocupação prolongada e privações econômicas graves, o que acabapor desarticulá-las. Estima-se que mais de 20% das famílias da regiãotêm apenas a mulher a sua frente. Trata-se, em sua grande maioria, demulheres pobres, que defendem com grande coragem seus filhos mas ofazem em condições duríssimas. Também estão aumentando na regiãoos índices de violência doméstica (Buvinic, 2000). Isso se deve a mui-tas razões, mas uma delas, de alta incidência, é o grande stress socioeco-nômico de que sofrem numerosos lares. A violência no interior do larpode ser, mais tarde, um forte estimulante à insensibilização diante doexercício da violência.

Uma terceira correlação é a que se observa entre os níveis de edu-cação e a criminalidade. A tendência estatística que admite, é claro,todo tipo de exceção, é que, se aumentam os graus de educação de umapopulação, diminuem os índices de delitos. Na América Latina, apesardos importantes esforços no campo da educação, os problemas são gra-ves. Ainda que se tenha conseguido matricular a grande maioria dascrianças na escola, quase 50% delas abandonam os estudos antes decompletar o primário. As taxas de repetição também são altas. A eva-são e a repetição incidem fortemente sobre a pobreza. Mais de 17 mi-lhões de crianças menores de 14 anos trabalham, obrigados pela ne-cessidade; e um significativo percentual deles padece de desnutrição eoutras carências. Para eles fica muito difícil estudar nestas condições.A média de escolaridade na região é de apenas 5,2 anos, menos do queo primário completo.

Esses três grupos de causas — alta desocupação juvenil, famíliasdesarticuladas e baixos níveis de educação — estão gravitando silen-ciosamente, dia e noite, em torno do problema da delinqüência. Porsua vez, fazem parte do quadro mais geral da pauperização da região. Éimpossível não associar, por exemplo, o aumento da criminalidade naArgentina, décadas atrás uma sociedade com índices muito baixos, como fato de que a população pobre passou, segundo estimativas, de 5%

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nos anos 70 a 41% do total da população atual (Bermúdez, Clarín 2001);e com o fato de as desigualdades terem crescido enormemente, sobre-tudo na década de 90.

O debate sobre as soluções

Que fazer frente a uma situação que constitui uma ameaça con-creta para a vida cotidiana nas grandes cidades e que deteriora profun-damente a qualidade de vida? Como enfrentar a escalada da criminali-dade que se agravou ano após ano na última década? Que fazem outrassociedades? Em uma gama enorme de propostas, é possível diferenciarduas grandes posições que têm representação muito forte no debatepúblico da região. Trataremos de apresentá-las sumariamente.

A primeira, que poderíamos chamar “a via punitiva”, põe ênfasena adoção urgente de medidas de ação direta. Defende o aumento donúmero de efetivos policiais; a maior discrição da ação policial; mu-danças nos códigos penais para reduzir as garantias que, segundo essaproposta, “obstaculizam” o trabalho policial; o aumento dos gastos coma segurança em geral. Além disso, propõe baixar a idade de imputabi-lidade, tornar as crianças responsáveis e encarceráveis desde idadestenras, e até chega a propor grupos de extermínio organizados. Propõeo castigo implacável de qualquer falta, como a melhor educação para odelinqüente jovem.

A outra posição, que se poderia denominar “a via preventiva”,considera a proposta anterior equivocada e causadora daquilo mesmoque procura evitar; que ela obtém alguns efeitos aparentes de curtoprazo e sempre passageiros. A médio e longo prazo, os índices de deli-tos continuam subindo. Esta posição é exposta com grande vigor e amplaevidência empírica, entre outros, por Louis Wacquant em sua obra re-cente Os cárceres da Miséria (Edições Manantial, 2000). Wacquant,renomado pesquisador do Collège de France e professor associado daUniversidade de Berkeley, analisa os dados, o debate mundial, os estu-dos das principais universidades e centros do mundo, e afirma que apunição dá resultados muito pobres. Assim, a população carcerária depaíses que a praticam cresce rapidamente, como está sucedendo naAmérica Latina, gerando o que ele denomina um Estado hipertrofiadona área da repressão sem que, entretanto, os delitos diminuam. Ao con-trário, assinala ele, “Sabe-se que o encarceramento, além de afetar prio-ritariamente as camadas mais desprovidas, os desocupados, os precá-

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rios, os estrangeiros, é, em si mesmo, uma tremenda máquina depauperização. Neste sentido, é bom recordar sempre as condições e osefeitos deletérios da detenção na atualidade, não apenas sobre os re-clusos, mas também sobre suas famílias e vizinhanças”. Destaca que,em sua opinião, a América Latina está “vendendo” uma visão errôneada realidade. Não se conhece quase nada na região sobre as experiên-cias das cidades americanas que realmente conseguiram significativaredução da delinqüência nos EUA, como San Diego e Boston. Elas op-taram por um enfoque puramente preventivo, fazendo participar todaa comunidade e as igrejas na luta contra a delinqüência e desenvolve-ram vigorosos programas de apoio a jovens desfavorecidos. Seu exem-plo foi adotado por muitas cidades americanas, que têm uma taxa depoliciais por habitante muito menor que as cidades que aplicam a viapunitiva. Ele adverte que há vários processos inter-relacionados: a saí-da do Estado da economia em diversos países, a debilitação do Estadosocial, o conseqüente crescimento de uma massa de excluídos e o apa-recimento do que ele chama “o Estado penitenciário”.

Uma visão de conjunto

A pressão do aumento dos delitos é muito grande na América La-tina. Constitui um terreno propício para o surgimento de propostasdemagógicas que oferecem uma saída rápida. Ante o medo e a incerte-za, a tese punitiva tem amplas condições para prosperar. Entretanto, énecessário olhar mais longe e ter seriamente em conta a experiênciamundial. Apesar do incremento acelerado dos gastos públicos e priva-dos com segurança nos países da região, e, em muitos casos, da“flexibilização” de garantias jurídicas e processuais, a onda de delitosnão retrocede. É possível inferir que estas políticas não estão tocandoas causas de fundo da questão. Excetuando-se, como se notou anterior-mente, circuitos de delito que são empresas criminais organizadas, comoas da droga e outras, que requerem uma resposta contundente da socie-dade que tem todo o direito de defender-se delas, uma parte importan-te do delito está intimamente ligada ao quadro geral de deterioraçãosocial, ao crescimento da pobreza e da desigualdade. Para atacar osfatores estratégicos é necessário que as sociedades invistam fortementeno aumento das oportunidades ocupacionais para os jovens; na cria-ção de espaços para os milhões de jovens que estão hoje fora do merca-do de trabalho e do sistema educativo; na expansão do acesso a ativi-

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dades culturais e esportivas; no desenvolvimento de políticas sistemá-ticas de proteção à família; e no fortalecimento da educação pública.Joseph Stiglitz, ex-vice-presidente do Banco Mundial, afirmou que, deacordo com estudos de custos, no caso dos EUA, prender um delin-qüente jovem, julgá-lo e encarcerá-lo é muito mais oneroso que inves-tir para dar-lhe uma bolsa de estudos, com a notável diferença de queassim se reduz a taxa de criminalidade. O mesmo raciocínio parece,segundo os dados, ter plena validade na América Latina.

Por outro lado, este é um desafio que deveria suscitar uma açãocoletiva. Estado e sociedade civil deveriam somar seus esforços, comoo fazem em cidades como aquelas mencionadas acima e outras, paralevar adiante um grande esforço integrado de ação comunitária, orien-tado para criar oportunidades de trabalho e de desenvolvimento paraos desfavorecidos.

Se uma discussão a fundo sobre as causas estruturais dessa alar-mante tendência é deixada de lado, como vem acontecendo em diver-sos países; se a ação se resume à mera punição e põem entre parêntesesos direitos básicos do sistema democrático para facilitá-la, corre-se umenorme risco. É possível que se avance por um caminho que, aindasem admiti-lo, esteja “criminalizando a pobreza”. Os desfavorecidospassaram a ser vistos cada vez mais como “potenciais suspeitos” quedevem ser trancafiados atrás de barreiras defensivas. Um líder indíge-na do Continente explicava recentemente que eles são os mais pobresdos pobres, 40 milhões de pessoas que vivem, em sua maioria, em ex-trema pobreza e que andam com a impressão de que se implantou umnovo delito ao qual chamou “porte de cara” — com freqüência são in-terrogados ou vistos com suspeita apenas por seu rosto e seu aspecto.Seria terrível para a imagem da sociedade livre e plena de oportunida-des pela qual aspiram os povos da região, que aqueles que mais sofrema deterioração econômica e social, em lugar de serem apoiados ajuda-dos, sejam discriminados e confinados.

A América Latina se encontra em verdadeira encruzilhada histó-rica diante do angustiante problema do aumento da delinqüência. Porqual caminho optará? O que vai em direção à criminalização da pobre-za ou o da integração social? Cabe aprofundar na democracia este de-bate transcendental, substituir os slogans e medidas de fachada pordados sérios, identificar as causas estruturais do problema e ter emconta que aí está em jogo, nada mais nada menos, do que a qualidademoral básica de nossas sociedades.

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SOBRE O AUTORSOBRE O AUTOR

Bernardo Kliksberg é assessor de diversos organismos internacio-nais, entre eles a ONU, OIT, OEA, e Unesco. Foi Diretor do Projeto daOrganização das Nações Unidas para a América Latina de Moderniza-ção do Estado e Gerência Social e Coordenador do Instituto Interame-ricano para o Desenvolvimento Social (INDES/BID). Entre outras dis-tinções que lhe foram outorgadas, destacam-se: Professor Honorário daUniversidad Nacional de Buenos Aires, Professor Emérito daUniversidad de Congreso (Argentina), Doutor Honoris Causa daUniversidad del Zulia e Doutor Honoris Causa da Universidad Nacio-nal Baralt (Venezuela). É autor de diversas obras, das quais apontamosas mais recentes: Desigualdade na América Latina. O debate adiado(Unesco/Cortez, 2000); La lucha contra la pobreza en América Latina(Fondo de Cultura Económica, 2000); América Latina: uma região derisco — pobreza, desigualdade e institucionalidade social (Unesco, 2000);Pobreza. Nuevas respuestas a nivel mundial (Fondo de CulturaEconómica, 1998); Repensando o Estado para o desenvolvimento social(Unesco/Cortez, 1998); O desafio da exclusão (FUNDAP, 1998).