Farelo, António - O Renascimento

download Farelo, António - O Renascimento

of 59

Transcript of Farelo, António - O Renascimento

  • Biblioteca da Sala de Convvio da Universidade Aberta

    http://salaconvivio.com.sapo.pt

    Histria Geral da Arte II

    Apontamentos de: Antnio Farelo E-mail: [email protected] A Sala de Convvio da Universidade Aberta um site de apoio aos estudantes da Universidade Aberta, criado por um aluno e enriquecido por muitos. Este documento um texto de apoio gentilmente disponibilizado pelo seu autor, para que possa auxiliar ao estudo dos colegas. O autor no pode, de forma alguma, ser responsabilizado por eventuais erros ou lacunas existentes neste documento. Este documento no pretende substituir de forma alguma o estudo dos manuais adoptados para a disciplina em questo. A Universidade Aberta no tem quaisquer responsabilidades no contedo, criao e distribuio deste documento, no sendo possvel imputar-lhe quaisquer responsabilidades. Copyright: O contedo deste documento propriedade do seu autor, no podendo ser publicado e distribudo fora do site da Sala de Convvio da Universidade Aberta sem o seu consentimento prvio, expresso por escrito.

  • - Histria da Arte II -

    TERCEIRA PARTE

    O RENASCIMENTO

    - 2 -

  • - Histria da Arte II -

    1 A PINTURA, ESCULTURA

    E AS ARTES GRFICAS DO GTICO FINAL

    - 3 -

  • - Histria da Arte II -

    O RENASCIMENTO

    PERANTE O GTICO FINAL

    Sabemos que a conscincia de um Renascimento teve origem italiana e no h dvida que a Itlia desempenhou um papel directivo no desenvolvimento da arte renascentista, pelo menos at comeos do sculo XVI.

    Pelo que toca escultura e arquitectura, o Renascimento comeou pouco depois de 1400. Quanto pintura, porm, a nova era principiou com Giotto que (nas palavras de Boccaccio, de 1350) trouxe luz esta arte que estivera sepultada por muitos sculos. No podemos desprezar um testemunho destes; todavia hesitamos em aceit-lo sem reservas, porque deveramos ento admitir que o Renascimento alvoreceu no campo da pintura em 1300, uma gerao antes de Petrarca.

    BOCCACCIO. preciso compreender que este, ardente discpulo de Petrarca, se interessava sobretudo pelo progresso do humanismo na literatura. Na sua defesa da poesia, achou til estabelecer analogias com a pintura e atribuir a Giotto o papel de Petrarca da pintura. A opinio de Boccaccio, ao considerar Giotto como um artista do Renascimento, um acto de estratgia intelectual. Contudo, a sua opinio tem interesse porque foi o primeiro a aplicar o conceito petrarquiano de renascimento depois da idade das trevas a uma das artes plsticas. Assim d a subentender que o ressurgimento da Antiguidade representa para os pintores um realismo sem compromissos. E isso iria ser um tema constante do pensamento renascentista.

    A Pintura Flamenga Para ir alm do realismo da pintura gtica tornou-se necessria uma segunda revoluo, que comeou simultnea e independentemente em Florena e nos Pases Baixos, em 1420. A revoluo florentina foi a mais sistemtica e a de carcter fundamental, pois abarcou a escultura e a arquitectura, alm da pintura: designada por Proto-Renascimento, termo que no se aplica geralmente ao novo estilo que surgiu na Flandres.

    O GTICO FINAL, A denominao de Gtico Final, no corresponde ao carcter prprio desta pintura flamenga do sculo XV. Indica que os pioneiros desta nova arte, bem ao contrrio dos seus contemporneos da Itlia, no puseram margem o Estilo Internacional, antes o utilizaram como ponto de partida, de modo que a ruptura com o passado foi menos brusca no Norte que no Sul. A expresso Tardo-Gtico tambm nos faz lembrar que, fora da Itlia, a arquitectura do sculo XV permaneceu firmemente enrazada na tradio gtica.

    O ambiente artstico em que viveram foi nitidamente o de um Gtico Final. Os grandes mestres flamengos exerceram uma influncia que se alargou muito alm da sua ptria. Na Itlia foram to admirados como os maiores artistas locais dessa poca, e o seu intenso realismo influi notoriamente na pintura do Proto-Renascimento. Ao invs, a arte

    renascentista italiana pouca impresso causou nas regies ao Norte dos Alpes durante aquele sculo.

    O MESTRE DE FLMALLE. A primeira fase da revoluo pictural na Flandres est representada pelo Mestre de Flmalle (Robert Campin), o principal pintor de Tournai, cuja carreira podemos seguir desde 1406 at sua morte, em 1444. Entre as suas melhores obras avulta o Retbulo de Mrode.

    Pela primeira vez o contemplador tinha a sensao de estar a ver, atravs da superfcie do painel, um mundo espacial com todas as qualidades essenciais da realidade quotidiana: profundidade ilimitada, estabilidade, continuidade e plenitude. Os pintores do Estilo Internacional nunca tinham aspirado a uma tal coerncia: o seu empenho em reproduzir a realidade estava longe de ser absoluto. Os quadros que eles criaram tm a encantadora qualidade de contos de fadas, onde a escala e a relao das coisas podem ser alteradas vontade, onde o mundo real e as fantasias de imaginao se misturam sem conflito. O Mestre de Flmalle, pelo contrrio, resolveu contar a verdade. Com uma determinao quase obsessiva, d a cada mnimo pormenor a mxima realidade concreta definindo-o em todos os aspectos: forma e tamanho prprios; cor, matria e textura da superfcie e modo peculiar de reflectir a iluminao.

    O Retbulo de Mrode leva-nos do mundo aristocrtico do Estilo Internacional ao lar de um burgus flamengo. O Mestre de Flmalle no era um pintor da corte, mas um burgus servindo os gostos dos concidados abastados como os doadores piedosamente ajoelhados porta da casa da Virgem. Este o primeiro painel da Anunciao que tem por cenrio um interior domstico completamente mobilado.

    Este audaz abandono da tradio levantou ao artista um problema que ningum afrontara antes: o de transpor acontecimentos sobrenaturais de um cenrio simblico para um ambiente vulgar sem os fazer parecer triviais ou incongruentes.

    Somos levados a pensar que o Retbulo de Mrode e outros quadros semelhantes constituem uma espcie de charada para o contemplador actual, embora este os possa apreciar sem lhes conhecer o contedo simblico. de crer que fosse o Mestre de Flmalle quem introduziu estes smbolos nas artes plsticas, mas apesar da sua grande influncia pouqussimos artistas os adoptaram.

    O Mestre de Flmalle ou era um homem de invulgar cultura ou estava em contacto com telogos e outros eruditos que podiam inform-lo acerca da significao simblica dos objectos. O artista no se limitou a continuar a tradio simblica da arte medieval, dentro do contexto do novo estilo realista, mas enriqueceu-a e alargou-a.

    Nos painis de Mrode, at os pormenores nfimos so reproduzidos com a mesma aplicao que as figuras sagradas. A pintura do Mestre de Flmalle distingue-se de todas as outras pelo colorido peculiar.

    AS TCNICAS DA TMPERA E DO LEO. Na idade Mdia, a tcnica da pintura em madeira tinha sido fundamentalmente a tmpera, na qual os pigmentos

    - 4 -

  • - Histria da Arte II -

    finamente modos eram diludos (temperados) em gua, a que se adicionava uma substncia aglutinante, gema de ovo, etc. Obtinha-se uma camada de pintura fina que endurecia depressa e podia ser retocada a seco, satisfazendo admiravelmente o gosto medieval pelas superfcies de cores lisas e tons vivos. Contudo, no era possvel realizar uma fuso ou transio suave das cores; alm disso os escuros tendiam a ganhar um aspecto bao e a confundir-se. O Mestre de Flmalle dominou estes srios inconvenientes, empregando o leo como diluente, em vez da mistura de gua e gema de ovo. Foram o Mestre de Flmalle e os seus contemporneos que descobriram as possibilidades artsticas do leo. Substncia viscosa e lenta a secar, permitia obter uma larga variedade de efeitos. Sem o leo, a conquista da realidade visvel pelos mestres flamengos ficaria assaz limitada. Sob o aspecto tcnico, tambm merecem ser chamados os pais da pintura moderna, porque desde ento o leo seria o meio basilar da pintura.

    JAN (E HUBERT) VAN EYCK. O Mestre de Flmalle no foi to longe como Jan van Eyck, um artista de menos idade e maior fama, a quem se atribuiu durante longo tempo a inveno da pintura a leo propriamente dita. Foi, ao mesmo tempo, um pintor burgus e um pintor da corte. Podemos seguir a sua obra desde 1432, atravs de numerosos quadros assinados e datados. A legenda do Retbulo de Gand ou Retbulo do Cordeiro Mstico diz-nos que ele terminara nesse ano o trabalho comeado pelo seu irmo mais velho, Hubert, que morreu em 1426.

    A evoluo anterior de Jan ainda discutida: h vrios quadros eyckianos, manifestamente anteriores ao Retbulo do Cordeiro Mstico e que podem ter sido pintados por qualquer dos irmos. Os mais impressionantes so os painis do Calvrio e do Juzo Final. Os eruditos esto de acordo em situa-los entre 1420 e 1425, quer o autor fosse um ou outro dos irmos.

    O estilo dos dois painis tem muitas qualidades comuns ao Retbulo de Mrode: o fundo interesse pelo mundo visvel, a profundidade espacial ilimitada, as pregas angulosas dos panejamentos. Ao mesmo tempo as formas individuais parecem menos isoladas, menos esculturais; o vigoroso sentido do espao deve-se s subtis gradaes de luz e de cor. Uma anlise atenta do painel do Calvrio, desde as figuras do primeiro plano at distante Jerusalm, e aos cumes nevados do fundo, mostra-nos um decrescimento gradual na intensidade das cores locais e no contraste do claro-escuro.

    Este fenmeno ptico que os Van Eyck foram os primeiros a utilizar plena e sistematicamente o da perspectiva atmosfrica devida limitada transparncia da atmosfera. A perspectiva atmosfrica fundamental para a percepo da profundidade do espao. No h dvida que utilizaram o leo com extraordinrio requinte. Alternando as camadas opacas e translcidas de tinta conseguiram uma tonalidade de brilho suave e ardente que nunca foi igualada.

    Em conjunto, o Calvrio parece singularmente desprovido de dramatismo, como se uma doce serenidade o envolvesse magicamente. S quando nos concentramos nos pormenores, notamos as violentas emoes reflectidas nos rostos da gente apinhada sob a cruz e na dor, contida mas

    profundamente impressionante, da Virgem Maria e dos seus companheiros. No painel do Juzo Final, este duplo aspecto do estilo eyckiano revela-se nos dois extremos: acima do horizonte, tudo ordem, simetria e calma, enquanto abaixo dele na terra e no reino subterrneo de Satans prevalece a condio oposta. As duas situaes correspondem assim ao Cu e ao Inferno.

    O Retbulo do Cordeiro Mstico, o monumento supremo da pintura flamenga primitiva, suscita problemas complexos. A obra, iniciada por Hubert, fora acabada por Jan em 1432. Como o primeiro falecera em 1426, o retbulo foi provavelmente executado entre 1425 e 1432. Embora tenha essencialmente a configurao de um trpico, cada um dos trs elementos composto por quatro painis separados. Reconstruir esta sequncia de acontecimentos e determinar a parte respectiva de cada irmo um jogo fascinante mas eriado de incertezas.

    Apenas as duas tbuas, longas e estreitas, com as figuras de Ado e Eva se poderiam atribuir a Jan. So decerto as mais audaciosas do conjunto e os primeiros nus monumentais da pintura setentrional em madeira.

    Os retratos dos doadores, de esplndida individualidade, tm um lugar importante em qualquer dos retbulos. S com o Mestre de Flmalle, o primeiro artista desde a Antiguidade capaz de reproduzir um rosto humano em primeiro plano e a trs quartos, comeou o retrato a desempenhar um papel preponderante na pintura setentrional.

    Alm dos retratos dos doadores, aparecem agora outros, independentes e mais pequenos, cujo carcter de intimidade faz supor que fossem estimadas lembranas, imagem presente da pessoa ausente. Um dos mais fascinantes o Homem do Turbante Vermelho, de Jan van Eyck, pintado em 1433, que pode muito bem ser um auto-retrato.

    As cidades flamengas onde floresceu o novo estilo de pintura Tournai, Gand, Bruges rivalizavam com as da Itlia como centros da banca e do comrcio internacionais. Entre os seus residentes estrangeiros contavam-se muitos negociantes italianos. Para um deles, Jan van Eyck executou uma das maiores obras-primas dessa poca, o Retrato de Casamento. O jovem casal foi representado no momento de fazer a troca solene dos votos matrimoniais, na intimidade da cmara nupcial.

    ROGIER VAN DER WEYDEN. Rogier van der Weyden (1400-1464), o terceiro grande mestre da pintura flamenga deste perodo, dedicou-se a uma tarefa importante: reencontrar, dentro do quadro do novo estilo criado pelos seus antecessores, o drama emocional do Gtico. Sentimo-lo imediatamente na mais antiga das suas obras-primas, A Descida (1435). Aqui o modelado de uma preciso escultural. Os acontecimentos exteriores (neste caso o desprendimento do corpo de Cristo) importam-lhe menos que o mundo dos sentimentos humanos.

    Nada espanta que a arte de Rogier, que foi definida como sendo ao mesmo tempo, fisicamente mais nua e espiritualmente mais rica que a de Jan van Eyck, tenha servido de exemplo a tantos artistas. Quando morreu, em 1464, a sua influncia j era decisiva na pintura europeia ao

    - 5 -

  • - Histria da Arte II -

    A Pintura na Frana, Sua e Alemanha Norte dos Alpes. Tal foi a autoridade de um estilo cujos ecos se fizeram sentir em quase toda a Europa, com excepo da Itlia, at ao fim do sculo XV. Devemos agora passar os olhos pela arte do sculo XV no

    resto da Europa do Norte. Depois de 1430, o novo realismo dos mestres flamengos comeou a alastrar pela Frana e pela Alemanha at que, em meados do sculo, a sua influncia se tornou suprema, desde a Espanha at ao Bltico. Entre os numerosos artistas a quem se devem adaptaes locais da pintura flamenga, apenas alguns possuram talento bastante para se nos imporem pela vincada personalidade.

    O que verdade nas obras religiosas de Rogier tambm se aplica aos seus retratos. O de Francesco dEste, um nobre italiano residente na corte de Borgonha, talvez nos parea menos vivo que os de Jan van Eyck. Em vez de buscar a serenidade psicologicamente neutra dos retratos de Jan, Rogier interpreta a personalidade humana, suprimindo alguns traos e acentuando outros. Por consequncia, diz-nos mais da vida ntima e menos da aparncia exterior.

    WITZ. Um dos mais antigos e originais foi Conrad Witz de Basileia (1400-1446), a cujo retbulo para a catedral de Genebra, pintado em 1444, pertence um notvel painel. Witz no se limitou, porm, a seguir as pisadas desses grandes percursores: conseguiu traduzir os efeitos pticos aquticos como nenhum outro pintor do seu tempo.

    HUGO VAN DER GOES. Entre os pintores seguintes, raros escaparam sombra do grande mestre. O mais dinmico de todos eles foi Hugo van der Goes (1440-1482), um gnio infeliz cujo trgico fim nos evoca uma personalidade instvel.

    A sua obra mais ambiciosa, o imenso retbulo que terminou em 1476 uma realizao impressionante. Nos volantes, por exemplo, os membros ajoelhados da famlia Portinari parecem anes, ao p dos santos patronos, cuja estatura gigantesca os caracteriza como seres de ordem superior. Esta variao de escala, embora seja clara a sua inteno simblica e expressiva, afasta-se da lgica de experincia quotidiana.

    FOUQUET. Na Frana, o pintor Jean Fouquet (1420-1481), logo pouco depois de aprender o ofcio teve a rara fortuna de realizar uma longa visita Itlia, em 1445. Da que a sua obra represente uma combinao nica de elementos flamengos e do Proto-Renascimento, sem deixar de permanecer tipicamente setentrional. No painel esquerdo de um dptico, pintado em 1450, em que representou tienne Chevalier e Santo Estvo, revela superior mestria como retratista; a influncia italiana pode ver-se no estilo da arquitectura e na solidez e no peso estaturios das duas figuras.

    GEERTGEN TOT SINT JANS. Durante o ltimo quartel do sculo XV no houve na Flandres pintores comparveis a Hugo van der Goes e os artistas mais originais apareceram mais ao Norte, na Holanda. A um deles, Geertgen Tot Sint Jans, de Haarlem, que morreu em 1495, devemos o encantador Nascimento. A ideia de um Nascimento nocturno, iluminado apenas pelo claro que irradia do Menino, remonta ao Estilo Internacional, mas Geertgen Tot Sint Jans, aplicando as descobertas picturais de Jan van Eyck, deu nova e intensa realidade ao tema.

    A PIET DE AVINHO. Um estilo flamengo, influenciado pela arte italiana, caracteriza tambm a mais famosa de todas as pinturas do sculo XV, a Piet de Avinho. Como o seu ttulo indica, o painel vem do extremo sul de Frana, executado provavelmente por um artista da regio, que deve ter conhecido a arte de Rogier van der Weyden, porque o tipo das figuras e o contedo expressivo desta Piet no podiam derivar de outra fonte. Ao mesmo tempo, o traado, magnificamente simples e estvel, mais italiano que flamengo.

    BOSCH. Hieronymus Bosch, solicita o nosso interesse pelo mundo dos sonhos. A sua obra, plena de imagens fantsticas e aparentemente irracionais, mostrou-se to difcil de interpretar que grande parte dela se mantm indecifrvel.

    A Escultura do Gtico Final Podemos constat-lo se analisarmos o trpico conhecido por Jardim das Delcias, a mais rica e a mais enigmtica das pinturas de Bosch. Dos trs painis, apenas o da esquerda representa um tema claramente identificvel: o Jardim do Paraso. No postigo da direita, uma cena de pesadelo, com runas em chamas e fantsticos instrumentos de tortura, representa com certeza o Inferno.

    Se tivssemos que definir a arte ao Norte dos Alpes numa s frase, poderamos cham-la o primeiro sculo da pintura de painel, pois esta exerceu to acentuado domnio no perodo de 1420 a 1500 que os seus cnones se aplicaram iluminura, ao vitral e at escultura. Lembremos que no fim do sculo XIII a escultura arquitectnica cedera a vez a obras de uma escala mais familiar: imagens de devoo, sepulcros, plpitos, etc. No painel central v-se uma paisagem muito parecida do

    Paraso, povoada de uma multido de homens e mulheres nuas, em variadssimas atitudes. Raros se entregam abertamente a actividades erticas, mas no h dvida de que as delcias neste jardim so as do desejo carnal. As aves, frutos, etc., so smbolos ou metforas que Bosch emprega para descrever a vida na terra como uma interminvel repetio do pecado original de Ado e Eva.

    O que ps termo ao Estilo Internacional na escultura da Europa foi a influncia do Mestre de Flmalle e de Rogier van der Weyden, evidente nas obras de numerosos escultores, at 1500. Os objectivos da escultura do Gtico Final identificaram-se com os da pintura. O Anjo Voando de um quadro do Mestre de Flmalle, (1420), contm j todos os traos principais de um anjo talhado por um excelente escultor alemo quase cem anos depois. Bosch foi um severo moralista que concebia as suas

    pinturas como sermes visuais em que cada pormenor estava encarregado de significao instrutiva.

    MICHAEL PACHER. As obras mais caractersticas do Gtico Final so os retbulos de altar, por vezes de enorme

    - 6 -

  • - Histria da Arte II -

    tamanho e de pormenores incrivelmente complicados, peas especialmente apreciadas nos pases germnicos. Um dos mais belos o da Coroao da Virgem, devido ao escultor e pintor tirols Michael Pacher (1435-1498). As suas formas profusamente douradas e coloridas oferecem um espectculo deslumbrante, surgindo da profundidade sombria do fundo. As figuras e o cenrio parecem fundir-se numa configurao de linhas agitadas e retorcidas onde apenas as cabeas sobressaem com autonomia.

    O RENASCIMENTO

    PERANTE O GTICO FINAL

    A Tipografia Neste ponto, devemos tomar nota de um outro facto importante ao Norte dos Alpes: o desenvolvimento das tcnicas de impresso, tanto de imagens como de livros. A nova tcnica espalhou-se por toda a Europa e converteu-se numa indstria do mais profundo alcance na civilizao ocidental. As imagens impressas tiveram quase a mesma importncia: sem elas, o livro impresso no poderia substituir a obra do copista e do iluminador medievais to rpida e completamente.

    A IMPRENSA E O OCIDENTE: O papel e o processo de imprimir com blocos de madeira foram conhecidos no Ocidente durante a Baixa Idade Mdia, mas o papel, como sucedneo barato do pergaminho, foi ganhando terreno muito devagar, enquanto a impresso s era empregada na estampagem de padres ornamentais em tecidos. Espantoso foi o desenvolvimento desde 1400 de uma tcnica de impresso superior do Extremo Oriente e de uma importncia cultural imensamente maior. Tcnica que se manteve desde 1500 at Revoluo Industrial sem modificaes essenciais.

    A Gravura em Madeira A ideia de imprimir ilustraes em papel, mediante pranchas de madeira gravadas, parece ter surgido na Europa setentrional j no fim do sculo XIV. Muitos dos exemplos mais antigos destes desenhos impressos chamados

    gravuras em madeira ou xilografias so alemes, outros flamengos e alguns franceses; todos apresentam as caractersticas do Estilo Internacional. provvel que os desenhos fossem devidos a pintores ou escultores, mas as pranchas de madeira eram talhadas pelos artfices especializados. Por consequncia, as primeiras gravuras de madeira, como a Santa Doroteia, tm um traado plano e ornamental; as formas so definidas por linhas simples e grossas, com pouca preocupao pelos efeitos tridimensionais. Como as formas contornadas deviam ser coloridas, essas estampas lembram muitas vezes os vitrais.

    As gravuras em madeira do sculo XV foram trabalhos da arte popular, de um nvel que no atraa mestres de grande talento at 1500. Uma s prancha fornecia milhares de cpias, vendidas por alguns centavos cada, o que, pela primeira vez na nossa histria, punha ao alcance de toda a gente a posse de imagens.

    A Gravura Quem teve a ideia de fazer tipos metlicos buscou certamente a colaborao de algum ourives para resolver os problemas tcnicos do fabrico. As pranchas de metal so gravadas com um instrumento de ao. A tcnica de embelezar superfcies de metal com imagens gravadas j era conhecida na Antiguidade e continuo a ser praticada durante a Idade Mdia. Assim, nem foi preciso inventar qualquer processo novo para gravar as placas que serviam de matrizes na impresso em papel. Depois de dar tinta nos traos abertos na placa, limpava-se a superfcie desta, colocava-se-lhe em cima uma folha de papel humedecido e metia-se na prensa.

    A ideia de gravar em cobre nasceu aparentemente do desejo de se encontrar um processo mais requintado e flexvel que o da xilogravura (numa prancha de madeira, as linhas so protuberantes: quanto mais finas, mais difceis de talhar). As gravuras em metal logo gozaram do favor de um pblico escolhido e de maior requinte. As primeiras que conhecemos datam de 1430, e revelam j a influncia dos grandes pintores flamengos. Quase logo de incio circulam estampas datadas e assinadas. Por isso conhecemos os nomes da maioria dos gravadores importantes do ltimo tero do sculo XV. Especialmente na regio do Alto Reno h uma tradio contnua de bons gravadores.

    - 7 -

  • - Histria da Arte II -

    2 O PROTO-RENASCIMENTO

    EM ITLIA

    - 8 -

  • - Histria da Arte II -

    Por volta de 1400, o Estado florentino enfrentava uma sria ameaa sua independncia. O poderoso duque de Milo tentava dominar toda a Itlia e j tinha subjugado a maior parte das cidades-estados da zona central. Florena constitua o nico obstculo srio sua ambio: a cidade ops-lhe uma rigorosa e bem sucedida resistncia em trs frentes, militar, diplomtica e intelectual. Florena conseguiu ter por si a opinio pblica, ao proclamar-se defensora da liberdade contra a tirania.

    Esta guerra de propaganda era chefiada, de ambos os lados, por humanistas, mas os florentinos deram melhor conta de si. Os seus escritos, tais como o Louvor da cidade de Florena (1402), de Leonardo Bruni, vieram pr de novo em foco o ideal petrarquiano dum renascimento dos Clssicos.

    O orgulho patritico e o apelo grandeza implcitos nesta imagem de Florena como a Nova Atenas devem ter despertado um profundo entusiasmo na cidade, porque os Florentinos lanaram-se numa ambiciosa campanha para levar a termo os grandes empreendimentos artsticos comeados um sculo antes, na poca de Giotto. Um extenso programa de decorao escultrica foi prosseguido em diversas igrejas, enquanto se dava andamento aos planos para a construo da cpula da Catedral, o maior e mais difcil de todos os projectos.

    Desde logo, as artes plsticas foram tidas por essenciais para o ressurgimento da alma florentina. No foi por acaso que a primeira declarao explcita a reclamar para elas a honra de serem includas entre as artes liberais se deveu a um cronista florentino, em 1400. Um sculo mais tarde, j esta promoo dos artistas se tornara corrente em toda a Europa Ocidental. Que importncia tinha esta valorizao social? Desde Plato, as artes liberais compreendiam tradicionalmente as disciplinas julgadas necessrias educao do homem culto, como a Matemtica (incluindo a Teoria da Msica), a Dialctica, a Gramtica, a Retrica e a Filosofia: as Belas-Artes ficavam excludas do grupo porque eram trabalho manual, a que faltava uma base terica. Em breve, tudo o que sasse das mos de um grande mestre seria avidamente coleccionado.

    FLORENA: 1400-1450

    A Escultura A primeira metade do sculo XV (o Quattrocento) foi a idade herica do Proto-Renascimento. A campanha artstica a que dera incio o concurso para as portas do Baptistrio ficou limitada por algum tempo, aos projectos escultricos. O baixo-relevo apresentado por Ghiberti no se afasta significativamente do Gtico Internacional, e o mesmo sucede com as portas do Baptistrio.

    NANNI DI BANCO. Uma dezena de anos aps o concurso, este classicismo medieval e limitado foi transposto por um artista mais novo, Nanni di Banco (1384-1421). Os quatro santos, chamados os Quattro Coronati que ele executou em

    1410-14 devem ser comparados Visitao de Reims. As figuras de ambos os grupos so quase de tamanho natural, mas as de Nanni parecem maiores que as de Reims; pela massa e pela monumentalidade revelam-se fora do alcance da escultura medieval. Apenas o segundo e o terceiro Coronati fazem lembrar obras caractersticas da escultura romana.

    Morreu em 1421, deixando quase acabado o enorme relevo da Assuno da Virgem que encima o segundo portal Norte da Catedral de Florena. O estilo desta figura est to longe do classicismo dos Coronati como do Gtico Internacional. Antes faz lembrar os anjos alados do Gtico Final, como os do Mestre de Flmalle. Ambos tinham descoberto como representar, de maneira convincente, figuras em voo: envolvendo-as em roupagens leves e soltas, cujo desenho e formas demonstram a fora sustentadora do vento. O anjo de Nanni preenche as roupagens com o seu vigoroso movimento. Esta figura parece impelir-se a si prpria, enquanto o seu equivalente setentrional, imvel, apenas fica pairando no espao.

    O PRIMEIRO PERODO DE DONATELLO. Se compararmos os dois anjos, notamos que a arte do Proto-Renascimento, em contraste com o Gtico-Final, procura encarar o corpo humano de um modo semelhante ao da Antiguidade Clssica. O homem que mais contribuiu para reafirmar esta atitude foi Donatello, o maior escultor do seu tempo. Nascido em 1386, foi, entre os fundadores do novo estilo, o nico que ultrapassou os meados do sculo XV. Juntamente com Nanni, Donatello passou a primeira parte da sua carreira trabalhando em encomendas para a Catedral e para Or San Michele.

    So Marcos de Donatello a primeira esttua, desde a Antiguidade, que consegue captar de novo o pleno significado do contraposto clssico. Nesta obra que marca verdadeiramente uma poca, o jovem Donatello dominou o que constitui a realizao principal da escultura antiga.

    Poucos anos mais tarde (1415-17), Donatello esculpiu outra esttua para Or San Michele, o famoso S. Jorge. o Soldado Cristo, tal como o viu o Proto-Renascimento.

    Donatello produziu aqui outra obra revolucionria, ao criar um novo tipo de baixo-relevo pouco saliente (da ser chamado schiacciato, achatado), mas que d uma iluso de infinita profundidade pictrica. A impressionante paisagem, atrs das figuras, compe-se inteiramente de brandas modulaes da superfcie do mrmore onde a luz captada sob muitos ngulos diferentes.

    No campanrio da Catedral de Florena, construdo de 1334 a 1357, erguia-se uma fila de altos nichos gticos destinados a albergar esttuas. S metade estavam preenchidos quando, entre 1416 e 1435, Donatello executou cinco esttuas para os outros. A obra mais notvel desta srie a imagem do profeta no identificado que recebeu a alcunha de Zuccone, e que goza de fama especial como exemplo marcante do realismo do Mestre.

    PERSPECTIVA: DONATELLO E GHIBERTI. Donatello aprendera a tcnica de esculpir em bronze quando, ainda jovem, trabalhara sob a direco de Ghiberti nas portas do

    - 9 -

  • - Histria da Arte II -

    Baptistrio. Mas em 1420 j rivalizava nessa arte com o antigo mestre.

    Embora os mtodos empricos tambm pudessem dar resultados impressionantes, a perspectiva matemtica tornou possvel a representao de um espao tridimensional numa superfcie plana.

    Donatello executava o Festim de Herodes quando Ghiberti foi encarregado de fazer outras duas portas de bronze para o Baptistrio de Florena. Estas mostram bem como o artista, sob a influncia de Donatello e dos outros pioneiros do novo estilo, se converteu s concepes do Proto-Renascimento.

    O NU CLSSICO: JACOPO DELLA QUERCIA E DONATELLO. Fora de Florena, o nico grande escultor deste perodo foi Jacopo della Quercia, de Siena (1374-1438). Como Ghiberti, tambm mudou de estilo, do Gtico para o Proto-Renascimento, a meio da sua carreira, em especial por influncia de Donatello. No teve qualquer influncia na arte florentina at ao final do sculo, altura em que fascinou o jovem Miguel ngelo, cuja admirao foi suscitada pelas cenas do Gnesis que enquadravam a porta principal da igreja de S. Petrnio em Bolonha, entre elas a Criao de Ado.

    O estilo destes relevos conservador mas as figuras so arrojadas e profundamente impressionantes. Aqui, o corpo nu exprime outra vez a dignidade e o poder do homem, como na Antiguidade Clssica.

    Vale a pena compar-lo obra que muito provavelmente o inspirou, um Ado no Paraso, de um dptico de marfim, dos primeiros sculos do Cristianismo. E foi nesta condio ressequida que o nu clssico entrou na tradio medieval. Sempre que nos aparece o corpo despido entre 800 e 1400, podemos ter a certeza de que ele deriva, directa ou indirectamente, de uma fonte clssica. Para a mentalidade medieval, a beleza fsica dos dolos antigos, em especial a das esttuas nuas, incarnava a atraco insidiosa do paganismo que era preciso evitar.

    O sculo XV redescobriu a beleza sensual do corpo nu, mas por duas vias diferentes. O Ado e Eva de Jan van Eyck ou os nus de Bosch no tm precedentes quer na arte antiga, quer na medieval. Na verdade, no esto nus mas despidos so pessoas que normalmente andam vestidas e que por quaisquer razes aparecem despojadas das suas roupas. Por outro lado, o Ado de Jacopo della Quercia est claramente nu, no pleno sentido clssico, tal como o David de Donatello, uma realizao ainda mais revolucionria da escultura proto-renascentista a primeira esttua nua de tamanho natural, desde a Antiguidade, dotada de verdadeira autonomia. A Idade Mdia no vacilaria em conden-la como um dolo, e os contemporneos de Donatello tambm no deviam ter-se sentido vontade diante dela. Durante muitos anos, foi nica no seu gnero.

    Assim, a esttua deve ser entendida como um monumento pblico cvico-patritico, que identifica David com Florena, e Golias com Milo.

    DONATELLO: PDUA E DEPOIS. Donatello foi chamado a Pdua em 1443 para fazer o monumento

    equestre de Gattamelata, comandante dos exrcitos venezianos, que morrera havia pouco.

    Quando Donatello voltou a Florena, depois de dez anos de ausncia, deve ter-se sentido como um estranho. O clima, poltico e espiritual tinha mudado, o gosto dos artistas e do pblico tambm. As suas obras seguintes, entre 1453 e 1466, no se integram na tendncia predominante. O individualismo extremo do seu ltimo estilo confirma a reputao de Donatello como o primeiro gnio solitrio entre os artistas renascentistas.

    A Arquitectura BRUNELLESCHI. Donatello no criou sozinho o estilo escultrico do Proto-Renascimento. Pelo contrrio, a nova arquitectura ficou a dever a sua existncia a um s homem, Filippo Brunelleschi (1377-1446), que comeou a sua carreira como escultor. Esteve em Roma com Donatello. A estudou monumentos da arquitectura antiga e parece que foi o primeiro a medi-los com rigor. Em 1417-19 encontramo-lo de novo a competir com Ghiberti, desta vez para a construo da cpula da Catedral.

    A grande realizao de Brunelleschi foi ter construdo a cpula em dois grandes cascos separados (um dentro do outro), engenhosamente ligados de forma a reforarem-se mutuamente.

    San Lorenzo. Em 1419, quando estava a trabalhar nos planos finais para a cpula, Brunelleschi teve a primeira oportunidade de criar edifcios integralmente concebidos por ele, graas ao chefe da famlia Mdici, um dos principais mercadores e banqueiros de Florena, que lhe encomendou uma sacristia nova para a Igreja romnica de San Lorenzo. Os planos que traou impressionaram de tal maneira o seu cliente que este lhe pediu um projecto para refazer a igreja toda.

    primeira vista, a planta chega a parecer pouco original. A originalidade reside na acentuao da simetria e da regularidade. O traado inteiramente composto de unidades quadradas.

    Brunelleschi concebeu San Lorenzo como um agrupamento de blocos espaciais abstractos, sendo os maiores simples mltiplos da unidade padro. Compreendido isto, j faremos uma ideia de quanto ele foi revolucionrio, pois tais compartimentos claramente definidos e separados representam um afastamento total relativamente s concepes dos arquitectos do Gtico.

    O interior confirma a nossa expectativa. Uma ordem fria e esttica substituiu agora o calor emocional e o contnuo movimento espacial dos interiores das igrejas gticas.

    Propores Arquitecturais. Brunelleschi estava convencido de que o segredo da boa arquitectura residia em dar as propores exactas a todas as medidas principais de um edifcio. Acreditava que os Antigos conheciam este segredo e tentou redescobri-lo.

    Podemos dizer que a razo principal que nos impe San Lorenzo como produto de um esprito superior nico o

    - 10 -

  • - Histria da Arte II -

    sentido das propores de Brunelleschi, afirmado em cada pormenor.

    No ressurgimento das formas clssicas, a arquitectura do Renascimento encontrou um vocabulrio padro. A teoria das propores harmnicas deu-lhe uma espcie de sintaxe, quase sempre ausente da arquitectura medieval. O ressurgimento das formas e propores clssicas deu azo a que Brunelleschi transformasse o vernculo arquitectnico da sua regio num sistema estvel, preciso e articulado. A nova racionalidade das suas concepes difundiu-se logo pela Itlia e a pouco e pouco por todo o Norte da Europa.

    A Capela dos Pazzi. Entre os edifcios de Brunelleschi que perduraram, nem uma nica fachada conserva o seu traado original, sem alteraes posteriores de outras mos. A prpria fachada da capela dos Pazzi j no pode ser considerada uma excepo. A capela foi comeada em 1430, mas Brunelleschi (que morreu em 1446) no pode ter planeado a fachada actual, que data de 1460. No obstante, uma criao assaz original, em tudo diferente de qualquer frontaria de Idade Mdia.

    S. Spirito e Sta. Maria degli Angeli. Ao principiar a dcada de 1430, quando a cpula da Catedral estava quase pronta, a evoluo de Brunelleschi como arquitecto entrou em nova e decisiva fase. O traado da igreja de S. Spirito pode ser tido por uma verso aperfeioada de San Lorenzo: os quatro braos do cruzeiro so iguais, a nave principal distingue-se das colaterais apenas pelo seu maior comprimento e toda a estrutura parece envolvida pela sequncia ininterrupta de naves e capelas. Estas constituem o trao mais surpreendente de S. Spirito.

    Na Igreja de Sta. Maria degli Angeli, a que Brunelleschi deu incio quase na mesma data da obra de S. Spirito, esta nova tendncia atinge o ponto culminante: uma igreja de cpula e planta centradas a primeira do Renascimento inspirada nas estruturas circulares e poligonais dos tempos romanos e do primeiro perodo do Cristianismo.

    MICHELOZZO. O macio estilo de Sta. Maria degli Angeli permite explicar a grande desiluso dos ltimos anos de Brunelleschi, quando o projecto para o palcio dos seus patronos, os Medici, foi rejeitado. Esta famlia ascendera a tal poderio que desde 1420 lhe pertencia o governo de Florena. Por esse motivo era de boa prudncia evitar qualquer ostentao que, por excessiva, casse mal na opinio pblica. Se o projecto de Brunelleschi seguisse o estilo de Sta. Maria degli Angeli, ficaria provavelmente com tal magnificncia, inspirada na arte imperial romana, que os Medici no poderiam arriscar-se a um empreendimento to grandioso. A encomenda foi dada a um arquitecto mais novo e menos notvel, Michelozzo (1396-1472). O traado recorda os velhos palcios-fortalezas florentinos, com modificaes que seguem os princpios de Brunelleschi.

    A Pintura MASACCIO. A pintura do Proto-Renascimento apenas se manifestou a partir de 1420. Este novo estilo foi lanado por um jovem gnio chamado Masaccio, que tinha ento

    apenas vinte e um anos (nasceu em 1401) e que morreu aos vinte sete.

    A mais antiga das suas obras que pode ser datada com certa segurana um fresco de 1425 em Sta. Maria Novella, representando a Santssima Trindade com Nossa Senhora e S. Joo Evangelista com os donatrios. O mundo de Masaccio um reino de grandeza monumental e no a realidade concreta de cada dia do Mestre de Flmalle. O que o fresco da Trindade traz mente no o estilo do passado imediato, mas a arte de Giotto, no sentido de grande escala, na severidade da composio, no volume escultural. Para Giotto, o corpo e as roupagens formam um todo nico, como se fossem ambos da mesma substncia; as figuras de Masaccio, como as de Donatello, so nus vestidos, pois as roupas pendem como verdadeiro tecido. O cenrio, igualmente moderno, revela um perfeito domnio da nova arquitectura de Brunelleschi e da perspectiva cientfica.

    O maior conjunto de obras de Masaccio que chegou at ns constitudo pelos frescos da Capela Brancacci em Sta. Maria del Carmine. O Pagamento do Tributo o mais famoso dentre eles. Ilustra, pelo velho mtodo conhecido como narrativa contnua, a histria do Evangelho Segundo S. Mateus. Masaccio utiliza aqui os mesmos processos empregados pelo Mestre de Flmalle e pelos van Eyck regula o afluxo da luz e usa a perspectiva atmosfrica nos tons subtilmente cambiantes da paisagem.

    As figuras em O Pagamento do Tributo patenteiam, ainda mais do que as do fresco da Trindade, a capacidade de Masaccio para combinar o peso e o volume das figuras de Giotto com a nova viso funcional do corpo e das roupagens. A narrativa -nos transmitida mais pelos olhares intensos do que pelo movimento fsico. Mas num outro fresco da Capela Brancacci, A Expulso do Paraso, Masaccio prova decisivamente a sua capacidade de representar o corpo humano em movimento.

    Embora possusse um temperamento de pintor mural, Masaccio era igualmente versado na pintura de painel. O seu grande polptico, feito em 1426 para a Igreja das Carmelitas de Pisa, veio a dispersar-se por vrias coleces.

    No constitui surpresa, depois do fresco da Trindade, que Masaccio substitua o trono gtico ornamentado mas frgil de Giotto por um slido e austero assento de pedra, no estilo de Brunelleschi.

    FRA FILIPPO LIPPI. A morte prematura de Masaccio deixou um vazio que no foi preenchido durante bastante tempo. Entre os seus contemporneos mais jovens, apenas Fra Filippo Lippi (1406-69) parece ter tido um contacto mais chegado com ele. O primeiro trabalho datado de Fra Filippo, a Nossa Senhora no Trono de 1437, evoca, em vrios aspectos importantes, a Virgem de Masaccio a luz, o trono pesado, as macias figuras tridimensionais, as pregas tombantes do manto. Mas faltam-lhe a monumentalidade e a austeridade de Masaccio.

    Temos de salientar um aspecto novo desta Virgem: o interesse do pintor pelo movimento, evidente nas figuras e no drapeado do manto. Estes efeitos j se encontravam nos baixos-relevos de Donatello e de Ghiberti. No de

    - 11 -

  • - Histria da Arte II -

    estranhar que estes dois artistas tenham exercido uma influncia to forte na pintura florentina na dcada a seguir morte de Masaccio. A idade, a experincia e o prestgio deram-lhes uma autoridade que nenhum outro pintor florentino de ento conseguiu igualar.

    FRA ANGELICO. Se Fra Filippo dependeu mais de Donatello que de Ghiberti, sucedeu o contrrio ao seu contemporneo, um pouco mais velho, Fra Angelico (1400-1455). Quando o Mosteiro de So Marcos em Florena foi reconstrudo (1437-1452), Fra Angelico embelezou-o com numerosos frescos. grande Anunciao deste ciclo tem sido atribuda a data de 1440. Fra Angelico conserva aqueles aspectos de Masaccio a sua dignidade, franqueza e ordem espacial que Fra Filippo tinha rejeitado. Mas as suas figuras jamais alcanaram a segurana fsica e psicolgica que caracterizava a imagem do homem no Proto- Renascimento.

    DOMENICO VENEZIANO. Em 1439, instalou-se em Florena um talentoso pintor de Veneza, Domenico Veneziano. Deve ter simpatizado com o esprito da arte proto-renascentista, porque cedo se tornou um Florentino de adopo e um mestre de grande importncia na sua nova ptria. A Virgem com o Menino e Santos, um dos primeiros exemplos de um novo tipo de painel de altar que veio a ser popularssimo a partir dos meados do sculo a chamada Sacra Conversazione (Conversa Sagrada). O esquema inclui uma Virgem no Trono, enquadrada por elementos arquitectnicos e ladeada por santos que parecem conversar com ela, com o contemplador ou entre si. A Sacra Conversazione notvel tanto pelo esquema de cores como pela composio.

    PIERO DELLA FRANCESCA. Quando Domenico Veneziano se estabeleceu em Florena teve como ajudante um rapaz do Sudoeste da Toscana, chamado Piero della Francesca (1420-1492), depois o seu discpulo mais importante e um dos artistas verdadeiramente grandes do Proto-Renascimento. O estilo de Piero reflectia, ainda mais fortemente que o de Domenico, os objectivos de Masaccio. Durante uma longa carreira manteve-se na mesma senda do fundador da pintura do Renascimento italiano, enquanto o gosto florentino evolua, aps 1450, num sentido diferente.

    A obra mais importante de Piero o ciclo de frescos na capela-mor da igreja de S. Francisco, em Arezzo, que ele pintou entre 1452 e 1459. Os numerosos episdios representam a Lenda da Vera Cruz (a origem e histria da cruz em que Cristo foi pregado).

    Os laos de Piero com Domenico Veneziano esto bem patentes nas cores que usa. A tonalidade deste fresco, embora menos luminosa que na Sacra Conversazione, igualmente dourada, evocando, de forma muito semelhante, a luz do Sol pela manh. Mas as figuras de Piero tm uma grandeza austera que faz recordar Masaccio ou at Giotto, mais que Domenico.

    UCELLO. Na Florena dos meados do sculo XV havia apenas um pintor que partilhava a devoo de Piero pela perspectiva: Paolo Ucello (1397-1475). A sua Batalha de San Romano, pintada aproximadamente ao mesmo tempo que os frescos de Piero em Arezzo, revela uma extrema preocupao com as formas estereomtricas. Nas mos de

    Ucello, a perspectiva produz efeitos estranhamente perturbadores e fantsticos. O que d unidade sua pintura no a construo espacial, mas os efeitos de superfcies, decorativamente reforados por manchas de cor brilhante e pelo uso abundante do ouro.

    Nascido em 1397, Ucello tinha sido formado no estilo gtico da pintura, e s nos anos de 1430 se deixou converter, pela nova cincia da perspectiva, s concepes proto-renascentistas.

    CASTAGNO. A terceira dimenso no apresentava qualquer dificuldade para Andrea del Castagno (1423-1457), o mais dotado pintor florentino da gerao de Piero della Francesca. Menos subtil mas mais vigoroso que Domenico, Castagno consegue captar um pouco da monumentalidade de Masaccio, na sua ltima Ceia, um dos frescos que pintou no refeitrio do Convento de Sta. Apollonia. Uns cinco anos depois da ltima Ceia, entre 1450 e 1457, Castagno executou o admirvel David.

    O CENTRO E O NORTE

    DA ITLIA: 1450-1500

    medida que os fundadores do Proto-Renascimento e seus sucessores imediatos, foram desaparecendo, comeou a afirmar-se nos meados do sculo uma gerao mais jovem. Ao mesmo tempo, as sementes lanadas pelos mestres florentinos noutras regies da Itlia comearam a dar fruto. Quando algumas destas regies, especialmente o Nordeste, produziram verses distintas do novo estilo, a Toscana perdeu a posio privilegiada de que gozara at ento.

    A Arquitectura ALBERTI. A morte de Brunelleschi, em 1446, trouxe ao primeiro plano da arquitectura Leone Battista Albert (1404-72), que tal como Brunelleschi s muito tarde comeou a exercer a sua actividade como arquitecto. At perfazer quarenta anos, Alberti parece ter estado interessado nas Belas-Artes unicamente como arquelogo e teorizador. Estudou os monumentos da antiga Roma, comps os primeiros tratados do Renascimento sobre escultura e pintura.

    O Palcio Rucellai. O projecto para o Palcio Rucellai parece uma crtica de Alberti ao Palcio Medici. Alberti resolveu aqui um problema que se tornou fundamental na arquitectura do Renascimento: como aplicar um sistema clssico de articulao ao exterior duma estrutura no-clssica.

    S. Francesco, Rimini. Para o seu primeiro exterior de igreja, Alberti tentou uma alternativa radicalmente diversa. O senhor de Rimini contratou-o em 1450, para transformar a igreja gtica de S. Francesco num Templo da Fama. Alberti revestiu o velho edifcio com um invlucro renascentista.

    - 12 -

  • - Histria da Arte II -

    O sistema clssico de S. Francesco conserva em demasia o seu carcter romano antigo para se adaptar forma de uma fachada de baslica.

    LUCA DELLA ROBBIA. parte Ghiberti, o nico escultor de nota em Florena depois da partida de Donatello foi Luca della Robbia (1400-82). Ganhara reputao desde os anos de 1430, com os relevos de mrmore da Cantoria ou plpito dos cantores, na Catedral. Sto. Andr, Mntua. S para o fim da sua carreira, Alberti

    encontrou a soluo adequada. Na majestosa fachada de Sto. Andr de Mntua, desenhada em 1470, sobreps uma frontaria de templo clssico no motivo do arco triunfal, agora com um enorme nicho ao centro. To empenhado estava Alberti em sublinhar a coeso interior da fachada que lhe deu largura igual altura.

    At ao fim da sua longa carreira, dedicou-se quase exclusivamente escultura de terracota um material mais barato e menos exigente que o mrmore que revestia de vidrados, semelhantes a esmalte, para esconder a superfcie do barro e lhe aumentar a resistncia. Os seus melhores trabalhos nesta tcnica tm o encanto dos painis da Cantoria. O vidrado branco das figuras e da moldura d a impresso de mrmore, destacado sobre o azul forte do fundo. Mais tarde, a qualidade do modelado deteriorou-se e simples harmonia de branco e azul sucedeu uma variedade de tons mais vivos. Ao findar o sculo, a oficina de della Robbia tornara-se numa fbrica, produzindo s dzias pequenos painis da Virgem e retbulos de cores berrantes para igrejas de aldeia.

    A IGREJA DE PLANTA CENTRADA. O Tratado de arquitectura de Alberti explica que a planta das igrejas deveria ser circular, ou de forma derivada do crculo, porque o crculo a forma mais perfeita e a mais natural, e por isso uma imagem directa da razo divina.

    Este argumento assenta na crena de Alberti na validade divina das propores matematicamente determinadas; mas como podia ele concilia-la com a evidncia histrica? Com efeito, a planta tpica dos templos antigos e das primitivas igrejas crists era longitudinal.

    Porque Luca abandonou quase totalmente o trabalho do mrmore, houve uma notria falta de bons escultores neste material na Florena em 1440 e anos seguintes. Quando Donatello regressou a carncia j fora suprimida por um grupo de artistas, quase todos com pouco mais de vinte anos, oriundos das povoaes dos montes de Norte e Leste da cidade.

    A igreja de Alberti requer um traado harmonioso como uma revelao divina e que suscite a piedosa contemplao dos fiis. Erguendo-se isolada, acima do mundo quotidiano que a envolve, deveria ser iluminada por aberturas situadas na parte superior, para que, atravs dela, apenas se pudesse ver o cu. BERNARDO ROSSELLINO. O mais velho de todos eles,

    Bernardo Rossellino (1409-64), parece ter comeado a carreira como escultor e arquitecto em Arezzo. Estabeleceu-se em Florena em 1436 mas s oito anos mais tarde receberia encomendas de importncia, quando lhe confiaram a execuo do tmulo de Leonardo Bruni. Este grande humanista e homem de Estado havia desempenhado um papel vital na cidade desde o comeo do sculo. Por sua morte, em 1444, fizeram-lhe um solene funeral maneira dos Antigos e o seu monumento funerrio deve ter sido encomendado pelas autoridades.

    Quando Alberti formulou estas ideias no seu Tratado de 1450, apenas poderia ter citado a revolucionria Sta. Maria degli Angeli, de Brunelleschi, como exemplo moderno de uma igreja de planta centrada. Mas, para o fim do sculo XV, depois de o seu Tratado se tornar largamente conhecido, esta planta ganhou aceitao geral. Enter 1500 e 1525 esteve em voga na arquitectura do Renascimento Pleno.

    GIULIANO DA SANGALLO. Santa Maria delle Carceri, em Prato, um dos primeiros e mais distintos exemplos desta tendncia, foi comeada em 1485. O seu arquitecto, Giuliano da Sangallo (1443-1516), deve ter sido um admirador de Brunelleschi mas a configurao essencial do edifcio aproxima-se muito do ideal de Alberti. Exceptuando a cpula, toda a igreja poderia encaixar-se dentro de um cubo, j que a altura igual largura e ao comprimento. Giuliano formou uma cruz grega. No pode haver dvidas de que Giuliano a desenhou conforme a velha tradio da Cpula do Cu. A abertura central ao alto e as doze no permetro referem-se claramente a Cristo e aos Apstolos. Brunelleschi j tinha encontrado esta soluo na Capela Pazzi, mas a cpula de Giuliano, a coroar uma estrutura perfeitamente simtrica, transmite de um modo bem mais impressionante o seu valor simblico.

    O estilo escultrico do tmulo de Bruni no se define com facilidade, porque composto de partes de qualidade muito variada. De maneira geral, reflecte o classicismo de Ghiberti e de Luca della Robbia. Os ecos de Donatello so poucos e indirectos.

    O BUSTO-RETRATO. A grande tradio romana de escultura realista de retratos tinha desaparecido no final da Antiguidade. O seu ressurgimento foi durante muito tempo atribudo a Donatello, mas os primeiros exemplos que conhecemos pertencem aos anos de 1450 e nenhum deles de Donatello. Parece mais provvel que o retrato-busto do Renascimento deva as suas origens aos jovens escultores do crculo de Bernardo Rossellino.

    Um belo exemplo foi esculpido em 1456 por Antnio Rossellino (1427-1479). Representa um mdico florentino muito considerado, cujo carcter est definido com extraordinria preciso.

    A Escultura Donatello trocara Florena por Pdua em 1443. Nenhum jovem escultor foi capaz de preencher a vaga deixada por Donatello. Em resultado da sua ausncia subiram ao primeiro plano os outros escultores que permaneciam na cidade.

    POLLAIUOLO. A popularidade dos bustos-retratos, depois de 1450, corresponde a uma procura de obras para coleces particulares. Humanistas e artistas foram os primeiros a juntar esttuas, bustos e baixos-relevos. No

    - 13 -

  • - Histria da Arte II -

    tardaria que muitos escultores prestassem ateno a esta voga crescente, e se dedicassem a executar bustos e estatuetas de bronze, maneira dos Antigos, solicitados pelos amadores.

    Uma pea excepcional deste gnero da autoria de Antnio Pollaiuolo (1431-98). Representa um estilo escultrico muito diferente do que ento se manifesta na escultura de mrmore. Formado como ourives, recebeu funda influncia do ltimo estilo de Donatello e de Castagno, bem como da Arte Antiga. A partir da, desenvolveu um estilo muito pessoal, como se pode ver no Hrcules e Anteu.

    NICCOLO DELLARCA. A importncia desta integrao de movimentos e aco flagrante: a Lamentao, de Niccolo dellArca, de 1485-90. No conhecemos qualquer ligao directa entre esta obra e Pollaiuolo, mas no de crer que fosse criada sem a influncia dele.

    VERROCCHIO. Palliauolo nunca teve oportunidade de fazer uma esttua de grande tamanho. Para obras de tal vulto, temos de nos voltar para um seu contemporneo, Andrea del Verrochio (1435-88), o maior escultor desse tempo e o nico que, de algum modo, podemos comparar a Donatello pela versatilidade e ambio. Modelador e cinzelador, combinou elementos de Antnio Rossellino e Antnio del Pollaiuolo numa sntese nica.

    A sua obra mais popular em Florena o Cupido ou Putto com Golfinho. Foi desenhada para o centro de uma fonte para uma das vilas dos Medici, prximo de Florena. O termo putti designa os meninos alados e nus que frequentemente aparecem representados na Arte Antiga. Foram reintroduzidos na arte do Proto-Renascimento, com o seu carcter original ou na qualidade de anjos-meninos.

    Por estranha coincidncia, a realizao suprema da carreira de Verrochio, tal como sucedera a Donatello, foi um monumento equestre de bronze, desta vez em honra do comandante dos exrcitos venezianos. Verrochio deve ter considerado a obra de Donatello como um prottipo, no se contentando todavia em imitar simplesmente o ilustre modelo. O cavalo, gracioso e vivo, em vez de robusto e plcido, foi modelado com o mesmo sentido da anatomia em movimento que vimos nos nus de Pollaiuolo.

    A Pintura Antes de considerarmos de novo a pintura florentina, preciso analisar o desenvolvimento da arte do Proto-Renascimento do Norte da Itlia. O Estilo Internacional prolongou-se na pintura e na escultura at meados do sculo, e a arquitectura manteve um forte sabor gtico muito depois de adoptado um vocabulrio clssico. Nesta regio, entre 1450 e 1500, s a pintura sobressai, porque faltaram realizaes de monta em qualquer dos outros dois campos. Mas em Veneza e nos seus territrios, durante esses mesmos anos, nasceu uma tradio que iria florescer nos trs sculos seguintes. No por isso de estranhar que lhe coubesse tornar-se o principal centro artstico da Itlia setentrional no Proto-Renascimento.

    PDUA: MANTEGNA. Com os mestres florentinos o novo estilo penetrava em Veneza e na vizinha cidade de

    Pdua logo aps 1420. Pouco antes de 1450, o jovem Andrea Mantegna (1431-1506) surgiu como mestre independente. Iniciou a sua aprendizagem com um pintor menor de Pdua, mas logo na primeira fase da sua criao se nota a influncia decisiva das obras florentinas que pudera ver, impresses reforadas talvez por um contacto pessoal com Donatello. A seguir a Masaccio, Mantegna foi o pintor mais importante do Proto-Renascimento.

    A sua maior realizao dessa poca (nos anos de 1450) foram os frescos da Igreja dos Eremitani em Pdua.

    A venerao de Mantegna pelos restos visveis da Antiguidade mostra a sua estreita relao com os sbios humanistas da Universidade de Pdua. O desejo de autenticidade arqueolgica pode ver-se nos trajes dos soldados romanos. Mas as figuras tensas, delgadas e firmemente construdas, e especialmente a sua dramtica interaco, derivam claramente de Donatello.

    VENEZA: BELLINI. Na pintura de Giovanni Bellini (c. 1431-1516) podemos seguir o desenvolvimento da tradio flamenga. Os seus melhores quadros, tais como S. Francisco em xtase, datam das ltimas dcadas do sculo. A figura do santo to pequena, em relao ao cenrio, que ele parece estar ali por acaso. Os contornos de Bellini so menos secos que os de Mantegna, as cores mais suaves e a luz mais brilhante. E, como os grandes flamengos, encara com ternura cada pormenor da Natureza.

    Considerado ento o mais excelente pintor da cidade de Veneza, Bellini produziu vrios retbulos de altar do tipo da Sacra Conversazione. A sua construo no a de uma verdadeira igreja, porque os lados so abertos e toda a cena inundada pela luz suave do Sol.

    O que de imediato diferencia o seu altar dos seus antecessores florentinos no s a amplitude do desenho mas a sua atmosfera calma e meditativa. uma qualidade que encontraremos vezes sem fim na pintura veneziana. neste momento mgico que Giovanni Bellini se torna verdadeiramente no herdeiro dos dois grandes pintores do sculo XV, unindo a grandiosidade florentina de Masaccio com a intimidade potica do setentrional Jan van Eyck.

    FLORENA: BOTTICELLI. A tendncia anunciada pelo David de Castagno substitui a monumentalidade esttica de Masaccio por um movimento enrgico e gracioso. Atinge o ponto culminante no ltimo quartel do sculo, com a arte de Sandro Botticelli (1444-1510). Aluno de Fra Filippo Lippi e fortemente influenciado por Pollauiuolo, Botticelli em breve se tornou o pintor preferido do chamado crculo Medici.

    Foi para um membro deste grupo que Botticelli pintou o Nascimento de Vnus, talvez o mais famoso dos seus quadros, cujo parentesco com o Combate dos Dez Homens Nus de Pollaiuolo inconfundvel. Manifestamente Botticelli no participa da paixo de Pollaiuolo pela anatomia. Os seus corpos so mais esguios e desprovidos de peso e fora muscular, como se flutuassem, mesmo quando tocam o cho. Tudo isto parece negar os valores fundamentais da arte do Proto-Renascimento e, no entanto, o quadro nada tem de medieval.

    - 14 -

  • - Histria da Arte II -

    O NEO-PLATONISMO. Durante a Idade Mdia, as formas clssicas tinham-se divorciado dos temas clssicos. Os artistas utilizavam o repertrio antigo de atitudes, gestos, expresses, etc., mas trocaram a identidade das figuras: os filsofos transformaram-se em Apstolos. Quando havia oportunidade de representar deuses pagos, os artistas baseavam-se nas fontes literrias em vez de se inspirarem nas obras de arte antigas. Esta foi, de um modo geral, a situao at meados do sculo XV. S com Pollaiuolo e Mantegna no Norte da Itlia a forma e o contedo clssico comearam a associar-se de novo. As pinturas perdidas dos Trabalhos de Hrcules de Pollaiuolo (1465) assinalam o primeiro caso de assuntos da mitologia clssica tratados em ponto grande num estilo inspirado nos antigos monumentos. E o Nascimento de Vnus contm a primeira imagem monumental, desde os tempos romanos, da deusa nua, numa atitude derivada das suas esttuas clssicas.

    Como se podiam justificar tais imagens numa civilizao crist, sem expor o artista e o seu patrono acusao de neo-paganismo? Na Idade Mdia, os mitos clssicos foram por vezes interpretados didacticamente. Fundir a f crist com a mitologia antiga exigia uma argumentao sofisticada, que ficaria a dever-se aos filsofos neo-platnicos, cujo representante principal, Marslio Ficino, gozou de formidvel prestgio a partir dos ltimos anos do sculo XV. O pensamento de Ficino representava a anttese do sistema escolstico medieval. Para Ficino, a vida do Universo, incluindo a do homem, estava ligada a Deus por um circuito espiritual, de modo que toda a revelao, quer da Bblia, quer de Plato, quer ainda dos mitos clssicos, era s uma.

    A filosofia neo-Platnica e a sua manifestao na arte eram, evidentemente, demasiado complexas para se tornarem populares fora do crculo restrito e intelectualmente superior dos seus admiradores.

    FLORENA: PIERO DI COSIMO. Um painel de Piero di Cosimo (1462-1521), contemporneo de Botticelli, ilustra uma viso da mitologia pag que oposta dos neo-platnicos. Em vez de espiritualizar os deuses pagos, faz que desam terra, como seres de carne e osso. Segundo esta teoria, o homem teria ascendido lentamente do primitivo estado selvagem, mediante as descobertas e invenes de alguns indivduos excepcionalmente dotados; a estes homens acabara por ser reconhecida a condio de deuses.

    FLORENA: GHIRLANDAIO. Como Piero, tambm foi sensvel ao realismo dos Flamengos o pintor Domenico

    Ghirlandaio (1449-1494), outro contemporneo de Botticelli. Os ciclos de frescos de Ghirlandaio encontram-se to cheios de retratos que mais parecem crnicas de famlia dos ricos patrcios que lhos encomendaram. Um dos seus painis mais comovedores o do velho com o neto. Nenhum pintor do Norte poderia transmitir, como Ghirlandaio, a terna relao humana entre o rapazinho e o seu av. Sob o aspecto psicolgico, o painel revela uma clara origem italiana.

    URBINO: PERUGINO. Roma, muito tempo posta margem, durante o exlio papal em Avinho, tornou-se de novo um importante centro de arte nos finais do sculo XV. medida que o Papado foi retomando o seu poder poltico na Itlia, os ocupantes do trono de S. Pedro comearam a embelezar tanto o Vaticano como a cidade, na convico de que os monumentos da Roma Crist deviam ofuscar os do passado pago. O projecto pictural mais ambicioso desse perodo foi a decorao das paredes da Capela Sistina, em 1482. Entre os artistas que executaram este grande ciclo de cenas do Antigo e do Novo Testamento, encontramos a maioria dos pintores importantes da Itlia central, incluindo Botticelli e Ghirlandaio.

    A Entrega das Chaves, de Pietro Perugino (1450-1523), sem dvida pode ser tida pela melhor das suas obras. Nascido na Umbria, Perugino manteve estreitos laos com Florena. Logo na primeira fase da sua vida artstica sofreu a influncia decisiva de Verrocchio.

    CORTONA: SIGNORELLI. Luca Signorelli (1445-1523) anda associado a Perugino por um passado semelhante, se bem que a sua personalidade seja infinitamente mais dramtica. De origem toscana, foi discpulo de Piero della Francesca antes de ir para Florena nos anos de 1470. Como Perugino, Signorelli no escapou funda influncia de Verrocchio, mas admirava tambm a energia, expressividade e preciso anatmica dos nus de Pollaiuolo. Atingiu o apogeu da sua carreira, um pouco antes de 1500, nos quatro frescos monumentais que representam o fim do mundo, das paredes da Capela de S. Brizio, na Catedral de Orvieto. O que mais nos impressiona o profundo sentimento trgico que impregna toda a cena. O Inferno de Signorelli, diametralmente oposto ao de Bosch, tem a luz do dia pleno, sem o pesadelo das mquinas de tortura ou os monstros grotescos. Os condenados conservam a dignidade humana e at os prprios demnios esto humanizados.

    - 15 -

  • - Histria da Arte II -

    3 O RENASCIMENTO

    PLENO NA ITLIA

    - 16 -

  • - Histria da Arte II -

    A LTIMA CEIA. A ltima Ceia de Leonardo, composta uns doze anos mais tarde, tem sido sempre reconhecida como a primeira afirmao clssica dos ideais da pintura do Renascimento Pleno. Infelizmente o fresco comeou a deteriorar-se poucos anos depois de ter sido acabado. Olhando a composio como um todo, salta desde logo vista a sua estabilidade equilibrada como nenhum artista jamais tentara.

    O Renascimento Pleno era continuao do Proto-Renascimento. Supunha-se que os grandes mestres do sculo XVI Leonardo, Bramante, Miguel ngelo, Rafael, Giorgione, Ticiano haviam partilhado os ideais dos seus predecessores, mas dando-lhes expresso to completa que os seus nomes se tornaram sinnimo de perfeio. Representavam o apogeu, a fase suprema do Renascimento.

    O Renascimento Pleno, se nalguns aspectos fundamentais nos parece a culminao do Proto-Renascimento, quanto a outros ter representado um ponto de partida. certo que a tendncia para ver no artista um gnio soberano, e no um artfice dedicado, nunca foi mais forte que durante a primeira metade do sculo XVI.

    Leonardo comeou pela composio das figuras e a arquitectura desempenhou, desde o primeiro momento, o papel de simples apoio. Este quadro exemplifica o que o artista escreveu num dos seus livros de apontamentos: que o objectivo ltimo da pintura, mas tambm o mais difcil de alcanar, retratar a inteno da alma humana.

    Este culto do gnio exerceu um efeito profundo sobre os artistas do Renascimento Pleno, acicatando-os para objectivos vastos e ambiciosos. A crena do artista na origem divina da inspirao levava-o a firmar-se em critrios subjectivos de verdade e beleza, e no em critrios objectivos. Se os artistas do Proto-Renascimento se sentiam vinculados quilo que acreditavam serem regras de validade universal, tais como as leis de perspectiva cientfica, os seus sucessores do Renascimento Pleno preocupavam-se menos com a ordem racional que com a efectividade visual. Desenvolveram um novo drama e uma nova retrica para cativar as emoes do espectador. As obras dos grandes mestres do Renascimento Pleno tornaram-se logo clssicas por direito prprio e a sua autoridade veio a ser igual dos monumentos mais famosos da Antiguidade.

    A MONA LISA. Em 1500 ia executando o famosssimo retrato de Mona Lisa. O delicado sfumato alcanou um tal grau de perfeio que pareceu um milagre aos contemporneos do artista. A fama deste leo no vem apenas de uma subtileza pictrica; mais intrigante ainda o fascnio psicolgico da personalidade do modelo. Porque nenhum outro sorriso foi considerado to misterioso?

    OS DESENHOS. Na idade avanada, Leonardo dedicou-se cada vez mais aos seus interesses cientficos. O alcance extraordinrio das suas investigaes pessoais est presente nas centenas de desenhos e notas que esperava incorporar numa srie de tratados enciclopdicos. Os testemunhos dos contemporneos mostram que Leonardo gozava de reputao como arquitecto. Estes esboos possuem uma grande importncia histrica, pois atravs deles se consegue estabelecer a transio do Proto-Renascimento para o Renascimento Pleno na arquitectura.

    Leonardo da Vinci Um dos aspectos mais estranhos do Renascimento Pleno o

    facto de todos os seus monumentos fundamentais terem sido produzidos entre 1495 e 1520, apesar da grande diferena de idades entre os seus criadores.

    Bramante O TEMPIETTO. Bramante seria o criador da arquitectura do Renascimento Pleno. O novo estilo j se define no Tempietto de S. Pietro in Montorio, de Bramante, projectado pouco depois de 1500.

    Nascido em 1452 na pequena cidade toscana de Vinci, Leonardo praticou com Verrocchio. Aos trinta anos entrou ao servio do Duque de Milo na qualidade de engenheiro militar, e acessoriamente na de arquitecto, escultor e pintor. A BASLICA DE S. PEDRO. O Tempietto a primeira das

    grandes realizaes que fizeram de Roma o centro da arte italiana durante o primeiro quartel do sculo XVI. Coube a Bramante a tarefa de substituir a velha baslica de S. Pedro, por uma igreja to magnificente que ofuscasse todos os monumentos da antiga Roma imperial. O plano de Bramante obedecia a todos os requisitos estabelecidos por Alberti para a arquitectura religiosa, baseado inteiramente no crculo e no quadrado.

    A ADORAO DOS MAGOS. Leonardo deixou inacabada a obra mais ambiciosa que tinha encetado, uma grande Adorao dos Reis Magos para a qual j executara muitos estudos preliminares. O aspecto mais surpreendente e verdadeiramente revolucionrio deste painel o modo como est pintado.

    As formas parecem materializar-se de modo suave e gradual, nunca chegando a destacar-se completamente da penumbra envolvente. Leonardo no pensa em termos de contornos, mas sim de corpos tridimensionais tornados visveis pela incidncia da luz. Nas sombras, estas formas permanecem incompletas, os seus contornos esto meramente implcitos.

    Como que ele se propunha construir um edifcio de tamanho to imponente? A pedra talhada ou tijolo, os materiais preferidos pelos arquitectos medievais no serviam, por razes de ordem tcnica e econmica; s a construo em beto, tal como a usada pelos romanos, mas depois cada em esquecimento durante a Idade Mdia, era suficientemente forte e barata para responder s necessidades de Bramante. Ao dar vida nova a esta tcnica antiga, abriu uma nova era na histria da arquitectura, uma vez que o beto permitia realizar traados de muito maior flexibilidade que os mtodos de construo dos pedreiros medievais.

    A VIRGEM DOS ROCHEDOS. Pouco tempo depois de chegar a Milo, Leonardo executou a Virgem dos Rochedos, tambm um painel de altar. Aqui as figuras emergem da gruta envoltas por uma atmosfera carregada de humidade que lhes vela delicadamente as formas.

    - 17 -

  • - Histria da Arte II -

    Miguel ngelo Miguel ngelo foi escultor e abraava uma f na imagem humana como supremo veculo de expresso conferindo-lhe afinidade com a escultura clssica. Assim como concebia as suas esttuas como corpos humanos libertados da sua priso de mrmore, tambm o corpo era para ele a priso terrena da alma. Este dualismo entre corpo e esprito confere s suas figuras um pathos extraordinrio; calma no exterior, parecem ser agitadas por uma energia psquica irresistvel.

    DAVID. As qualidades nicas da arte de Miguel ngelo esto integralmente presentes no David, a primeira esttua monumental do Renascimento Pleno, encomendada em 1501. A escala herica, a beleza e poder sobre-humanos e o volume dilatado das suas formas tornaram-se parte do prprio estilo de Miguel ngelo e, atravs dele, da arte do Renascimento em geral.

    O TMULO DE JLIO II. Este trao persiste no Moiss e nos dois escravos esculpidos cerca de uma dcada mais tarde.

    A CAPELA SISTINA. O sepulcro de Jlio II ficou por acabar quando o papa interrompeu a actividade de Miguel ngelo na fase inicial do projecto, para que ele fosse decorar a fresco o tecto da Capela Sistina. Miguel ngelo realizou o trabalho em quatro anos (1508-12), produzindo uma obra-prima que fez poca. um imenso organismo com centenas de figuras distribudas ritmicamente dentro da moldura arquitectnica pintada. Na rea central, subdividida por cinco pares de traves, encontram-se nove cenas do Gnesis, desde a criao do Mundo at Embriaguez de No.

    O JUZO FINAL. Quando Miguel ngelo voltou Capela em 1534, mais de vinte anos depois, o mundo ocidental sofria a crise espiritual e poltica da Reforma. com crua nitidez que nos apercebemos da mudana de atmosfera quando passamos da vitalidade radiante dos frescos do tecto, para a viso sombria do Juzo Final.

    A CAPELA DOS MDICIS. O intervalo entre a realizao do tecto da Capela Sistina e a do Juzo Final, a famlia Mdici preferiu empregar Miguel ngelo em Florena. As actividades deste centraram-se em San Lorenzo, a igreja dos Mdicis.

    A BIBLIOTECA LAURENTINA. Miguel ngelo construiu a Biblioteca Laurentina, anexa a San Lorenzo, para a instalar para o pblico a vasta coleco de livros e manuscritos pertencentes famlia Mdici.

    O CAPITLIO. Durante os ltimos trinta anos da sua vida, a arquitectura tornou-se a principal preocupao de Miguel ngelo. Em 1537-39 recebeu o encargo mais ambicioso da sua carreira: transformar o Capitlio numa praa com um enquadramento monumental digno deste local venerado, outrora o centro simblico da Roma Antiga. Tinha, finalmente, oportunidade de planear em grande escala e tirou todo o partido dela.

    S. PEDRO. Com o Capitlio, a ordem colossal ficou firmemente estabelecida no repertrio da arquitectura monumental. O prprio Miguel ngelo voltou a utiliza-la

    no exterior da igreja de S. Pedro, com resultados igualmente impressionantes.

    A PIET DE MILO. A segurana magnfica com que Miguel ngelo tratou projectos como os do Capitlio, ou o da igreja de S. Pedro, parece desmentir o seu auto-retrato, sob a forma de uma pele engelhada, no Juzo Final. Na sua ltima pea escultrica, a Piet de Milo, h uma busca de novas formas.

    Rafael Se Miguel ngelo o gnio solitrio, Rafael pertence com a mesma certeza ao tipo oposto: o do artista-homem de sociedade. Ele o pintor central do Renascimento Pleno, a nossa concepo global desse estilo assenta mais na sua obra que na de qualquer outro mestre.

    O gnio de Rafael consistiu num poder de sntese nico, que lhe permitiu fundir as qualidades de Leonardo e de Miguel ngelo, criando uma arte ao mesmo tempo lrica e dramtica, unindo a riqueza da pintura solidez da escultura.

    A ESCOLA DE ATENAS. A influncia de Miguel ngelo sobre Rafael afirmar-se-ia com toda a plenitude nas pinturas que este fez em Roma. Na altura em que Miguel ngelo iniciava a pintura do tecto da Capela Sistina, Jlio II fez vir de Florena o jovem artista e encarregou-o de decorar um conjunto de salas do Palcio do Vaticano.

    A Escola de Atenas de h muito reconhecida como a obra-prima de Rafael a corporizao perfeita do esprito clssico do Renascimento Pleno. O tema a escola ateniense de pensamento, um grupo de filsofos gregos famosos, reunidos volta de Plato e Aristteles, cada qual numa actividade ou atitude caracterstica. evidente que deve a Miguel ngelo a energia expressiva, o poder fsico. A impressionante composio das personagens.

    A GALATEIA. Rafael jamais voltou a montar um fundo arquitectural to esplndido. A criao do espao pictural confiou-o cada vez mais ao movimento das figuras humanas. Na Galateia, de 1513, o tema outra vez clssico a bela ninfa Galateia, perseguida em vo por Polifemo, pertence mitologia grega.

    OS RETRATOS. J numa primeira fase da sua carreira Rafael dera mostras de talento especial como retratista. A sua genial capacidade de sntese revela-se na combinao do realismo dos retratos do sculo XV com o ideal humano do Renascimento Pleno. Rafael no favorecia os retratados, nem seguia as convenes.

    Giorgione A distino entre o Proto-Renascimento e o Renascimento Pleno, to marcada em Florena e em Roma, muito menos acentuada em Veneza. Giorgione (1478-1510), o primeiro pintor veneziano a pertencer ao sculo XVI, apenas saiu da rbita de Bellini durante os ltimos anos da sua breve carreira.

    - 18 -

  • - Histria da Arte II -

    A TEMPESTADE. Entre as raras obras da sua plenitude, A Tempestade ao mesmo tempo a mais individual e a mais enigmtica. As figuras de Giorgione no nos explicam a cena; pertencem Natureza, so testemunhas passivas da tormenta prestes a desabar sobre elas.

    Ticiano Giorgione morreu antes de poder explorar por completo o mundo sensual e lrico criado em A Tempestade. Legou essa tarefa a Ticiano (1488-1576), um artista de dotes comparveis, influenciado decisivamente por Giorgione, que dominou a pintura veneziana durante o meio sculo seguinte.

    A BACANAL. A Bacanal, de 1518, abertamente pag, inspirada na descrio de um autor antigo. Ticiano familiarizou-se com a arte do Renascimento Pleno e alguns

    dos participantes da Bacanal tambm reflectem a influncia da arte clssica. Ele v o reino dos mitos clssicos como parte do mundo natural, habitado por seres de carne e osso e no por esttuas animadas.

    A VIRGEM DE PESARO. A mesma qualidade de animao festiva reaparece em muitas das suas pinturas religiosas, como sucede em Virgem com Pessoas da Famlia Pesaro.

    OS RETRATOS. Depois da morte de Rafael, Ticiano tornou-se o retratista mais procurado da poca. Os seus dotes prodigiosos so ainda mais notveis no Homem da Luva.

    OBRAS DO LTIMO PERODO. A correspondncia entre forma e tcnica clara em Cristo Coroado de Espinhos, uma obra-prima de Ticiano na velhice.

    - 19 -

  • - Histria da Arte II -

    4 O MANEIRISMO

    E OUTRAS TENDNCIAS

    - 20 -

  • - Histria da Arte II -

    O que aconteceu depois do Renascimento Pleno? Falta-nos ainda encontrar um nome para os setenta e cinco anos que medeiam entre o Renascimento Pleno e o Barroco. Tal perodo um tempo de crise que deu origem a diversas tendncias antagnicas, mais que a um ideal predominante.

    A PINTURA

    O Maneirismo: Florena e Roma Entre as vrias tendncias artsticas que se manifestaram a seguir ao Renascimento Pleno, a do Maneirismo a mais discutida. O termo, no sentido original, limitado e pejorativo, e designava o estilo de um grupo de pintores dos meados do sculo XVI, activos em Roma e Florena, que cultivavam uma arte conscientemente artificial e amaneirada, derivada de algumas concepes de Rafael e Miguel ngelo.

    ROSSO. Os primeiros indcios de inquietao no Renascimento Pleno aparecem pouco antes de 1520, na obra de alguns jovens pintores de Florena. Em 1521, Rosso Fiorentino (1495-1540), o mais excntrico membro deste grupo, exprimiu a nova atitude com firme convico em A Descida da Cruz. As figuras agitam-se mas so rgidas. H aqui uma revolta contra o equilbrio clssico da arte do Renascimento Pleno.

    PONTORMO. Pontormo (1494-1557), um amigo de Rosso, tinha uma personalidade igualmente estranha. Introvertido e tmido, os seus desenhos, de uma sensibilidade maravilhosa, tais como Estudo de uma Jovem, reflectem bem estas facetas do seu carcter.

    PARMIGIANINO. Esta primeira fase do Maneirismo, o estilo anti-clssico de Rosso e Pontormo, cedo deu lugar a um outro aspecto do movimento, menos abertamente anti-clssico, menos carregado de emoo subjectiva, mas igualmente afastado do mundo confiante e estvel do Renascimento Pleno. O Auto-retrato de Parmigianino (1503-1540) no denuncia qualquer perturbao psicolgica. A pintura regista o que ele via ao olhar-se num espelho convexo.

    BRONZINO. Vinculada a um gosto sofisticado e at subtil, a fase elegante do Maneirismo italiano atraiu especialmente patronos aristocrticos como o Gro Duque da Toscana e o Rei de Frana, cedo se tornando internacional. O estilo produziu esplndidos retratos, como o de Eleanora de Toledo, pelo pintor da corte dos Mdici, Agnolo Bronzino (1503-1572).

    O Maneirismo: Veneza TINTORETTO. O Maneirismo s apareceu em Veneza nos meados do sculo. O seu expoente principal, Tintoretto (1518-94), foi um artista de prodigiosa energia, combinando qualidades de ambas as fases anticlssica e elegante- do novo gosto. Espectacular a ltima das obras

    principais de Tintoretto, a ltima Ceia, tela em que foram postos de lado os valores clssicos da verso de Leonardo, pintada havia quase um sculo. Ele procurou dar ao acontecimento um ambiente de todos os dias, atravancando a cena com criados, loua, pratos de fruta, garrafes e animais domsticos. Tudo isto serve para estabelecer um contraste dramtico entre o natural e o sobrenatural.

    EL GRECO. O ltimo e talvez o maior pintor maneirista formou-se tambm na Escola Veneziana. Domenico Theotocopoulos (1541-1614), alcunhado de El Greco, chegou pouco depois de 1560 a Veneza e assimilou rapidamente as lies de Ticiano, Tintoretto e outros mestres. Uma dcada mais tarde, em Roma, travou conhecimento com a arte de Rafael, Miguel ngelo e os Maneiristas da Itlia Central. A maior e mais resplandecente das encomendas que executou O Enterro do Conde de Orgaz. Da formao veneziana de El Greco advm a sua mestria na arte do retrato.

    O Proto-Barroco Uma outra tendncia, que tambm surgiu cerca de 1520, uma antecipao de tantos aspectos do estilo Barroco que pode ser apelidada de Proto-Barroco.

    CORREGGIO. Correggio (1489-1534), o representante principal desta corrente, foi um pintor excepcionalmente dotado do Norte de Itlia. Ainda jovem assimilou a pintura de Leonardo e dos Venezianos, depois a de Miguel ngelo e Rafael, mas no sentiu, como eles, a atraco do ideal de equilbrio clssico. A sua maior obra, o fresco da Assuno da Virgem, na cpula da Catedral de Parma, uma obra-prima de perspectiva ilusionista, um vasto espao luminoso, preenchido por figuras esvoaantes.

    Realismo Uma terceira tendncia da pintura italiana do sculo XVI anda associada s cidades ao longo da faixa Norte da plancie lombarda. Alguns artistas dessa regio trabalharam num estilo muito influenciado por Giorgione e Ticiano, mas com maior interesse pela realidade de todos os dias.

    SAVOLDO. Um dos primeiros e mais interessantes destes realistas da Itlia setentrional foi Girolamo Savoldo (1480-1550), de Brscia. Em So Mateus o estilo fludo e de pincelada larga reflecte a influncia dominante de Ticiano.

    VERONESE. Na obra de Paolo Veronese (1528-88), o Realismo do Norte da Itlia ganha o esplendor de um grande espectculo. Nascido e formado em Verona, Veronese tornou-se, depois de Tintoretto, o pintor mais importante de Veneza. Em Cristo na Casa de Levi, ele evita toda a aluso ao sobrenatural.

    A ESCULTURA Os escultores italianos do fim do sculo XVI no conseguem igualar as realizaes dos pintores. Os melhores

    - 21 -

  • - Histria da Arte II -

    trabalhos foram produzidos fora da Itlia, e o maior escultor em Florena, a seguir ao falecimento de Miguel ngelo em 1564, foi nortenho.

    VASARI. Um desses edifcios o dos Uffizi em Florena, da autoria de Giorgio Vasari (1511-1574). Ao seu projecto faltam fora escultrica e qualidade expressiva. Os componentes arquitectnicos parecem to esvaziados de energia como as figuras humanas da segunda fase do Maneirismo.

    Primeira e Segunda Fases do Maneirismo AMMANATI. O mesmo se pode dizer do ptio do Palcio Pitti, de Bartolomeu Ammanati (1511-1592). O carcter macio da construo fica escondido.

    BERRUGUETE. A fase anticlssica do Maneirismo no tem paralelo na escultura. A obra do espanhol Alonso Berruguete (1489-1561) a que mais se lhe aproxima. Berruguete tivera contactos com os iniciadores da corrente anticlssica em Florena, por volta de 1520. O seu S. Joo Baptista reflecte essa experincia.

    PALLADIO. Se isto Maneirismo em arquitectura, podemos encontr-lo na obra de Andrea Palladio (1518-80), o maior arquitecto do final do sculo XVI. Palladio continua a tradio do humanista e pensador Alberti.. Palladio sustentava que a arquitectura deve reger-se pela razo e por certas regras universais, exemplarmente demonstradas nas edificaes dos antigos. Comungava assim da perspectiva fundamental de Alberti, bem como da sua firme convico quanto ao significado csmico das propores aritmticas. O seu tratado de arquitectura tem um carcter mais prtico que o de Albertini e as construes que ergueu correspondiam s teorias.

    CELLINI. A segunda fase do Maneirismo, a fase elegante, aparece em inmeros exemplares escultricos na Itlia e no estrangeiro. O mais conhecido representante do estilo Benvenuto Cellini (1500-71). O saleiro de ouro feito para o rei Francisco I da Frana, a principal obra de Cellini em metal precioso, constitui um bom exemplo das virtudes e limitaes da sua arte.

    PRIMATICCIO. Homem de muitos talentos, Francesco Primaticcio (1504-1570) responsvel pela decorao interior de algumas das salas principais do castelo real de Fontainebleau.

    A Villa Rotonda uma das mais belas edificaes de Palladio, ilustra perfeitamente a significao do classicismo. Uma residncia de campo aristocrtica perto de Vicenza. Alberti dera igreja ideal uma planta centrada e perfeitamente simtrica. evidente que Palladio alicerou nos mesmos princpios a sua casa de campo ideal.

    GIOVANNI BOLOGNA. Cellini, Primaticcio e os outros italianos contratados por Francisco I fizeram do Maneirismo o estilo dominante na Frana dos meados do sculo XVI, e a sua influncia fez-se sentir muito para alm da corte. Deve ter alcanado um jovem escultor muito dotado, Jean de Boulogne (1529-1608). O seu grupo de mrmore, O Rapto das Sabinas foi especialmente admirado, sendo o assunto tirado das lendas da Roma Antiga. Uma composio escultrica destinada a ser vista no apenas de um, mas de todos os lados.

    IL GES: VIGNOLA E DELLA PORTA. A imensa autoridade de Palladio como arquitecto evita que os elementos contraditrios da fachada e da planta de S. Giorgio colidam entre si. Uma outra soluo, mais fcil, foi encontrada em Roma e deve-se a Giacomo Vignola (1507-1573) e Giacomo della Porta (1540-1602), dois arquitectos que tinham trabalhado com Miguel ngelo em S. Pedro e continuavam a usar o seu vocabulrio arquitectnico. A igreja de Il Ges (Jesus), edifcio cuja importncia para a arquitectura religiosa posterior nunca demais salientar, a igreja-me dos Jesutas. Podemos encara-la como a incarnao arquitectnica do esprito da Contra-Reforma. O que h aqui de novo a integrao harmoniosa de todas as partes num todo. O projecto de Il Ges vir a tornar-se fundamental na arquitectura barroca. Ao chamar-lhe pr-barroco, sugerimos a um tempo a importncia para o futuro e o lugar especial quanto ao passado.

    A ARQUITECTURA

    O Maneirismo O conceito de Maneirismo servir tambm para a arquitectura? Alguns edifcios seriam hoje considerados maneiristas por quase toda a gente. Mas isso no constitui uma definio aceitvel de Maneirismo como estilo arquitectnico.

    - 22 -

  • - Histria da Arte II -

    5 O RENASCIMENTO

    SETENTRIONAL

    - 23 -

  • - Histria da Arte II -

    Ao Norte dos Alpes, a maioria dos artistas do sculo XV ficaram indiferentes s ideias e s formas italianas. Desde o tempo do Mestre de Flmalle e dos van Eycks passaram a buscar orientao mais na Flandres que na Toscana. Este relativo isolamento termina bruscamente ao redor de 1500. A influncia italiana derrama-se para o Norte numa torrente cada vez mais caudalosa e a arte do Renascimento Setentrional comea a substituir a do Gtico Final. A variedade das correntes ainda maior que na Itlia durante o sculo XVI.

    A tradio do Gtico Final manteve-se muito viva e do seu encontro com a arte italiana resultou uma espcie de Guerra dos Cem Anos entre estilos, que s veio a terminar quando, no comeo do sculo XVII, o Barroco emergiu como um movimento internacional.

    A ALEMANHA

    A Pintura e as Artes Grficas Na Alemanha, o bero da Reforma, deram-se as batalhas principais desta guerra de estilos, logo no primeiro quartel do sculo XVI. A gama das realizaes deste perodo pode medir-se pelas personalidades contrastantes dos seus maiores artistas: Mathias Grnewald e Albrecht Drer.

    GRNEWALD. A fama de Grnewald cresceu quase inteiramente no nosso prprio sculo. Na arte setentrional do seu tempo, apenas ele, com a sua obra-prima, o Retbulo de Isenheim, nos assombra com uma criao de fora comparvel do tecto da Capela Sistina.

    O que mais evidente, quando se comparam pintura do Gtico Final, o sentido de movimento difundido nestes painis tudo se anima e gira como se tivesse vida prpria. Esta energia vibrante deu uma forma totalmente nova aos contornos duros e pontiagudos e aos angulosos panejamentos do Gtico Final. As formas de Grnewald so suaves, flexveis, carnudas. A luz e a cor revelam uma mudana correspondente: dominando todos os recursos dos grandes mestres flamengos, emprega-os com indita audcia e flexibilidade.

    Grnewald algo deve ter aprendido com o Renascimento: o seu conhecimento da perspectiva e o vigor fsico de algumas das figuras no podem ser explicadas apenas pelas ltimas tradies do Gtico, alm de haver num ou noutro quadro pormenores arquitectnicos de origem meridional. Grnewald parece ter partilhado o esprito livre e individualista dos artistas renascentistas italianos.

    DRER. Para Drer (1471-1528) o Renascimento continha um sentido mais profundo. Atrado pela arte italiana desde a juventude, esteve em Veneza e regressou a Nuremberga com uma nova concepo do Mundo e do lugar que nele cabe ao artista. Entendendo, como vira na Itlia, que as belas-artes se contam entre as artes liberais, tambm fez seu o ideal do artista superior, ao mesmo tempo homem de

    sociedade e culto humanista. Alimentando afincadamente os seus interesses intelectuais conseguiu abranger uma grande variedade de tcnicas e assuntos. E como foi o maior gravador do seu tempo, exerceu larga influncia na arte do sculo XVI, atravs das suas gravuras em madeira e em metal, que se disseminaram por toda a Europa Ocidental.

    Surpreendentes so as aguarelas, feitas quando regressava de Veneza, como a denominada Montanhas da Itlia. Depois da amplitude e lirismo desta obra, a violncia expressiva das gravuras em madeira que ilustram o Apocalipse, a mais ambiciosa obra grfica de Drer nos anos seguintes vinda de Itlia, confunde-nos. A viso horrenda dos Quatro Cavaleiros parece, primeira vista, um regresso ao mundo do Gtico Final. Ele criou um padro que em breve transformaria a tcnica da gravura em toda a Europa.

    Foi Drer o primeiro artista que se deixou fascinar pela sua prpria imagem e, sob esse respeito, uma personalidade tpica do Renascimento, mais que nenhum artista italiano. O seu primeiro desenho conhecido, feito aos treze anos, um auto-retrato, e outros continuaria a executar ao longo da sua vida. O mais impressionante e particularmente revelador o do painel de 1500. Como pintura pertence tradio flamenga, mas a pose frontal e solene e a idealizao das prprias feies semelhantes s de Cristo, afirmam uma segurana que ultrapassa a esfera dos retratos vulgares.

    O aspecto didctico da obra de Drer talvez seja mais claro na gravura Ado e Eva, de 1504, onde o assunto bblico lhe serve de pretexto para apresentar dois nus ideais.

    As convices de Drer eram, no fundo, as do Humanismo Cristo, e por essa via se tornou um dos primeiros e mais entusisticos adeptos de Martinho Lutero. O novo rumo da sua f pode sentir-se na crescente austeridade de estilo e na preferncia por determinados temas religiosos a partir de 1520. A obra culminante desta fase representa Os Quatro Apstolos.

    CRANACH. Uma arte monumental que traduzisse, sob uma forma visvel, a crena protestante foi um sonho de Drer que ficou por realizar. Outros pintores alemes, como Lucas Cramach, o Velho (1472-1553), tambm procuraram dar corpo s doutrinas de Lutero, sem q