Familia e Contemporâneo Mundo

20
161 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011 E A família contemporânea brasileira em contexto de fragilidade social e os novos direitos das crianças: desafios éticos * The family context of contemporary Brazilian social fragility and new rights of children El contexto familiar de fragilidad social brasileña contemporánea y los nuevos derechos de los niños Maria Ignez Costa Moreira ** Paula Maria Bedran *** Soraia M. S. Dojas Carellos **** Introdução ste artigo analisa os sistemas familiares contemporâneos no Brasil em condições de pobreza e desamparo, especificamente no contexto de crianças abrigadas. Na primeira parte deste artigo, é apresentado o contexto histórico da família contemporânea, a partir do qual são apontadas as condições de emergência dos novos discursos que têm norteado as práticas voltadas para a defesa e garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes. Na segunda parte, apresentamos as características das famílias em situação de vulnerabilidade, as quais são os alvos privilegiados da política pública. Finalmente, são articuladas, por meio do relato de dois casos clínicos, as implicações macrossociais na organização sistêmica das famílias em situação de vulnerabilidade e de risco pessoal e social, cujas crianças foram retiradas de seu convívio, uma vez que receberam a medida socioprotetiva de abrigo e foram acolhidas temporariamente em uma entidade. A contextualização da família no Brasil na história recente Sarti (2008) considera que a década de 1960 é uma referência mundial quando se trata da história recente da família. Entre tantos marcadores das * Tradução do texto: Moreira, Maria Ignez Costa; Bedran, Paula Maria & Carellos, Soraia Dojas M. S. La Famille contemporaine brésilienne en contexte de fragilité sociale et les nouveaux droits des enfants. In: Éthique et Famille. Tome 2. Edwige Rude- Antoine & Marc Piévic (orgs). Paris: L’Harmattan, 2011. ** Doutora em Psicologia Social pela PUC SP. professora do Instituto de Psicologia da PUC Minas. *** Mestra em Psicologia pela UFMG, professora do Instituto de Psicologia da PUC Minas. **** Mestra em Psicologia pela UFRJ, professora Instituto de Psicologia da PUC Minas.

description

Direito de Família

Transcript of Familia e Contemporâneo Mundo

161 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011EAfamliacontemporneabrasileiraemcontextode fragilidade social e os novos direitos das crianas: desafos ticos*The family context of contemporary Brazilian social fragility and new rights of childrenEl contexto familiar de fragilidad social brasilea contempornea y los nuevos derechos de los niosMaria Ignez Costa Moreira**Paula Maria Bedran***Soraia M. S. Dojas Carellos****Introduo steartigoanalisaossistemasfamiliarescontemporneosnoBrasilem condiesdepobrezaedesamparo,especicamentenocontextode crianasabrigadas.Naprimeirapartedesteartigo,apresentadoo contexto histrico da famlia contempornea, a partir do qual so apontadas as condies de emergncia dos novos discursos que tm norteado as prticas voltadas para a defesa e garantia dos direitos das crianas e dos adolescentes. Nasegundaparte,apresentamosascaractersticasdasfamliasemsituao devulnerabilidade,asquaissoosalvosprivilegiadosdapolticapblica. Finalmente,soarticuladas,pormeiodorelatodedoiscasosclnicos,as implicaes macrossociais na organizao sistmica das famlias em situao de vulnerabilidade e de risco pessoal e social, cujas crianas foram retiradas de seu convvio, uma vez que receberam a medida socioprotetiva de abrigo e foram acolhidas temporariamente em uma entidade.A contextualizao da famlia no Brasil na histria recente Sarti(2008)consideraqueadcadade1960umarefernciamundial quandosetratadahistriarecentedafamlia.Entretantosmarcadoresdas *Traduo do texto: Moreira, Maria Ignez Costa; Bedran, Paula Maria & Carellos, Soraia Dojas M. S. La Famille contemporaine brsilienne en contexte de fragilit sociale et les nouveaux droits des enfants. In: thique et Famille. Tome 2. Edwige Rude-Antoine & Marc Pivic (orgs). Paris: LHarmattan, 2011.**Doutora em Psicologia Social pela PUC SP. professora do Instituto de Psicologia da PUC Minas.***Mestra em Psicologia pela UFMG, professora do Instituto de Psicologia da PUC Minas.**** Mestra em Psicologia pela UFRJ, professora Instituto de Psicologia da PUC Minas.162 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011Maria Ignez Costa Moreira, Paula Maria Bedran, Soraia M. S. Dojas Carellostransformaesdafamlia,encontramosoadventoeadifusodaplula anticoncepcional feminina, esse avano tecnolgico contribuiu para produzir adissociaoentreavidasexualativaeareproduo.Almdisso,omaior nveldeescolarizaodasmulheresesuaarmaonoespaopblicode trabalho possibilitaram, ainda segundo Sarti (2008, p. 21),As condies materiais para que a mulher deixasse de ter sua vida e sua sexualidade atadas maternidade como um destino, recriou o mundo subjetivo feminino, e aliado expanso do feminismo, ampliou as possibilidades de atuao da mulher no mundo social.Apartirdessapoca,muitasmulheresbuscaramaliaramaternidades funesdomsticas,comainseronomundopblicodotrabalho.Isso signicou,entretantasoutrasexperincias,acondiodaduplajornada detrabalho,umavezqueoserviodomsticoeocuidadodecrianas, especialmente pequenas, so representados como prprio do papel de gnero feminino, e este atribudo, em larga escala, s mulheres. Amudanadelugardasmulheresnoespaodomsticotrouxealguns conitos, entre eles a complicada engenhariadeconciliaoentre os papis de trabalhadora, esposa e me, a reivindicao por maior comprometimento por parte dos homens com as tarefas domsticas e o cuidado com os lhos. Quando os conitos se tornaram intransponveis, o casal buscou a separao, que, s nos nais da dcada de 1970, tornou-se amparado legalmente pela lei do divrcio brasileira. De l para c, o ndice de divrcios aumentou, bem como o nmero de famlias reconstitudas e de casais que se formam de modo consensual. Desde a Constituio de 1988, esse modo consensual passou a ser nomeado como unio estvel. As famlias recompostas ao estilo dos meus, dos seus e dos nossos lhostmsidocadavezmaisfrequentes,eessasnovasconguraestm trazidoimportantesquestionamentossobreafratriaeasrelaesentrepais separados e seus lhos.Essas experincias compem a histria recente de uma gerao de mulheres e alterou, em graus distintos, suas trajetrias. preciso lembrar que as geraes nosomonolticasequecadageraocompostadesujeitosdiversose mltiplos.Osmovimentossociaisorganizadosfeministasedemulheres, bem como a produo terica do feminismo, colocaram em cheque a ideia deumsujeitouniversaldofeminismo:amulher,postoquesomuitasas mulheres, de diferentes condies sociais e econmicas. Em pases, como no Brasil, onde h uma forte concentrao de riqueza, a situao das mulheres pobres marcada pela excluso de bens materiais e simblicos, e por isso os 163 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011A famlia contempornea brasileira em contexto de fragilidade social e os novos direitos das crianas: desaos ticosideais feministas de emancipao e autonomia, gestados nos estratos urbanos, mdioseescolarizados,noforamigualmenteintrojetadosportodasas mulheres e nem tampouco capazes de traduzir os anseios de todas elas. Paralelo a isso, no Brasil, a partir do nal da dcada de 1980, quando o Pas vive um profundo processo de redemocratizao, vencida a ditadura militar, inicia-seumaamplamobilizaosocialpelaarmaodosdireitoscivise sociais dos cidados.Do ponto de vista da famlia, encontramos dois grandes marcos. O primeiro, aConstituioFederalde1988,conhecidacomoconstituiocidad,que altera,entreoutrosaspectos,oestatutojurdicodehomensemulheresno lao conjugal quando rompe com a gura do chefe da famlia. Sarti (2008) explica, nesse sentido, que a abolio da chea conjugal exercida pelo homem torna, na sociedade conjugal, homens e mulheres iguais em direitos e deveres. Osegundomarcosedpelaretiradadadiferenciaoentrelhosgerados dentro e fora do casamento formal, os primeiros nomeados de legtimos e os ltimos de ilegtimos. Essa deciso foi referendada em 1990, pelo ECA (Estatuto da Criana e do Adolescente). O ECA, promulgado em 1990, preconiza que as crianas e os adolescentes so sujeitos de direitos e alvos prioritrios de proteo integral. Entre os direitos das crianas e dos adolescentes, est o da convivncia familiar e comunitria. Como podemos perceber at aqui, a histria da famlia se entrelaa com a histria das mulheres e das novas concepes sobre a infncia e a adolescncia. Ao compreendermos a famlia como um sistema, devemos nos indagar sobre o lugar dos homens, pois no possvel que uma parte do sistema se altere e outra permanea inalterada. As mulheres e seus lhos ganharam espao, o que ter acontecido com o espao dos homens nestes novos tempos?OECA(1990)armaqueumdosdireitosfundamentaisdascrianase dos adolescentes o da convivncia familiar e tambm o da identicao dos pais, ou seja, mesmo que uma criana ou um adolescente no coabite com o seu pai biolgico, ela tem o direito de saber quem o seu pai, alm disso, o pai tem obrigaes legais para com o lho.Sarti(2008),citandoBilac(1998),destacaque,nadcadade1990, outroavanotecnolgico,oexameDNA,quepermiteaidenticaoda paternidade, foi difundido. Essa nova ferramenta trouxe outra contribuio ao processo de transformao das relaes familiares. Desse modo, a mxima popular paternidade sempre uma dvida, ao passo que a maternidade sempre uma certeza foi desconstruda, o que fez o suposto fundamento natural que 164 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011Maria Ignez Costa Moreira, Paula Maria Bedran, Soraia M. S. Dojas Carellosservia de pretexto a costumes e pactos familiares e de relaes de subordinao degnero,queestruturaramafamliadurantetantotempo,pudesseser confrontado. No Brasil, h iniciativas tanto por parte do poder pblico quanto de ONGs que possibilitam a realizao de exames de DNA demandados por pessoas das camadas pobres da populao. Opaiidenticadonemsempreomaridodameoucoabitacomseus lhos.Encontramosumnmerosignicativodefamliasmonoparentais femininas,ouseja,afamliaconstitudapelamulhercomseuslhos.Nas famliasreconstitudas,encontramosapresenadeumhomemquenem sempre o pai biolgico de todas as crianas e, algumas vezes, tambm no investido de um lugar simblico de autoridade frente aos lhos de sua mulher. Anovafamlianopodemaisretrocederaomodelohierrquicopatriarcal. Parece que, cada vez mais, ela se aproxima do modelo das relaes igualitrias entregnerosegeraes,noentantoasfronteirasentreessesdoismodelos caram borradas.Divididaentreumidealimaginriodefamlianucleareasvrias conguraesdefamlia(famliasmonoparentais,famliasreconstitudas, famlias homoparentais), a famlia contempornea sofre um processo contnuo de reinveno de si mesma, embora persista como o centro de referncia para adelimitaodasubjetividadeetambmcomoalvoprioritriodecuidado das polticas pblicas.Taisfamliasnoscolocamdiantedemltiplasquestes,umadelas acontempornea,cadavezmaisinsistentenaagendadediscussodos prossionaisdasade,daassistncia,daeducaoedajustia:comovai eparaondevaiafamlia?Questoquenoserestringe,emabsoluto,s famliaspobres.Afamliadascamadasmdias,divididaentreummodelo de famlia nuclear hierrquico e um igualitrio, convive com o que Figueira (1987) chama de arcaico e moderno, que se situam lado a lado, provocando umdesmapeamentonarealidadefamiliar,oqualnosignicaaausnciade referncias, mas a coexistncia de referncias distintas em um mesmo contexto.Aoladodasprofundasmudanasnasconguraesfamiliares,na armaodosdireitosdasmulheres,dascrianas,dosadolescentes,dos jovens,dosidosos,doshomossexuais,enmdegruposquesomuitas vezesabrigadossobachavedavulnerabilidade,encontramosnasociedade brasileira contempornea a armao do discurso jurdico como aquele que tentapromoveradiminuiodasdesigualdades.Osestatutosqueregema polticasocialdedefesadascrianasedosadolescentesforamestruturados com base na centralidade da famlia, e estes tm tido suas relaes cada vez 165 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011A famlia contempornea brasileira em contexto de fragilidade social e os novos direitos das crianas: desaos ticosmais pautadas pelas normas jurdicas, o que tem concorrido para o processo de judicializao das famlias. Sierra(2004,p.7),apoiadaemvastarevisobibliogrca,indicaque asdemocraciascontemporneasestariamsubmetidasaofenmenoda judicializao, entendendo-se por isso o aumento desmesurado de leis com o objetivo de regular a sociabilidade. A garantia dos direitos das crianas e dos adolescentes tem amparo legal, e a Justia tem poderes para intervir tanto na esfera pblica quanto na esfera privada.As relaes familiares so, na atualidade, fortemente pautadas pela lgica do Direito. Dessa forma, os pais so investidos de responsabilidade, do ponto de vista legal, por seus lhos durante a infncia e a adolescncia, e, por seu turno, tambm os lhos so responsveis legais pelo amparo de seus pais na velhice. O desrespeito a essa norma passvel de processo judicial. Passamos ento de uma sociabilidade familiar regida pela lgica da tradio para uma sociabilidade regida pelas leis.Por isso as obrigaes de um cidado no mais se restringem esfera pblica (tais como, votar, pagar seus impostos ou respeitar as leis de trnsito). Passa a haver obrigaes postas pela nova ordem pblica, que devem ser cumpridas na esfera privada. Por exemplo, os pais ou os responsveis por uma criana no podem decidir que ela no ser matriculada na escola, porque matricular as crianas na escola e zelar por sua frequncia e aprendizagem uma obrigao de todo cidado a ser cumprida na esfera privada.As famlias em situao de vulnerabilidade e os princpios da poltica pblicaOECAprevacentralidadedafamlia.Elatemodeverdegarantire promover os direitos de suas crianas e seus adolescentes, mas tambm , ela prpria,portadoradedireitos,entreelesodereceberdoEstadoosmeios materiais para exercer o seu papel de cuidar e educar seus lhos. Prover tais recursosumaestratgiadapolticapblicaparadiminuirassituaesde vulnerabilidadeederiscosocialepessoal,mas,aomesmotempo,um dever do Estado, regulado pela instncia jurdica. Nesse sentido, as famlias emsituaodevulnerabilidadeederiscosocialepessoalsoasprincipais destinatrias das polticas sociais. No uma tarefa fcil denir os termos vulnerabilidade e risco social e pessoal, uma vez que eles comportam sentidos mltiplos. Vulnerabilidade um termo que evoca a fragilidade, mas seria mais adequado que usssemos 166 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011Maria Ignez Costa Moreira, Paula Maria Bedran, Soraia M. S. Dojas Carellosessetermonoplural,poisquehfragilidadesdediversasordenserazes. Outra associao comum a do termo vulnerabilidade com as situaes de dependncia e de risco. Oliveira(1995)argumentaque,dopontodevistaeconmico,a vulnerabilidadesocialdeumafamliaestligadamisriaestrutural. Eleassociaapobrezaextremadasfamliasprecarizaodotrabalhoeao aumento das taxas de desemprego dos adultos, e ainda, ineccia do Estado emrespondersnecessidadesdeeducao,sadeeseguranadecamadas signicativas da populao. Portanto a situao de vulnerabilidade de crianas e adolescentes deve ser pensada de modo interacional e sistmico. Segundo Sierra e Mesquita (2006), essasituaoremete,almdaprivaomaterial,qualidadedainterao entre as crianas, os adolescentes e os adultos de referncia, tanto no mbito domstico quanto pblico. Nesse sentido, a autora acrescenta a dimenso da privao simblica.Caliman(2006),discutindoasdiversasconcepesderiscosocial, apontaqueelespodemserclassicadosemdoisgrandestipos:oprimeiro, consideradocomoriscoobjetivo,ligadoscondiesestruturais,oque signicaaausnciaderecursosmateriaistaiscomomoradia,renda,enm umafamliasemcondiesbsicasdesobrevivncia.Osegundotipoo riscochamadodesubjetivo,que,segundooautor,refere-seaumdcit dosrecursosindividuais,esemanifestapelasrespostasproblemticasno mbitodaassunodevalores,daformaodeatitudeseracionalizaese dasinsatisfaespessoais(Caliman,2006,p.286).Podemosexemplicar esse risco subjetivo em famlias que tm membros que fazem uso de drogas legais ou ilegais, que so portadores de sofrimento mental ou com presena de agressores, entre outros exemplos. Osdoistiposobjetivoesubjetivoestointerligadossemque necessariamente a relao seja de causa e efeito, mas um pode potencializar ooutro.Umafamliaemsituaodepobrezaextremaoudemisriavive umasituaodevulnerabilidadeederiscosocialquerepercutenarelao afetiva entre seus membros. Isso quer dizer que, alm dos problemas ligados ordemmacroestrutural,encontramosasfragilidadesdeordemsimblica nas instituies sociais, tanto no nvel do Estado como no das famlias e das escolas comumente identicadas como crises de autoridade. Sierra(2004)mostraqueaarmaodosdireitossociaisnassociedades contemporneastemproduzidocertoafastamentodoenfrentamentodos problemas estruturais da vida social, tais como a organizao do trabalho, a 167 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011A famlia contempornea brasileira em contexto de fragilidade social e os novos direitos das crianas: desaos ticosredistribuio de riquezas e de terras produtivas para a aproximao da lgica do direito pautada na responsabilidade individual.Dessemodo,asfamliasemsituaodevulnerabilidadeederisco socialpelafaltaderecursosmateriaissoresponsabilizadaspelassuas condies de sobrevivncia e devem reivindicar seus direitos de cidadania. Osmembrosdessasfamliasseroconsideradosindivduosconscientes deseusdireitossetiveremconhecimentodosdiversosprogramas sociais(porexemplo,derendamnima)esenelesestiveraminscritos ecumprindoregularmentesuasregrasparagarantirapermanncia.Se no o fizerem, estaro violando direitos de suas crianas e adolescentes epoderosertaxadosdenegligncia.DopontodevistadoECA,a pobreza no motivo para o abrigamento de crianas e de adolescentes, mas a negligncia o . AdimensosimblicadoEstadoocolocacomorefernciaabstrata fundadoradaordementreosindivduos(Sierra,2004,p.5).Para Rocha (2001, p. 10), O Estado representa um foco de poder que tem a capacidade de impor as regras de convivncia em um determinado limite territorial. O Estado democrtico deve ser capaz de realizar o princpio bsicododireitosdiferenasentreosseuscidados,impedindoque elassejamtratadascomodesigualdadese,ainda,depossibilitaravida emcomumdosdiferentes,garantindoosdireitosfundamentaisdos cidados. Aspolticaspblicaseassociaisconcretizam,nocotidiano,os princpiosdoEstado.Nessesentido,Rocha(2000,p.11)nosexplica que:Aspolticaspblicasreferem-seadecisesgovernamentais projetadasparaatacarproblemasquepodemestar relacionados, por exemplo, a poltica externa, sade pblica, proteodomeioambiente,crimeedesemprego,entre outros. Seus efeitos so direta ou indiretamente vlidos para a sociedade, ou seja, tm poder vinculatrio.Nessa direo, as aes de proteo integral infncia e adolescncia integramaspolticaspblicas,desdeapromulgaodoECA,queno se fez sem o posicionamento e as reivindicaes de movimentos sociais organizados,entreelesoMovimentoNacionaldeMeninoseMeninas deRua.Podemosconcluirqueaspautasdaspolticaspblicasso transformadasaolongodahistria,novastemticassoincorporadas por fora dos movimentos sociais organizados.168 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011Maria Ignez Costa Moreira, Paula Maria Bedran, Soraia M. S. Dojas CarellosQuanto poltica social, Rocha (2000, p. 15) apresentar a seguinte definio:A poltica social uma modalidade de poltica pblica que visa a fornecer condies bsicas de vida populao e o signicado dissomudadesociedadeparasociedade.Visa,assim,abuscar uma situao de maior igualdade entre os componentes de uma sociedade e fornecer um nvel bsico de segurana socioeconmica. Envolveumaamplagamademodalidades,comopolticasde sade,educao,habitao,amparoadesempregados,crianas evelhos,programasderendamnima,enm,diversostiposde intervenes. Entendidos como sujeitos de direitos, inclusive direitos sociais, as crianas, os adolescentes e suas famlias passam a ser objeto e destinatrias das polticas sociais. No entanto, ao mesmo tempo, as famlias so tambm consideradas agentesdapolticasocial,postoquetmsidoconvocadascomoaliadasdas aes propostas pela poltica social, especialmente em seus programas de renda mnima, tais como o bolsa-famlia. Aqui cabe, contudo, um parntese. Quando lemos centralidade da famlia, devemos compreender que h um subtexto que indicaacentralidadedasmulheres,umavezqueatarefadecuidadocom crianas,adolescentes,jovens,idososedoentesumaatribuioentendida como prpria do gnero feminino e, em nossa sociedade, usualmente exercida pelas mulheres. ParaCruz(2008),historicamentedominanteodiscursodedelegao medevigilnciaconstanteemrelaoaseuslhoscomoestratgiade prevenodetodaasortedemales,gerandoumapermanentetnicade culpabilizaonessasmulheres.Umexemplodessaarmaoencontramos nas prticas higienistas no Brasil no nal do sculo XIX, que fez das mes as responsveis pela sade fsica, mental e moral de seus lhos. Nos dias atuais, aspolticaspblicasquenorteiamaassistnciasfamliaspobrespersistem nessa tnica de busca de aliana e responsabilizao das mes. Asfamliasmonoparentaisfemininastmsidoconsideradasemsituao devulnerabilidade,tantopelasituaodepobreza,umavezqueamulher no conta com a gura de um provedor que divida com ela os encargos do cuidado das crianas e dos adolescentes, quanto pela situao de fragilidade dos laos afetivos e de referncias de autoridade. Nesse quadro, as crianas e os adolescentes so, muitas vezes, submetidos a situaes de violncia fsica, psicolgica, sexual, so integrados precocemente nomundodotrabalho,exercendoatividadesemcondiesprecrias.As 169 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011A famlia contempornea brasileira em contexto de fragilidade social e os novos direitos das crianas: desaos ticoslongas jornadas de trabalho os impedem, muitas vezes, de frequentar a escola e os espaos de lazer e cultura, necessrios ao seu pleno desenvolvimento. A violaocotidianadosdireitosdecrianaseadolescentesrevelaaproduo eaperpetuaodedesigualdadessociaisqueacarretamaexclusoeque retroalimentam as desigualdades. A medida socioprotetiva de abrigoOenfrentamentodessassituaestemsidofeitopormeiodeumarede de atendimento composta pelos equipamentos pblicos de assistncia social, deeducao,desadeejurdicos.Crianaseadolescentesemsituaode riscosocialepessoaltmprioridadeabsolutanorecebimentodasmedidas socioprotetivas1 previstas pelo ECA. Entre estas, est a de abrigo em entidade. Nessasinstituies,ascrianaseosadolescentessoafastadosdoconvvio comseuspais.Esseabrigamentocaracterizamaisumatravessamentodo espaopbliconoespaoprivadoeoconsequenteafrouxamentodesuas fronteiras, gerando uma questo de impasse tico entre o particular e o bem comum.Amedidadeabrigo,tomadaemdefesadosdireitosdacrianaedo adolescente, comporta alguns riscos, entre eles o de reforar certa fragilizao daautoridadeparental,aomesmotempoemqueampliaopoderjurdico tutelarsobreafamlia,desfacelandomaisaindaosjdifusosvnculos familiares na sociedade contempornea.Nessesentido,nocampodadefesadosdireitosdascrianasedos adolescentes,assistimoscotidianamentedestituiodopoderdospais einstituiodopoderdosoperadoresdocampojurdicosobreospais, ascrianaseosadolescentes.Essasprticastmfavorecidooprocessode judicializaodainfnciaedaadolescnciacomoumatravessamentonas relaes parentais. Entendemosqueasdiscussessobreosnovosdireitosdascrianase adolescentes tm gurado, no sem razo, no mundo globalizado, uma vez que eles denunciam uma situao de crise de valores no mundo contemporneo e apontam para o risco tico de uma padronizao do modelo de famlia ditado pelos especialistas dos campos jurdico, psicolgico, educativo e assistencial, entre outros. 1 ECAArt.101:DasmedidassocioprotetivasI.Encaminhamentoaospaisouresponsveis,mediantetermode responsabilidade;IIOrientao,apoioeacompanhamentotemporrios;III.Matrculaefrequnciaobrigatriasem estabelecimentoocialdeensinofundamental;IVInclusoemprogramacomunitrioouocialdeauxliofamlia, crianaeaoadolescente;V.Requisiodetratamentomdico,psicolgicooupsiquitrico,emregimehospitalar ouambulatorial;VI.Inclusoemprogramaocialoucomunitriodeauxlio,orientaoetratamentoaalcolatrase toxicnomos; VII. Abrigo em entidade; VIII. Colocao em famlia substituta. 170 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011Maria Ignez Costa Moreira, Paula Maria Bedran, Soraia M. S. Dojas CarellosEmbora, alados condio de sujeitos de direitos, pelo ECA, as crianas eosadolescentesnosocompreendidosaindacomosujeitospolticos,no sentidodequesuasdemandasnosoenunciadaspelaprpriavoz,mas traduzidaspelosadultosseusrepresentantes,osquaisnemsempresoos seuspais,jquetambmestes,muitasvezes,estotolhidosnasuaprpria expressopoltica,poissocolocadossobatuteladasesferasassistenciaise judiciais. Famlia,criana,instituioesociedadecontempornea,quando apresentadas como instncias autnomas, revelam-se de extrema complexidade; quando ainda associadas entre si, em uma interao de circularidade de efeitos, produzem um intricado conjunto de elementos histricos, sociais e subjetivos de anlise extremamente desaadora.As famlias atendidas pelos dispositivos do ECA, como j foi exposto, so marcadas por uma situao de extrema pobreza ou por grandes diculdades paragerirseusparcosrecursosnanceiros,almdegravesdiculdades emocionais, contando, portanto, com o auxlio de diversos setores/instncias de apoio, inclusive com o histrico recorrente de institucionalizao de seus lhos.Arelaodosoperadoresdasmedidassocioprotetivascomessasfamlias trazdesaospermanentes:precisotomardecisesrpidas,quegarantam aintegridadedecrianaseadolescentes,mastambmprecisoconsiderar asrelaesafetivasentreosmembrosdafamlia(nucleareextensa).H uma tenso permanente entre a tutela e a busca de potencializar os recursos simblicos e materiais da famlia. Alarco (2000) destaca que so famlias mais expectadoras do que autoras dosseusprocessos.Carentesdemeioseconmicos,sociaiseculturais,essas famliastmfronteirasmuitodifusas,aondeaentradadessasinstnciasvai se dando invasiva e continuamente. Citando Linares, a autora arma que A estrutura familiar tambm caracterstica, ocorrendo signicativas rupturas e reconstituies que criam genogramas desorganizados e barrocos nos quais ospapistradicionais(natradiodafamliamoderna)semodicame reformulam (Linares apud Alarco, 2000, p. 318).Os pais, de maneira geral, tm histricos de abandono e sofrimento, tendo pertencido a famlias com diversas rupturas, marcadas por violncias. Via de regra,sofamliasmonoparentais,nasquaisdamulherseesperaumpapel centralizadordefunesdecuidado,proteoemanutenonanceiradas suasnecessidades.Ocasal,quandoexiste,raramenteaparecenosistema familiar,temmuitosconitosediculdadesparalidarcomasquestes 171 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011A famlia contempornea brasileira em contexto de fragilidade social e os novos direitos das crianas: desaos ticosdacriaodoslhos,absorvidoqueestcomseusproblemasdeordem emocionalesocial:alcoolismo,drogadico,criminalidade,desemprego, falta de moradia prpria.Apesar de questes comuns relacionadas a qualquer sistema familiar, no hcomonegaraparticularidadedeorganizaodefamliasemsituao de vulnerabilidade e de riscos objetivo e subjetivo. Enquanto as condies socioeconmicas e simblicas das famlias das camadas mdias criam certas possibilidades para que possam decidir sobre entrada e os limites do auxlio/invaso dos especialistas (psiclogos, mdicos, advogados, entre outros), em perodos de crises e diculdades, as famlias da camada popular, pela falta de recursos materiais e simblicos, acabam por ter o seu poder de escolha limitado, favorecendo a ao tutelar das instncias pblicas e jurdicas e a entrada do auxlio-invaso dos especialistas.Asfamliasassistidaspelarededeproteocrianaeaoadolescente seapresentamdestitudasdeautonomiaedesfalcadasnassuasfunes deproteo,cuidadoemocionalenanceirodosseuslhos,entregando-senocolodoEstado,nagrandemaioria,reforadaspelasinstnciasde proteo, no movimento repetitivo de delegao das suas responsabilidades para o outro. Mais do que apoio, a ao do Estado passa a ter uma funo de tamponamento de um buraco na organizao hierrquica do sistema familiar.Cruz(2008)relataasituaodeumjovemde16anoscom histria de abandono, que, ao ser interpelado sobre quem eram seus pais, respondiafrequentemente,semhesitao:ogoverno.Famliascomlhos abrigados,crianaabrigadasonomeaesqueuniformizam,exigindoa determinaodetodosenvolvidosnarededeassistnciadesalvaguardar asidiossincrasiasdasfamliasedosseuscomponentes.Identicamos, nessasituao,umadasfontesdosequvocosencontradosnasituaode abrigamento advindos da precipitao da destituio do poder familiar, do encaminhamentoparaaadooporoutrasfamliassubstitutasbrasileiras ou para a adoo internacional, ou mesmo do retorno para a prpria famlia de origem. Ao serem inseridas na rede de proteo pblica, so protegidas decircunstncias,defato,deextremacarnciaeconmicaeafetiva,ede violnciadomstica.Noentantoasfamliasesuascrianasnoso,na maioriadasvezes,devidamenteescutadas,paraquepossamquebrarum ciclo vicioso de repeties, inclusive o de uma sucesso de abrigamentos ao longo de suas vidas. Existem crianas, por exemplo, de 4 anos de idade, com o histrico de dois abrigamentos comaduraodedois anos eum ano e meio, respectivamente, o que signica que a maior parte de sua vida esteve em uma instituio.172 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011Maria Ignez Costa Moreira, Paula Maria Bedran, Soraia M. S. Dojas CarellosAs polticas pblicas, ainda com forte tom assistencialista, necessitam deumaconstanterevisodesuasaesquecarregamoperigode proteger, sem promover a posio de responsabilidade dos beneficiados. Para Cruz (2008, p. 41)Durante 400 anos de histria de assistncia as crianas, no seencontram,nasinstituies,pblicas,particulares,leigas oureligiosas,aesquevisemaumefetivocuidadocom asfamliasouaprevenodoabandono[...]Nenhuma daspesquisasquerecuperamdadossobreahistriada institucionalizaodecrianaspodeencontrarasvozesdas famlias, a no ser nos bilhetes de mes que acompanhavam algumas crianas deixadas na Roda. Quemsoessasfamliasque,descaracterizadasnasuaautonomia, acabam por acatar as decises judiciais e no conseguem se reorganizar para reaverem seus filhos? Pelaescutaatentadessasfamlias,possvelatestararepetio depadresinteracionaisaolongodasgeraes.Ospais,demaneira geral, tm histricos de abandono e sofrimento na infncia, tendo suas famliasdeorigemcomdiversasrupturas,marcadasporviolnciae abandono. Essas repeties podem ser compreendidas como verdadeiros mitos familiares transmitidos entre as geraes. Os mitos familiares so definidos,deacordocomFerreira,citadoporGomes(2000,p.42), como: Crenas organizadas em cujo nome a famlia inicia, mantm ejustificamuitaspautasinteracionaissocompartilhadas eapoiadasportodososmembroscomosetratassemde verdades que esto alm de todo desafio ou investigao. Emcondioderepetiesinsistentesecrnicas,taiscrenasse tornamrgidaseinabalveis,determinando,sentenciandoafatalidade de um destino a priori. Essas famlias, na sua grande maioria, estagnaram emtornodacrenadasuaincompetnciaparaconstruirumafamlia diferentedasuadeorigem.Asmesreeditamoabandonosofrido,na infncia,porsuasprpriasmesedemandamtambmacolhimentoe sustentao. Uma me que teve duas filhas abrigadas disse, em uma das suasvisitasscrianas:Seeupudesse,eutraziaminhacamaeficava morando aqui.A situao de descrena em relao aos seus prprios recursos e a demanda de acolhimento, parceria e limite facilitam a entrada, sem medida, das medidas 173 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011A famlia contempornea brasileira em contexto de fragilidade social e os novos direitos das crianas: desaos ticosde proteo, como um tamponamento dessas carncias e no necessariamente como uma interveno motora de uma efetiva mudana nas relaes familiares.Krom (2000) arma que, no ciclo de vida familiar, as experincias repetidas tendem a ganhar signicado, gerando a formao de um ncleo de sentido quedeterminaumaespeccaconcepodemundo,aqualsetratadeum mito familiar.Aprolongadahistriadeabandonoatravsdasgeraeseacarnciade toda ordem estruturam uma legenda conformista diante das decises judiciais e das aes do Estado sobre as vidas dessas famlias.A Casa dos Pequenos: reexes e prticas encarnadasACasadosPequenosumaentidadedeabrigoparacrianassituada nacidadedeBeloHorizonte-MG.Durantecincoanos(2005-2010),por demandadacoordenadoradaCasa,foirealizadooprojetodeatendimento clnico, na abordagem sistmica, com as crianas, famlias e os educadores que trabalham na entidade. Inicialmente, o trabalho foi desenvolvido como parte deestgiosupervisionadodegraduandosemPsicologia.Apartirde2008, oprojetofoitransformadoemprticadeextensouniversitria.Em2009, esse grupo de extenso, composto por alunos e professores da graduao em Psicologia,incorporouprofessoraealunadaps-graduaoemPsicologia. Ogrupotemprocuradoarticularaprticadeextensocomoensinoea pesquisa. Essa experincia tem sido objeto de contnuas reexes. Entendemos que a discusso da eccia da poltica de proteo criana e ao adolescente, luz de uma anlise crtica, corre o risco de gerar um encadeamento de questes to contraditrias e paradoxais que pode, se no tomarmos o devido cuidado, desmontartodaumaaopblicaqueenvolve,poroutrolado,muitos protagonistas empenhados, de fato, em aes responsveis com o bem-estar das famlias e seus lhos. Essa anlise deve, portanto, ser rigorosamente crtica, demaneiraadarcontadetambmavaliarasaesbem-sucedidasaolado daquelas malsucedidas, salvaguardando uma viso mais abrangente possvel.Osdestinatriosdapolticasocialdeproteointegralsoascrianase osadolescentes,que,comovimos,foramaladoscondiodesujeitosde direitos.Avaliaraecciadasaesdeproteoedefesadosdireitosdesse pblico implica que se faa uma indagao cotidiana sobre as repercusses delas na vida de cada uma das crianas e dos adolescentes atendidos. Entendemos queessasavaliaesnopodemcarreduzidassestatsticas,aosnmeros 174 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011Maria Ignez Costa Moreira, Paula Maria Bedran, Soraia M. S. Dojas Carellosquedespersonalizamossujeitos.Evidentemente,queasanlisesestatsticas so muito importantes no planejamento e aprimoramento das aes pblicas, maselasnobastam.precisoindagaremquemedidaasaestomadas tornam as crianas e os adolescentes pessoas mais felizes e capazes de tomar em suas prprias mos o seu destino.Escolhemos, nessa direo, dois casos clnicos. Os sujeitos atendidos falam deseussofrimentosedaposioemqueforamcolocadospelosdiversos equipamentos pblicos e de seus movimentos de resistncia e de desistncia.Paraestabelecerumaanlisecontrastiva,escolhemosumcasoque consideramosbem-sucedidoeoutro,malsucedido.Ocritrioestabelecido pelaequipecomodenidordeumcasobemsucedidofoiarefernciada sustentaodeumaaovoltadaparaoapoiodafamliacomoresponsvel pelasuahistriae,emcontrapartida,arespostafavorveldessafamliade retomar as rdeas de seu destino. Essa a histria de uma criana chamada Gabrie2, que, ao longo de um extenso e sofrido processo, retornou para casa com sua me.Gabriel tinha, na poca do abrigamento, 4 anos de idade, com uma jovem mede20anos,grvidapelasegundavez,morandocomairm,queera prostituta.Foiabrigadoportersidoencontradonarua,sendoqueame arma t-lo deixado com uma vizinha, remunerada para tomar conta dele.Jlia, a me, estava desempregada, com histrico de abandono em relao sua me e de abuso sexual na infncia, ex-interna da Fundao Estadual do Bem-estar do Menor (FEBEM). Visitava Gabriel frequentemente no abrigo earmavaque,seelenocassecomela,eladariaemadooolho,do mesmo pai, que estava prestes a nascer.Iniciamosoatendimentopsicolgicodessame,aprincpiomuito arredia e desconada das intenes da Psicologia. Pouco a pouco, ela foi se apropriando do espao do atendimento, questionando e redimensionando as direes invasivas de uma parte da rede de abrigamento em relao sua vida. Na negociao para reaver a guarda de Gabriel, recusou vrias recomendaes feitaspelostcnicosdosequipamentosquecompemarededeassistncia. Aseguir,listamosasrecomendaes:1)queJliavoltasseamorarcomo prprio pai, o av materno das crianas, alcoolista, com histrico de agresso famlia;2)quenopermanecessenacasadesuairmqueeraprostituta; 3) que ela zesse uma troca: teria seu lho de volta se zesse laqueadura de trompas aps o parto.2Todos os nomes citados na descrio dos casos so ctcios. 175 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011A famlia contempornea brasileira em contexto de fragilidade social e os novos direitos das crianas: desaos ticosAlm de resistir a todas as recomendaes que no estavam em conexo comasuaverdadesubjetiva,ouseja,oseuprojetopessoaldereaverseu lho,elalevavasuasirmsssessesdeatendimentopsicoterpicopara provar que o que denunciava sobre seu pai era verdadeiro.Nesseprocesso,Jliacomeouanamorarumhomemmaisvelho. Prosseguiu com a demanda de que o pai biolgico registrasse o lho e lutou para assegurar o vnculo com os lhos, com a ajuda signicativa da psicloga que a atendia.Jlia abraou uma luta sem trguas pelo rompimento da repetio familiar: abandonoecortesemocionais,eaceitouaparceriacomumsegmentoda rede (a Psicologia) para fazer valer a sua voz, dando, inclusive, continuidade ao atendimento psicoterpico, aps reconquistar a guarda de Gabriel.Embora no tenha conseguido um emprego nem a devida organizao de sua casa, buscou assegurar o vnculo afetivo com os lhos. Estabeleceu-se, nesse caso, uma parceria que potencializou as aes do sujeito, aproveitando positivamente os seus recursos emocionais, culminando no retorno do lho para a sua guarda.Ainda que o caso relatado tenha trazido uma situao de signicativo caos familiar, nesse mesmo caos coexistiam possibilidades reais de superao da situao. Para identicar tais elementos possveis de produzirem uma nova congurao, foi indispensvel uma escuta atenta, cuidadosa, amplicadora e de aposta no fortalecimento dos embries de possibilidades dessa famlia. Aoserescutadanasuapotencialidade,amesesentiuapoiadapelarede, representadapelapsicloga,oqueafortaleceunasuafunodeme, tornando possvel o desfecho relatado. Queremosressaltarqueessecasofoibem-sucedido,tendoemvistao processo.Umdospontosdarededeassistnciapodedesenvolvercom essamulherumafunomediadoraenotutelar.Foinecessrioque houvesse um tempo de elaborao para que Jlia mudasse a sua posio e se responsabilizasse por suas escolhas. Em contrapartida, acreditamos determinar um caso malsucedido a ao meramentetutelar,quandoasinstnciasprotetoraspretendemorganizar umasituaoentendidacomocatica,comparmetrosexternosaela mesma,oqueconfereumcarterinvasivossuasaes,comoaconteceu no caso a seguir.Bruno tem 8 anos, abrigado desde os 5 anos. o ltimo filho de uma famlia de oito irmos. Aos 2 anos de idade, a me foi destituda do poder 176 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011Maria Ignez Costa Moreira, Paula Maria Bedran, Soraia M. S. Dojas Carellosfamiliar por ser alcoolista e por negligncias e maus-tratos; e o pai, apesar de ter reivindicado sua guarda na justia, no compareceu s audincias marcadas pelo Juiz. A incapacidade da me e o desaparecimento do pai geraram a disponibilizao da criana para a adoo.Aps a destituio do poder familiar, Bruno viveu com uma provvel famliaadotiva,quefoiconsideradainaptaparacri-lo,pelarepetio de comportamentos semelhantes sua famlia de origem: pai alcoolista. importante destacar a vinculao significativa da criana com a me e os irmos dessa famlia. A despeito disso, Bruno foi novamente abrigado eviveumaisumavezumapossibilidadedeadooquetambmfoi considerada inadequada pelo juizado.A primeira possvel me adotiva se ligou de maneira to significativa o Bruno, que props que, mesmo adotado por outra pessoa, fosse visit-lanosfinaisdesemana.Aoidentific-locomoumcasodeadoo tardia,oJuizadooptoupelaadoointernacional,deixandoescoar umapossibilidaderealdeadooporpessoasque,defato,jhaviam estabelecido laos afetivos com a criana.Duas famlias francesas se interessaram por ele, apoiadas no fato de a criana j ter um irmo adotado tambm por franceses. Tais famlias, no entanto, no se definiram pela adoo. Em 2008, Bruno foi finalmente adotadoporumcasaldeitalianosqueveioaoBrasilparapassarum mscomacriana,comoobjetivodeestabelecerumcontatomais prximo com ela, tendo em vista a adoo. O advogado responsvel pelo processo internacional interditou, a partir da deciso favorvel adoo, a continuidade de qualquer vnculo da criana no Brasil.Combasenesserelatosucinto,podemosobservarvrioselementos queodefinemcomoumcasomalsucedido.Entreelesdestacamos quatro: 1) a criana no escutada no momento do processo de deciso pelaadoointernacional,permanecendoalheiaatodasasdecises sobreoseudestino;2)afamliabrasileirainteressadaemadot-lonofoidevidamenteescutadaetrabalhadanosentravescolocados paraaefetivaodaadoo;3)haviainteressedemaisdeumafamlia brasileiraemadot-lo,oquenofoisuficienteparagerarointeresse dos componentes da rede em apoiar essas famlias na sua inteno; 4) a despeito de todas essas possibilidades, elas foram abortadas, culminando em uma deciso de adoo internacional com a prescrio de rompimento devnculos,detodanatureza,noBrasil,seupasdeorigem,como condio para a concretizao da adoo.177 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011A famlia contempornea brasileira em contexto de fragilidade social e os novos direitos das crianas: desaos ticosConstata-se,combasenesseselementos,umarepetio,promovida paradoxalmentepeloprpriosistemadeproteo,doabandonoedo desamparo nas relaes afetivas que Bruno foi tecendo no seu processo deabrigamento.Oquedeterminaanossaleituradessecasocomo malsucedidonoodesfechoemadoointernacionalemsi,mas todooprocessodedesconsideraocomosafetosestabelecidospela crianaeafaltadeacompanhamentogenunodasfamlias,associado equivocadainterpretaodassuascondies,priorizandoumaviso unilateral e parcial delas.Asinstnciasassistenciaisejudiciais,diantedocaos,pretendem organiz-lodefora,combasenasrepresentaessociaisdeseusagentes, muitas vezes preconceituosas, correndo o risco de inviabilizar a percepo da famlia de si mesma e desconsiderando os recursos existentes em cada uma delas.Deparamo-nos,ainda,comumgrandeparadoxo:aredepretende orientar para proteger a criana e a sua famlia e acaba por desampar-los com aes intrusivas, contribuindo para a perda da sua autonomia.Alarco (2000, p. 316) revela, com preciso, o risco da ao pblica intrusiva:Aatitudesubstitutivadosprofissionaisemnadafavorecia odesenvolvimentodaquelascompetncias,antesaumentavaapostura dedelegaoededesresponsabilizao,assimcomodiminuauma autoestima j reduzida.Oscasosbememalsucedidosrelatadosmostramclaramenteo quanto importante a reapropriao da autonomia por parte da famlia comocondionecessriaparaorompimentodadependnciaedo enfrentamento e superao das condies de vulnerabilidade e risco. O trabalhonadireoemancipatriapossibilita,almdofortalecimento daautoestimadecadaumdosmembrosdafamlia,oexerccioda cidadania, no sentido de que os sujeitos passam, de fato, a assumirem-se como sujeitos de direitos e no apenas de necessidades a serem supridas por um Estado transvestido na figura de um bondoso pai. Osoperadoresdasaesdeassistnciavivemintensosdilemas cotidianos.Muitassoluesdecarterpragmticosoelaboradaspela inteno protetora e pela premncia da resoluo de situaes graves e de violao de direitos sofridas pelas crianas e adolescentes. Dessa forma, muitas vezes, no permitido o tempo necessrio para a elaborao tanto dospaiseresponsveisquantodascrianaseadolescentesnoprocesso de construo da autonomia e de responsabilizao frente s decises a serem tomadas.178 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011Maria Ignez Costa Moreira, Paula Maria Bedran, Soraia M. S. Dojas CarellosO cuidado tico um imperativo para todos os que integram a rede deproteo,precisofazertodososesforosparanosepermitirem maiorsofrimentoerisconavidadascrianas,dosadolescentesede suas famlias, mas, ao mesmo tempo, no invadi-los e destitu-los de sua posio de direito. Os profissionais envolvidos em toda a rede de proteo necessitam de espao para que possam manter-se diferenciados, no sentido de respeitar as decises e as diferentes configuraes e dinmicas familiares, e, ao mesmo tempo, colocarem-se como agentes de mediao para que as situaes de violnciapossamsersuperadaseosvnculosfamiliaresreestruturados. Semquepossamdarcontadesimesmos,essesprofissionais,embora bem-intencionados, podem desenvolver aes negativas pelo uso de um poder que promove o submetimento do outro. Consideraes FinaisFamlia, criana, instituio e sociedade contempornea formam um contexto de extrema complexidade e imprevisibilidade. O trabalho com famlias,naredepblica,nospromoveumasensaosemelhantede estarmos sendo levados por uma forte correnteza, tamanha a quantidade eaintensidadedosseuselementosconstitutivos,eaindaasituaode urgncia que nos colocada a todo o momento.Sotantasasquestescomasquaisdeparamos,quesempre experimentamosadificuldadedepriorizarumadelasparaaescritade um texto como este, por exemplo, j que uma questo sempre magnetiza umamultiplicidadedeoutrasqueparecemnopoderserdescartadas: todasimportanteseconstitutivasdarededeproteosfamliascom fragilidade social.Aproblematizaoconstrudaaolongodestetextonoserestringe s famlias em contexto de pobreza, mas tambm s famlias de camadas mais favorecidas da sociedade contempornea. A famlia contempornea, nesse processo de reinveno de si mesma, revela um nvel significativo de vulnerabilidadesubjetiva,ostentandovcuoshierrquicosimportantes na sua constituio, que a torna susceptvel s intervenes externas: o discurso de especialistas (psiclogos, pedagogos, advogados e Juizado).Afamliaquealiavulnerabilidadesocial(misria,desemprego, precriascondiesdemoradia)vulnerabilidadesubjetiva(drogas, prostituio, trfico, abuso sexual) se apresenta como uma usuria crnica 179 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011A famlia contempornea brasileira em contexto de fragilidade social e os novos direitos das crianas: desaos ticosdos servios pblicos, caindo na rede, no sentido de ser aprisionada em sua incapacidade de gerir, de forma autnoma, seus parcos recursos. Aperguntaquecacombasenasquesteslevantadasdotrabalhocom crianas e famlias atendidas pela rede de proteo nos conduz, inevitavelmente, para o campo da tica: possvel auxiliar sem invadir?Acreditamos que somente se acolhermos a complexidade da situao, sem negarmos a tenso inerente convivncia de vrios e poderosos discursos que devastamasparticularidadesdecadasistemafamiliar,poderemosavanar para uma interao de apoio genuno no lugar de uma interao de invaso. RefernciasAlarco, Madalena. (2000). (DES) Equilbrios familiares: uma viso sistmica. Coimbra: Quarteto.Caliman, G. (2006). Desvio social e deliquncia juvenil: teorias e fundamentos da excluso social. Braslia: Universal. Cruz,HelenaMaffei.(2008).Famliaquemcuidademim:narrativasde identidade de jovens adultos criados em abrigo. Rio de Janeiro: Instituto Noos. Figueira, Srvulo Augusto. (1987). Uma nova famlia?: o moderno e o arcaico na famlia de classe mdia brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.Gomes, Denise Mendes. (2000). Mitos familiares: memria e ocultao uma abordagem relacional sistmica. Taubat: Cabral.Krom,Marilene.(2000).Famliaemitosprevenoeterapia:resgatando histrias. So Paulo: Summus.Oliveira, F. (1995). A questo do Estado, vulnerabilidade social e carncia de direitos. Cadernos Abong - rgo da associao brasileira das organizaes no governamentais. Disponvel em .Rocha, C. V. Ideias dispersas sobre o signicado de polticas sociais. In: Mrcia Stengel (org.). Polticas pblicas de apoio sociofamiliar. Belo Horizonte: PUC Minas, 2001.180 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 17, n. 1, p. 161-180, abr. 2011Maria Ignez Costa Moreira, Paula Maria Bedran, Soraia M. S. Dojas CarellosSarti,Cynthia.(2008).Famliasenredadas.In:Acosta,AnaRojas,Vitale, Maria Amlia Faller. (orgs.). Famlia, rede, laos e polticas pblicas. So Paulo: Instituto de Estudos Especiais, PUC SP; Cortez.Sierra, V. M. (2004). A judicializao da infncia: o processo de implantao e execuo do Estatuto da Criana e do Adolescente nas cidades do Rio de Janeiro, Niteri e Maric. Tese de doutorado. Instituto Universitrio de Pesquisa do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.Sierra, V. M. & Mesquista, W. A. (2006). Vulnerabilidades e fatores de risco na vida de crianas e adolescentes. So Paulo em Perspectiva, 20 (1), 148-155, jan./mar. 2006.