Fascínio da Mercadoria: Interfaces com a...

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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) Fascínio da Mercadoria: Interfaces com a Arte 1 André Tezza Consentino 2 Universidade Positivo Resumo A antropologia do consumo trouxe uma abordagem sobre o fascínio da mercadoria distinta da tradição marxista. Este artigo pretende, em um primeiro momento, mostrar algumas das críticas usuais da antropologia do consumo frente aos conceitos de mercadoria, fetichismo e diferenciação entre mundo falso e mundo verdadeiro todos pertencentes à tradição marxista. Em um segundo momento, para aplicar e exemplificar os conceitos da antropologia do consumo, utiliza não a pesquisa empírica com consumidores e marcas, mas o universo da arte. Palavras-chave: publicidade; arte; literatura; antropologia do consumo; mercadoria. 1. Introdução A antropologia do consumo iluminou o debate sobre o fascínio da mercadoria para além das premissas marxistas. Desde o final do século XX, os estudos do fenômeno do consumo ganharam fôlego revigorado, em que a compreensão sobre a necessidade de consumir não pode mais ser restrita a conceitos como ideologia, fetichismo e oposição entre mundo verdadeiro e mundo falso todos eles caros para a tradição marxista e também pertencentes para parte da Teoria Crítica. Em um primeiro momento, este artigo pretende dar uma amostra da crítica da Antropologia do Consumo à tradição marxista. 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Consumo, Literatura e Estéticas Midiáticas do 5º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Mestre em Filosofia pela UFPR, graduado em Publicidade e Propaganda pela UFPR. Professor da Escola de Comunicação e Negócios da Universidade Positivo. E-mail: [email protected]

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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015)

Fascínio da Mercadoria: Interfaces com a Arte1

André Tezza Consentino2

Universidade Positivo

Resumo

A antropologia do consumo trouxe uma abordagem sobre o fascínio da mercadoria distinta da

tradição marxista. Este artigo pretende, em um primeiro momento, mostrar algumas das

críticas usuais da antropologia do consumo frente aos conceitos de mercadoria, fetichismo e

diferenciação entre mundo falso e mundo verdadeiro — todos pertencentes à tradição

marxista. Em um segundo momento, para aplicar e exemplificar os conceitos da antropologia

do consumo, utiliza não a pesquisa empírica com consumidores e marcas, mas o universo da

arte.

Palavras-chave: publicidade; arte; literatura; antropologia do consumo; mercadoria.

1. Introdução

A antropologia do consumo iluminou o debate sobre o fascínio da mercadoria

para além das premissas marxistas. Desde o final do século XX, os estudos do

fenômeno do consumo ganharam fôlego revigorado, em que a compreensão sobre a

necessidade de consumir não pode mais ser restrita a conceitos como ideologia,

fetichismo e oposição entre mundo verdadeiro e mundo falso — todos eles caros para

a tradição marxista e também pertencentes para parte da Teoria Crítica. Em um

primeiro momento, este artigo pretende dar uma amostra da crítica da Antropologia

do Consumo à tradição marxista.

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Consumo, Literatura e Estéticas Midiáticas do 5º

Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015. 2 Mestre em Filosofia pela UFPR, graduado em Publicidade e Propaganda pela UFPR. Professor da

Escola de Comunicação e Negócios da Universidade Positivo. E-mail: [email protected]

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Num segundo momento, pretendemos ilustrar o fascínio da mercadoria não

com entrevistas a consumidores ou fazendo uma arqueologia de marcas e produtos,

mas apresentando obras de arte que, direta ou indiretamente, podem corroborar as

teses apresentadas na primeira parte do artigo. A estratégia é similar (e, de certo

modo, antagônica) à da Teoria Crítica — por exemplo, ao conceituar a história do

Esclarecimento, Adorno e Horkheimer fazem uma longa exposição sobre a Odisseia,

nas considerações presentes do Excurso I: Ulisses ou Mito e Esclarecimento.

Na exposição das obras, escolhemos três exemplares fundamentais da arte

ocidental: a Odisseia, de Homero; o Rei Lear, de Shakespeare; e o quadro O

Casamento dos Arnolfini, de Jan Van Eyck.

Naturalmente, por conta de limitações de espaço, não se pretende aqui fazer

uma exposição de profundidade, nem esgotar as possibilidades das interfaces entre

arte e consumo. A pretensão é de ampliar e dar continuidade a um tipo de

metodologia dos estudos de consumo que têm paralelos na abordagem de Colin

Campell3. Porém, diferentemente da perspectiva de Campell, centrada nas relações

entre o romantismo e o consumismo, apostamos que as origens do fascínio da

mercadoria (e, por extensão, da origem de uma sociedade de consumo) têm

precedência muito mais remota e estão presentes desde o início dos fundamentos do

ocidente, como aponta Don Slater.4

Para Slater, não é a Revolução Industrial que instaura um desejo de consumo –

é justamente o contrário: é o desejo de consumo que leva à industrialização. Vale

ressaltar que, neste aspecto em particular, Slater não está tão distante assim de

algumas das suposições de Adorno e Horkheimer. A grande questão de A Dialética do

Esclarecimento não é construir uma arqueologia do capitalismo ou dos modelos de

ideologia implícitos a ele, mas sim um estudo sobre a razão, sobre o desenvolvimento

do Esclarecimento. E, tal como Slater, os autores também entendem que o surgimento

da cultura atual não pode ser reduzido simplesmente aos efeitos de um modelo

3 CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro:

Rocco, 2001. 4 SLATER, Don. Cultura do consumo e modernidade. São Paulo: Nobel, 2002.

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econômico de produção. Nos estudos de comunicação, a Escola de Frankfurt costuma

ser mal lida — não raro, acaba sendo reduzida a um marxismo vulgar, sem dar conta

de todas as críticas, em especial as de Adorno, tanto para Marx quanto para o

socialismo real5. Uma amostra da aproximação de Slater com Adorno e Horkheimer:

“De fato, as linhas da razão da liberalidade, da civilidade burguesa se estendem

incomparavelmente mais longe do que supõem os historiadores que datam o conceito

burguês a partir tão-somente do fim do feudalismo medieval”6.

A partir das três obras escolhidas, pretendemos mostrar também dois

momentos distintos da sociedade do consumo. No primeiro, com a Odisseia, articular

o desejo do supérfluo com a história do ocidente — ainda que, neste caso em

particular, talvez seja o caso de considerar a condição humana de modo mais

universal, independente das formatações culturais ou do complexo (e problemático)

antagonismo ocidente versus oriente. No segundo, com Shakespeare e Van Eyck,

mostrar como o protagonismo do consumo sobre a vida urbana começa a se

desenvolver com os valores da modernidade: liberdade do indivíduo, o sentido não

metafísico da existência, a transitoriedade dos valores. Com Lipovetsky (e não com

Campell), pretendemos articular o valor simbólico da arte com os valores do

consumo.

2. A crítica ao modelo de Marx

Em uma tese clássica de O Capital, Marx mostra como as relações capitalistas

têm um valor decisivo na construção de uma nova admiração sobre as mercadorias –

o fetichismo. Para Marx, quando um amontoado de madeira se transforma em uma

mesa, isto é, na mercadoria mesa, há, além da utilidade concreta de uma mesa (o

valor de uso), um aspecto de fetiche, fantasmagórico, um fascínio transcendente, que

5 Sobre isto, cf,: TEZZA CONSENTINO, André. Teoria Crítica da Indústria Cultural: Dialética da

Reavaliação do Conceito. Dissertação de mestrado defendida no departamento de Filosofia (UFPR),

2011. 6 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1985, p. 54.

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ele denomina de “coisa fisicamente metafísica” 7. Na mercadoria mesa, implícito está

o fetichismo da mesa, propriedade não visível à sua produção ou às relações sociais

de produção (a “forma fantasmagórica de uma relação entre as coisas”, similar “à

região nebulosa do mundo da religião”8 ) — é isto que garante a existência da

mercadoria no mercado e a própria força do capitalismo, pois é o fetiche que encobre

as relações de dominação e compreensão da essência da mercadoria.

Adorno, aqui utilizando os conceitos de Marx de forma mais ou menos fiel à

significação original (o que não é uma constante em sua obra), apontará que processo

semelhante de fetichismo acontece com os bens da cultura, tanto nos bens da cultura

“séria” e “responsável”, quanto nos bens massificados. O fetiche pelo violino

Stradivarius, por exemplo, é indício de reificação, pois o ouvinte não está interessado

no discurso dos sons ou no som característico desta marca (que será exclusivo para

alguns poucos ouvidos especializados), mas por algo que é externo, irracional (ou a

racionalidade dos bens de sucesso e do consumo), alienado:

(...) os atrativos dos sentidos, da voz e do instrumento são fetichizados e

destituídos de suas funções únicas que lhes poderiam conferir sentido, em

idêntico isolamento lhes respondem — igualmente determinadas pelas leis do

sucesso — as emoções cegas e irracionais, como as relações com a música,

na qual entram carentes de relação. Na realidade, as relações são as mesmas

que se verificam entre as músicas de sucesso e os seus consumidores. Parece-

lhes próximo o totalmente estranho: tão estranho, alienado da consciência das

massas por um espesso véu, como alguém que tenta falar aos mudos. Se estes

porventura ainda reagirem, já não fará diferença alguma se se trata da Sétima

Sinfonia ou do short de banho.9

A crítica da antropologia do consumo sobre as considerações de Marx (e, por

extensão, da Teoria Crítica) apresenta, pelo menos, três frentes distintas: a) a

7 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Vol. I, coleção Os Economistas. São Paulo:

Abril Cultural, 1983, p. 70. 8 Idem, p.71. 9 ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: ADORNO, Theodor e

HORKHEIMER, Max. Textos Escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 86.

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fragilidade de uma teoria que é centrada exclusivamente nos estudos das mercadorias

a partir da produção — e que perde o sentido do consumo e dos valores culturais do

consumo; b) em questionar a validade da diferenciação entre mundo falso (o mundo

reificado, que ignora como o modo de produção capitalista opera e suas formas de

dominação) e o mundo verdadeiro (o mundo revelado pela dialética – ainda que, aqui,

é importante levar em consideração que a Teoria Crítica, Adorno em especial, vai em

caminho diferente10); c) em decorrência da crítica à diferenciação entre mundo falso e

mundo verdadeiro, a tentativa de não moralizar as relações de consumo, uma das

forças da tradição marxista até os dias atuais.

É notório como o tema do consumo é um tema até muito recentemente

ignorado pelas ciências humanas. Mesmo na antropologia, justamente a ciência que

deveria estar atenta aos costumes identitários da cultura humana, somente a partir dos

anos 70 do século passado houve uma virada epistemológica, uma revolução

copernicana, em que ao invés de centrar os esforços na compreensão da produção das

mercadorias, as relações culturais entre os bens e os consumidores ganharam

importância inédita. Em parte, esta negligência aos estudos do consumo pode ser

atribuída à extraordinária força das teorias marxistas sobre as ciências humanas —

para o marxismo, o trabalho e os modos de produção das mercadorias são o objeto de

interesse principal, e o consumo é reduzido à venda de mercadorias, à alienação e a

formas de dominação capitalista (como a mais-valia)11.

Alice Duarte, revelando o desenvolvimento dos estudos de consumo, mostra, a

partir de toda uma sistematização de autores, como o consumo deixar de ser

compreendido simplesmente como uma atitude “materialista”, de “perda cultural”,

“fetichista” e etc., e passa a ser avaliado como a construção de um trabalho cultural.

Um dos autores chave para esta virada de perspectiva é o inglês Daniel Miller:

10 Sobre isto, cf.: ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das

Letras, 1987. P. 331-333. 11 Sobre os caminhos dos estudos da antropologia do consumo nos últimos 40 anos, bem como a crítica

ao modelo marxista de compreensão do consumo, cf.: DUARTE, Alice. A antropologia e o estudo do

consumo: revisão crítica das suas relações e possibilidades. Etnográfica [Online], vol. 14 (2), 2010.

Acesso em 09/07/2015. Disponível em <http://etnografica.revues.org/329>

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Miller (...) não reduz os bens materiais comprados ou atribuídos a meras

mercadorias facilmente substituíveis por outras. Os bens são, de facto,

mercadorias, mas só até ao momento em que são obtidos; até aí, as pessoas

confrontam-se com eles através de abstracções como o dinheiro (ou o

Estado), por intermédio das quais os obtêm; depois da compra (ou

atribuição), a situação muda radicalmente, já que, através desse acto, a vasta

panóplia de mercadorias é substituída pela especificidade de um bem

particular. A sua especificidade constitui-se por oposição a outros bens e está

relacionada com a pessoa do comprador e/ou utilizador esperado. O acto de

compra de um bem específico é o começo de um longo e complexo processo

pelo qual o consumidor trabalha sobre o objecto comprado e o

recontextualiza até, muitas vezes, não mais ser reconhecido como tendo

qualquer relação com o mundo de onde veio – o da produção industrial e do

comércio de mercadorias –, podendo mesmo tornar-se a negação dessas

abstracções quando se transforma em qualquer coisa que não pode ser

comprada nem dada. O consumo pode, então, ser definido como o trabalho de

recontextualização que translada um objecto da sua condição alienável para

uma outra inalienável, e isso deve ser visto como um trabalho de construção

cultural12.

Este trabalho de construção cultural não é visto de modo moralizante, como

na tradição marxista, porque a antropologia do consumo também questiona a validade

da oposição mundo falso (consumir, as necessidades forjadas pela ideologia e pelo

modo de produção) e o mundo verdadeiro (trabalho não alienado, relação criativa e

espontânea entre sujeitos e consumo):

[para a tradição marxista] o sistema promete liberdade, por exemplo, e parece

dá-la sob a forma de opção de consumo, mas nega a forma mais básica de

liberdade: trabalho não alienado e uma relação criativa entre sujeitos e

objetos, as pessoas e seu mundo. Mas um argumento desses, incômodo para o

pensamento contemporâneo, requer não só que aceitemos, mas que

esperemos que as pessoas (na verdade, toda uma população) sejam

“falsamente conscientes”, que pensem estar satisfeitas quando, na realidade,

não estão, que pensem ser livres e, contudo, sejam dominadas econômica e

burocraticamente. Em síntese, esse argumento requer que distingamos (...)

entre o que as pessoas pensam que querem e o que o analista pensa que elas

realmente precisam. (...) O problema é que conceitos substantivos e críticos

de necessidade (...) são necessários, mas também são indefensáveis ou

12 DUARTE, Alice, Op. Cit., p. 16. Sobre Miller, cf.: MILLER, David, Material Culture and Mass

Consumption. Oxford, Basil Blackwell, 1987.

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perigosos. (...) Quando as instituições e os discursos modernos proclamam ser

autoridade em relação às necessidades das pessoas e, além disso, quando

procuram legitimar a autoridade de seu conhecimento das necessidades por

meio da ciência, da razão ou da verdade, podem constituir-se eles mesmos

como uma forma particularmente insidiosa do poder totalitário: (...) é

antidemocrática no sentido mais ameaçador possível e tem o poder social de

impor suas definições de necessidades ao indivíduo na vida cotidiana

prática13.

Ao invés de buscar um julgamento moral, a atual antropologia do consumo

pesquisa a ressignificação das mercadorias na vida das pessoas — não é um estudo

sobre relações de poder ou da identidade de classe (e é por isto que Bourdieu é

frequentemente criticado nesta nova tradição, ainda que sua obra também faça parte

de uma nova concepção de compreensão do consumo14), mas um estudo particular,

singular, das apropriações dos objetos como modos de construção cultural.

3. Interfaces entre arte e antropologia do consumo15

Em A Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer fazem uma longa

interpretação do canto XII da Odisseia, canto que contém uma das passagens mais

reconhecidas da obra de Homero. Ciente dos perigos mortais do canto das sereias,

Ulisses16 solicita que seus marinheiros tampem os ouvidos com cera e o amarrem no

mastro da embarcação. Nesta passagem, Adorno e Horkheimer vislumbram a

antevisão da sociedade burguesa totalmente esclarecida: mutilação da natureza

(inclusive a natureza interior), sacrifício e dominação.

13 SLATER, Don. Op. Cit., p. 121, 128. 14 Sobre isto, cf.: DUARTE, Alice, Op. Cit. 15Uma pequena parte das reflexões de Adorno e Horkheimer que trazemos aqui foram publicadas

originalmente em TEZZA CONSENTINO, André. Teoria Crítica da Indústria Cultural: Dialética

da Reavaliação do Conceito. Dissertação de mestrado defendida no departamento de Filosofia

(UFPR), 2011. 16 Adorno e Horkheimer usam a forma latina Ulisses, a mais usual até então, e não Odisseu, a tradução

preferida hoje. Neste artigo, para evitar confusão, também usaremos a forma Ulisses.

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Na interpretação frankfurtiana, para dominar o mito, que aqui se confunde

com a própria natureza, Ulisses se utiliza da astúcia da razão instrumental — porém, o

efeito diverge da simples emancipação do medo: os mecanismos racionais são os

mecanismos técnicos e científicos que não só subjugam as sereias, mas também

subjugam os homens. Quanto aos homens, o sentido de dominação é múltiplo:

dominação repressiva da natureza interna (em Ulisses) e dominação sobre a força de

trabalho (nos marinheiros). O canto é a arte ou aquilo que sobrou dela no mundo

esclarecido — a impossibilidade da práxis, um “mero objeto de contemplação”17

reservado aos senhores:

Amarrado, Ulisses assiste a um concerto, a escutar imóvel como os futuros

frequentadores de concertos, e seu brado de libertação cheio de entusiasmo já

ecoa como um aplauso. Assim a fruição artística e o trabalho manual já se

separam na despedida do mundo pré-histórico. A epopeia já contém a teoria

correta. O patrimônio cultural está em exata correlação com o trabalho

comandado, e ambos se baseiam na inescapável compulsão à dominação

social da natureza.18

Desta interpretação crítica, ao invés de um julgamento moral sobre as

relações de poder e sobre a contemplação artística, preferimos a perspectiva

antropológica — sim, “a epopeia já contém a teoria correta”, mas a teoria pode ser

de natureza distinta.

No canto VIII da Odisseia, Ulisses, após ter sua jangada destruída por

Netuno (Poseidon para os gregos), chega à praia de Esquéria. É o território dos

feácios e ali Ulisses é recebido como um herói, um hóspede ilustre do rei Alcínoo. Na

estrutura da Odisseia, este é um momento decisivo, porque, com um engenhoso

17 ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, Op. Cit., p.45 18 Idem, p.45. Ainda que a associação entre o canto mitológico e um concerto pareça estranha à

primeira vista, na própria Odisseia, quando a feiticeira Circe alerta Odisseu sobre os perigos das

sereias, a mesma aproximação é feita: “Tampa com cera os ouvidos dos teus companheiros para não

caírem na armadilha sonora. Se, entretanto, quiseres o mel do concerto delas, ordena que te amarrem

de pés e mãos ereto no mastro. Que o nó seja duplo. Entrega-te, então, ao prazer de ouvi-las”.

HOMERO. Odisseia, v.2: Regresso. Tradução do grego de Donaldo Schüller. Porto Alegre: LP&M,

2008, p. 217. Grifo nosso.

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flashback, é na casa dos feácios que o leitor começa a entender a história pregressa de

Ulisses. A narrativa não é linear — enquanto hóspede ilustre, Ulisses conta as suas

aventuras anteriores para o deleite dos feácios e somente a partir desta história dentro

da história que entendemos o heroísmo do protagonista. Na felicidade de hospedar

um virtuoso como Ulisses, Alcínoo ordena que o tratem com distinção:

Falou, então, o soberano [rei Alcínoo] a seus ilustres remeiros:

‘Rogo a atenção dos guias e dos conselheiros. Tenho

a impressão de que nosso visitante é dos mais sensatos.

Os costumes determinam que demonstremos com

presentes nossa hospitalidade.’19

Na Odisseia, portanto, os costumes determinam que, na ocasião da

hospitalidade, os hóspedes recebam presentes — os presentes são mercadorias. Entre

os presentes que Ulisses recebe dos feácios: 12 túnicas e 12 mantos distintos; 12

moedas de ouro; espada com lâmina de bronze, punho de prata e bainha de marfim;

banho quente em uma banheira (“Lá usufruía de tratos próprios a um deus.

Banharam-no as servas e ungiam-lhe a pele, revestindo-lhe o corpo com uma túnica e

um manto de lã”20); vinho; banquete (lombo de porco).

Há vários aspectos aqui a se considerar para uma perspectiva da antropologia

do consumo. Um primeiro aspecto, é a dissociação entre necessidade e função — a

lâmina de bronze para ser mais ou menos eficaz não exige a bainha de marfim. A

bainha de marfim é um supérfluo — a necessidade do supérfluo, portanto, não é a

consequência de um modo de produção econômico, de um hábito forjado por

instrumentos ideológicos capitalistas, mas uma construção cultural, uma

19 HOMERO. Op. Cit., p. 101 (Canto VIII, 386-390). 20 HOMERO, idem, p. 105 (Canto VIII, 452-455).

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ressignificação a partir do consumo. O mesmo pode-se dizer da túnica distinta — uma

túnica, se fosse produzida por uma necessidade humana estritamente material, não

precisaria ser distinta, mas suficiente para a proteção do vento, do frio ou da chuva. A

distinção é também um modo de identidade e, novamente, as mercadorias não estão

associadas necessariamente com uma forma de produção capitalista, forma que

surgiria somente muitos séculos depois da narrativa homérica (segundo algumas

teorias contemporâneas, a Odisseia foi criada no século VIII a.C.). Finalmente,

Ulisses ganha presentes porque ele é bem-amado pelos feácios — dar (e comprar)

presentes como um ato de amor é um hábito contemporâneo de enorme alcance,

hábito que não passou desapercebido pela antropologia do consumo21. Há dúzias de

exemplos na Odisseia para compreender a necessidade de consumir não a partir de

uma matriz econômica, mas a partir de uma matriz da condição humana:

(...) em vez da falácia de considerar a cultura do consumo como a gratificação

de um prolongado trabalho industrial historicamente postergada, preferimos

supor que suas características básicas são dadas e inexplicadas, e não

apenas precedem o capitalismo, mas são de algum modo naturais e eternas.

A questão central é, portanto, a seguinte: de que modo a ideia e a prática do

consumo foram transformadas e reavaliadas? E essa é uma questão que

precisa ser respondida para explicar não só a cultura do consumo, mas o

próprio surgimento da modernização industrial22.

Na ótica de Slater é o fascínio da mercadoria que propulsiona a produção —

e não o contrário, como é o habitual na tradição marxista. As mudanças das práticas

do consumo são o que podem reconstruir a história da produção, da industrialização e

da modernidade.

Se na antiguidade clássica, a partir da Odisseia, é possível fazer uma

etnografia do consumo com o enredo e as situações dos personagens, na modernidade

esta etnografia é potencializada. Em parte, porque a modernidade é o

21 MILLER, David. A Theory of Shopping. Nova Iorque, Cornell University Press, 1998. 22 SLATER, Don. Op. Cit., p. 26. Grifo nosso.

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desenvolvimento do indivíduo frente às forças coletivas — neste desenvolvimento,

não só a ciência se desenvolve, mas também a ascensão do comércio e as práticas

burguesas. Os costumes vão lentamente se distanciando da tradição e o homem é mais

livre para a construção de sua própria história. Deste modo, os valores terrenos (o

consumo, o efêmero, a moda, a fruição da arte, o desenvolvimento do capitalismo)

ganham força sobre os valores de transcendência. É um fenômeno tipicamente

ocidental — mas que, na modernidade tardia, com a globalização, terá o potencial de

se universalizar. A modernidade pode ser, então, considerada como um movimento

progressivo de liberdade (individual) sobre a tradição (coletiva).23

O início da modernidade, em especial durante o Renascimento, é um campo

fértil para uma etnografia artística do consumo. Afinal, uma das formas tradicionais

de se avaliar o Renascimento é articular o tempo e espaço da arte com o tempo e o

espaço da história. Se na história do Renascimento, há o desenvolvimento da ciência,

da matemática, da mecanização (e, por extensão, dos bens de consumo), em caminho

similar, na história da arte renascentista, vislumbra-se o desenvolvimento da

perspectiva, do uso de materiais cada vez mais sofisticados para a pintura

(multiplicando as possibilidades cromáticas). Se na história do Renascimento, há o

início do capitalismo, na pintura renascentista, surgem o cavalete e a tela, e os

quadros podem ser negociados de modo autônomo, ágil, ganhando um mercado

distinto de todas as transações comerciais pregressas na arte. Se o Renascimento é

ascensão do indivíduo, na arte, é a ascensão do artista individual, que imprime pela

primeira vez sua assinatura no quadro (o que determinará seu valor no mercado) e que

se autorretrata. Se o Renascimento é o renascimento das cidades, do mundo urbano, a

arte renascentista é também a temática de interiores e não mais exclusivamente a

iconografia religiosa24.

23 LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 24 O Renascimento é um assunto de bibliografia vasta, mas um livro particularmente importante para as

considerações aqui listadas é SVECENKO, Nicolau. O Renascimento. São Paulo: Atual Editora Ltda,

1990.

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Em O Casamento dos Arnolfini, de Jan Van Eyck, é possível observar todas

estas marcas renascentistas somadas — inclusive o autorretrato: o artista aparece

refletido no espelho central da obra. Mas o que nos interessa aqui é um olhar sobre as

mercadorias. O quadro de Van Eyck não é somente um clássico retrato de bodas, mas

também um retrato de uma realidade burguesa moderna.

Figura 1: O Casamento dos Arnolfini (1434)

Na superfície, a cena representada é como uma foto de casamento dos dias

atuais. Mas os objetos do quadro mostram mais do que uma simples representação. O

quadro é também uma identificação social e cultural. As laranjas eram caras em

Bruges (não eram produzidas em Flandres, mas importadas) e estão arranjadas para

que apareçam de forma displicente na janela — no entanto, nada é displicente no

quadro. As roupas são de inverno, as mais caras do guarda-roupa do casal. E, de modo

contraditório, o clima parece ser de primavera-verão, pois na fresta da janela há uma

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árvore com frutos — o casal se veste para ser visto e não para se aquecer. Há um

tapete persa no aposento — e os tapetes persas já eram distintivos no Renascimento

— bem como um grande e caro candelabro. Em outras palavras, é uma cena para a

celebração não só de um casamento, mas de bens de consumo e associação entre bens

de consumo e felicidade25. É um casal moderno, com o gosto do supérfluo da vida

moderna: não são eles, somos nós.

Neste início de modernidade, a figura de Shakespeare é uma figura central na

história da arte. Hamlet é um herói que frequentou a universidade, que padece com a

dúvida da ação (inexistente no fantasma de seu pai, um homem ainda medieval). É o

homem que pensa antes de agir, é a dúvida e o desespero do homem moderno, já

alheio a um sentido metafísico da existência — homem que irá influenciar o conceito

de niilismo de Nietzsche.

Shakespeare foi não só um ator e dramaturgo de sucesso, mas um homem de

negócios. Enriqueceu como sócio do Globe Theater e não negligenciou aspectos

comerciais na montagem de suas peças — se o principal espetáculo concorrente do

teatro elisabetano era a luta de ursos acorrentados contra cachorros, Shakespeare não

economizou na violência para atrair público.26

Shakespeare é um grande painel da condição humana moderna e a reflexão

sobre a necessidade e desejo não passou em branco na sua obra. Em um trecho

famoso de Rei Lear, comum nas discussões de antropologia do consumo, o próprio

Lear afirma:

Oh, não discutam a 'necessidade'!

O mais pobre dos mendigos possui

ainda algo de supérfluo na mais miserável

coisa. Reduzam a natureza às necessidades

da natureza e o homem ficará reduzido ao

animal: a sua vida deixará de ter valor.

25 CAMPBELL, Lorne. The Fifteenth Century Netherlandish Paintings. London: National Gallery,

1998. DE VOS, Dirk. The Flemish Primitives. New Jersey: Princeton University Press, 2002. 26 FRYE, Northrop. Sobre Shakespeare. São Paulo: Edusp, 1999. HONAN, Park. Shakespeare: uma

vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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Compreendes por acaso que necessitamos

de um pequeno excesso para existir?27

Como em Ulisses, a necessidade não é em função da sobrevivência – o

excesso, o luxo são partes daquilo que nos faz humanos.

No painel shakespeariano do consumo está também a invenção de uma

palavra nova que no futuro representará, como poucas, o imaginário do consumo. Não

deixa de ser sintomático que entre as centenas de palavras do inglês inventadas por

Shakespeare está advertising, que apareceu pela primeira vez em Medida por Medida

(c. 1603)28 . É um resumo e um sintoma do que tratamos até aqui: ao invés de

compreender o consumo como uma elaborada construção ideológica, com fins de

dominação e falsificação do mundo, melhor considerá-lo um aspecto inalienável da

condição humana, em especial da condição humana moderna.

A publicidade, nesta nova abordagem antropológica, não pode mais ser

considerada a invenção ou a instauração de um desejo, mas a extensão de um

processo longo, muito mais antigo que a condição dos meios de comunicação de

massa e divorciada de uma necessidade de economia de produção.

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