fátima bayma de oliveira - recuperação de empresas - pesquisável - ano 2006

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RECUPERAÇAO DE EMPRESAS UMA MÚLTIPLA VISÃO DA NOVA LEI Lei 11 .101/05 de 09.02.2005 FÁTIMA BAYMA DE OLIVEIRA

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RECUPERAÇAO DE EMPRESAS

UMA MÚLTIPLA VISÃO DA NOVA LEI

Lei 11.101/05 de 09.02.2005

FÁTIMA BAYMA DE OLIVEIRA

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RECUPERAÇAO DE EMPRESAS

UMA MÚLTIPLA VISÃO DA NOVA LEILei 11.101/05 de 09.02.2005

Pearson Education

EMPRESA CIDADA

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RECUPERAÇAO DE EMPRESAS

UMA MÚLTIPLA VISÂO DA NOVA LEILei 11.101/05 de 09.02.2005

Organizadora

FÁTIMA BAYMA DE OLIVEIRA

P E A R S O N

PrenticeHall

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Recuperação de empresas : uma múltipla visão da nova le i: Lei nQ 11.101/05 de 09.02.2005 / organizadora Fátima Baym a de Oliveira. —São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2006.Vários autores.Bibliografia.ISBN 85-7605-070-61. Falências - Leis e legislação 2. Falências - Leis e legislação - Brasil 3. Recuperação judicial (Direito) - Leis e legislação - Brasil I. Oliveira, Fátima Bayma de. II.Título.

06-0720________________________________________ CDU-347.736(81 )(094.56)

índices para catálogo sistemático:

1. Brasil: Leis comentadas: Falência: Direito comercial 347.736(81 )(094.56)

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S u m á r i o

Apresentação.......................................................................................................................... vnPrefácio .................................................................................................................................. ixIntrodução .............................................................................................................................. xi

C A P ÍT U LO 1

C o n s t r u i n d o u m r e f e r e n c i a l

Uma reflexão in ic ia l.................................................................................................. 2N f w t o n d e Lu c c a

Prevenção de crises e recuperação de em presas................................................... 7J o r g f . Q u f ir o z

Recuperação judicial da em p resa ........................................................................... 21J o r g e Lo b o

Responsabilidade dos administradores na nova Lei de Falência e Recuperaçãode Empresas .............................................................................................................. 25

A d a l b l r t o S im ã o F i l h o

C a p ítu lo 31

R e f l e x õ e s a p a r t i r d a l e i n - 1 1 . 1 O I / 0 5

O impacto econômico da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas . . . 32A l o ís io P e s s o a d e A r a ú /o e B r u n o F u n c h a l

A nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas — perspectivas.................. 43A n t o n io C a r l o s E s i l v l s To r r l s

Recuperação de empresas: interesses e posicionamentos na n eg o c iação .......... 46A n t o n io C a r d o s o T o r o

O papel do poder judiciário na aplicação da Lei 1 1.101/05 ............................... 51C a r l o s H e n r iq u e A b r ã o

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vi Sumário

Reflexões sobre a nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas e suaracionalidade econômica ........................................................................................ 56

D a n ie l K . G o l d b ír g

A importância das novas regras de prioridade da falência para agovernança dos credores ........................................................................................ 61

E d u a r d o L u n d b l r c

C a p í t u l o 67A p r e c i a n d o a L ei C o m p l e m e n t a r n - 1 1 8 / 0 5

Lei complementar n ° 118/05 e seus reflexos na recuperação de em presas......... 68O s m a r S im õ e s

Artigo 3fi da Lei Complementar n~ 118/05: prazo para pedir devoluçãode tribu to .................................................................................................................... 71

C o n d o r c e t R e z e n d e

C a p í t u l o J k _77

A b o r d a g e n s e s t r a t é g i c a s

Gestão das micro e pequenas empresas no Brasil: desafios e perspectivas........... 78A n d r ( S ilv a S p ín o ia

Estresse empresarial no Brasil e a nova Lei de Falência e Recuperaçãode Empresas .............................................................................................................. 84

/STVAN KAROLY KASZNAR

Aspectos relevantes do instituto da recuperação judicial e necessáriamudança cultural ...................................................................................................... 89

L u iz F e r n a n d o Va l e n t e d e Pa iv a

Fundos de investimentos em empresas em recuperação....................................... 96L u iz L e o n a r d o C a n t id ia n o

A nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas e a CLT — conflitos de interpretação.............................................................................................................. 99

Lu c ia n o V iv e ir o s

O instituto da falência no novo regime brasileiro ................................................. 101F ia v ia S a r a iv a A y d e C is e l a P im e n t a C a d e ih a

Pequenos negócios, empreendedorismo e a nova Lei de Falência eRecuperação de Empresas: considerações sobre o Brasil contemporâneo ......... 1 05

F á t im a B a y m a e F r a n c is c o M a r c e l o Da r o n e

C a p í t u l o 113

E s t u d o d e c a s o s

O caso Pa rm a la t........................................................................................................ 114J o e l L l j ís T h o m a z B a s t o s

Nova lei brasileira de Falência e Recuperação de Empresas: umacomparação com as normas in ternacionais........................................................... 117

G o r d o n W . J o h n s o n

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A p r e s e n t a ç ã o

Po ssib ilitar aos p ro fission ais do sistem a p rod u tiv o as n ecessárias p ercep ções p ara co n ­d u zir a gestão d os seu s negócios em co n son ân cia com as ex ig ên cias da nova L ei de F a­lên cia e R ecu p eração d e E m p resas sign ifica garan tir os co n h ecim en to s n ecessário s p a­

ra um a g estão m ais com p eten te .O s q u estio n am en to s p ro m o v id o s p elo au m en to da d en sid ad e de um reg im e ju ríd ico

de in so lv ên cia são m u itos e com p lexos.O esta b e lec im en to d e um sistem a n o rm a tiv o co m red u zid a s im p lic id ad e , en v o lv en ­

do a in teração fin a lís tica de d iv ersas áreas d o d ire ito , trad u z a ex istên cia d e p ro ced im en ­tos o p eracio n a is qu e p ro v o cam in ten so q u estio n am en to q u a n to às m elh o res e m ais ju sta s so lu ções.

E n ten d en d o qu e essa tem ática é re lev an te , na linha d e sem in ário s asso ciad o s ao s in s­tru m en to s leg a is qu e reg em as em p resas , a F u n d ação G etu lio V argas, em p arceria co m a F ed eração d as In d ú strias d o E stad o do R io de Jan e iro (F ir jan ), ag iram p ro ativ am en te , g a ­ran tin d o a rea lização d e ev en to v o ltad o p ara a fa lên cia e recu p eração d e em p resas.

A asso ciação da ex p eriên cia acad êm ica da F u n d ação G etu lio V argas co m o qu e p en ­sam os m ais ilu stres p ro fiss io n a is da área p erm itiu qu e, d u ran te d o is d ias, a co n tecesse o sem in á rio n a c io n a l "N o v a Lei d e R e cu p era çã o d e E m p resas: A sp ecto s Ju ríd ico s , G estã o E m p resaria l e T u rn rou n d" .

E xp loran d o o m od elo o rgan izacion al já v itorioso , n esse sem in ário , d os en con tros orais foram g erad os, m ed ian te g rav ação segu id a de tran sco d ificação , os textos qu e in tegram e s ­te livro.

U m a co m p reen são im ed iata da lóg ica-estru tu ração qu e su p o rta a o rgan ização d a obra p o d e ser ob tid a p ela le itu ra d os seu s p rin cip ais ob jetivos:

• co n h ecer os co n teú d o s qu e d efin em o cen ário no qu al se ap licará a nova lei;• ex p lo rar asp ecto s d iv erso s da nova lei, am p lian d o as p ercep çõ es sob re su a im p o r­

tância ;• ap reciar a Lei C o m p lem en tar nü 118/05;• trab alh ar v ariações estra tég icas in flu en ciad as p ela n ov a lei;• ap reciar caso s concretos.

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viii Apresentação

Este livro está d iv id id o em cin co cap ítu los, n os q u ais se ach am inserid os os artigos de cad a orador. C ad a cap ítu lo define um a com binação de tem ática entre os artigos nele alocados.

A ssim , o C ap ítu lo 1, in titu lad o "C o n stru in d o um referen cia l", b u sca o ferecer ao le ito r os e lem en to s q u e a ju d am a co m p o r o cen ário p ro d u tiv o , o b je to da ap licação da n ov a lei. O ferecem v alio sa co n trib u ição n esse cap ítu lo N ew to n de L u cca, Jo rg e Q u eiroz , Jo rg e L obo e A d alb erto S im ão Filho.

O C ap ítu lo 2, "R e flex õ es a p artir da Lei n ü 11 .101/ 05", m ed ian te a seleção de asp ectos d istin tos, p ossib ilita o b serv ar a ap licação da lei p or d iferen tes óticas. N esse cap ítu lo , vam os ap reciar a p restim o sa co lab o ração de A lo ísio P esso a de A raú jo , B ru n o F u n ch al, A n to n io C arlo s E stev es Torres, A n to n io C ard oso Toro, C arlo s H en riq u e A b rão , D an iel K. G old berg e E d u ard o L undberg .

O C ap ítu lo 3 , "A p recia n d o a L ei C o m p lem en tar nü 118/ 05", ob jetiva ap reciar asp ectos esp ecífico s da Lei C o m p lem en tar nQ 118/05 com as co m p eten tes ab o rd agen s de O sm ar S i­m ões e C o n d o rcet R ezende.

U m co n ju n to d e d iferen tes asp ecto s de cará ter estra tég ico m ereceu d iferen tes ab ord a­gen s n o s textos de A n d ré S ilv a Sp ín o la , Istv an K aroly K aszn ar, Luiz F ern an d o V alente d e Paiva, Luiz L eonard o C an tid ian o , L u cian o V iveiros, Fia v ia Saraiva Ayd, G isela P im enta G a­d elh a, F átim a B aym a e F ran cisco M arce lo B aron e, in teg ran d o o C ap ítu lo 4 , "A b o rd a g en s estra tég icas".

F in alm en te, o C ap ítu lo 5, "E stu d o de c a so s" , abord a situ açõ es co n cretas ex tra íd as da realid ad e, n os co m p eten tes textos d e Jo e l Luís T h om az B astos e G ord on W. Joh n son .

C ab e-n os d estacar a a ju d a in can sável de Fern an d a d os San to s S ilv a , Jan e L acerd a Leo- p o ld in o e M arce lo So u za d os S an to s p ara a rea lização d os serv iço s d e red ação d e cartas, a ten d im en to te lefôn ico , in scrição , red ação e ap o io n o ev en to , a q u em ag rad ecem o s p ela p a­ciên cia e d en o d o em tornar real a co n ju n ção de tantas p esso as em tão p o u co tem po.

É tam b ém d a m aio r re lev ân cia reg istrar que o sem in ário , e so b retu d o este liv ro , n ão p o d eriam ex istir sem o p atrocín io e ap o io g en eroso , ab erto e d estacad o d as im p ortan tes or­gan izações: F irjan , IBG T, F inep , Sebrae, B rad esco , D ivulgar, Em erj, Varig, P ricew aterh ou se- C oop ers, P in h eiro N eto A d v o g ad o s, O A B -R J, M otta F ern an d es A d v ogad os.

P or fim , ag rad ecem o s a todos os que co n tribu íram de um a form a ou d e outra p ara tor­n ar esta obra um a realidade.

D ese jam o s a todos u m a in teressan te e p rofícu a leitura!

F á tim a B a y m a [email protected]

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P r e f á c io

Garan tir a g eração de riq u ezas e p rom ov er a criação d e em p reg os co n stitu em os p i­lares d e um em p reen d im en to prod u tivo .

U m d os g ran d es m érito s da n ov a Lei d e F alên cia e R ecu p eração d e E m p resas é a p rio rid a d e d ad a à m an u ten ção da em p resa e d o s seu s recu rsos p ro d u tiv o s. N esse sen tid o , a n ov a lei, ao su b stitu ir a co n co rd ata p ela recu p eração ju d ic ia l ou ex tra ju d ic ia l, au m en to u a ab ran g ên cia e a flex ib ilid ad e n os p ro cesso s de recu p eração d e em p resas, p o r m eio d e a l­tern ativ as p ara su p eração d as d ificu ld a d es eco n ô m ica s e fin an ce iras p ela em p resa d ev e- d ora. C o m o co n seq ü ên cia , os em p reg o s, os p ag am en to s aos cred o res e as d em ais fu n çõ es so cia is d a em p resa são p reserv ad os.

A ssim , en q u an to o D ecreto -le i n 2 7 .661/ 45 tin h a p o r o b je tiv o p rim ord ia l p ro teg er os in teresses en v o lv id o s na relação cred or-d eved or, a lei ora v igen te p o ssib ilita qu e as em p re­sas em crise vo ltem a torn ar-se co m p etitiv as, de form a a co n trib u ir para o d esen v o lv im en ­to da eco n o m ia , b en efic ian d o a so cied ad e co m o um todo.

O u tro asp ecto in tro d u zid o p ela n o v a lei, fu n d am en ta l p ara a eco n o m ia d o p a ís , d iz resp eito à ce lerid ad e d o p ro cesso fa lim entar, p o ssib ilitan d o até m esm o a d en o m in ad a 're a ­lização d o a tiv o a n te c ip a d a '. N o reg im e d o d ecre to -le i, o re ferid o p ro cesso a rra sta v a -se p o r m u itos an o s, p ro v o can d o a ru ín a do p a trim ô n io da em p resa fa lid a , a d esistên cia p o r p arte de in v estid o res, en fim , en o rm e p re ju ízo social.

R ecuperação d e em presas: um a m últipla visão da nova lei traz para o universo dos profissio­n ais envolvidos o pronunciam ento de especialistas que, a partir de seu conhecim ento e expe­riência, proporcionam a p lena com preensão da nova Lei n Q 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.

E d u a rd o Eu g ên io G o u v ê a V ie iraPresidente da Firjan

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PÁGINA EM BRANCO

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I n t r o d u ç ã o

Ap ós lon g a tram itação n o C on g resso N acion al, foi san cio n ad a e en co n tra-se em plena v ig ên cia a L ei ny 11 .101/ 2005, q u e cu id a da recu p eração d e em p resas e su b stitu i a an tig a e u ltrap assad a Lei de F alên cias e C on cord atas.

A F u n d a çã o G etu lio V argas (F G V ), em p a rceria , faz p u b lica r o liv ro R ecu p eração d e em p resas : um a m ú ltip la v isão da n ova lei, lev a n d o ao le ito r as re flex õ es e co m en tá rio s de um d iv e rs ifica d o c o n ju n to de p ro fesso res e e sp e c ia lis ta s n o tem a, p o sic io n a n d o -se a a ca d e ­m ia co m o u rn a rastread o ra a ten ta d os d esa fio s q u e em erg em d os d iv erso s seg m en to s da eco n o m ia e o rg a n iz a n d o , a rticu la d a m e n te , os co n teú d o s q u e p o ss ib ilita m a am p la co m ­p reen são d o s n o v o s ce n á rio s , ao se u n ir aos n o m es m ais n o tá v e is d o seg m en to co n sid era ­do, p ro d u z in d o co m o resu lta d o a co n stru çã o d e a tiv id a d es e tex to s d e fo rte p o d e r d id á- tico -p ro fissio n a l.

N ão h á d ú v id as, n o m eio em p resaria l e acad êm ico , d e q u e a L ei n c 11.101/ 2005 trou ­xe im p o rtan tes e m o d ern iz a n tes n o v id ad es q u e em m u ito irão co n tr ib u ir p ara a red u ção do risco d e créd ito , p ara a ad eq u ad a p ro teção d o s d ire ito s trab a lh istas e cred itó rio s , ao m esm o tem p o v iab ilizan d o a recu p eração de em p resas em d ificu ld ad es co n ju n tu ra is .

É n ossa esp eran ça qu e o livro seja n ão ap en as esclareced o r aos agen tes q u e d ele farão u so — em esp ecia l os in teg ran tes d o P o d er Ju d iciário , os em p resário s, os n eg o ciad o res e os cred ores — co m o tam bém aos estu d an tes de d ireito , econ om ia e finanças.

S é rg io F. Q u in te llaVice-presidente

Fundação Getulio Vargas

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C a p ít u l o 1C o n s t r u i n d o

U M R E F E R E N C IA L

Um a re flexão in ic ia l Newton de Lucca

P re ve n çã o de crises e recu p eração de empresas Jorge Queiroz

Recuperação ju d ic ia l da empresa jorge Lobo

Responsabilidade dos adm in istradoes na n o va Lei de Fa lên c ia e Recuperação de Empresas

Adalberto Simão Filho

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U m a reflexã o in ic ia l

Newton de Lucca

Por mais inacreditável que possa parecer, foi dada à estampa, em edição extra do Diá­rio Oficial da União do dia 9 de fevereiro de 2005, a Lei nü 11.101, nessa mesma data sancionada, reformando o combalido — e poder-se-ia mesmo dizer, em tom de bla-

gue, falido — direito falimentar brasileiro. Digo inacreditável porque, depois de numero­sas iniciativas malogradas ao longo de tanto tempo, muito poucos poderiam ter certeza de que o velho Decreto-lei nü 7.661, de 1945, pudesse ser substituído pelo Projeto de Lei nü 4.376/93, de autoria do deputado federal do Rio Grande do Sul, Dr. Osvaldo Biolchi, que já tramitava havia mais de dez anos no Parlamento Nacional.

Ninguém jamais pôs em dúvida o meritório esforço dos consagrados juristas nacio­nais que fizeram nascer aquele velho diploma. Com efeito, para a época em que veio a lu­me, o anteprojeto então elaborado pela Comissão de Notáveis, presidida pelo ministro in­terino da Justiça, Dr. Alexandre Marcondes Filho, e composta pelos eminentes professores Canuto Mendes de Almeida, Filadelfo Azevedo, Hahnemann Guimarães, Luís Lopes Coe­lho, Noé Azevedo e Sylvio Marcondes, significava grande avanço.

Mas aquele texto envelhecera muito rapidamente em razão de vários fatores que serão mostrados a seguir. Assim, era natural que o clamor doutrinário no país — extremamente visível a partir da década de 1960 —, no sentido de que se fazia necessária a reforma de nos­so direito falimentar, fosse ganhando cada vez mais corpo, embora tenha se revelado abso­lutamente inócuo, por prolongado período.

Nem poderia ser de outra forma. Nossa doutrina jurídica, em que pesem os grandes nomes que a engalanaram e a engrandecem até hoje, nunca teve o condão de influir deci­sivamente nos movimentos reformistas de qualquer espécie. Sempre foram outros interes­ses mais fortes, muito bem representados pelas oligarquias dominantes — ou bem pelos poderes político ou cultural detidos por algumas figuras espicaçadas pelo demônio da vai­dade —, que impuseram a permanência ou a mudança de uma determinada disciplina normativa. Mas a doutrina jamais logrou fazer isso...

Mesmo agora — é necessário que se diga, a bem da verdade —, a nova lei não foi o re­sultado de uma reivindicação doutrinária, fruto dos candentes apelos oriundos dos mais expressivos juristas nacionais, mas sim uma opção feita pelos dirigentes da política econô­mica do governo Lula. Não fosse isso, a subsistência do Decreto-lei nü 7.661/45 por mais al-

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Uma reflexão inicial 3

guns anos seria absolutamente inevitável, consoante mostrou a nossa história mais recente, a despeito dos reclamos doutrinários em sentido contrário...

Assim é que, já na década de 1970, dissera o eminente professor Fábio Konder Com- parato, com a propriedade de sempre:

O mínimo que se pode dizer nessa matéria é que o dualismo no qual se encerrou o nosso Direito Falimentar — proteger o interesse pessoal do devedor ou o interesse dos credores — não é de molde a propiciar soluções harmoniosas no plano geral da economia.O legislador parece desconhecer totalmente a realidade da empresa, como centro de múl­tiplos interesses — do empresário, dos empregados, dos sócios capitalistas, dos credores, do Fisco, da região, do mercado em geral —, desvinculando-se da pessoa do empresário.De nossa parte, consideramos que uma legislação moderna da falência deveria dar lugar à necessidade econômica da permanência da empresa. A vida econômica tem imperativos e dependências que o Direito não pode, nem deve, desconhecer. A continuidade e a per­manência das empresas são um desses imperativos, por motivos de interesse tanto social quanto econômico.1

Igualmente o saudoso professor Rubens Requião, um dos paladinos maiores da refor­ma, numa conferência proferida no Instituto dos Advogados Brasileiros, no Rio de Janeiro, em 8 de março de 1974, destacara com idêntica precisão:

Muito mais que o Código Civil e do que o Código de Processo, tanto quanto, sem dúvida, o Código Penal e o Código de Processo Penal, se evidencia e se impõe a reforma da lei falimentar. A falência e a concordata, como institutos jurídicos afins, na denúncia de empresários e de juristas, se transformaram em nosso país, pela obsolescência de seus sis­temas legais mais do que nunca, em instrumentos de perfídia e de fraude dos inescrupu- losos. As autoridades permanecem, infelizmente, insensíveis a esse clamor, como se o país, em esplêndida explosão de sua atividade mercantil e capacidade empresarial, não necessi­tasse de modernos e funcionais instrumentos e mecanismos legais e técnicos adequados à tutela do crédito, fator essencial para o seguro desenvolvimento econômico nacional.

E, assim, continuará a viger, até o dia 9 de junho de 2005, o velho diploma normativo de 1945, calcado na figura do comerciante individual, inegavelmente meritório para a épo­ca em que foi editado, como já salientado,2 mas inteiramente anacrônico para a realidade econômica do presente, na qual o papel da empresa moderna veio preponderar de forma definitiva sobre aquele que fora desempenhado pelo antigo comerciante.

Com efeito, ninguém que tivesse um mínimo de sintonia com a realidade da empresa — concebida como a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, tal como constara da definição do empresário no art. 2.082 do Código

1 Aspectos jurídicos da macroempresa. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1970, p. 102.: Razão assistiu, por certo, ao então ministro interino da Justiça, Alexandre Marcondes Filho — em substituição

ao titular daquela Pasta, o Dr. Francisco Campos —, ao afirmar, na Exposição de Motivos anexada ao texto do anteprojeto encaminhado ao presidente da República (e que se converteria mais tarde no Decreto-lei n“ 7.661/45), estar certo de que, "decretando uma lei elaborada por grandes valores jurídicos e após um longo pe­ríodo de consulta a todos os interessados, Vossa Excelência prestará inestimável serviço à vida econômica do país". Para a época em que foi editado, sem dúvida, terá prestado mesmo.

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4 Capítulo 1 Construindo um referencial

Civil italiano, e como consta agora no art. 966 do nosso novo Código Civil de 2002 — po­deria deixar de aplaudir o impulso reformista, fossem quais fossem as limitações e as eventuais impropriedades dos textos que já tramitaram no Congresso Nacional.

Quero dizer, com tais considerações introdutórias, que o primeiro grande mérito do novo diploma legal que regula a recuperação judicial a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária há de ser, com toda certeza — não obstante algumas de suas no­táveis contradições —, a sua própria existência. A relevância do tema é deveras conside­rável, razão assistindo a Ascarelli, por certo, ao afirmar que "as normas sobre a insolvên- cia do emjpresário comercial constituem um dos capítulos mais importantes do direito co­mercial".

Antes de encerrar estas breves considerações introdutórias, desejo justificar a minha afirmação no sentido de que a primeira virtude da Lei n~ 11.101/05 há de residir, sem dú­vida, no próprio fato de sua existência. O instituto da falência é, na verdade, um dos mais importantes no âmbito do direito comercial, embora fosse exato dizer, com o nosso gran­de Carvalho de Mendonça,5 que ele extrapola os limites do direito mercantil, ainda que es­te tenha se tornado um direito empresarial, ultrapassando as nebulosas fronteiras do que se convencionou chamar de direito privado.

Já em 1955, o gênio profético de Ascarelli houvera se apercebido da enorme defasagem dos vários institutos reguladores da crise econômica da empresa.

No que se refere ao nosso Direito, as considerações do citado jurista não poderiam ser mais atuais e pertinentes. A influência marcadamente processualista de nossos insti­tutos falimentares é por demais evidente, e a ela não terão ficado imunes nem mesmo ju­ristas pátrios de renome, tais como Carvalho de Mendonça, Miranda Valverde e Pontes de Miranda.

Referida doutrina brasileira foi muito influenciada pela visão de Salvatore Satta, um dos doutrinadores máximos da índole processual da falência na Itália. No prefácio de sua famosa obra, entretanto, denominada Diritto Fallimentare, esse ilustre autor iria revelar, mais tarde, que aquela concepção rigidamente processualista da falência — que, antes, com tanto ardor, houvera defendido — foi-lhe parecendo, com o tempo, não correspon­dente à realidade.

Convenceu-se o grande jurista peninsular de que outros caminhos deveriam ser percorridos para o correto entendimento do instituto da falência, passando pelos seus fundamentos econômico-sociais e pela organização da sociedade em que o mesmo se in-

Não difere muito, igualmente, a noção de empresa fornecida pelo Decreto-lei nu 132, de 23 de abril de 1993, edi­tado em Portugal, sobre os processos especiais de recuperação da empresa e de falência, conforme se pode ver no art. 2- desse texto: "Considera-se empresa, para o efeito do disposto no presente diploma, toda a organiza­ção dos fatores de produção destinada ao exercício de qualquer atividade agrícola, comercial ou industrial ou de prestação de serviços".Corso di Diritto Commerciale. Milão, Giuffrè, 1962, p. 308.Tratado de direito comercial brasileiro, v. 7,5. ed., Livraria Freitas Bastos, 1954, p. 60, onde se lê: "Na verdade, o ins­tituto da falência não se restringe aos domínios do direito comercial; penetra nos do direito público, do direito civil, do direito internacional público e privado, do direito criminal, do direito judiciário, em cada um dos quais vai buscar regras, preceitos e ensinamentos, tendo, muitas vezes, de modificá-los, a fim de adaptá-los ao gran­de meio de execução coletiva que trata de organizar. Inspira-se ainda na ciência econômica, cujos fenômenos não lhe devem ser estranhos, na ciência financeira e na estatística, onde verifica a prova do resultado do seu fun­cionamento".

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Uma reflexão inicial 5

sere. Era necessário, portanto, retomar os movimentos do conceito de empresa. São suas palavras:

Per capire ilfaUimento io mi sono convinto che bisogna percorrere altre strade, ri-salire aifondamenti economico-sociali delVistituto, alYorganizzazione delia società in cuiesso si inserisce: in una parola bisogna prendere le mosse dal concetto di impresa.6

Poder-se-ia dizer, com efeito, com apoio na doutrina dominante, que uma análise crí­tica do conteúdo do nosso Decreto-lei nQ 7.661, de 21.6.1945, ainda que singela, leva às se­guintes conclusões sobre esse velho diploma:

• não pôde ele refletir, em razão da época em que veio a lume, as conseqüências so- cioeconômicas que o segundo conflito mundial provocou nas diversas economias do mundo;

• dirigiu-se fundamentalmente para o comerciante individual, descurando, quase completamente, da importância da empresa enquanto atividade economicamente organizada para a produção ou circulação de bens e de serviços;

• não fez, pelo mesmo motivo do momento histórico em que foi editado, a necessária distinção entre empresário e empresa. Estabelecendo um esquema repressivo em rela­ção ao primeiro, trouxe conseqüências desastrosas para a segunda, enquanto insti­tuição social, com múltiplos interesses a serem preservados. As disposições constan­tes dos artigos 140, inciso III, e 111 do texto legal são suficientes para demonstrar, por si sós, a evidência de tal assertiva;7

• voltou-se, excessivamente, para regular a situação obrigacional entre devedores e credores, exacerbando-se num processualismo tal que os formalismos estéreis e in­conseqüentes culminaram por obnubilar quase que inteiramente a realidade econô­mica, de sorte que o próprio fim da lei — realização do direito dos credores — não logrou ser atingido;

• subsistiu, na lei falimentar brasileira, em conseqüência das concepções anteriores, uma finalidade liquidatório-solutória que é indisfarçável e que só deveria existir nos casos de completa inviabilidade da atividade empresarial. Exemplo: o sistema de impontualidade e não da insolvência (v. art. 1“ e art. 11, § 2Ü). A jurisprudência afirma­ra, inocuamente, que o processo falimentar não se constitui em meio de cobrança, mas

"Para compreender a falência, estou convencido de que é necessário percorrer outro caminho, voltar aos funda­mentos socioeconômicos da instituição, à organização da sociedade em que ela se insere: em uma palavra, é ne­cessário ir-se à origem do conceito de empresa/'Diz o inciso III do art. 140 do Decreto-lei nc 7.661 não poder impetrar concordata o devedor condenado por cri­me falimentar, furto, roubo, apropriação indébita, estelionato e outras fraudes, concorrência desleal, falsidade, peculato, contrabando, crime contra o privilégio de invenção ou marcas de indústria e comércio e crime contra a economia popular. O art. 111 desse mesmo diploma, por seu turno, estabelece que o recebimento da denúncia ou da queixa terá como condão obstar, até sentença penal definitiva, a concordata suspensiva da falência. Nes­ses dois exemplos citados, portanto, a punição ao empresário acarreta, por via oblíqua, uma sanção para a pró­pria empresa. E como salientado, com a costumeira propriedade, pelo eminente e saudoso professor Nelson Abrão (Curso de direito falimentar, 5. ed., 1997, p. 445): "Não há muita coerência num diploma que procura a res­ponsabilização de ordem penal do empresário e de seus gerentes, uma vez que os delitos são estranhos à sorte da empresa, que deve seguir normalmente seu ritmo de atividade, provavelmente na diretriz de profissionais que exponham ao Juízo as dificuldades e o norte de eventual tendência recuperatória".

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6 Capítulo 1 Construindo um referencial

*é assim que tem sido. E verdade que o critério da impontualidade continuou adota­do pela nova lei em exame, mas de forma atenuada, minimizando o caráter típico de meio de cobrança atualmente existente.

Ao fixar um valor mínimo para o requerimento da falência (40 salários míni­mos, conforme o inciso I do art. 94) e propiciar que a falência não seja declarada ca­so o devedor apresente o pedido de recuperação judicial no prazo da contestação (dez dias, segundo o art. 98), de acordo com o disposto no inciso VII do art. 96, su­põe-se que o pedido de requerimento da falência venha a perder um pouco de seu poder coercitivo.

Trata-se de meras conjecturas... O legislador terá sido um pouco tímido, infe­lizmente, nessa tentativa de coibir a utilização da falência como meio de cobrança ao permitir que os credores, nos termos do § 1~ do art. 94 da nova lei, reúnam-se em litisconsórcio a fim de perfazer o limite mínimo para o pedido de falência com base na impontualidade do devedor. De toda sorte, parece que alguma melhora deverá ocorrer...

• subsistiram, igualmente, excessivos privilégios estabelecidos em favor do Fisco, de tal sorte que nem mesmo os credores com garantia real se sentem seguros no mo­mento de concordar com a concessão do crédito. A mudança ocorrida, nesse parti­cular, foi substancial, com a inversão da posição entre os créditos com garantia real e os créditos tributários, passando estes a ocupar o terceiro lugar na ordem de classi­ficação dos créditos, cedendo o segundo lugar para os chamados 'créditos finan­ceiros', consoante os termos do art. 83 da nova lei (incisos II e III).

Todas essas circunstâncias, ainda que sumariamente expostas, parecem levar à conclu­são de que a nova lei falimentar — independentemente de sua real motivação, e sejam quais forem as suas limitações — haverá de trazer muitos benefícios à sociedade brasileira.* Dir-se-á, com razão, não se tratar da lei dos nossos sonhos... Não é, pelo menos, a dos meus so ­nhos... Mas ela está aí e será com ela que precisaremos trabalhar. Acertos e erros, afinal de contas, fazem parte de toda obra humana...

B reve cu rrícu loNevvton de Lucca Mestre, doutor, livre-docente e adjunto pela Faculdade de Direito da Univer­sidade de São Paulo. Desembargador federal do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3à Região. Membro da Academia Paulista dos Magistrados. Membro da Academia Paulista de Direito.

* Diz-nos a respeito o saudoso professor Nelson Abrão (op. cit.), que tanto contribuiu para que o projeto de refor­ma de nosso direito falimentar não ficasse adstrito ao mesmo espírito e à mesma letra da lei vigente: "Destarte, a commums opinio, de modo geral, sem divagações, orientou-se favorável à radical alteração que norteia o diplo­ma em vigor, retirando seu espírito excessivamente processualista, para dotá-lo de forma procedimental con- sentânea com a viabilidade econômica da empresa, e os planos que pretendem preservá-la, sem grandes saltos de qualidade, mas com logicidade e racionalidade indispensáveis aos organismos que atravessam períodos de crise".

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P r ev en ç ã o de crises eRECUPERAÇÃO DE EMPRESAS

Jorge Queiroz

As palavras Turnaround1 e crise tornaram-se comuns no dia-a-dia das organizações. Gestão na adversidade e turbulência é um novo paradigma nas empresas — que veio para ficar.

Gestão de negócios consiste cada vez mais em vencer adversidades oriundas da glo­balização, de períodos de desaceleração e de incertezas, de crises internacionais e domés­ticas, de escassez de capital e crédito, de custo de capital elevado — uma nova era no mundo dos negócios.

Para muitos, palavras como 'insolvência' e 'estrangulamento financeiro' são sinôni­mos de fim de linha; essa interpretação é equivocada, pois o correto seria perguntar: "Se­rá esta uma oportunidade para transformar ou reestruturar a empresa?" Existem inúme­ras experiências de casos dados como sem solução ou inviáveis que foram solucionados com pleno êxito.

A DISCIPLINA DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS

Com a finalidade de aperfeiçoar o conhecimento e preparo dos profissionais para li­dar com esse novo paradigma e evitar que a crise se instale, ou solucionar aquelas já insta­ladas, ou mesmo aproveitar as oportunidades delas oriundas, vem se desenvolvendo no Brasil, ainda que timidamente, a atividade de 'médico de empresas' ou gestor interino, re- cuperador de empresas, atividade já bastante consolidada nos países mais desenvolvidos.

Trata-se de profissionais experientes, preparados para atuar na prevenção e solução de crises, mediante diferentes técnicas e medidas adotadas nos distintos estágios em que a em­presa se encontra em um determinado momento, tanto na esfera não judicial quanto no âm­bito da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas.

1 Turnaround: correção de rumo; reestruturação; recuperação de empresas.

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8 Capítulo 1 Construindo um referencial

A RECUPERAÇÃO DA EMPRESAQuando falamos de recuperação, de preservação de valores, de prevenção de crise, fa­

lamos automaticamente da necessidade de uma abordagem holística, mais abrangente, de gestão e governança. Quando a crise se instala na empresa, o fator mais crítico é o tempo, ou melhor, a falta dele. Deve-se atuar simultaneamente com celeridade e eficácia sobre uma vasta e complexa rede de questões financeiras, jurídicas, fiscais, trabalhistas, estratégicas, operacionais, mercadológicas, contratuais, patrimoniais, societárias e familiares.

Na grande maioria das vezes, o nó está localizado no estrangulamento financeiro, que ataca fortemente todo o sistema nervoso da empresa, deteriorando de forma exponencial sua saúde operacional e econômico-financeira. Dessa forma, a recuperação e readequação passa obrigatoriamente pela otimização do capital empregado no giro e nos demais ativos da empresa.

Contrariamente ao que muitos acionistas controladores pensam, a solução quase sempre está dentro da empresa — desde que ações sejam tomadas em tempo hábil; é ne­cessário fazer o trabalho de casa, pois é muito fácil e tentador iludir-se com justificativas perdedoras e irresponsáveis, imputando a terceiros, credores e governo, problemas essen­cialmente de má gestão.

Gestão é o cérebro de toda a atividade empresarial, do qual deriva toda a sorte da em­presa. Incapacidade ou despreparo gerencial podem selar o fim do negócio. É essencial sa­ber quando e onde buscar ajuda; períodos de turbulência demandam o apoio de profissio­nais especializados em solução de crises, além de dotados de boa reputação e credibilidade no mercado. A utilização de assistência especializada e gestão interina vem crescendo bas­tante no Brasil, principalmente em situações de desgaste e falta de credibilidade.

A NECESSIDADE DE MUDANÇA CULTURALO mais puro dos tesouros que um homem pode ter,É uma reputação imaculada.

Shakespeare (1564-1616)

A atividade de recuperação de empresas é uma nova e complexa disciplina no Brasil. Seu sucesso demanda uma mudança cultural — maior conscientização da necessidade de uma gestão estratégica e inteligente, orientada para a perenização da empresa; da perma­nente necessidade de sua modernização e fortalecimento; reinvestindo suas riquezas ope­racionais para aumentar seu diferencial competitivo, e não sangrá-la. Requer a adoção de uma consciência preditiva e preventiva, uma mudança de comportamento e atitude.

Com efeito, a diferença entre as sociedades pobres e as ricas não é a idade, tampouco os recursos naturais disponíveis.

China, índia e Egito têm mais de dois mil anos e estão entre as nações com os maiores índices de pobreza do mundo. Por outro lado, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, que há 150 anos eram países inexpressivos, hoje são ricos e desenvolvidos.

O Japão possui uma tímida área geográfica, 80 por cento montanhosa, inadequada pa­ra a agricultura e pecuária, mas ostenta a posição de segunda economia mundial. A Suíça, em seu pequeno território, cria animais e cultiva o solo durante apenas quatro meses do ano. Não obstante, fabrica laticínios da melhor qualidade. Detém uma imagem de seguran­ça, ordem e trabalho que a transformou no caixa-forte do mundo.

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Prevenção de crises e recuperação de empresas 9

De igual forma, observamos que não há diferença intelectual e de capacidade de tra­balho entre os executivos dos países mais e menos desenvolvidos. A etnia e a cor da pele tampouco são importantes, uma vez que imigrantes rotulados de preguiçosos em seus paí­ses de origem são a força produtiva em muitos países ricos.

A diferença reside na atitude, nos princípios comportamentais, nos valores morais. Po­demos citar algumas constatações que marcam essa diferença. As nações mais desenvolvi­das cultivam os seguintes princípios de vida:

• a ética, a verdade e a integridade como princípios básicos;• a observação ao princípio da interconectividade, da interdependência;• conduta responsável; respeito e aplicação das leis e regulamentos; respeito aos di­

reitos de seus cidadãos;• o respeito aos princípios de igualdade, remunerando o trabalho mais e menos nobre

com maior eqüidade;• o amor ao estudo, à pesquisa e ao trabalho; os Estados Unidos, sob forte influência

do calvinismo, detinham já no século XVIII o invejável índice de alfabetização de 100 por cento, enquanto no Brasil este não chegava a 10 por cento;

• o esforço pela poupança e pelo investimento;• o desejo de superação;• o repúdio à corrupção, à fraude, à impunidade e à ganância;• a estabilidade e clareza das regras;• impostos justos, com a devida contraprestação de serviços aos contribuintes pelo

Estado;3• fiscalização e cobrança de seus políticos;• estímulo à atividade produtiva;• respeito e preservação do meio ambiente.

Mudança cultural inclui o entendimento do real sentido de riqueza, que reside na ri­queza interior, de princípios e valores não monetizáveis. Da compreensão de que dicoto- mias como zoinner takes ali (o vencedor leva tudo) e we are the champions, those are the losers (nós somos os vencedores, aqueles são os perdedores) são verdadeiras falácias. Existem far­tas evidências que nos mostram que somos todos interdependentes, e que somos todos ven­cedores ou todos perdedores. A cultura da 'lei de levar vantagem em tudo' e do 'deixa pra

2 Apesar de ser um dos países mais ricos do mundo em recursos naturais, o Brasil ostenta um dos maiores ín­dices de concentração de riqueza, de extrema desigualdade e exclusão social do planeta, onde quase a meta­de de toda a renda nacional (PIB — Produto Interno Bruto) está concentrada em apenas 10 por cento de seus 180 milhões de habitantes, conforme estudo do PNUD — Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi­mento. Analisando os 20 por cento mais pobres, o Brasil ficaria colocado na deplorável 115d colocação entre

*os 177 países da pesquisa em termos de índice de Desenvolvimento Humano — IDH do PNUD. O indicador que mede a desigualdade é ainda pior e, por ele, o Brasil se encontra entre os piores do mundo, sendo o oita­vo mais desigual do globo, na companhia de países em que existe grande miséria, como Namíbia, Lesoto e Suazilândia.

3 O Brasil possui a maior carga tributária do planeta, cuja participação em relação ao PIB dobrou nos últimos vin­te anos, com a transferência do setor produtivo da economia para o improdutivo, chegando a 42 por cento do PIB.

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10 Capítulo 1 Construindo um referencialHci_« ■■■

lá' condena uma empresa e uma sociedade ao fracasso. Só uma mudança comportamental nos fará preservar os negócios viáveis e contribuir para elevar o Brasil ao grupo das socie­dades definidas como 'ricas/desenvolvidas'.

A v a n ç o s d o n o v o in s t it u t o d a r e c u p e r a ç ã o ju d ic ia l

A nova Lei de Recuperação Judicial (Lei n* 11.101/05) introduz sem dúvida grandes avanços na esfera do direito concursal, acompanhando uma tendência constatada principal­mente na Europa e nos Estados Unidos de busca do equilíbrio entre a racionalidade econô­mica e a responsabilidade social, segregando a sorte da empresa da do empresário e priori­zando a viabilização e continuidade do negócio.

Esse novo diploma legal corrige uma grande distorção da lei anterior (Decreto-lei nü 7.661/45) na medida em que os credores têm a partir de agora um papel mais ativo nas decisões relativas ao processo recuperatório, incluindo-se o que tange à aprovação do pla­no de reabilitação e à escolha do administrador e do gestor judicial. Apesar de o primeiro ser inicialmente escolhido pelo juiz, este pode ser substituído pela assembléia de credores. Com efeito, os credores perdem a confiança no processo se há a participação de indivíduos vistos como tendo expertise ou independência limitadas. De igual forma, para desempe­nhar seu papel de maneira eficaz, é imperativo que o processo seja conduzido com transpa­rência e boa comunicação.

Com a modernização do direito concursal brasileiro, o país afasta-se do injusto siste­ma patrimonialista, segundo o qual os fundadores ou acionistas controladores decidiam unilateralmente os desígnios da empresa. Em um sem-número de ocasiões podiam-se ob­servar declarações do tipo "se me pressionarem, quebro a empresa". Sem dúvida, o legisla­dor pátrio estava cônscio da necessidade de trabalhar em prol da justiça social e da empre- gabilidade, mediante a preservação da atividade produtiva.

A título ilustrativo, podemos citar o instituto da falência, disposto no Capítulo V da nova lei, que está agora subdividido em

(i) afastamento do controlador com a continuidade do negócio, assegurando-se as­sim a preservação da atividade econômica e de geração de empregos; e

(ii) liquidação, que se dará naqueles casos em que o negócio não mais for viável. Con­trariamente ao que muitos preconizam, a falência sob o novo ordenamento jurídi­co não corresponde à 'morte' da empresa.

C o m itê e assem bléia de credores

A nova lei introduz as importantes figuras do comitê e da assembléia de credores. Além de facilitar o processo decisório, um comitê de credores eficaz irá exercer uma im­portante função na análise e negociação de um plano de reabilitação factível. A experiência demonstra que em circunstâncias nas quais existe um grande número de credores com interesses divergentes, um dos obstáculos mais críticos consiste na resolução de confli­tos. A adoção de um único advisor financeiro facilita inequivocamente a resolução de im­passes.

Uma das principais funções desse advisor é a de conseguir a adesão dos credores ao plano de recuperação. Adicionalmente, o comitê de credores pode auxiliar na melhoria do

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Prevenção de crises e recuperação de empresas 11

fluxo de informações e em uma comunicação mais eficiente. As chances de sucesso de uma reabilitação aumentam conforme o plano de recuperação contemple os diferentes interes­ses econômicos dos credores.

R ecuperação extra jud ic ial e ju d ic ia l

A nova lei introduz ainda a recuperação extrajudicial e judiciai, juntamente com um conjunto de diferentes meios e ferramentas recuperatórias. Existem vantagens e desvanta­gens estratégicas ejurídico-financeiras nas diferentes alternativas. Estas devem ser analisa­das criteriosamente e em tempo hábil, de sorte a evitar mais estragos.

*E importante destacar que, apesar de a lei não impor nenhuma restrição de prazo ao

plano de recuperação aprovado, para fins da mesma o devedor permanecerá em regime de recuperação judicial até que se cumpram todas as obrigações previstas no plano que vence­rem até dois anos após a concessão da recuperação judicial.

A d m in is t r a d o r e g e s t o r ju d ic ia l

Outro importante avanço refere-se à criação das figuras do administrador e do gestor judicial, que exigirão executivos seniores com qualificação e preparo distintos dos antigos comissários e síndicos.

A d m in istra d o r ju d ic ia l

O administrador judicial atua tanto na recuperação judicial quanto na falência, e o gestor judicial, exclusivamente na recuperação judicial, quando do afastamento da admi­nistração da empresa. Sem embargo, o devedor pode e deve contratar profissional ou em­presa especializada em recuperação para assisti-lo na elaboração e execução do plano re- cuperatório com o objetivo de demonstrar seu firme compromisso com a reabilitação da saúde da empresa e dar maior credibilidade ao processo, uma vez que a confiança dos credores em sua gestão na maioria das ocasiões está abalada.

O perfil desses profissionais é o de gestor de crises, experientes na condução e solução de situações econômico-financeiras adversas e complexas, dotados de sólida reputação e credibilidade. Esses profissionais conduzirão seus trabalhos com o apoio de outros profis­sionais, como advogados, contadores e outros que vierem a ser necessários.

Na mesma linha, no que concerne ao administrador judicial, Fábio Ulhoa Coelho des­taca que

[...] ele deve ser profissional com condições técnicas e experiência para bem desempe­nhar as atribuições cometidas por lei. Note-se que o advogado não é necessariamente o pro­fissional mais indicado para a função, visto que mintas das atribuições do administrador ju­dicial dependem, para seu bom desempenho, mais de conhecimentos de administração de empresas do que jurídicos. O ideal é a escolha recair sobre pessoa com conhecimentos ou ex­periência na administração de empresa do porte da devedora e, quando necessário, autorizar a contratação de advogado para assisti-lo ou à massa.4

1 Fábio Ulhoa Coelho, Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, p. 57.

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12 Capítulo 1 Construindo um referencialIK -— -Á M ■

Destaca ainda que

[ ...] o Administrador Judicial (que pode ser pessoa física ou jurídica) é o agente au­xiliar do juiz que, em nome próprio (portanto, com responsabilidade), deve cumprir com as funções cometidas pela lei. Além de auxiliar o juiz na administração da falência, o ad­ministrador judicial é também representante da comunhão de interesses dos credores (massa falida subjetiva) na falência. Exclusivamente para fins penais, o administrador judicial é considerado funcionário público. Para os demais efeitos, no plano dos direitos civil e administrativo, ele é agente externo colaborador da justiça, da pessoal e direta confiança do juiz que o investiu na função.5

O administrador judicial supervisiona a operação do negócio, tecendo recomendações quanto à viabilidade do plano recuperacional, podendo em certas circunstâncias elaborar o plano, o que requer experiência em gestão e finanças.

Para assegurar o conhecimento, preparo e integridade adequados por parte dos gestores, empresas em dificuldades, recuperadores de empresas e administradores e gestores judiciais, dando maior subsídio ao Judiciário e aos credores, os países desenvolvidos possuem uma en­tidade certificadora; no Brasil, o Instituto Brasileiro de Gestão e Turnaround (IBGT) está de­senvolvendo essa certificação, denominada Certificado de Recuperador de Empresas (CRE).

G estor ju d ic ia l

Em casos de excesso, má gestão, fraude, ou também se fizer parte do plano de recupe­ração judicial, o juiz determinará a destituição da administração da empresa e convocará a assembléia dos credores para deliberar sobre a eleição do gestor judicial que assumirá a ges­tão da empresa, que estará sujeito a todas as normas sobre deveres, impedimentos e remu­neração do administrador judicial:

Ao gestor judicial compete dirigir a atividade econômica e implementar o plano de recuperação, após sua aprovação. Ele passa a ser o representante legal da sociedade deve- dora nos atos relativos à gestão da empresa (assinatura de cheques, contratação de servi­ços, compra de insumos, prática de atos societários etcJ . 6

O autor entende que

[ ...] o gestor não se torna, porém, o representante da sociedade em recuperação pa­ra todos os fins. Nos atos relativos à tramitação do processo de recuperação judicial, a so­ciedade devedora continuará sendo representada nos termos de seus atos constitutivos. Assim, destituídos, por exemplo, todos os diretores, caberá aos sócios da limitada ou ór­gão competente da anônima (Assembléia Geral de Acionistas ou Conselho de Adminis­tração) a eleição dos substitutos. A esses competirá, por exemplo, apresentar o plano de recuperação (se ainda não havia sido apresentado), prestar informações ao administrador judicial ou ao juiz, apresentar os relatórios etc.

' Op. cit., p. 58.Fabio Ulhoa Coelho, op. cit., p. 178.

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Prevenção de crises e recuperação de empresas 13

R em un eração do a d m in istra d o r ju d ic ia l

A questão da remuneração do administrador judicial foi outro avanço importante in­troduzido, uma vez que regulamenta claramente a questão. Dispõe que o juiz fixará o seu respectivo valor e forma de pagamento, observados a capacidade de pagamento do devedor, o grau de complexidade do trabalho e os valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes, até o máximo de 5 por cento do valor devido aos credores sub­metidos à recuperação judicial ou do valor dos bens na falência. O Decreto-lei n* 7.661/45 deixava muito a desejar a esse respeito.

R espo n sabilização

O novo ordenamento jurídico recuperacional e falimentar dispõe que o administrador judicial e os membros do comitê responderão pelos prejuízos causados à massa falida, ao devedor ou aos credores por dolo ou culpa, devendo o dissidente em deliberação do comi­tê consignar sua discordância em ata para eximir-se da responsabilidade.

Via de regra, esse dispositivo refere-se a atos de negligência, e deverá levar em conside­ração as difíceis circunstâncias em que o administrador judicial se encontra no desempenho de seus deveres. Um padrão mais rígido tornaria difícil atrair profissionais qualificados para o exercício dessa complexa atividade. É importante ressaltar que os riscos legais do adminis­trador judicial podem ser substancialmente reduzidos mediante a obtenção de aprovação prévia formal dos credores quanto aos principais atos a serem implementados.

A PREVENÇÃO DE CRISESA despeito dos avanços introduzidos com a nova lei, ela não deve ser vista como a cu­

ra de todos os males. Na verdade, todo o empenho deve ser feito para ficar fora dela — é como uma UTI: quem entra não sabe se vai sair vivo —, pois além de toda a morosidade ge­rada por um ambiente conflituoso, não se pode olvidar que os custos são bastante elevados e as conseqüências, negativas para o negócio.

Existe ainda um grande estigma e preconceito com relação a empresas em dificulda­des; ainda são tratadas como portadoras de doença contagiosa.

Portanto, é inquestionável a necessidade de agir preventivamente e estar atento aos si­nais de alerta, pedindo ajuda em tempo hábil, uma vez que é a alternativa mais eficaz e eco­nômica. Um dos maiores pecados capitais dos empresários é pedir ajuda quando já é tarde demais.

A experiência brasileira demonstra que recuperações na esfera judicial não são muito animadoras. Apesar dos avanços introduzidos com a nova Lei r r 11.101/05, esta correspon­de a um instrumento jurídico de intenções; sua eficácia irá depender dos operadores da jus­tiça e do direito, além das partes envolvidas. Sua eficácia demandará sem dúvida uma mu­dança cultural, na linha até aqui exposta.

F u n d a m e n t o s d a r e c u p e r a ç ã o d e em p r e s a s

Existem três desafios cruciais que devem ser observados nos processos de reabilitação. São eles:

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14 Capítulo 1 Construindo um referencial

• análise e definição do tipo de estrutura de recuperação mais adequada ao equacio- namento do problema;

• identificação das barreiras a serem superadas para permitir a obtenção da máxi­ma criação de valor e equipe, devidamente dotada de experiência em turnaround e de capacidade de execução;

• definição de um plano de comunicação eficaz, envolvendo todos os stakeholders.

Para tal é necessário:

• capacidade de identificar o problema;• entender as causas fundamentais da crise da empresa;• conhecer o objetivo estratégico do negócio;• saber quando soar o alarme e pedir ajuda;• saber se o problema pode ser sanado;• entender que o desafio está nos detalhes;• conhecer as medidas necessárias para realizar o turnaround;• conhecer a competência da administração;• conhecer os custos relacionados à execução do turnaround; entender as alternativas

ao turnaround e os custos;• entender os objetivos dos diferentes stakeholders (credores, investidores etc.);• entender o valor a ser obtido de um processo de turnaround, incluindo a análise da

venda parcial ou total do negócio ou mesmo sua liquidação.✓E igualmente importante entender que a recuperação da empresa via de regra produz

mais efeito sob a gestão de um novo profissional com experiência em processos de turna­round, que além de possuir maior credibilidade não carrega laços ou barreiras emocionais. Entender que, se alguém colocou a empresa em dificuldades, não tem condições emocio­nais de liderar seu processo de recuperação; que os funcionários não seguirão seus passos com entusiasmo; que o conselho de administração, se houver, não permitirá; e que os stake­holders não o apoiarão. Entender que, quando um negócio acumula déficits, credores, ban­cos e investidores assumem o direito de intervir no processo.

Por seu lado, os especialistas em recuperação devem certificar-se quanto à seriedade de propósitos e integridade dos controladores; de que possuem o apoio dos stakeholders; de que os controladores e stakeholders apoiarão a tomada de medidas radicais.

No processo de recuperação de uma empresa, gerenciar é mais importante que liderar. Gestão é trabalho hands on, escutar e identificar problemas. É estar na linha de frente. É ou­vir mais que falar. Há que ter cuidado com os x/es men, que concordam com tudo. Só gestão gera resultados.

Fa t o r es a s e r e m c o n s id e r a d o s n a e s c o l h a d o t ip o d eRECUPERAÇÃO

Entre os aspectos mais importantes que devem ser analisados estão:

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Prevenção de crises e recuperação de empresas 15

• grav idade da crise : liquidez, grau de asfixia, natureza dos problemas do endividamen­to financeiro e sua gravidade, existência de fraude, grau de exigüidade de tempo;

• obrigações fiduciárias para com todas as partes envolvidas: nível e perfil do endividamen­to, liquidez e potenciais problemas legais;

• eficácia da recu peração p reten d id a : injeção de capital, empréstimos, venda parcial ou total do negócio ou reestruturação;

• cnsto da implementação da reestruturação sob as diferentes alternativas: continuidade do negócio, venda;

• natureza ou tipos de passivo;• possibilidade de que a resolução de litígios pendentes ou propostos possa afetar a

viabilidade da empresa em dificuldade;• impacto nos negócios;• se a empresa tem ou terá caixa suficiente para fazer frente aos custos das diferentes

alternativas;

O S INTERESSES CONFLITANTES

Nos processos recuperatórios existe um conflito de interesses impressionante; trava- se uma verdadeira batalha jurídica com um número infindável de medidas protelatórias. As partes não têm consciência, ou têm mas não aceitam, de que a recuperação é um proces­so de minimização de perdas. Por diferentes razões, a intransigência é a palavra de ordem. Todos estão munidos do seu 'arsenal de guerra' e algumas artimanhas.

Geralmente, em seu lado do pêndulo, o devedor apresenta condições irrealistas para solução de seus problemas, querendo que seus credores assumam a maior parte do ônus por seus erros gerenciais, e na outra extremidade os credores querem receber a totalidade de seus créditos nas condições originalmente contratadas.

A situação torna-se bastante mais crítica naqueles não raros casos em que o devedor omite ou apresenta informações 'maquiadas', falsas, em que há a falta de transparência. Como resultado, o tempo vai se exaurindo, e a empresa perde seu vigor, reduzindo acen- tuadamente sua atividade operacional a cada dia que passa, culminando muitas vezes em paralisação. O Brasil necessita desenvolver essa nova cultura, para que o diploma legal vi­gente desde 2005 produza os efeitos desejados.

A VIABILIDADE RECUPERACIONAL DO NEGÓCIO

Um princípio universal do direito, da economia e das ciências sociais é o de que o úni­co núcleo de desenvolvimento econômico e social que existe é a empresa. Tudo o mais pos­sui natureza assistencial, que não preserva um dos maiores tesouros do ser humano: sua mente trabalhando.

O assistencialismo tem seu foco principal na alimentação. Aquele cuja mente não tra­balha está vivo, mas em estado vegetativo. O assistencialismo possui importância legítima, está na moda; o mais importante, porém, é preservar a dignidade humana mediante a ma­nutenção da empregabilidade, alcançada com a preservação da célula social, bem público caracterizado sob a forma de empresa.

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16 Capítulo 1 Construindo um referencial

Outro aspecto de grande relevância é que toda empresa — se o negócio em que ela es­tiver envolvida for viável — é recuperável. Não obstante e lamentavelmente, a morosida­de, perda do timing, pode levá-la a sucumbir.

A Varig tornou-se um clássico exemplo. A procrastinação do processo recuperatório agravou sobremaneira o ciclo predatório e de destruição de valor da empresa. A despeito de seu grandioso valor, na hipótese de os responsáveis e demais partes envolvidas não execu­tarem peremptoriamente as medidas exigidas, ela continuará seu processo degenerativo, perdendo fôlego e competitividade, participação de mercado, fidelidade de seus clientes, sem capital para modernização de sua frota, atrasando o pagamento de seus milhares de funcionários. Morrendo aos poucos.

O CARTESIANISMO PREDOMINANTENa grande maioria das situações de crise empresarial observa-se a predominância da

racionalidade econômica pura, e, graças à atuação do Poder Judiciário, a responsabilidade social vem crescentemente sendo inserida no contexto da recuperação da empresa.

Seus integrantes, além de serem dotados de ampla cultura, possuem grande consciên­cia social — entendem as agruras sociais que o Brasil vive. Seria fácil com uma simples 'ca­nelada' sentenciar a lacração e liquidação de um determinado estabelecimento. Com efeito, o novo diploma legal irá produzir operadores do direito com mentalidade mais moderna. Os antigos e denominados falencistas irão desaparecer.

E fato que não existem beneficiários em empresas que encerram suas atividades, só perdedores. Cabe observar que, se o negócio for bom, vale muito mais do que o valor dos ativos da empresa.

Nunca é demais salientar a importância de uma postura preditiva e preventiva por parte de todas as peças da chamada 'célula social' que é a empresa. A medida de maior efei­to na prevenção de crises é inquestionavelmente a gestão.

Como não existe 'bola de cristal', a administração da empresa tem de estar técnica e fi­nanceiramente preparada nos casos de turbulência. Deve saber o que fazer quando se en­contra diante de um tsunami e como se recompor dos estragos causados por ele.

Caso a administração não esteja devidamente habilitada, pode não sobreviver a uma de­terminada tormenta. A empresa deve estar equipada com os mecanismos de alerta. Os agen­tes que devem acionar esses mecanismos são a administração e a governança da empresa.

Os bancos credores são igualmente agentes desse processo e exercem um papel de ex­trema importância na prevenção e na solução dos problemas que se impõem para as empre­sas suas clientes. Possuem um corpo profissional especializado e mais bem preparado na identificação dos sinais de alerta. Podem ajudar muito na prevenção de problemas, intera­gindo com seus clientes de forma proativa, exigindo das empresas-clientes a confecção pe­riódica de diagnósticos independentes.

Com efeito, algumas instituições já estão aderindo a essa prática salutar como forma de preservar a saúde das empresas, solicitando a apresentação de diagnósticos para per­mitir a renovação ou ampliação de uma determinada linha de crédito. Entendem que a melhor garantia de uma operação de crédito é o fluxo de caixa da empresa, que a garantia de crédito de menor risco é sinal de uma empresa sadia, bem administrada.

O tempo conspira contra a reabilitação da empresa. Assim, é crucial que haja celeridade, di­ligência na identificação e execução das medidas de correção de rumo. A isso se chama 'gestão'.

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Prevenção de crises e recuperação de empresas 17

Da mesma forma é necessário entender que, na grande maioria dos casos de empre­sas viáveis, a opção pela manutenção da normalidade operacional da empresa, de seu nível de atividade, da continuidade dos negócios, ainda que seja necessário afastar seus admi­nistradores, produz um retomo econômico-financeiro bastante superior, não podendo ser descartada a idéia de negociar algum tipo de deságio no valor da dívida, que seguramente é menor que os ganhos de eficiência obtidos para todas as partes. Existem diferentes for­mas de instrumentalizar essas soluções de forma a capturar os respectivos benefícios e ga­nhos de eficiência.

Para tal, faz-se necessário abolir o cartesianismo no tratamento das empresas em difi­culdades. O caso Varig enquadra-se nessa situação. Os problemas não são solucionados num pedaço de papel; é necessário aferir se o negócio é viável ou não, o que não é ciência nuclear. Está constatado que a Varig é uma empresa viável. Sem embargo, o cartesianismo adotado e a lentidão do processo estão imputando incalculáveis perdas ao valor do negócio.

Outra constatação é que nestes tempos difíceis os executivos dos bancos e demais cre­dores temem por seu emprego; desta feita, agem politicamente, dizendo o que seu acionista quer ouvir. Para estes, muitas vezes é mais cômodo permanecer na zona de conforto, optar por sua segurança e sobrevivência pessoal, do que agir segundo suas convicções, mostran­do a viabilidade do negócio. Não raro preferem adotar medidas protelatórias, deixando que um negócio, apesar de viável, entre em processo de autofagia ou falimentar. Dessa forma não se comprometem, não correm riscos pessoais. Assim funciona uma parte do sistema fi­nanceiro, o sistema do fantasma do medo da demissão.

P o s iç ã o n o c ic l o d e v id a

É muito importante que a empresa e todos os demais agentes — seja um fornecedor, seja um credor de qualquer natureza — entendam em que posição no ciclo de vida esta se encontra. Ao atingir a maturidade, a empresa defronta-se com o conceito dos 5 R's desen­volvido pelo Instituto Brasileiro de Gestão e Turnaround (IBGT).

Normalmente vemos que, ao atingir o estágio de maturidade, muitas empresas se calcificam, vivendo das glórias do passado. Suas 'articulações' já não têm a mesma lubri­ficação, tornam-se mais lentas.

A empresa dotada de visão estratégica está permanentemente no topo, inquieta, per­manentemente se reinventando, se transformando. Aperfeiçoa-se de acordo com as mudan­ças e exigências dos mercados. Aproveita as janelas de oportunidade e tem consciência dos curtos tempos de vida de determinados produtos.

Existem também aquelas empresas que, ao apresentarem os primeiros sintomas de de­clínio — por motivos endógenos ou exógenos —, entram no estágio da renovação. São em­presas bem-sucedidas e preparadas, que sabem lidar com a adversidade, dotadas de uma cultura de permanente estado de renovação, de sorte a evitar seu declínio.

As empresas menos preparadas que por diferentes motivos não identificam ou agem sobre os sinais de alerta se aprofundam nos diferentes níveis de declínio e dificuldades, de­mandando medidas crescentemente mais duras nos distintos processos de revigoramento (terceiro estágio), de recuperação (quarto) e por último, de ressurreição (quinto).

Existe uma grande quantidade de empresas que não consegue reverter o processo dege­nerativo. Ingressam assim na perigosa zona de insolvência. Esse fenômeno se deve ao fato de a curva de declínio não ser linear, mas sim exponencial e acelerada. A empresa avança celere- mente para o colapso, ou seja, colide a toda velocidade com um paredão de concreto.

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18 Capítulo 1 Construindo um referencial

Não há outra opção: ou a empresa se revitaliza em tempo hábil, identifica os proble­mas e toma as duras medidas necessárias, com o apoio externo ou não, ou se tornará rapi­damente insolvente, podendo sua recuperação tornar-se inviável.

P r io r id a d e s d o s c r e d o r e s n a c r is e

Nas empresas em dificuldade, aos credores interessa:

• aferir o grau de confiabilidade dos administradores e controladores da empresa;• estudar a necessidade de recomendar a contratação de um especialista em recupe­

ração;• assegurar que o administrador judicial possua o perfil e a experiência adequada;• aferir se o negócio é viável;• certificar a viabilidade do planejamento estratégico e sua execução;• avaliar o programa de reestruturação do passivo e garantias;• definir e acompanhar a implementação do plano de recuperação e respectivos resul­

tados; e• concluir o projeto de reabilitação e recuperar o máximo de créditos em aberto.

P r io r id a d e s d o s d e v e d o r e s n a c r is e

O devedor tem igualmente uma série de prioridades, sendo uma das principais a transparência e a confiabilidade dos dados financeiros e operacionais. Política a ser adota­da não apenas quando a empresa estiver atravessando dificuldades, mas sempre! Tratar bem seus parceiros, tratar bem os bancos; o executivo do banco é um profissional como qualquer outro, é um profissional que tem obrigação de zelar pelo capital empregado pelo banco. A administração da empresa deve manter uma relação correta, transparente e fran­ca com essa instituição.

Outras questões imprescindíveis a serem observadas pela administração da empresa nas situações de crise são:

• ter como palavras-chave a negociação, a não-procrastinação e a não-negação;• entender que, quando uma empresa acumula déficits, credores, bancos e investido­

res assumem o direito de intervir no processo;• entender que a gestão interina ou uma assessoria especializada pode ser a solução pa­

ra salvar a empresa, minimizar os impasses e resolver os problemas de credibilidade;• entender que a crise decorreu de problemas de gestão;• entender que incremento de vendas necessariamente não resolve o problema prin­

cipal, pode até mesmo agravá-lo;• buscar reconquistar a credibilidade do mercado, a normalização das operações e o

acesso a crédito de curto prazo;• adotar uma conduta austera, iniciando-se pela redução do pró-labore e retiradas

dos controladores;• transmitir segurança aos credores de que o controlador não irá cometer 'excessos'.

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Prevenção de crises e recuperação de empresas 19

O b s t á c u l o s e d e s a f io s c r u c ia is

O endêmico e gravíssimo problema da impunidade conspira sobremaneira contra o sucesso da recuperação das empresas no Brasil. A ineficácia e irresponsabilidade dos repre­sentantes dos poderes constituídos no cumprimento de sua obrigação magna de aplicar com rigor a lei na punição dos crimes de responsabilidade não desestimula ou impede a contínua prática de fraudes e outros crimes financeiros.

Conforme já citado, é vital dissociar a sorte da empresa e a do empresário, como fez a Parmalat, na Itália, que interveio abruptamente na empresa, nomeando um interventor go­vernamental, agindo com celeridade na aplicação da lei e colocando vários de seus dirigen­tes na cadeia.

Inexplicável e lamentavelmente, o Brasil ainda não atingiu o grau de seriedade dig­no de um país desenvolvido na aplicação de suas leis, da maneira como pudemos obser­var nos conhecidos escândalos internacionais. Nas empresas em crise existe uma grande quantidade de casos em que atos ilícitos — como fraude, desvios de recursos, até mesmo para o exterior — foram praticados. Esses casos, além de constituírem crime, resultam na total quebra da confiança e credibilidade, podendo inviabilizar a recuperação do negócio, salvo se houver o afastamento e punição rigorosa dos responsáveis. Entre os casos nacio­nais de conhecimento público em que o Juízo apontou irregularidades encontram-se a Encol/ Chapecó,8 Mappin e importantes instituições financeiras. Existe ainda o agravan­te de que os recursos desviados não são recuperados.

Outro aspecto relevante e atual são aqueles casos em que existe algum tipo de cum­plicidade ou relacionamento promíscuo entre a empresa e seus credores, em que as frau­des envolvem outros agentes, como instituições financeiras e auditores. Nas grandes fraudes recentes observamos que o empresário não atuou sozinho. Com efeito, o Poder Judiciário constatou a existência de instituições que compactuaram com aquelas práticas delituosas, tomando as enérgicas medidas punitivas previstas na lei, incluindo as pecu­niárias. Como exemplo, temos casos como Parmalat, Enron e Worldcom.

C o n c l u s ã o

É obrigação dos mais preparados liderar o processo recuperatório, evitando o naufrá­gio da célula social. Nem todos são tão preparados para lidar com a adversidade. Cabe aos primeiros preservar a Vida' dos seus companheiros, ainda que debilitados. É obrigação dos mais fortes, não 'ficar com tudo', mas sim trabalhar em prol do bem comum da sociedade, representada pela célula social.

Por não observar o princípio universal da interconectividade, da interdependência, o Brasil adentrou um agudo processo degenerativo, mais acentuadamente a partir do início

A Encol sucumbiu imputando perdas diretas avaliadas em 3,5 bilhões de dólares a um contingente de mais de 54 mil pessoas. O Ministério Público detectou inúmeras irregularidades e crimes falimentares, até mesmo na concordata e na falência. O processo criminal envolveu 70 ex-dirigentes. Apesar da auditoria forense realizada, os recursos desviados não retomaram à massa falida.

* A Chapecó, após duas concordatas (1998 e 2004), teve sua falência decretada em abril de 2005, deixando um rombo aproximado de 1 bilhão de reais, além de perdas a milhares de camponeses e trabalhadores. Irregulari­dades foram apontadas pela CPI das carnes, envolvendo o sistema BNDES, acionista integrante do bloco de controle e maior credor da empresa.

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20 Capítulo 1 Construindo um referencial

da década de 1980, atingindo o anacrônico caos atual de ruptura dos frágeis tecidos sociais, jamais visto em toda sua história. Está claro que a paciência da sociedade chegou ao limite; ela dá seu ultimato: a palavra 'basta7 grita incessante e silenciosamente em seu coração. Sa- bedora de que todo o poder emana do povo, exige que a ganância, a irresponsabilidade, a impunidade e a corrupção sejam extirpadas em definitivo de seu meio, para que seja inter­rompido o avanço dessa perniciosa destruição que sufoca o Estado e a sociedade brasileira, e para que tenha acesso ao exercício de seu legítimo direito de bem-estar e justiça social, as­sim como a maiores níveis de 'real' desenvolvimento.

É imprescindível buscar o equilíbrio entre a racionalidade econômica e a responsabi­lidade social. Só o trabalho produz riquezas. A missão principal de todo executivo e diri­gente é solucionar problemas. Deve entender que cada problema tem seu próprio DNA, e há que ser resolvido de forma individualizada.

Administrar é uma arte; não existem saídas fáceis ou soluções de prateleira. É falacio­so imaginar, por exemplo, que seja eficaz um plano monolítico amparado na demissão co­letiva (o conhecido 'downsizing' adotado mundialmente, uma verdadeira onda preconiza­da por muitos gurus da administração internacional e aplicado cegamente por uma grande quantidade de seus seguidores), sem estudar tecnicamente, de forma holística, criativa e responsável as diferentes e possíveis alternativas viáveis. Jogar inescrupulosamente — se­ja por deficiência de conhecimento técnico, seja por falta de coragem de convicção, insegu­rança, fazendo-se o que todos fazem — os colaboradores da empresa na rua aumenta de forma exponencial as seqüelas sociais. É um processo que funciona em círculo, como a tra­jetória de um bumerangue: seu funcionário ficará sem emprego, o filho dele também; na verdade, possivelmente nem sequer ingressará no mercado de trabalho ou terá direito a uma cidadania digna. Na falta de um melhor papel na sociedade, expurgado desta, irá en­contrar seu espaço nas drogas, na violência, na prostituição. Ou seja, esse cidadão desem­pregado e seus entes queridos (assim como outros membros da sociedade) não irão escapar incólumes; estarão certamente entre os perdedores.

O que dizer dos totalmente excluídos, abandonados, da população de moradores de rua, apenas sobrevivendo, em estado vegetativo, com suas mentes aparentemente atrofia­das, sem nenhuma auto-estima, sem direito algum, sem cidadania, apenas aguardando a morte.

A melhor forma de reverter esse processo é lutar pela moralização e reforma do Esta­do, pelo exercício dos direitos do cidadão, pela permanente cobrança e vigilância dos ór­gãos dos três Poderes e, enfim, pela manutenção das empresas vivas. Resta lembrar que a empresa é o único núcleo de desenvolvimento econômico e social que existe.

B reve cu rrícu loJorge Queiroz Presidente do Conselho do Instituto Brasileiro de Gestão e Turnaround (IBGT). Re­conhecido expert em recuperação de empresas. Administrador e gestor interino e judicial e perito. Um dos pioneiros do segmento de turnaround e workout no Brasil, com mais de vinte anos de expe­riência em reestruturação e recuperação de empresas no país e no exterior. Coordenador do Curso Executivo Avançado de Recuperação de Empresas do IBGT. Autor de diversas obras sobre reabili­tação de empresas em dificuldade, entre as quais Turnaround corporativo: navegando em períodos de turbulência.

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R ec u per a ç ã o ju d ic ia lda em presa

Jorge Lobo

Preservar o caráter competitivo do negócio exige do gestor um conjunto de ações que possibilitam garantir os indicadores projetados. Conhecendo os aspectos inerentes à recuperação judicial, a ação gerencial se fortalece e se ajusta às decisões para momen­

tos mais difíceis.A recuperação judicial do empresário e da sociedade empresária é um instituto de di­

reito privado, de direito público ou de direito econômico?Para os privatistas, a recuperação judicial é um instituto de direito privado devido à

sua natureza eminentemente contratual, pois o devedor e seus credores celebram, nos au­tos da ação de recuperação, um negócio jurídico plurilateral, que ao juiz só resta homolo­gar; se, por deliberação da assembléia geral de credores, o acordo não se consumar, ao magistrado cumpre decretar de imediato a falência do devedor.

A recuperação judicial não é um contrato porque o contrato só vincula, obriga e pro­duz efeitos em relação àqueles que a ele aderiram, tácita ou expressamente, o que não ocor­re na recuperação judicial; eis que a decisão dos credores em assembléia:

• obriga os credores ausentes, os que se abstiveram de votar e até mesmo os dissiden­tes, vencidos durante o conclave;

• renova as obrigações e dívidas, com sacrifício dos direitos e interesses dos credores, embora sob protestos;

• mesmo não havendo unanimidade na votação das classes, o juiz pode homologar o plano, impondo-o à coletividade de credores, se preenchidos os requisitos do art. 58;

• ainda que contra a vontade dos credores, suspende as ações e execuções em curso etc.

Para os publicistas, a recuperação judicial, tal qual a falência, é um instituto de direito processual, portanto de direito público; eis que a nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas garante ao devedor que preencher os requisitos formais do art. 51 e os materiais do art. 48 o direito de propor a ação de recuperação judicial.

A recuperação judicial não é instituto de direito processual, porque:

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22 Capítulo 1 Construindo um referencial

• os credores não são chamados por edital a juízo para responder, mas opinar;1• o juiz não decide uma lide, um conflito de interesses, que é composto consensual-

mente pelo devedor e seus credores no âmbito da assembléia gerai de credores, so­bretudo quando apresentam modificações ao plano de recuperação;

• não há que falar em citação, revelia, produção de provas, audiência de conciliação, instrução e julgamento, sucumbência etc.

A RECUPERAÇÃO JUDICIAL É UM INSTITUTO DO DIREITO ECONÔMICO

Ensinam os doutos que o direito econômico está situado numa zona intermediária^ en- tre o direito público e o direito privado, dissentindo, todavia, quanto ao seu conceito, co­mo veremos a seguir.

A propósito do conceito e do âmbito de atuação do direito econômico, formaram-se várias teorias, consoante, com o brilho que lhe é peculiar, doutrina Modesto Carvalhosa, ao dividi-las em escolas:4

• dogmática, integrativa, publicista/privatista5 (Albino de Souza, Enrico Allorio, Ce- sarino Júnior, F. Ch. Jeantet, Bruno Leoni, Gerd Rinck);

• integrativa publicista/privatista, indefinida quanto ao método(' (Hamel e Lagarde, François de Kirally, Lorenzo Mossa, Radbruch, Sergio Ricossa, C. M. Schmitthoff, G. Zanobini);

•V• autonomista, de direito público econômico (Antonio Amorth, Elio Casetta, Bernard

Chenot, Danilo De'Cocci, Haemmerle, Klausing, Mazard);o

• Direito Público Econômico, não definida quanto ao método1 (Brethe de la Gressa- ye e Laborde-Lacoste, J. Hemard, Heymann, M. Houin, M. Levasseur, Júlio H. G. Olivera, J. Van Houtte);

• Direito Econômico da Empresa, ou do Direito Comercial Econômico9 (Casanova, Claude Champaud, Angelo de Mattia, M. Louis Fredericq, J. Limpens, G. Lyon- Caen, Jean Van Ryn);

1 Embora possam contestar a ação, porque, não obstante não ser um instituto de direito processual, a recupera­ção judicial se concretiza mediante uma ação judicial

A‘ Orlando Gomes e Antunes Varela, Direito econômico, nu 4. São Paulo, Saraiva, 1977, p. 4: "[...] o direito econômi­

co, compreendendo, como compreende, regras de direito civil, comercial, administrativo, penal, tributário, de­senvolve-se numa zona intermediária, que não é de direito público nem de direito privado, caracterizando-se por uma unidade tríplice: de espírito, de objeto e de método".Enrico Allorio, apud Moderto Carvalhosa, Direito econômico. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1973, p. 177:"[...] define o direito econômico como o direito (público) da economia organizada e o direito (privado) da empresa".

4 Op. cit.5 Op. cit., p. 176-84.6 Op. cit., p. 189-203.7 Op. cit., p. 205-17.’s Op. cit., p. 218-22.9 Op. cit., p. 223-37.

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Recuperação judicial da empresa 23

• Direito Administrativo da Economia, não autonomista10 (Giorgio Cansacchi, Huber);• Direito Internacional Econômico, ou do Direito das Comunidades Econômicas11

(Cartou);• Direito do Desenvolvimento12 (Roger Granger);• Teleológica ou de Direito Econômico Aplicado (Mário Berri, Emilio Betti, Renzo

Bolaffi, Giuseppe Chiarelli, Fábio K. Comparato, Enrico Finzi, Giuseppe Grosso, Hedemann, A. Jacquemin, Marty e Raynaud, Eugênio Minoli, Santoro-Passarelli, M. Vasseur, Camilo Viterbo);

• aceitação genérica e indefinida do direito econômico14 (Carnelutti, Henri Guitton);• outras concepções particularistas (Jean Dufour, P. Reuter).

Simpatizo com a corrente que sustenta que, no direito econômico, a regra de direito não se orienta pela idéia de justiça, mas de eficácia técnica,1' devido à natureza especial da tutela jurídica, em que prevalecem os interesses gerais e coletivos, públicos e sociais, que ela visa preservar e atender prioritariamente, daí o caráter publicístico e cogente de suas nor­mas, que se materializam mediante 'fato do príncipe', 'proibições legais' e 'regras excep­cionais', todas projetadas no domínio do direito privado, em que nasceram e se desenvol­veram as relações jurídicas entre as partes.

Consoante Orlando Gomes,

[ ...] nessa perspectiva, o ordenamento jurídico deixa de ser; em princípio, um sis­tema de limites à ação dos indivíduos em prol da coexistência social, para se tornar umconjunto de preceitos dirigidos prioritariamente a disciplinar; sob a inspiração de novapolítica legislativa, os quadros da economia.16

Adiante acentua, inspirado em Maspetiol, que "[...] as leis devem ser, antes de mais nada, um meio, um instrumento, uma técnica a serviço do Estado no cumprimento da pro- gramação econômica nacional".

A recuperação judicial caracteriza-se, sem dúvida alguma, por ser uma técnica, um instrumento, um meio de o Estado privilegiar, "principalmente", "o interesse comum eco­nômico, de produtividade da economia, e de sua economicidade"1*, pondo em segundo plano, no dizer de Radbruch, a "justa equiparação entre as pessoas diretamente interessa­das" em determinadas relações econômicas.

111 Op. cit., p. 240-2.11 Op. cit., p. 243.12 Op. cit., p. 246.13 Op. cit., p. 248-75.14 Op. cit., p. 277.15 Orlando Gomes e Antunes Varela, op. cit., p. 17 ss.16 Op. cit., p. 17, n* 1.17 Op. cit., p. 18.lh Apud Carvalhosa, op. cit., p. 194.

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24 Capítulo 1 Construindo um referencialWSÊL.— L ii

A nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas, no capítulo dedicado à recupera­ção judicial, é pródiga em preceitos que se afastam do princípio da justiça e se inspiram na idéia da eficácia técnica, de que são exemplos:

• o art. 6~, que trata da suspensão das ações e execuções;• o art. 22, II, (a), da fiscalização dos negócios sociais pelo administrador judicial;• o art. 49, §§ 3" e 4", da exclusão dos ACC (Adiantamentos de Contrato de Câmbio),

alienação fiduciária, leasing, dos efeitos da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas;

• o art. 54, do pagamento prioritário dos créditos trabalhistas;• o art. 59, da novaçâo das obrigações e dívidas;• o art. 64, da destituição dos administradores da empresa;• o art. 66, das restrições aos poderes dos administradores da empresa;• o art. 84, do privilégio dos créditos extraconcursais etc.

Destarte, a recuperação judicial, por ser um instituto do direito econômico, visa aten­der a um só tempo os direitos e interesses do devedor e de seus credores, mas também, qui­çá sobretudo, os interesses coletivos e gerais, públicos e sociais, por ele direta e indireta­mente abrangidos.

*1 B reve cu rrícu loJorge Lobo Advogado especializado em recuperação de empresas. Mestre em Direito da Empre­sa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor e livre-docente em Direito Comer­cial pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

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R espo n sa b il id a d e d o sADMINISTRADORES NA NOVA LEI

de Fa lên c ia e R ec u per a ç ã ode Em presa s

Adalberto Simao Filho

Estamos diante de um desafio que se faz sentir tanto no procedimento falimentar quanto no procedimento recuperatório. Parece-nos que há dois artigos de lei muito expressivos que podem nos ajudar na compreensão do que estamos aqui estudando.

O primeiro deles é o artigo 75, que modifica o espírito da falência, antes uma falência pre­dominantemente liquidatória em seu procedimento e finalização, e agora uma possibili­dade de processo falimentar para preservar e otimizar a utilização produtiva de bens, ati­vos e recursos, incluindo intangíveis da empresa. Há também um princípio colocado em atenção a uma das grandes críticas que se faziam acerca da morosidade do procedimen­to falimentar, que é o princípio da economia processual. Esse nos parece ser o maior orientador do que será um processo de falência na atualidade. Por outro lado, antes de in­gressarmos na questão da responsabilidade dos administradores, é conveniente deixar clara a nossa ótica acerca do sistema recuperatório. Verificamos a legislação quando ava­liamos o artigo 47 da lei. Em face dos seus possíveis desdobramentos interpretativos, to­mamos a liberdade de criar um desenho que possa auxiliar na intelecção desse artigo (Figura 1-1), que dispõe acerca da proteção de fonte produtora e assim por diante.

Desenhamos triângulos justapostos, e avaliaremos o sentido do primeiro triângulo, que aqui denominamos manutenção. O que efetivamente se pretende manter nessa lei? Pre­tende-se a princípio manter a fonte produtora, e por isso ela é colocada ao lado esquerdo do triângulo, como primeiro ponto. Essa fonte produtora é um complexo organizativo forma­do para o exercício da atividade econômica. Essa é a fonte produtora que, na falência, vai ser também mantida, quando se fala de venda em bloco dos bens e ativos empresariais. Na realidade, o que se está querendo dizer com a expressão Venda em bloco' de uma massa fa­lida é a transferência da fonte produtora, e não dos bens compreendidos em si mesmos. A fonte produtora é mais do que os próprios bens; é a atividade empresarial como um todo, merecendo a nossa atenção absoluta nos estudos a serem desenvolvidos.

O ponto superior do triângulo criado é exatamente o emprego dos trabalhadores, a mantença do emprego dos trabalhadores. No terceiro ponto à direita desse triângulo se- gue-se com a mantença dos interesses dos credores. Pergunta-se: que tipo de interesses são esses? Interesses imediatos, na nossa ótica, que estão ligados aos recebíveis de cada qual dos credores, de cada qual das classes. Mas também interesses mediatos; não pode-

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26 Capítulo 1 Construindo um referenciala ■ ■■

FUNÇÃO SOCIAL

produtora credores

Emprego dos trabalhadores

Atividadeeconômica(fomento)

Fonte Interesse dos

F ig u ra 1 -1 .

mos nos esquecer de que os credores também têm interesse na perenização do forneci­mento de produtos ou serviços e, por via de conseqüência, na contribuição para a recu­peração da atividade empresarial. Assim, forma-se o primeiro triângulo, denominado manutenção.

Temos depois um segundo triângulo, que denominamos preservação. O que temos a preservar? Em primeiro lugar, à esquerda do triângulo, apresentamos a preservação da empresa, porque a empresa é uma instituição. E a empresa tem um sem-número de situa­ções em que deve ser protegida e pelas quais ela deve se proteger, quer porque é uma ex­celente geradora de impostos e de empregos, quer porque contribui para o desenvolvi­mento sustentável e engrandece os locais onde se instala, gerando uma melhor qualidade de vida.

A empresa tem uma função social que é reconhecida na nossa lei. A função social é en­tão colocada na parte superior de nosso segundo triângulo. Essa função social que se rela­ciona diretamente com o fato de a empresa poder ser vista como instituição não foi tratada pelo Código Civil Brasileiro. Como dizia o professor Newton De Lucca, os legisladores do Código Civil perderam a oportunidade de reconhecer e disciplinar sobre esse tema tão im­portante, de apresentar artigos nos quais reconhecessem que a empresa — não só os contra­tos, mas a empresa em geral — possui uma função social, e isso passou despercebido no novo Código Civil. Agora a nova lei de falência veio resgatar essa questão, efetuando pre­visão expressa no sentido de que as empresas possuem uma função social.

Preserva-se também a atividade econômica, expressão que ingressará à direita de nosso segundo triângulo. É o fomento da atividade econômica como ideal de crescimen­to do país. Assim, concluídos os dois triângulos da manutenção e da preservação, e uma vez justapostos e unidos em perspectiva, temos um fenômeno colocado da seguinte for­ma: de qualquer lado que se veja, é possível entender o que se está querendo preservar.

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Responsabilidade dos administradores na nova Lei... 27

Preserva-se a empresa para poder manter sua função social e o exercício da atividade eco­nômica fomentando a atividade econômica, mantendo o emprego dos trabalhadores, a fonte produtora e o interesse dos credores, ou então se faz de forma inversa, começando a leitura pelo primeiro triângulo, ou seja, procura-se manter a fonte produtora, o empre­go dos trabalhadores e o interesse dos credores com vistas a preservar a empresa, sua fun­ção social e fomentar a atividade econômica.

Feitas essas explicações acerca do objeto da proteção legal, apresentaremos algumas linhas sobre a questão da responsabilidade. No tocante à responsabilidade do falido pelo fato da falência, há uma diferença muito grande de responsabilização a depender do tipo social empregado no exercício da atividade empresarial. Quando o tipo social é daqueles que geram uma responsabilidade ilimitada — por exemplo, sociedade em comandita por ações, sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples — os bens dos sócios de responsabilidade ilimitada sujeitam-se à arrecadação.

Por que razão acontece isso e já acontecia no passado? Por que a lei, nos artigos 81 e 190, faz uma equiparação. Ela diz que esses sócios de responsabilidade ilimitada deverão ser considerados falidos, mas aqui permitimo-nos fazer um acerto técnico. Não quer dizer que esses sócios — pessoa física — tenham falido; quem faliu foi a sociedade; quem faliu foi a empresa, que falhou no cumprimento de suas obrigações. Os sócios ilimitadamente res­ponsáveis pelas obrigações sociais estão, por equiparação, sujeitos aos efeitos totais da fa­lência, incluindo-se efeitos patrimoniais.

Por via de conseqüência, essa situação se reflete na formação da massa falida ativa, que é aquela composta de bens de toda natureza (materiais e imateriais), e gera a arrecada­ção de bens para a formação de uma segunda massa falida, que é a massa falida composta de bens desses sócios que possuem a responsabilidade ilimitada.

Todavia, nos outros tipos sociais, sociedade limitada e sociedade por ações, não há a ar­recadação dos bens desses sócios, tampouco dos administradores. Para que se possa manter íntegro o espírito das leis de sociedades por ações e de sociedade limitada é que a priori não se arrecadam bens de administradores.

Em certas situações jurídicas é que essas pessoas poderão ter atingido o seu patrimô­nio em razão da prática de atos ou de omissões que possam gerar prejuízos ou até mesmo a desconsideração da personalidade jurídica.

A apuração de responsabilidade possui um sistema legal na falência. A responsabili­dade do administrador, a responsabilidade dos sócios, será apurada no juízo da falência, ou seja, no juízo universal falimentar, a quem caberá apurar esse tipo de responsabilidade me­diante um procedimento ordinário, independentemente de prova de suficiência de ativo.

Caso se avalie que o sócio cometeu algum ato jurídico que possa levar a uma respon­sabilidade qualquer controladores ou administradores, isso deverá ser apurado mediante uma ação de conhecimento pelo princípio do due process oflaiv (devido processo legal). Nes­se procedimento apuratório poderá haver um pedido de tutela antecipada com vistas a manter a integridade dos bens particulares dos sócios envolvidos? Por que não?

Pode haver um pedido de tutela antecipada se houver ali uma situação extremamen­te escabrosa com relação a certos assuntos, e pode-se pedir uma tutela para garantir ali a indisponibilidade de alguns bens e para que os bens do patrimônio dos sócios que sejam suficientes para garantir a responsabilidade não se percam.

A prescrição desse tipo de ação tem um prazo de dois anos, contado do trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência. Hodiernamente o procedimento deverá

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28 Capítulo 1 Construindo um referencial

ser muito mais rápido do que no passado, haja vista que a fase de alienação de bens, que é a fase liquidatória da falência, inicia-se logo após a arrecadação de bens.

E qual era o problema da outra lei? Na lei antiga, a fase de liquidação dos bens era muito a posteriori; não se conseguia vender os bens com brevidade em face do intrincado tiro processual da falência do passado, salvo se os bens tivessem alguma condição de pe- recimento, ou se fosse muito custosa a sua mantença, ou, ainda, perigosa a guarda.

Nesses casos o juiz autorizava a venda dos bens antecipadamente. Na Lei r f 11.101/05, o administrador poderá, tão logo faça uma arrecadação e avaliação, solicitar a venda dos bens.

A propósito da avaliação dos bens, o avaliador deverá ser alguém que tenha formação diferenciada e visão econômica do que seja a empresa. Não se consegue entender o fenôme­no do que é a empresa, do que vale a empresa, do que é o seu sobrevalor gerado em face das características da atividade econômica organizada se não se atentar para o conceito já men­cionado de fonte produtora ou de unidade produtiva.

Retornando à questão da apuração da responsabilidade, existe um procedimento or­dinário para que ela se faça; esta é a forma, mas ocorre que pode acontecer, no curso do procedimento, que se verifiquem práticas de atos de falência que tenham como objetivo fraudar credores, ou pela conduta que tenha tipificação penal falimentar ocorrida no âm­bito do processo falimentar. E quais são as condutas novas? Elas estão todas previstas nos artigos 168 a 178 da lei, e desde fraude até contabilidade paralela, violação de sigilo, in­formações falsas, indução a erro, qualquer um que induza o juiz a erro, por qualquer mo­tivo, deve ser penalizado, e a pena é grande. Favorecimento de credores, desvio de bens, habilitação ilegal de crédito, uso ilegal de bens, exercício ilegal das atividades, violação de impedimentos, ou seja, há um sem-número de tipificações; algumas são iguais às do passado, outras são novas.

A realidade é que, no processo falimentar, alguma vez pode ficar muito claro o abu­so do direito, pode ficar muito clara a fraude que alguém praticou, e nesse ponto é possí­vel a utilização — muito embora não haja previsão legal no diploma falimentar — do princípio previsto no artigo 50 do Código Civil, para que se consiga efetuar a desconside­ração da personalidade jurídica com vistas a arrecadar bens do patrimônio do sócio que fraudou.

Permitimo-nos um exemplo concreto. Vamos supor que a falência seja decorrente de uma recuperação judicial; todos sabemos que na recuperação judicial a empresa é obrigada a apresentar sua relação de bens. Apresenta-se a relação completa de bens. Todavia, num momento avançado, quando há a decretação da falência, o administrador vai arrecadar os bens que ele conhece e estavam todos colocados pela empresa ao juízo e não os localiza mais; não os localiza em nenhuma hipótese.

Ora, onde estariam esses bens? Se não foram vendidos, se não fizeram parte do proje­to de recuperação judicial, se não se mencionou o paradeiro dos mesmos, os bens foram subtraídos por alguém.

Nesse caso claro está que os bens foram subtraídos de má-fé, ou por alguma conduta dolosa que possa ter havido, não sendo necessário nenhum procedimento ordinário para a apuração de responsabilidades.

Qual o dever do administrador? Está no artigo 22, inciso E, letra 'o'. Este deve reque­rer medidas necessárias para o cumprimento da lei, proteção da massa e eficiência da ad­ministração.

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Responsabilidade dos administradores na nova Lei... 29

O administrador poderá pedir ao juiz para que se avaliasse essa questão sob a ótica do artigo 50 do Código Civil, em vez de adentrar com um procedimento de natureza ordiná­ria, que pode durar uma dezena de anos, dependendo da maior ou menor eficiência judi­ciária no Estado federativo em que nos encontremos.

Se não há na lei de falência uma previsão legal nesse sentido, com base no Código Ci­vil se pode construir a tese para que se faça a desconsideração da personalidade jurídica da empresa de forma fundamentada.

Mesmo assim deveria ser aberto um incidente de desconsideração de personalidade ju­rídica. Nesse incidente — para que não se dissesse estar havendo violência por parte do judi­ciário contra os sócios ou administradores — poderia ser dada a oportunidade a estes de ma­nifestação acerca das intercorrências. O juiz deve decidir fundamentadamente sobre a des­consideração da personalidade jurídica e o alcance dessa desconsideração.

Não é porque se desconsiderou a personalidade jurídica de uma sociedade que todos os sócios estejam envolvidos nessa desconsideração. Cabe ao juiz dizer efetivamente a quem alcança a desconsideração dessa personalidade, quais serão os bens arrecadados dessa pessoa outra que não seja a própria sociedade empresária e a partir daí efetivamen­te determinar a arrecadação e, se for o caso, toda a medida cautelar necessária, porque o juiz falimentar tem um poder geral de cautela muito grande, por força de lei.

Pode o juiz, para acautelar certas situações, na própria sentença tomar um sem-núme­ro de atos, e é dentro desse regime de poder de cautela que o julgador vai buscar manter ín­tegro o interesse dos credores, dos trabalhadores e da função social, tomando medidas pre­ventivas que possam trazer de volta um certo patrimônio para a massa falida.

Essa decisão de caráter desconsideratório será enfrentável pela via do agravo do ins­trumento, e poderá se pedir o efeito suspensivo por parte do tribunal se se entender que a decisão não andou de acordo com o direito.

Finalmente, qual será a natureza da responsabilidade dos administradores e dos gestores, afinal? Responde ao administrador, os membros do comitê, e por via de conse­qüência os gestores que foram equiparados aos primeiros para certos fins, pelos prejuí­zos causados à massa, ao devedor e aos credores, por dolo ou culpa, ou seja, a responsa­bilidade não é objetiva; a responsabilidade é subjetiva e depende de um procedimento apuratório.

Neste ponto, observa-se o quanto é importante nessas relações o registro claro de po­sições que possam refletir em dissidência. Como exemplo temos os comitês de credores ou conselhos fiscais. Se houver uma dissidência, esta deve ser registrada, como forma de pre­venir responsabilidades futuras.

T Breve cu rrícu loAdalberto Simão Filho Mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Professor titular IV da UNIFMU/SP, onde também é pesquisador, e da Unaerp/SP. Sócio-diretor do Escri­tório Simão Filho, Dagmar Simão e Toledo Ridolfo — Advogados Associados.

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PÁGINA EM BRANCO

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C a p ít u l o

R e f le x õ e s a p a r t i r d a Lei n q 1 1 . 1 0 1 / 0 5

O IMPACTO ECONÔMICO DA NOVA LEI DE FALÊNCIA ERecuperação de Empresas

Aloísio Pessoa de Araújo Bruno Funchal

A n o va Lei de Fa lên c ia e Recuperação de Empresas — perspectivas Antonio Carlos Esteves Torres

Recuperação de empresas: interesses e posic ionam entos na n e g o c ia çã o Antonio Cardoso Toro

O papel d o P o d e r Ju d ic iá r io na a p lic a ç ã o da Lei nq 1 1 . 1 0 1 /05 Carlos Henrique Abrão

R eflex õ es s o b r e a n o v a Lei de Fa l ê n c ia e R e c u p e r a ç ã o d e Em pr esa s

E SUA RACIONALIDADE ECONÔMICA Daniel K. Goldberg

A IMPORTÂNCIA DAS NOVAS REGRAS DE PRIORIDADE DA FALÊNCIA PARA A GOVERNANÇA DOS CREDORES

Eduardo Lundberg

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O IMPACTO ECONÔMICO DAn o va Lei de Fa lên c ia e

R ec u per a ç ã o de Em presa s

Aloísio Pessoa de Araújo Bruno Funchal

A teoria moderna de bancarrota vem relacionando os resultados do procedimento falimentar aos estágios iniciais da vida das firmas, em que estas procuram por cré­dito. De uma perspectiva de eficiência, uma lei de falências ex-po$t eficiente é um

sistema que procura maximizar o valor total da firma e, conseqüentemente, o retorno que os credores deveriam receber em caso de insolvência. Existem três elementos principais por trás desse objetivo. Primeiro, o menor valor possível deve ser gasto durante o proces­so, e portanto seria desejável minimizar o tempo1 que tomará e os custos diretos e indire­tos incorridos durante o processo. Segundo, quando o processo de reorganização termina, os ativos da firma devem ser alocados em seu maior valor de uso. Finalmente, quando uma firma entra em bancarrota, o procedimento (reorganização ou liquidação) deveria ser es­colhido corretamente, caso contrário o valor dos ativos não produziria seu maior valor. Nesse caso, quando uma firma economicamente ineficiente2 entra em bancarrota, a me­lhor alternativa é que seus ativos sejam liquidados, liberando seu capital para ser trans­ferido a atividades de maior valor de uso. Porém, quando uma firma economicamente eficiente entra em bancarrota, a melhor alternativa é que continue em operação, uma vez que seu capital não tem outra atividade de maior valor.

Passando para o estágio de tomada de empréstimos, um aumento nas expectativas de retorno em caso de insolvência faz com que um mercado de crédito competitivo reduza a quantia que os emprestadores demandariam das firmas solventes. Então, as taxas de juros caem à medida que a eficiência aplicável do sistema aumenta.

Similarmente importante é a eficiência ex-ante a ser atingida pela lei. Dessa perspec­tiva, o que importa não é apenas o valor total da firma, mas também a divisão desse valor entre os participantes do processo falimentar. Esse tipo de eficiência é capaz de produzir incentivos corretos tanto sobre a atuação dos credores no processo quanto sobre as deci­sões dos gerentes. Para tanto, o procedimento de bancarrota deve penalizar os gerentes de

1 Parte do tempo é gasta com táticas de espera por parte dos acionistas e gerentes, além do tempo gasto devido à complexidade do processo e das demandas dos credores.

2 Uma firma é economicamente ineficiente se o valor de seus ativos é maior em algum outro uso, e é economica­mente eficiente se o melhor uso de seus ativos é o uso corrente.

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O impacto econômico da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas 33

forma adequada nos estados de falência e assegurar que credores recebam um razoável re­torno, encorajando-os a emprestar a melhores termos. Note-se que, sem nenhuma conse­qüência adversa aos gerentes, existe pouco incentivo ao pagamento de suas dívidas. Esse incentivo tem importantes implicações no número de firmas com problemas financeiros, que é reduzido quando ele é corretamente provido. Com relação aos credores, adicional­mente ao efeito sobre o custo do crédito, há um maior interesse em participar do processo de falência (ou de recuperação) da firma, conduzindo-o da melhor forma possível — dei­xando as decisões empresariais nas mãos dos especialistas e tirando das mãos do Judiciário — , incentivando o monitoramento — o que ajuda a evitar ações fraudulentas por parte dos gerentes — e tornando todo o processo mais eficiente.

Note-se que todos os mecanismos citados contribuem para um maior retorno esperado aos credores, ou pelo aumento do retorno nos estados de insolvência, ou pela diminuição da possibilidade de problemas financeiros, o que faz reduzir o custo do capital na economia.

A antiga legislação falimentar brasileira era fragmentada em demasia, tendo o seu nú­cleo sido aprovado em 1945. A antiga lei regulava tanto os procedimentos de liquidação (fa­lência) quanto a reorganização (concordata) das firmas comerciais. Apesar de prover ambos os procedimentos e de desejar prevenir ou evitar a liquidação das firmas, na prática o anti­go processo de insolvência provou ser inoperante tanto no que diz respeito à maximização do valor dos ativos da firma quanto à proteção dos direitos dos credores em caso de liqui­dação. Além disso, demonstrou ser falho em reabilitar empresas economicamente viáveis que estariam passando por dificuldades financeiras.

O processo de insolvência no Brasil é o mais lento do mundo, levando em média dez anos para ter todo o procedimento concluído, muito maior do que a média dos países lati­no-americanos3 (Figura 2-1).

A liquidação é marcada por severas ineficiências, e o processo de reorganização é obsoleto e excessivamente rígido, eliminando a possibilidade de prover uma opção de reabilitação significativa para os negócios modernos.

Tempo (anos)12

OECD EAC LAP ASS ALC OMNA SAS BrasilPaíses ou regiões

F ig u ra 2 -1 Tempo médio gasto no procedimento de insolvência por pais ou região.

3 Dados provenientes do closing business computado pelo Doing Business 2004, do Banco Mundial.

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34 Capítulo 2 Reflexões a partir da Lei rr 11.101/05■<

A falta de transparência e o até então chamado 'problema da sucessão', isto é, a trans­ferência de obrigações, como as fiscais e trabalhistas, aos compradores da propriedade vendida em liquidação deterioravam o valor de mercado dos ativos de uma firma insol­vente. Ademais, a preferência dada pela Lei de Falência e Recuperação de Empresas às de­mandas trabalhistas e fiscais tem efeito prático na eliminação de qualquer proteção a ou­tros tipos de credores. Tal prioridade fiscal gerava um efeito perverso na economia, dada sua estrutura tributária. O crédito, que já era escasso, fica ainda mais reduzido quando é observado pelos bancos um sinal ruim sobre a saúde financeira da firma devedora, dado o receio de não recuperá-lo em caso de falência. As empresas então se financiam mediante o não-recolhimento de impostos, o que por sua vez leva os bancos a reduzir ainda mais os créditos, e assim sucessivamente.

As dificuldades intrínsecas a esse procedimento geravam um uso informal do sistema, promovendo acordos consensuais extrajudiciais. Porém, a falta de um suporte legal a essas negociações atrapalhava esse tipo de acordo.

Dessa forma, de acordo com as características do antigo sistema legal brasileiro no que concerne à insolvência, é possível enumerar suas principais falhas:

F l: os direitos dos credores são fracamente protegidos devido principalmente à prefe­rência dada aos direitos trabalhistas e fiscais;

F2: os incentivos distorcidos e a falta de mecanismos efetivos para apoiar a reestrutu­ração corporativa resultam em altas taxas de fechamento de firmas potencialmen­te viáveis;

F3: o problema da sucessão reduzia o valor da firma falida;F4: o alto custo e o tempo excessivo gasto no fechamento de firmas economicamente

inviáveis.

A Figura 2-2 a seguir permite comparar a proteção ao credor no Brasil (falha F l) com diferentes regiões no mundo.4 Ressalte-se que a OECD tem o nível mais alto de proteção ao credor (0,46), enquanto o Brasil (0,06) tem o menor nível, se comparado com qualquer região do mundo, incluindo a média da região à qual pertence (ALC). Nesse caso, o dese­nho do antigo sistema de bancarrota brasileiro acaba por reduzir muito o interesse dos credores no mercado de crédito, aumentando a dificuldade de as firmas financiarem seus investimentos com dívida. Ressalte-se que os países mais pobres têm mais dificuldades em ser pró-credores.

Uma outra correlação associando credores e países ou região pode ser observada na Figura 2-3.

Melhores proteções legais, porém, proporcionam um retorno esperado maior em si­tuações de bancarrota, e como financiadores se comportam estrategicamente isso permite que ofereçam empréstimos aos empreendedores em melhores condições. Observe-se na Fi­gura 2-4 a seguir — em que regredimos0 a razão crédito privado/PIB, spread da taxa de ju­ros e taxa de recuperação dos credores sobre a variável explicativa proteção ao credor —

4 Grupos de países: OECD, América Latina e Caribe (ALC), Oriente Médio e Norte da África (OMNA), Europa e Ásia Central (EAC), Leste Asiático e Pacífico (LAP), Sul Asiático (SAS) e África Subsaariana (ASS).

5 Controlando pela renda per capita em log.

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O impacto econômico da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas 35

Proteção ao credor0/5 ■

0,4 •

0,3 -

Brasil ALC ASS SAS LAP OMNA EAC OECDPaíses ou regiões

F ig u ra 2 - 2 Proteção ao credor por país ou região.

que os dados corroboram essa teoria. Uma maior proteção ao credor proporciona um maior volume de crédito privado na economia a taxas de juros mais baixas. Isso porque credores esperam ter um retorno significativo em caso de insolvência, o que é comprovado pela ter­ceira regressão da Figura 2-4. Portanto, no caso brasileiro, em que a proteção legal é muito baixa, a taxa de recuperação dos credores é totalmente insignificante, de apenas 0,2 centa­vo por dólar emprestado (muito menor do que a média da América Latina, que é de 26 cen­tavos), sendo então razoável esperar que os bancos evitem ofertar crédito (pouco crédito a taxas muito elevadas), preferindo investimentos alternativos, como títulos do governo, o pagamento de dividendos a seus acionistas etc.

Taxa de recuperação dos credores

80 -

70 -

60 -

50 -

40 -

30 -

20 -

10 -

0Brasil ASS SAS ALC OMNA LAP EAC OECD

Países ou regiões

F ig u ra 2 - 3 Taxa de recuperação do credor por país ou região.

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36 Capítulo 2 Reflexões a partir da Lei rr 11.101/05

2,0

<0> 1,2

J 0,8WxOU 0,4

Spread da taxa de juros vs. proteção ao credor

50

0,0 0,2 0,4 0,6 0,8 1,0

Proteção ao credor

i i r ~

0,2 0,4 0,6 0,8

Proteção ao credor

Crédito privado/PIB vs. proteção ao credor

Taxa de recuperação vs. proteção ao credor

Proteção ao credor

F ig u ra 2 - 4 Impacto da proteção ao credor sobre o spread, o crédito privado e a taxa de recu­peração dos credores.Nota: Indice de proteção ao credor é calculado pela interação entre a medida dos direitos dos credores de La Porta et al. (1997) e a variável de implementabilidade legal rule oflaw.F o n te : Doing Business, International Couniry Risk Cuido, World Dovclopmont Indicators and Internatio­nal Financial Statistics.

Uma maior proteção ao credor, que lhe proporcione um aumento de retorno nos esta­dos de insolvência, tende a reduzir o custo do capital na economia e as restrições de crédi­to, gerando um aumento no incentivo ao empreendedorismo na economia e fomentando investimentos e a criação de novas firmas. Isto, por sua vez, tem o poder de impulsionar o crescimento econômico e de diminuir a desigualdade e a pobreza mediante a geração de novos empregos. Esses efeitos estão bem retratados pela literatura empírica em Levine et al. (2000), que comprovam a forte relação entre o desenvolvimento do mercado de crédito e o crescimento econômico, e por Beck et al. (2004), cujo estudo indica que a melhora das con­dições do mercado de crédito tem um efeito desproporcionalmente grande e positivo sobre

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O impacto econômico da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas 37

os pobres, reduzindo a desigualdade de renda. Logo, uma melhora na proteção ao credor no Brasil trazida pela nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas teria fortes efeitos positivos tanto no crescimento econômico quanto na desigualdade de renda pelo mecanis­mo do crédito.

Vale notar que, apesar da fraca proteção ao credor no Brasil, diversos países possuem essa mesma característica, mas o efeito sobre a recuperação dos credores em caso de falência não é tão preocupante. No caso brasileiro, a explicação para tal fato é a combinação perversa entre a prioridade do Fisco em caso de falência e a estrutura tributária, que em caso de insol­vência da firma oferece a oportunidade do não-pagamento, servindo como credor às firmas em dificuldades. A nova lei possibilitou uma melhora nesse quadro mediante a mudança de prioridade dos credores com garantia real na falência, que agora possuem preferência sobre o Fisco. Assim, mesmo que o devedor se endivide pelo não-pagamento de impostos, isso não vai mais afetar o retorno dos credores segurados, fazendo com que seu retorno em ca­so de falência aumente e possibilitando uma melhora no ambiente creditício.

Passando à segunda falha do antigo sistema falimentar brasileiro (F2), inúmeras fir­mas economicamente viáveis eram fechadas devido aos incentivos distorcidos e à falta de mecanismos de apoio efetivos à reestruturação. A antiga lei alijava totalmente os credores— que eram os grandes interessados — do processo de reestruturação da firma em dificul­dades financeiras. A nova lei — que foi inspirada no Capítulo 11 da Lei de Falências ame­ricana — permite muito mais a participação do credor no processo, o que é fundamental para o aumento de sua eficiência. Agora a empresa economicamente viável, mas com difi­culdades financeiras, faz o pedido de recuperação e tem 180 dias para aprovar o plano de reabilitação (veja Figura 2-5); depois, tal plano tem de ser aceito por todas as três classes de credores — garantia real, fornecedores e trabalhistas — para que seja posto em prática, ca­so contrário o juiz decreta a falência. O juiz decretar a falência imediatamente é um ponto muito importante do processo, pois vai induzir o comportamento estratégico adequado, de forma a evitar o decreto de falência quando for rentável para todos.

Com o fim de aumentar as chances de sucesso na recuperação das empresas insolven­tes, duas novidades foram introduzidas pela nova lei. A primeira é a aplicação por 180 dias do chamado automatic stay, no qual credores não podem tomar nenhum bem da firma, até mesmo aqueles dados como colaterais, a fim de não atrapalhar o funcionamento das ativi­dades dela. A segunda novidade está relacionada à obtenção de novos créditos por parte da firma que está se reorganizando. Créditos concedidos pós-bancarrota passam a ter priori­dade se ocorrer a liquidação da firma, incentivando os novos credores a fazer novos em­préstimos a termos mais favoráveis, reduzindo dessa forma os custos indiretos originados

Plano de reabilitação proposto pela firma e aceito pelos credores

Juiz decreta falência

F ig u ra 2 - 5 Diagrama do processo do pedido de recuperação.

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38 Capítulo 2 Reflexões a partir da Lei rr 11.101/05

pela situação de insolvência. A falta desses mecanismos aumentava muito a possibilidade de fechamento de firmas viáveis.

Mas qual é a importância de tal sucesso no processo de reorganização da firma? Na verdade, podemos descrever dois importantes fatores. Antes de descrevê-los, porém, é im­portante destacar um problema comum que concerne ao procedimento falimentar não só no Brasil, mas também em todo o mundo, o cham ado filtering failure problem. Existem dois tipos diferentes de falha: o primeiro é o erro tipo I, que ocorre quando firmas economica­mente eficientes são liquidadas, enquanto deveriam ser reorganizadas; o segundo é o erro tipo //, que acontece quando firmas economicamente ineficientes são salvas pela reorgani­zação, enquanto deveriam ser liquidadas. Quando tais erros ocorrem, o valor da firma aca­ba sendo menor do que poderia, reduzindo o retorno de todas as partes interessadas, além de não alocar seus ativos da forma mais eficiente possível.

Dessa forma, as mudanças que facilitam o processo de recuperação permitem que mais firmas economicamente eficientes se reabilitem, reduzindo o erro tipo I (muito fre­qüente no Brasil) e aprimorando o balanceamento entre liquidação e reorganização. Tal ba­lanceamento entre ambos os procedimentos de insolvência possibilita uma alocação mais eficiente dos fatores de produção, tanto pelo salvamento das firmas economicamente efi­cientes que passam por dificuldades financeiras como pela transferência dos ativos das fir­mas economicamente ineficientes (mediante sua liquidação) para firmas mais eficientes, além de aumentar o retorno nos estados de insolvência das partes interessadas.

Houve também a criação de um processo de reorganização extrajudicial, o que é de suma importância para o Brasil, uma vez que poupa as firmas dos altos custos incorridos na corte. Nesse tipo de procedimento, a maioria impõe a decisão pré-acordada à minoria. A renegociação privada entre os grupos de credores e devedores evita diversas perdas (como reputação) durante a reabilitação da firma, que seria observada em caso de uma renegocia­ção aberta.

Passando às outras duas falhas do sistema falimentar brasileiro (F3 e F4), o problema da sucessão e o alto custo e tempo excessivo gasto no fechamento de firmas economicamen­te inviáveis tornam o processo falimentar brasileiro extremamente ineficiente, reduzindo drasticamente o valor da firma falida. A fim de mensurar a eficiência do processo de insol­vência brasileiro, utilizamos a medida criada por Oliver Hart (1999), que caracterizou um processo de insolvência eficiente como aquele que:

• minimizasse tempo e custos;• determinasse a manutenção da prioridade definida contratualmente, isto é, credo­

res com garantia real deveriam ter a prioridade sobre o ativo dado como colateral; e• alcançasse o resultado eficiente,6 minimizando os erros tipo I e 11.

A Figura 2-6 reporta os dados do Doing Business 2004 (Banco Mundial), que compu­tou os valores da medida criada por Hart. Essa medida varia de 0 a 100; o índice 100 sig­nifica eficiência perfeita do procedimento, e 0, total ineficiência. Esse gráfico ilustra a ta­manha ineficiência do antigo processo de insolvência brasileiro (24), pior que a média da América Latina (46) e até mesmo do que a da África Subsaariana (35). Essa situação é de

'■ O resultado eficiente é definido como qualquer procedimento de bancarrota que resulta na venda da firma co­mo um todo sem a interrupção de suas operações, ou uma reabilitação bem-sucedida.

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O impacto econômico da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas 39

Objetivos da insolvência

9080706050403020100

Brasil ASS SAS ALC O M N A LAP EAC OECD

Países ou regiões

F ig u ra 2 - 6 Medida dos objetivos da insolvência por país ou região.

certa forma preocupante, tendo em vista as significativas conseqüências que essa variá­vel tem sobre o mercado de crédito.

A Figura 2-7 a seguir ilustra o impacto da eficiência do processo de insolvência sobre as variáveis referentes ao crédito. Nos dois primeiros gráficos, em que foi regredida' a ra­zão crédito privado/PIB e o spread da taxa de juros sobre a variável dos objetivos da insol­vência, há uma relação positiva no primeiro caso e negativa no segundo, o que significa que, quanto maior a eficiência do processo de insolvência — isto é, quanto menor o tempo, o custo, os erros tipo I e II e o desvio da prioridade contratual — , mais desenvolvido será o mercado de crédito, sendo mais fácil e barato endividar-se.

Com base na antiga lei brasileira, é fácil entender o porquê da péssima situação do crédito no Brasil. Pela terceira regressão, percebe-se que, quanto mais ineficiente é a lei, menor é a taxa de recuperação dos credores. Isso ocorre porque, uma vez que o processo é custoso, lento e não alcança o resultado mais eficiente, o valor da firma falida acaba por se deteriorar, restando pouco a ser divido entre as partes interessadas. Além disso, se a prio­ridade contratual dos credores com garantia real não é seguida — como no Brasil, onde créditos fiscais e trabalhistas têm prioridade —, o valor recebido reduz-se ainda mais. De fato, é o que ocorre no Brasil, onde os credores recuperam apenas 0,2 centavo por dólar emprestado, enquanto a média latino-americana é de 26 centavos. Assim, como os credo­res sabem que irão recuperar pouco ou nada de seus empréstimos em caso de falência da firma, tendem a aumentar o prêmio de risco cobrado aos tomadores de empréstimo, elevando as taxas de juros cobradas e reduzindo o montante emprestado.

A nova lei tem características que melhoram a eficiência do processo, como a priorida­de dada aos credores segurados acima do Fisco e dos créditos trabalhistas que ultrapassam 150 salários mínimos; a venda das firmas preferencialmente como um todo (se não for pos­sível, tenta-se a venda em blocos), vindo posteriormente a formação da lista dos credores, de forma a aumentar a velocidade do processo e o valor da firma nos estados de bancarrota; e

yControlando pela renda per capita em log.

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40 Capítulo 2 Reflexões a partir da Lei rr 11.101/05

Crédito privado/PIB vs. medida dos objetivos da insolvência

Spread da taxa de juros vs. medida dos objetivos da insolvência

Medida dos objetivos da insolvência Medida dos objetivos da insolvência

Taxa de recuperação vs. medida dos objetivos da insolvência

Medida dos objetivos da insolvência

F ig u ra 2 - 7 Impacto da eficiência da insolvência sobre o spread, o crédito privado e a taxa de recuperação dos credores.Fonte: Doing Business, World Dcvelopment Indicators and International Financial Statistics.

o fim do problema de sucessão, em que agora as alienações serão feitas em hasta pública, na qual o novo comprador fica livre da sucessão das obrigações do devedor. Essas mudanças tendem a agilizar o processo, torná-lo menos custoso e aumentar a proteção ao credor, e por­tanto tendem a aumentar o valor a ser dividido entre as partes e o retomo dos credores. Com tal aumento de retorno, quando ocorre a falência a perda dos credores é reduzida, o que di­minui o risco das firmas e as taxas de juros cobradas, além de aumentar o volume de crédi­to concedido.

O efeito da redução do risco de perda sobre as taxas de juros pode ser visto na prática pelo exemplo do crédito consignado. Note-se que a única medida foi a melhora na expecta­tiva de recebimento, já que agora há o desconto direto na folha de pagamento, o que reduz

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O impacto econômico da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas 41

o risco do credor, sendo suficiente para que os juros cobrados despencassem e o volume de crédito pessoal negociado aumentasse significativamente.

A última etapa do processo refere-se ao Judiciário. O papel do Judiciário é fundamen­tal para o cumprimento da lei, pois, uma vez que regras e regulamentações não são corre­tamente implementadas, mesmo no caso das leis consideradas boas, estas não conseguirão atingir seus objetivos por completo. Existem duas medidas relativas ao Judiciário que po­dem mensurar sua qualidade. A primeira é relativa à demora na implementação de simples contratos de dívida, isto é, quanto tempo a corte leva para resolver uma disputa de paga­mento. A segunda é chamada de rule oflaiv, que mede a tradição de 'lei e ordem 7 de um país e atua diretamente na medida de proteção ao credor.

A Tabela 2-1 mostra que sob ambas as medidas a qualidade do Judiciário brasileiro é menor do que a média da América Latina. Contratos levam mais tempo a ser implemen­tados e a tradição do cumprimento da lei e da ordem é baixa, prejudicando as execuções legais.

Castelar (2001,2003) produziu um cuidadoso estudo sobre o Judiciário brasileiro. Em sua pesquisa é possível encontrar explicações para o resultado exposto na Tabela 2-1, que coloca a eficiência da corte brasileira abaixo da média da corte latino-americana. Castelar reporta uma entrevista feita com empresários e magistrados. Os empresários avaliam a agilidade do Judiciário como ruim ou péssima em 91 por cento dos casos, enquanto até mesmo os magistrados avaliam a si próprios como regulares ou piores em 86,4 por cento dos casos. Lembre-se que a agilidade da corte exerce influência direta nos custos do pro­cesso de bancarrota e, conseqüentemente, no valor da firma e no retorno dos credores. As­sim como a agilidade, a baixa capacidade de prever as decisões do Judiciário foi apontada como uma importante característica do Judiciário brasileiro. Quando indagados se suas decisões refletiam visões políticas ou ideológicas, apenas 22 por cento responderam que nunca ou raramente tomaram decisões com viés político. Portanto, a maioria dos magis­trados tem suas decisões influenciadas por visões políticas. Finalmente, os magistrados fo­ram indagados se um conflito entre (a) obediência aos contratos e (b) interesse dos seg­mentos sociais menos privilegiados surgisse, como eles iriam se comportar; apenas 19,7 por cento dos magistrados escolheram a opção (a), devendo cumprir os contratos. A falta de previsibilidade e a desobediência aos contratos são fatores que geram incerteza sobre os acordos firmados, além de diminuir a proteção da parte contratante (nesse caso, os cre­dores), o que faz reduzir o interesse dos credores em fazer contratos de empréstimos.

Portanto, todas essas respostas apontam para um ambiente não muito favorável ao crédito, indicando o porquê da baixa expectativa de recuperação dos credores quando a fir­ma vai à bancarrota e a corte entra no processo.

T a b e la 2 -1 Indicadores de qualidade do Judiciário

Im plem en taçã o (d ias ) T rad ição da lei e da ordem [0,61

Brasil 566 1,50

América Latina 440 2,35

OECD 230 5,33

F o n te : Doing Business 2004 o. International Country Risky Cuido 2004.

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42 Capítulo 2 Reflexões a partir da Lei rr 11.101/05

Em resumo, a nova lei tende a trazer diversas mudanças no ambiente econômico. A primeira se dá na questão da governança do processo falimentar, pois a maior expectati­va de retorno dos credores no caso de falência e seu importante papel no processo de reorganização produzem incentivos para que trabalhem como auditores e fiscalizadores do processo, tornando-o mais eficiente e diminuindo as chances de fraude por parte dos gerentes. Segundo, a redução dos custos, a maior agilidade do processo e o fim da suces­são trabalhista e fiscal tendem a aumentar o valor da firma a ser dividido entre as partes interessadas em caso de falência. Terceiro, a prioridade dada aos credores segurados sobre o Fisco permite que recebam um maior retorno em caso de falência, diminuindo o risco do crédito. Quarto, o novo processo de falência e de reorganização permite a reabilitação das firmas economicamente viáveis e a transferência dos ativos das firmas economica­mente inviáveis para um uso mais eficiente, aumentando a eficiência da economia em geral. Finalmente, a criação da recuperação extrajudicial permite a renegociação privada entre grupos de credores e devedores sem incorrer nos altos custos de levar a público o processo (isso poderia inibir ou piorar a relação da firma com seus credores), além de evi­tar os custos incorridos na corte.

™ B reve cu rr ícu loAloísio Pessoa de Araújo Professor e pesquisador da Escola de Pós-graduação em Economia da FGV e do Instituto de Matemática Pura e Aplicada.Bruno Funchal Doutorando da Escola de Pós-graduação em Economia da FGV.

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A n o v a Lei de Fa lên c ia e R ec u per a ç ã o de Em presas

PERSPECTIVAS

Antonio Carlos Esteves Torres

om a entrada em vigor da Lei nü 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, no dia 9.6.2005,também entraram em vigência as práticas hermenêuticas do novo texto e, comosempre acontece com as mudanças de forma geral e, especialmente, no tocante a

normas que regulam setores importantes das relações sociais, já se podem identificar preo­cupações e cuidados pré-anunciados.

Com efeito, durante o período de vacatio legis, vozes autorizadas do nosso universo ju­rídico estiveram antecipando interpretações que agora pertencem ao mundo da realidade material, fugindo da seara meramente especulativo-dogmática em que se desenvolviam as discussões, notadamente acerca da nova filosofia preservadora da empresa, diferentemen­te da escatologia que dominava o Decreto-lei ne 7.661/45, cujo primeiro artigo vaticinava, com francas letras: "Considera-se falido o comerciante que [...] não paga no vencimento obrigação líquida

E bem verdade que as fórmulas julgadoras de nossos tribunais já vinham repelindo aquele determinismo escatológico porque, como se reconhecia abertamente, os procedi­mentos falenciais e concordatários se esboroavam em emaranhados burocráticos ou mecâ­nicas de má-fé sem nenhum resultado prático positivo, seja para os credores, seja para os devedores honestos e interessados em saldar seus compromissos. Venciam os escroques, es­pecialistas nas técnicas de fraudes, e os sociopatas, demolidores da credibilidade empresa­rial. Às favas com escrúpulos ou pudores. Passou-se a utilizar o requerimento de falência como mera fórmula coativa de execução. A ninguém interessava o decreto da quebra, com todos os seus percalços unificadores de propósitos coletivos. Visava-se única e exclusiva­mente ao pagamento da dívida. A frágil par conditio creditorum perdia fragorosamente a dis­puta com o fabular ego primam tollo quia nominor leo.

Mesmo sem penetrar instâncias veleidosas, tendentes a considerar a Lei de Falência e Recuperação de Empresas como a panacéia definitiva para os males morais ou técnicos que tornaram ineficaz a legislação revogada, vale trazer à lembrança que esteve a animar o le­gislador, nessa empreitada de atualização normativa, a valorização que os artífices do Có­digo Civil Brasileiro deram aos princípios da eticidade, socialidade e efetividade, como es­tacas e fundações que orientaram a vinda a lume da Lei n2 10.406/02.

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44 Capítulo 2 Reflexões a partir cia Lei rr 11.101/05

Os primeiros exegetas da nova lei — mediante a divulgação de idéias e pensamentos que vêm sendo expostos em livros, palestras e seminários — têm tido a oportunidade de as­severar que a estrutura material da Lei de Recuperações está assentada em princípios, es­pecialmente no da eficiência. Penso que os mestres se referem ao encontro da técnica com a efetividade da aplicação da lei.

Em expressões mais objetivas dos estudiosos, vê-se que a Lei nü 11.101/05 se auto-in- terpreta, por via do conteúdo do art. 47,1 cuja redação não deixa dúvida sobre a intenção so­cial da mens legislatoris e da mens legis. O apuro com a técnica está em parcelas que revelam o desidério em pontos do texto legislativo sob comento que passariam a exigir dos juizes maior atenção e cuidado. Constata-se essa circunstância analisando, de forma mais detida, o centro motor da incidência daqueles princípios, o art. 50 da Lei nc. 11.101 /05, que enume­ra fórmulas admitidas nos procedimentos de recuperação das empresas, exemplificando, "dentre outras", desde mecânicas financeiras dilatórias de prazos para pagamento de obri­gações até as operações societárias de cisão, fusão, incorporação; aumento de capital; arren­damento a sociedade constituída de empregados ou de credores outros.

A seriedade de propósito e o afastamento de censuráveis tentativas de engodo serão considerados fatores indispensáveis para que o método recuperatório seja implementado.

O Judiciário brasileiro — como um todo, federal ou estadual, mediante as escolas da ma­gistratura, ainda que numa visão aristotélica sobre a indispensabilidade da sabedoria, sem afastar a filosofia de que o magistrado deve conhecer a floresta, não necessariamente a árvore— vem se adaptando às exigências modernas no tocante à velocidade do desenvolvimento científico e à inevitabilidade do impulso interdisciplinar do direito, rememorando seus inte­grantes dos conceitos básicos de ordem científica que envolvem a amplidão do mundo econô­mico financeiro para — como se colhe dos propósitos de recente curso levado a efeito pela Fundação Getulio Vargas em São Paulo e no Rio de Janeiro, com o objetivo de familiarizar a magistratura com métodos e conceitos fundamentais da prática — capacitá-la "[...] à leitura de relatórios e demonstrativos financeiros, possibilitando, desta forma, a compreensão de fatores determinantes no processo de tomada de decisão [...]".

Partindo-se de princípios basilares, como o do objetivo da contabilidade, coletar, re­sumir, analisar e demonstrar, em termos monetários, informações acerca dos negócios, o aplicador da lei há que estar atento às especificidades da Lei das Sociedades por Ações (Lei nc 6.404/76), às exigências contábeis para objetivos fiscais e de ordem administrativa, co­mo se constata do exercício da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) (Lei n~ 6.385/76) e do Banco Central do Brasil (Lei nü 4.595/64), por exemplo.

Cumpre a esta altura esclarecer que aos magistrados e membros do Ministério Públi­co (aos advogados, de forma geral) não se há que exigir plena habilitação profissional em especialidades científicas do universo contábil e econômico, como aliás em nenhum outro fora do direito, na conceituação kelseniana. Mas os profissionais desse ramo não poderão deixar de conhecer a moldura do quadro em que se desenvolverão pedidos e decisões. No que tange aos magistrados, até mesmo para que possam nomear os administradores, peças centrais dos procedimentos de recuperação e falência.

1 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

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A nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas — perspectivas 45

Do encontro entre a técnica e os princípios com que se pretende incrementar a pos­sibilidade de saneamento do panorama das relações empresariais, submetido a desgastes econômicos ou financeiros, surgem novas responsabilidades para todos. É de recordar que os valores éticos precedem a busca da prestação jurisdicional. Veja-se que, revogado o art. 2Ü, III, do Decreto-lei nü 7.661/45, que considerava falido o comerciante que convo­casse credores para propor dilação de prazo para pagamento (justamente um dos meios admitidos para a recuperação judicial — art. 5 0 ,1, da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas), as tentativas antecedem o ajuizamento do feito. Aliás, em meu entender, se a implementação do meio recuperatório lograr bom êxito, para o que não está afastada a possibilidade arbitrai, o Judiciário, atravancado pelo acúmulo de demandas (algumas abso­lutamente inúteis), poderá ser poupado de mais um processo, resolvendo-se o impasse de forma particular, mais rapidamente, sem traumas ou necessidades de editais, avisos, pu­blicações, prazos, nomeação de administradores e imposição, aos que não concordarem com a metodologia, da obrigatória aceitação.

Se a nova legislação não tivesse outros méritos, e os tem, apesar de alguns defeitos suplantáveis (por enquanto, não há unanimidade quanto à exegese das disposições tran­sitórias, no tocante ao art. 192 da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas; o par­celamento de dívidas tributárias ainda carece de melhor estruturação), penso que seria su­ficiente, para a justificação de sua existência, a notória oxigenação dos meios negociais e das tratativas capazes de evitar a quebra de uma célula importante do desenvolvimento econômico e social. Está afastada a ameaça irreversivelmente escatológica a que nos refe­rimos no início deste artigo.

Com essa perspectiva, pode-se responder afirmativamente às dúvidas e indagações sobre as esperanças trazidas pela nova lei, embora sua aplicação vá exigir dos operadores do direito, de qualquer de seus segmentos, redobrado esforço profissional. Reeditando-se o que já se vem expondo há algum tempo, é preciso lançar na ordem de nossos comporta­mentos a lembrança do pensamento oriental, que adverte, ao estilo confucionista, sobre o costume que muitos têm de abandonar-se em lamentações do passado ou entregar-se a longínquas visões do futuro, desprezando a vivência do presente. Este momento celebra o atendimento dessa proposta do uso da virtude da coragem. Todo o setor jurídico já vem trabalhando com as previsões e prospecções da nova filosofia empresarial (não falencial) sem exageradas saudades do passado ou justificadas esperanças no futuro, mas vivendo intensa e produtivamente o presente.

Breve cu rrícu loAntonio Carlos Esteves Torres Juiz de Direito da 4Ü Vara Empresarial; coordenador de Direito Empresarial da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj); presidente do Fórum de Direito Empresarial da Emerj; ex-chefe da Divisão Jurídica do Banco Central do Brasil do Rio de Janeiro; formado pelo International Law Institute — Georgetown University, Washington, Estados Unidos.

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R ec u per a ç ã o de em presa s :INTERESSES E POSICIONAMENTOS

NA NEGOCIAÇÃO

Antonio Cardoso Toro

A promulgação da Lei nc 11.101 de 9 de fevereiro de 2005 (nova Lei de Falência e Recu­peração de Empresas) trouxe para a cena empresarial brasileira a figura da recupe­ração de empresas, em substituição ao mecanismo da concordata, vigente até então.

O objetivo deste texto é discutir o posicionamento típico de partes interessadas em relação a esse processo empresarial.

D e f in iç ã o

O artigo 47 da referida lei diz:

A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor; a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preserva­ção da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

*

E curioso notar que a lei faz menção à preservação da produção, do emprego e do in­teresse dos credores, mas não dos sócios. Os direitos e interesses destes e dos administra­dores por eles direta ou indiretamente nomeados são resguardados por outras normas, mas não constituem foco de interesse da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. Isso porque, em uma empresa que necessita recuperar-se a tal ponto que se faz necessário o abrigo da lei, a dinâmica dos interesses se altera.

Em uma empresa atuando sob condições normais, os sócios ou acionistas são os principais detentores de interesse econômico no negócio. Ou seja, são os maiores beneficia­dos economicamente por sua prosperidade, ou prejudicados por seu fracasso. Ainda que tal prosperidade também beneficie empregados, fornecedores e demais parceiros de negó­cios da empresa, cabe aos sócios a autoridade e a conseqüente responsabilidade pelos rumos do negócio. Decisões empresariais sobre estratégia, investimentos, produtos, compras, dis­tribuição dos resultados etc. são tomadas por eles sob esse prisma. Às demais partes (tra­balhadores, fornecedores, financiadores, clientes, governo etc.) cabe interagir com a em­presa para beneficiar-se ou não de seu progresso dentro de condições legais ou contratuais estipuladas.

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Recuperação de empresas: interesses e posicionamentos na negociação 47

Uma crise de liquidez significa que a empresa não está em condições — ao menos tem­porariamente — de manter os compromissos financeiros contratados. O caixa esvazia, o crédito se torna difícil e os credores não são pagos. Nessa situação — e outra vez, ao menos temporariamente — o interesse econômico imediato sobre o negócio migra para seus credo­res. Eles serão diretamente prejudicados se fracassar o empreendimento — perdendo par­cial ou totalmente seu crédito. O interesse econômico dos sócios fica naturalmente subordi­nado à recuperação. Uma vez que a empresa consiga resolver a situação de pagamentos a terceiros, pode-se voltar a pensar em remuneração aos sócios. Mas mesmo assim estes con­tinuam com a autoridade para tomar as decisões de negócios. Em muitos casos, essa combi­nação de autoridade de um lado e interesse econômico difuso é danosa, por incitar empresá­rios mais desesperados ou menos éticos a práticas incorretas, ou por causar uma paralisia das ações empresariais necessárias à recuperação dos negócios.

A nova lei tenta remeter a solução do impasse à negociação entre as partes. Dá-se aos controladores/administradores a chance de elaborar ou fazer elaborar um plano de recupe­ração. Os credores recebem seu quinhão de autoridade, ao se lhes permitir vetar o plano apresentado. Entretanto, não podem interferir nem elaborar um plano alternativo — senão pela via negociai. A alternativa de última instância a ambos os lados é a falência. Os rumos de negociação é que acabam por determinar o quanto de interesse econômico é preservado e como ele se distribui entre as partes.

Essa negociação entre o devedor e seus credores é particularmente complexa. É uma negociação multilateral, em que há profunda assimetria de informação e objetivos não ne­cessariamente tão convergentes quanto se imagina a princípio. E se dá sob a influência do que acontece fora da negociação, como o ambiente econômico e a ação dos concorrentes. Uma análise de tipos comuns nessas circunstâncias facilita o entendimento.

O DEVEDORÉ representado pela administração da empresa, que nem sempre se confunde com os

sócios. Está na posição inglória de quem é responsável pelo problema e pela solução. E ten­de a ser parte bem informada da negociação. Normalmente a empresa em débito precisa passar por uma revisão profunda, que pode atingir a troca de administradores, o ajuste do quadro de pessoal, a redefinição da estratégia de negócios, produtos, projetos de investi­mentos, processos internos etc. Esse processo é freqüentemente traumático e acompanhado de exposição negativa da empresa perante o mercado, desconfiança, ceticismo e possível avanço de competidores sobre seu espaço. Há um desafio fundamental a devedores em re­cuperação: restaurar a motivação, a credibilidade e a crença na viabilidade do empreendi­mento. E superficial imaginar a recuperação apenas como uma negociação financeira. Esta é uma parte da recuperação, que somente se justifica quando o devedor é capaz de conven­cer as partes envolvidas de que vale a pena apostar no empreendimento. Senão será apenas o prolongamento da agonia.

Os SÓCIOS CONTROLADORESFreqüentemente se espera deles que resolvam o problema com uma gorda contribui­

ção de capital novo. Mas se estamos falando de uma empresa em recuperação é porque, em tese, os controladores não quiseram ou não puderam fazer tal aporte. E se vêem na ten-

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48 Capítulo 2 Reflexões a partir cia Lei rr 11.101/05fc ■ —— -i ...

tativa de proteger sua reputação como empresários e preservar ou recuperar o valor de seu investimento. Resistem à idéia de que seu interesse econômico no empreendimento foi di­luído ou pulverizado. São bem informados sobre a empresa e seu potencial, mas freqüen­temente têm dificuldades em compreender o interesse que move certos credores — espe­cialmente os mais céticos. E tal incompreensão pode conduzir a impasses que emperram a negociação.

Os SÓCIOS MINORITÁRIOS

Há dois tipos: o que viu o seu investimento afundar junto com a empresa. É um espec­tador sentado em uma poltrona ruim em um espetáculo idem. Normalmente tem pouca ou nenhuma interferência, e seu interesse econômico é subordinado à solução. Menos mal quando se trata de empresa de capital aberto, em que as autoridades do mercado lhe asse­guram melhor proteção. Alguns podem estar atentos a indícios de fraude ou má gestão, e então partir para um confronto com a administração, com os controladores ou com quem quer que julguem responsável. O outro tipo de minoritário é aquele que aproveita a chan­ce de comprar barato as ações da empresa em crise e aposta em sua melhoria ou recupera­ção. Dependendo de quão barato paga, nem precisa de uma solução definitiva, mas alguns sinais positivos bastam para lhe gerar retorno. Devido a esse caráter especulativo, quando exerce alguma influência é para pressionar por uma solução rápida, ainda que não necessa­riamente a mais correta a longo prazo.

O S CONCORRENTES

Quando não estão envolvidos com seus próprios problemas — o que é comum, por­que muitas crises financeiras atingem vários integrantes de um mesmo mercado — perma­necem atentos às fraquezas demonstradas pelo devedor para ganhar terreno. Informações obtidas ou percebidas sobre restrições de investimento ou fornecimento, ações de marke­ting dirigidas, recrutamento de pessoal ou de parceiros-chave de negócios estão entre as ferramentas que ficam à disposição dos concorrentes. Na maioria dos casos, beneficiam-se da agonia prolongada do devedor, e podem estar à espera de uma oportunidade de aquisi­ção barata.

O S TRABALHADORESSofrem as conseqüências da situação financeira da empresa de diversas formas: pelo

impacto nos mecanismos de incentivo ou remuneração; pelas reduções de postos de traba­lho; pela redução de investimentos; pela insegurança sobre o futuro da empresa; pela redu­ção da motivação interna. E são reconhecidamente elementos essenciais para que a empre­sa supere suas dificuldades. A nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas pretende aproximá-los da negociação, quando reserva um assento no comitê de credores aos credores trabalhistas (não necessariamente um representante do interesse geral dos trabalhadores). Normalmente as maiores preocupações envolvendo trabalhadores estão relacionadas a as­pectos motivacionais, como remuneração, perspectivas de progresso profissional ou admi­nistração dos impactos causados pelas possíveis mudanças ocorridas na empresa (por

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Recuperação de empresas: interesses e posicionamentos na negociação 49

exemplo, demissões, fechamento de unidades, descontinuidade de produtos, terceiriza­ções, venda de ativos ou negócios etc.). É necessário no mínimo um programa de comuni­cação que transmita aos trabalhadores uma versão oficial da empresa sobre o problema e as providências. De outra forma, a comunicação informal ('rádio peão') tratará do assun­to de forma negativa, sem que a empresa tenha a chance de interferir e esclarecer.

O S FORNECEDORESHá fornecedores que não são críticos, porque seu crédito é pequeno, e a relação de ne­

gócios com o devedor, pouco importante. Para estes, não compensa outra atitude a não ser acompanhar passivamente os acontecimentos. Eventualmente podem aceitar alternativas de vender ou receber seu crédito mais rapidamente e com desconto. Já fornecedores críticos costumam ser protagonistas de peso nas negociações. Seja por seu interesse em recuperar o crédito, em manter o cliente (e entre esses dois motivos já há um possível conflito), ou ain­da pelo poder que representa a eventual interrupção de fornecimento. Alguns fornecedores críticos tornam-se líderes da negociação. Tentam organizar os credores ou auxiliar o deve­dor no contato com eles. Outros preferem adotar uma posição de força; não renunciam ou negociam qualquer direito ou privilégio por entender que a recuperação depende da conti­nuidade dos negócios, que somente eles — e não os demais credores — podem assegurar. E comum que empresas busquem renegociar passivos com bancos e detentores de títulos e preservem os fornecedores, seja para preservar a relação operacional, seja para manter con­trole sobre o número de envolvidos e a natureza das negociações. Entretanto, caso as nego­ciações para recuperação não sejam bem-sucedidas, são grandes perdedores, porque per­dem o recebível e também o cliente.

O S CREDORES FINANCEIROS

Bancos e detentores de títulos (por exemplo, debenturistas) tendem a ser mais prag­máticos sobre o que está em jogo. Para estes, é principalmente uma questão de resolver o crédito atual. Se lhes parece que a melhor alternativa é uma troca de controle ou a venda dos ativos da empresa, provavelmente advogarão tal posição. Há, sim, credores financeiros que ponderam com cuidado o valor do relacionamento futuro que o cliente representa. Co­mo há também outros que preferem vender o crédito a terceiros e não participar das discus­sões. Como estão mais sujeitos a problemas dessa natureza que os demais participantes, costumam ter maior experiência com o assunto, ainda que isso não signifique necessaria­mente convergência. É muito comum que conflitos entre credores financeiros em relação a prazos, taxas de juros, garantias, moedas, quóruns de decisão, instrumentos contratuais, entre outros, sejam extremamente difíceis de resolver.

Os NOVOS INVESTIDORES

Alguns profissionais dedicados à recuperação de empresas afirmam que não há re­cuperação sem dinheiro novo. Em teoria, há várias fontes possíveis de novos recursos para financiar uma recuperação: novos empréstimos, aporte de capital dos sócios exis­tentes ou novos, venda de ativos, ou a própria geração de caixa da empresa durante um período de carência nos pagamentos. Na prática, é difícil atrair novos investidores ou

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50 Capítulo 2 Reflexões a partir da Lei rr 11.101/05

novos recursos a uma empresa em recuperação, seja porque o risco é percebido como mui­to alto, seja porque a possibilidade de contaminação dos recursos novos pelos problemas antigos é um obstáculo no Brasil. A nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas cria um estímulo para o capital novo. Créditos concedidos durante o período de recuperação têm tratamento preferencial em caso de falência. E ativos ou atividades de empresas em recuperação ou falência podem, sob certas circunstâncias, ser isolados das contingências anteriores. Não há estímulo na lei para novos recursos sob forma de capital ou para a com­pra de dívidas antigas. Ainda é cedo para dizer se o dinheiro novo, tão desejado por toda empresa em recuperação, virá a firmar-se no mercado brasileiro, e sob que forma. Mas é certo que, ao menos no início, sua atração dependerá de retorno elevado. Há organiza­ções, até mesmo no Brasil, que acompanham com interesse casos de empresas em dificul­dades à procura de uma oportunidade de aquisição de dívida ou de participação, asso­ciação, participação na gestão etc. Em certos casos, as ações desse tipo de investidor são consideradas oportunistas e indesejadas. São, porém, uma fonte importante de liquidez para a recuperação, e tendem a ter um enfoque pragmático, bastante útil em muitas cir­cunstâncias.

s

E certo que a nova legislação ainda não teve chance de ser testada, e muitas dúvidas pairam sobre ela: se serve para empresas pequenas e médias; se não vai prestar-se a fraudes diversas; se privilegia demais os credores com garantia real, entre outras. O que é certo, po­rém, é que o espírito negociai que ela apregoa já vem sendo praticado por empresas e cre­dores em situações importantes, em que é fácil reconhecer a validade da tese que recuperar a empresa vale mais que extingui-la. Telecomunicações, energia, mídia, papel e celulose, en­tre outros, são setores de destacadas empresas da economia brasileira que se submeteram a um processo de recuperação operacional e reestruturação financeira. Exercício por vezes penoso, porém necessário. E são tais casos emblemáticos — alguns com final feliz — que remetem à idéia de utilizar a negociação como fio condutor da recuperação de empresas.O mapeamento das partes e de seus interesses e posições na negociação é ferramenta fun­damental para buscar o entendimento em um ambiente complexo, multilateral e sensível, como costuma ser o das recuperações.

1 B reve cu rr ícu loAntonio Cardoso Toro Sócio da PricewaterhouseCoopers, responsável pelos serviços de recu­peração de empresas no Brasil. Possui extensa experiência em avaliações e fusões e aquisições de empresas. Membro do Fórum de Líderes Gazeta Mercantil, no segmento de serviços especializa­dos. Graduado em contabilidade pela Universidade de São Paulo.

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O papel d o P o d er J u d ic iá r ioNA APLICAÇÃO DA LEI

Na 1 1 . 1 0 1 / 0 5

Carlos Henrique Abrão

O diploma legal rr 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, em vigor, representa marco im­portante e divisor de águas em atribuir a função social da empresa, assegurada constitucionalmente, delimitando instrumento de preservação da atividade econô­

mica e duplo perfil ao magistrado, encerrando análise formal e de conotação direta em fa­ce do estado de crise da empresa.

Com efeito, o magistrado será, na condição de representante do Poder Judiciário, a alavanca na interpretação e no conhecimento prático da legislação, saindo da mera passivi­dade, fruto da obsoleta legislação revogada de 1945, e ainda do sistema do Código napoleô- nico de 1807, aliado ao excesso de processualismo, movimentando-se para o campo ativo de um procedimento concursal destinado à solução dos conflitos, e não propriamente à criação de incidentes.

O saudoso Yves Guyon1 da Universidade de Paris — Sorbonne, na conclusão de sua obra, pontificava uma excessiva preocupação com o instituto da recuperação empresarial, mas as estatísticas eram sombrias. Segundo ele, seria melhor que uma economia morta en­terrasse as empresas falecidas, sendo melhor uma economia saudável que tratasse de prio­rizar a atividade empresarial. Os dados colhidos na França, a teor de Phillippe Peyramau- re e Pierre Sardet,2 indicam que 88 por cento das empresas submetidas a recuperação foram liquidadas, resvalando em 12 por cento o número daquelas efetivamente reorganizadas e consideradas recuperadas, por se mostrarem dotadas de viabilidade econômica.

O principal aspecto a ser tratado diz respeito ao papel do Poder Judiciário na ativi­dade recuperatória. Observando-se o continente sul-americano, percebe-se que muitos países alteraram suas legislações, exceto o Chile, cuja economia é forte, tem um mercado integrado, baixa tributação e taxa de juros razoável, fatores que contribuem para o incre­mento da produção, ao contrário da realidade brasileira, na qual é grande o informalismo das empresas e diminuto o papel do Estado nas salvaguardas e na eliminação de barrei­ras competitivas.

1 Yves Guyon, Droit des affaires. 9. ed. Paris: 2003.: Philippe Peyramaure e Pierre Sardet, Ventreprise en dificulte. 3. ed. Paris, Delmas: 2002.

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52 Capítulo 2 Reflexões a partir da Lei rr 11.101/05

Criteriosamente, o Judiciário se comportará dentro dos princípios gerais da Lei n2 11.101/05, disciplinando a moralidade do procedimento, a ética da informação e a transpa­rência no resultado de alcançar a viabilidade da empresa em estado de dificuldade.

Na égide do Decreto-lei ^7.661/45, revogado, os procedimentos eternizavam-se, as decisões eram inefetivas, os impasses se multiplicavam, encastelando-se alguns grupos de pressão no interesse de minorias que desvirtuaram a finalidade da liquidação e da própria concordata preventiva, o mais das vezes convolada em quebra.

Diversas empresas faliram pela falta de um diploma de recuperação. Basta lembrar os casos da Casa Anglo Brasileira S/A (Mappin), Encol, Boi Gordo, e tantas outras nas quais não havia previsão de afastamento do administrador-controlador e a interferência de um plano de recuperação fundado na continuidade do negócio, no prestígio da marca, na sub­missão ao consumo e conservação dos empregos.

Previa a revogada legislação de 1945 apenas duas hipóteses de preservação: a conti­nuação do negócio na falência e a concordata suspensiva. Ambos os aspectos exigiam a quebra deflagrada. Hoje, ao contrário, é o devedor ou terceiro interessado e legitimado que tem o papel de apresentar o diagnóstico da crise e ambicionar a recuperação.

Finda-se o exercício profissional do síndico e do comissário, abre-se uma nova inspi­ração decisiva visando o administrador judicial, economista, administrador de empresas, contador, advogado, enfim, um profissional com idoneidade e ilibada reputação, no senti­do de oferecer responsabilidade ao ritmo dos negócios.

Esse juiz natural não é mais o sujeito passivo que examina dados unilaterais do deve­dor, mas tem poder e dever de determinar diligências, entre as quais auditoria, convocação de assembléia, nomeação de administrador judicial provisório, afastamento do controlador ou do sócio administrador. Tudo isso demonstra um papel relevante e uma multidisciplina concatenada ao entendimento macro de vários ramos interligados: direito, economia, admi­nistração de empresas, contabilidade, fluxo de caixa, sedimentando especialização.

Sob o novo espírito legislativo não se cogita mais das sucessões tributária e trabalhis­ta. Permite-se a venda antecipada de bens que integram o ativo; ao mesmo tempo, o dina­mismo contribui para as soluções de mercado para a manutenção dos direitos materiais e imateriais da empresa em crise.

O controle formal do magistrado estará presente na recuperação e na falência, mas o dirigismo do procedimento dependerá do conhecimento e do canal de comunicação com os órgãos, tais como a assembléia de credores, o comitê e, diretamente, o Ministério Público.

Deixamos de lado os balanços artificiais e, dados pouco confiáveis que preparavam uma concordata preventiva, dando clareza na precisão de laudos e relatórios mensais que diagnosticam a sorte da empresa e sua possibilidade de recuperação no menor intervalo de tempo possível.

Enaltecemos a substituição da expressão 'processo' pela tônica do procedimento, pela redução dos conflitos e dos litígios, com ampla fiscalização e supervisão pela assembléia, pelo comitê, pelo administrador judicial, e ainda por força da intervenção do Ministério Pú­blico. Assim, exige-se de um Judiciário moderno e amparado na EC 45/04 um tempo pro­cessual razoável, sem formalismo ou burocracias, haja vista que, no mundo empresarial, sem dúvida valem os princípios da rapidez, discrição e realismo na tomada de decisões vol­tadas para a normalidade da atividade econômica.

A criação de varas especializadas é o norte; diversos Estados da Federação cumprem essa necessidade, e mais recentemente São Paulo, seguindo a linha do conhecimento es­

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O papel do Poder Judiciário na aplicação da Lei rr 11.101/05 53

pecífico, criou varas e câmara com o enraizamento temático em questões de recuperação e falências.

Vivenciaremos a especialização não apenas de magistrados, desembargadores e mi­nistros que passam a formular uma política diretiva de súmulas voltadas para a melhor interpretação da matéria, mas também o trabalho dos servidores, de infra-estrutura e in­formatização plena, com o domínio da rede, e os registros para conhecimento perante as juntas comerciais.

Destacamos um direito empresarial que encerra técnica de saber do direito econômi­co, financeiro, de mercado, fazendo com que o exame formal da inicial experimente uma di­retriz de interpretação dos fatos para a perfeita caracterização do estado de viabilidade da empresa em crise.

As metas de blindagem da empresa situam sua proteção e política de não-agressão frente às penhoras on-line das cobranças fiscais e trabalhistas, destinando-se ao não-com- prometimento do fluxo de caixa e à segurança de recursos necessários ao pagamento dos serviços e bens adquiridos na proteção do negócio empresarial.

Os recursos processuais devem merecer, ao lado da distribuição preferencial efetiva, um tratamento dinâmico, informal e de resultado. Assim, causam intranqüilidade o efeito ativo, a paralisação do plano e suspeitas nos credores, conseqüentemente, o afastamento dos interessados e o rápido esfacelamento da empresa.

Desde a distribuição da inicial de recuperação, passando por sua análise formal e pro­cessamento, o juízo universal desempenha papel importantíssimo, com a nomeação do ad­ministrador judicial e a impossibilidade da desistência pelo devedor, exceto se este obtiver aprovação da assembléia, a justificar a moralização do procedimento.

Durante o biênio legal da recuperação sobressai um estágio de observação que signi­fica o acompanhamento judicial e a perspectiva de flexibilização do plano e qualquer me­dida tendente à preservação da empresa com dificuldade econômico-financeira.

Conforme a doutrina de Salles de Toledo e outros3, reconhece-se uma nova visão na Lei n~ 11.101/05, na medida em que se trabalha à exaustão com a sobrevivência da empre­sa e esporadicamente com a falência, sendo propósito do legislador construir a mais, valia da reorganização e deixar num segundo plano a quebra, apenas de forma excepcional, ao contrário do que se via no cenário da legislação revogada.

Ao juízo compete o controle e a fiscalização da realidade dos prazos e objetivos da re­cuperação, podendo solicitar esclarecimentos, convocar peritos, determinar auditoria, ma­pear o fluxo de caixa, verificar preterição de credores, enumerar eventuais atos delituosos para abertura do inquérito policial, ouvir o Ministério Público, concordar com a venda an­tecipada e descortinar propostas que contribuam para a efetiva recuperação empresarial.

Necessitamos, pois, dividir as etapas da crise, do pré-saneamento, e adotar medidas que indiquem quais são as razões principais do estado de dificuldade, apontando o preço do produto, maquinário obsoleto, excesso de mão-de-obra, logística. Enfim, tudo isso aju­dará definitiva e decisivamente no alinhamento das causas e circunstâncias fundamentais à revisão do modelo da empresa.

E a principal novidade é no sentido de tornar extraconcursal, privilegiado aquele cre­dor que se dispuser a manter fornecimento e contribuir para o devedor em crise, pois, sen­

3 Paulo F. C. Salles de Toledo et al., Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2005.

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54 Capítulo 2 Reflexões a partir da Lei rr 11.101/05

do seu parceiro, é tanto maior a probabilidade de reverter a instabilidade e buscar confiança no mercado.

Consoante o saudoso Nelson Abrão,4 as medidas de adaptação da organização judiciá­ria às necessidades socioeconômicas da empresa atual servem para destacar maior celerida­de ao procedimento judicial, cuja carência leva à tese da solução extrajudicial do conflito.

Enquanto na legislação norte-americana e na do continente europeu observa-se uma maior política de concessão de poderes ao magistrado, até mesmo para descaracterização de créditos e imposição de limites aos preferencialistas, a exemplo do Fisco, a Lei nc 11.101/05 na realidade resultou na diminuição dessa capacidade funcional, somada à recuperação extrajudicial, mas isso não desestimula o aperfeiçoamento e o aprimoramento da máqui­na judiciária como um todo.

Presume-se que a vocação legal seja voltada para as médias e grandes empresas, em face da complexidade e do custo do procedimento, mas é fundamental salientar que funcio­nam concomitantemente os órgãos da companhia com aqueles da recuperação, o que pode­rá ensejar o conflito de interesse a ser resolvido pelo juízo universal.

Cumpre ao Judiciário um papel macro no encaminhamento do plano, na aceitação das propostas, na redução dos conflitos, na prevenção de litígios e, acima de tudo, conhe­cimento plural do sistema de funcionamento do negócio empresarial, saindo do formalis­mo e da rotina burocrática dos despachos para atingir a efetividade daquilo que prestigia a sociedade empresária.

Mantém-se a hegemonia da decisão, o interesse público da empresa e a conciliação dos interesses em disputa por intermédio da atividade jurisdicional combinada com o ter­mômetro dos órgãos que monitoram a crise e o Ministério Público, que fiscaliza seus pas­sos, coadjuvando todos em prol da manutenção da atividade econômica.

Salientamos que os dados submetidos ao conhecimento judicial passam pela largueza da análise, impugnação e esclarecimentos, sem vinculação. Assistimos a concordata preven­tiva da empresa Chapecó, porém foi convolada em quebra, e a juíza sinalizou que o plano que visava sua recuperação era farsa. Assim, tudo evidencia uma participação direta, eficien­te e que iniba qualquer irregularidade na técnica de conservar o negócio, submetendo-se ao preceito geral de um custo/benefício comprovadamente introduzido e que compense a reor­ganização.

Com base nos princípios jurisdicionais da efetividade das deliberações, no juízo natu­ral da recuperação e da falência, sua vinculação e imparcialidade, temos uma nova roupa­gem do contraditório específico, com a menor crise social possível. Sabemos que o agravo de instrumento poderá ter efeito ativo e paralisar a continuidade de alguma atividade. O juiz auxiliar não pode ser designado sem coerência; urge que permaneça como o titular per­manente e ligado à crise da empresa, prestigiando-se a estabilidade, a inamovibilidade.

Com advento da Lei n2 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, desde 9 de junho em vigor, muda-se completamente o cenário, com a especialização das varas, informatização dos serviços, integração dos cartórios, dinâmica do procedimento, agilidade nas deliberações, efetividade dos recursos, surgindo um Poder Judiciário reformado em termos reais e dire­cionado para a solução das graves crises que afligem a empresa.

5 Nelson Abrão, O novo direito falimentar — Nova disciplina jurídica da crise econômica da empresa, São Paulo: Revis­ta dos Tribunais, 1985.

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O papel cio Poder Judiciário na aplicação da Lei n* 11.101/05 55

Evidente que de acordo com Sérgio Renault e Pierpaolo BottiniD a reforma do Judiciá­rio não é apenas de sua estrutura, mas do essencial, que é a sua matéria-prima, da mentali­dade, do aperfeiçoamento, do aprimoramento da instituição e salvaguarda segura para eli­minar a famigerada expressão do custo-Brasil, adversário do crescimento e fator negativo dos grandes negócios empresariais.

Dentro da visão estrutural e mediante a crise da empresa, soergue-se um novo papel destinado ao Judiciário: o de pacificar os conflitos, aparar as arestas, reduzir a litigiosidade entre os credores, buscando uma integração entre os diversos órgãos da recuperação e os critérios avançados de repercussão no direito intertemporal, mantendo-se a segurança das relações econômicas.

Projeta-se um Judiciário desenvolvimentista, que ampara a empresa em crise, respal­da o plano, assegura sua execução, permite o livre debate, saindo do panorama de mero espectador da insolvência, em que assistia rumar à quebra. Agora ele exerce uma ativida- de-meio de buscar a superação do impasse e outra atividade-fim, de colher o resultado de saneamento concatenado com uma nova empresa que advirá.

Unidos todos os magistrados brasileiros em torno da questão da recuperação empre­sarial, dotados de uma justiça social priorizada, alojados os recursos de infra-estrutura e conscientização do material humano indispensável à consecução da tarefa, teremos a for­matação de um Poder Judiciário do século XXI que, sabedor das limitações orçamentárias e da responsabilidade fiscal, não medirá esforços para o exercício de uma atividade compa­tível com a tendência universal de preservação da empresa em compasso com a ordem neo- liberal, ditando um mecanismo da globalização, respingando fortemente nas economias de países em desenvolvimento.

E esse novo conceito exigirá que o magistrado a cada dia se recicle, torne-se participati­vo, entenda os mecanismos de mercado, transmita segurança e se dedique integralmente à re­cuperação, enquanto os tribunais, com agilidade e eficiência, processam e julgam os recursos.

Breve cu rrícu loCarlos Henricjue Abrào Professor doutor. Juiz de direito titular SP — Especialização em Paris.

? Sérgio Rabello, Tanim Renault e Pierpaolo Bottini, Reforma do judiciário: comentários à EC 45/2004. Silo Paulo: Sa­raiva, 2005.

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R eflexõ es so br e a n o v a L ei de Fa lên c ia e

R ec u per a ç ã o de Em presa sE SUA RACIONALIDADE ECONÔMICA

Daniel K. Goldberg

A maior justificativa para a aprovação da nova Lei de Falência e Recuperação de Em­presas, a Lei n* 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, diz respeito à eficiência econômi­ca. Diz-se que o novo sistema, substituindo a velha concordata — entendida como

'favor legal' ao devedor —, incrementa a eficiência dos mercados, alocando ativos ao seu uso mais eficiente. Não se explica, contudo, o que se entende por 'mercado', tampouco o que se entende por 'eficiente'.

Há obviamente inúmeras perspectivas a partir das quais se pode entender o 'merca­do'.1 Do ponto de vista da teoria do direito, o mercado pode ser visto como um conjunto de instituições jurídicas que possibilitam que os consumidores, ainda que de forma individual, somem suas preferências para 'comunicar' aos produtores qual quantidade (e qualidade) de determinado bem ou serviço a sociedade demanda. Por outras palavras, o mercado pode ser concebido com um mecanismo 'não-lingüístico' de coordenação. Em um mercado per­feitamente competitivo, a oferta e a procura interagem até que, em equilíbrio, a quantidade ofertada de determinado bem ou serviço seja exatamente a quantidade de que a socieda­de 'precisa', ao menor preço possível (igual aos custos marginais, isto é, logo antes da si­tuação em que a firma 'perca dinheiro' com cada unidade adicional a ser produzida).

Uma situação em que a soma de todas as empresas em determinado setor da econo­mia produzem, em dado momento, a quantidade correspondente às necessidades e pre­ferências da soma de todos os consumidores traduz um estado usualmente chamado de 'ótimo de Pareto'.2

Outro nome para o 'ótimo de Pareto' é 'eficiência econômica': bens e direitos são alo­cados de forma eficiente se todas as trocas que beneficiam ambas as partes são feitas, até o ponto em que, necessariamente, alguém perderá com uma troca adicional. Trata-se de um truísmo: se as trocas são voluntárias (e não há custos de transação), bens e direitos trocarão de mãos até um ponto (qualquer ponto) em que uma troca adicional seria forçada, uma vez

1 Para boa construção de uma teoria jurídica que busca entender o mercado como um conjunto de instituições que torna as trocas possíveis, cf. Natalino Irti, Uordinegiuridico dei mercato. 3. ed. Roma: Laterza, 1998.

2 Um arranjo social é descrito como Tareto-ótimo' se, e somente se, o bem-estar de alguém não possa ser aumen­tado sem a diminuição do bem-estar de outrem.

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Reflexões sobre a nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas... 57

que, do ponto de vista de uma das partes, tratar-se-ia de troca desvantajosa. Toda vez que certa distribuição de bens ou direitos é ineficiente (no sentido de Pareto), o mercado falha em sua mais importante função: determinar o quanto deve ser produzido de determinado bem e quais consumidores ficarão com os bens produzidos.

Nesse contexto, o que significa dizer que a função de uma lei de falências (ou de re­cuperação de empresas) é aumentar a eficiência econômica? Em termos simples, a idéia é pre­servar ativos que. valem mais em conjunto e em operação (going concern) do que isoladamente. E a nova lei tenta criar para credores e devedor os incentivos apropriados para identificar si­tuações em que isso ocorre. Nesses casos, o fluxo de caixa gerado pela empresa em opera­ção será superior àquele gerado pela alocação dos ativos da empresa a outros usos, e todos saem ganhando, no que a literatura convencionou chamar solução eficiente. Ora, mas se a solução eficiente traduz uma melhora na situação de todos, por que motivo é necessária uma nova lei de falências? Isto é, se é de interesse de devedor e credores reestruturar a dí­vida de uma empresa, por que não o fazem (ou já não o faziam) a despeito da lei?

O PROBLEMA DOS INCENTIVOS: UM DILEMA DE MUITOS PRISIONEIROSEm que circunstâncias um acordo que é melhor para todos não surge 'espontanea­

mente'? Ou, em termos técnicos, o que leva partes em uma negociação a adotar uma solu­ção 'ineficiente'? Negociações podem falhar por inúmeras razões, e há diversos modelos que mapeiam tais razões; comecemos pelos modelos mais simples, os de escolhas binárias com externalidades.

'Externalidade' é um termo da economia que refere situações em que uma empresa (ou consumidor, ou qualquer outro agente econômico) não 'enxerga' custos ou benefícios de suas atividades. Esses custos ou benefícios são, portanto, 'externos' a sua perspectiva. Basta ao leitor que pense no exemplo clássico da empresa que polui: como os custos de sua atividade são divididos com a sociedade, porém o total dos benefícios é apropriado por seus acionistas, a empresa produz mais do que seria socialmente desejável, isto é, mais do que produziria se levasse em conta os custos que a atividade poluidora gera.

Escolhas binárias, por outro lado, são aquelas tomadas na forma 'soma zero'. Quan­do um médico opta por ingressar na rede credenciada de um plano de saúde, trata-se de escolha binária. Da mesma forma, colocar o cinto de segurança antes de sair às ruas com seus automóveis, ou sair agasalhado na expectativa de uma mudança de temperatura, são decisões binárias. Quando decisões binárias possuem externalidades, algo curioso aconte­ce. Os benefícios que cada um colhe dependem da decisão que outros tomam. E muitas ve­zes a decisão que outros tomam depende do arranjo que adotam. Schelling dá um exem­plo interessante:4 se todos precisam de 100 watts para ler, e a potência da luz da lâmpada do vizinho eqüivale à metade da sua própria luz, e todos têm uma lâmpada de 60 watts, um arranjo em círculo faz com que todos possam ler. Afinal, o arranjo em círculo faz com que cada um se beneficie da luz gerada pela lâmpada de seus vizinhos. No entanto, se o arranjo deixa de ser circular e todos se postam em fila, os indivíduos nos extremos já não podem ler, e portanto apagam suas respectivas lâmpadas, e assim por diante; em poucos

' De forma técnica, uma externalidade ocorre toda vez que os custos privados de determinada atividade diver­gem dos custos sociais.

1 Thomas C. Schelling, Micromotives and macrobehaviour. Nova York: Norton & Company, 1978, p. 241.

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58 Capítulo 2 Reflexões a partir da Lei rr 11.101/05C h ■■

segundos, todas as luzes estarão apagadas e ninguém poderá ler. O resultado da escolha de cada um (acender ou não a lâmpada) depende da escolha de todos os outros e do arranjo ado­tado, uma vez que este influencia quantos adotarão a mesma escolha (acender a lâmpada).

Um tipo especial de escolha binária é aquele descrito pelo conhecido dilema dos pri­sioneiros. Dois suspeitos de determinado crime são detidos, e o policial lhes oferece, sepa­radamente, a escolha de cooperar ou não cooperar (uma vez mais, uma escolha binária). Se o suspeito coopera com a polícia e delata seu companheiro, mas este não o delata, a autoria é integralmente imputada ao outro e o delator sai livre. Se, por outro lado, o suspeito coo­pera com a polícia e seu companheiro faz o mesmo, ambos são detidos, mas com penas me­nores do que teriam caso fossem considerados, individualmente, os únicos culpados. Caso nenhum deles colaborasse com a polícia, ambos seriam detidos por pouco tempo, uma vez que não haveria provas consistentes do crime. O jogo está representado na Figura 2-8.

Cada indivíduo tem uma melhor estratégia — delatar o companheiro —, a despeito do que o outro faça. Tanto L quanto C escolhem as respectivas melhores estratégias (linha inferior para L e coluna da direita para C) e, por isso, ambos ficam sem nada (0,0), vale dizer, presos.

O problema, como se nota, é que a melhor estratégia de cada um não traz a melhor so­lução para todos. Em termos mais precisos, temos aqui um equilíbrio ineficiente.

O modelo pode ser estendido para mais de dois indivíduos — ou empresas — desde que:

• para cada um exista uma estratégia melhor, a despeito do que os outros façam;• suas situações melhorem ou não, a depender da opção dos demais; e• exista um número mínimo de indivíduos que precisa escolher a estratégia inferior

(uma 'coalizão'), para que o grupo todo se beneficie.5

Vejamos a situação típica em que uma lei de recuperação se faz necessária: um deve­dor em dificuldades e vários credores, com garantias de natureza similar. Do ponto de vis­ta de cada credor, seria melhor que a empresa continuasse em operação. Contudo, cada um deles, individualmente, teme que o outro execute o devedor, precipitando sua falência e di­lapidando seu ativo operacional. Por isso, o ideal para cada credor é que sua dívida seja executada, mas que os outros não façam o mesmo. A conjunção da estratégia ideal de todos leva a um equilíbrio ineficiente: todos correm para executar suas dívidas, e a empresa de- vedora não sobrevive. É o problema que parte da literatura chama de asset grabbing, que tra­duzimos aqui por 'corrida aos ativos da empresa ilíquida'.

C (escolhe coluna)

1 2

L (escolhe linha)1 1

1 1 1 *o

2 [ j o

F ig u ra 2 - 8 .

Em Schelling, op. cit., p. 218, o autor estuda o modelo e suas variantes sob a rubrica de uniform multi-person pri- sioner's dilemma (MPD).

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Reflexões sobre a nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas... 59

Com uma coalizão mínima de credores que propõem a reestruturação da dívida da em­presa assegura-se uma solução eficiente: ela é preservada e continua a servir a dívida com base em seu fluxo de caixa. A questão que se coloca é, portanto: como garantir essa coalizão?

Para isso, a nova lei estabelece pelo menos dois dispositivos importantes. O primeiro está previsto nos artigos 6 e 52, III, que estabelecem a suspensão de todas as ações ou exe­cuções contra o devedor assim que deferido o processamento da recuperação. Dessa forma, durante o prazo de elaboração e negociação do plano de recuperação, de 180 dias (stay pe- riod), fica obstaculizada a corrida aos ativos da empresa. Assim, cada um dos credores sabe que os demais não podem dilapidar o patrimônio do devedor antes de a solução coletiva ser alcançada.

Por fim, o plano de recuperação afeta a esfera patrimonial de todos os credores, mes­mo aqueles que não participaram — ou não concordaram com os termos — da negociação da reestruturação, desde que preenchidas as condições previstas no art. 58, § l 2. Assim, a maioria dos credores representados em cada classe pode impor sua vontade à minoria, evi­tando comportamentos oportunistas e a dissolução da coalizão formada em prol da recupe­ração da empresa.6

Dessa forma, a nova lei traz os incentivos corretos para que uma coalizão se forme em torno da reestruturação da empresa, garantindo uma solução eficiente em que todos ga­nham: a empresa se mantém em funcionamento, os credores têm sua dívida servida com base no fluxo de caixa da empresa, que tem seu valor intangível preservado. Se a nova lei traz os incentivos apropriados, de que depende seu êxito?

D e c is õ e s ju d ic ia is e a n o v a l e i: o pa pel d o m a g is t r a d o

Com essa breve digressão sobre a racionalidade econômica da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas, concluímos que o objetivo da lei é evitar destruição de riqueza para a sociedade, representada pela eliminação do valor intangível que os ativos reunidos na empresa representam. A empresa possui valor econômico superior à soma do valor de seus ativos. E se isso não ocorre? Vale dizer, e se a maioria dos credores prefere executar os ativos da empresa em vez de mantê-la em funcionamento? O que o magistrado deve fazer?

*

E importante notar que a lei contém disposição expressa a respeito: se um plano de recuperação não for apresentado pelo devedor à assembléia em 60 dias (art. 53), ou se for rejei­tado pelos credores (art. 56, § 4Ü), a recuperação será imediatamente convolada em falência. A premissa de que parte a lei, nesse caso, é de que os ativos da empresa terão melhor uso se alocados a outras finalidades — e a empresa, como tal, não possui valor econômico. Pa­rece-nos essencial esmiuçar um pouco essa questão. Afinal, se o magistrado admite a con- volação em falência (e permite o fechamento da empresa, o que não sucede necessaria­mente na nova lei), não temos uma solução em que todos ganham: os credores têm parte de seu crédito satisfeito, mas o devedor claramente perde. Não temos, portanto, um óti­mo de Pareto. Em que sentido, portanto, se diz que convolar a recuperação em falência chancela a eficiência econômica? Trata-se, aqui, de uma variante do conceito tradicional de eficiência, o conceito de eficiência potencial de Pareto, ou critério de Kaldor-Hicks. Pelo critério de Kaldor-Hicks, o que importa é que, na briga pela alocação de recursos, os vence­dores possam compensar os perdedores (a despeito de que efetivamente o façam). Uma de-

" Nos termos do § 2Ü do art. 58, a classe de credores que eventualmente tenha votado desfavoravelmente ao pla­no não pode receber tratamento diferenciado, caso haja aprovação pelo critério alternativo (eram down).

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60 Capítulo 2 Reflexões a partir da Lei rr 11.101/05

cisão eficiente no sentido de Kaldor-Hicks deve incrementar o bem-estar dos ganhadores em um montante tal que permita, ainda que em tese, compensar a perda de bem-estar dos prejudicados. Nessa acepção, a eficiência econômica traduz-se simplesmente como o es­forço de evitar destruição de riqueza e bem-estar. Qualquer que seja o objetivo a ser perse­guido, fazê-lo de forma eficiente sempre evita o desperdício de recursos.

Do ponto de vista de uma lei de falências, isso significa que, se os credores preferem alocar os ativos de determinada empresa a outros usos, mais produtivos, o magistrado não deveria, em princípio, impedi-los/ Afinal, o que a nova lei almeja é preservar riqueza e bem- estar: e vedar uma alocação eficiente dos ativos da empresa insolvente acaba preservando o bem-estar de alguns, a expensas do bem-estar dos demais! Se o magistrado — ao arrepio da vontade dos credores — mantiver a empresa funcionando, não se estará preservando bem- estar, riqueza ou empregos. Pelo contrário, se os ativos de uma empresa não são alocados a usos mais eficientes, o 'custo do emprego preservado são os empregos perdidos', bem co­mo o 'bem-estar do devedor é mantido a expensas do bem-estar do resto da sociedade'. Imaginemos um exemplo simples: uma grande loja de departamentos encerra suas ativida­des, e o magistrado se vê diante da opção de mantê-la artificialmente funcionando ou alie­nar/arrendar seus ativos isoladamente. Ao optar pela segunda alternativa, os ativos da lo­ja de departamento acabam sendo alienados e arrendados para outros grupos econômicos, por hipótese uma rede varejista e um grupo atacadista, que, ao expandir suas atividades, ge­ram riqueza e empregos em maior quantidade do que aqueles originalmente preservados na loja de departamentos. Se o magistrado obliterasse a transferência desses ativos, a sociedade teria perdido ou ganhado? Claramente, nesse caso, a preservação da loja de departamentos, uma solução ineficiente, teria sido extremamente deletéria.

Em suma, o espírito da nova lei — que o magistrado há que entender — não é preser­var a empresa a qualquer custo. Se os ativos podem ser alocados a outros usos mais eficien­tes, o papel do magistrado é presidir sobre esse processo de forma célere, determinando a convolação da recuperação em falência. Empresas viáveis devem permanecer em operação, e as inviáveis devem ter sua quebra — com a conseqüente alienação de seus ativos — im­plementada rapidamente, com a menor perda possível para a sociedade.

Por que então será tão difícil resistir à tentação de manter empresas inviáveis indefi­nidamente em operação, ao arrepio de disposição expressa da lei? A resposta é óbvia: os prejudicados com a quebra estarão presentes no cotidiano do magistrado, enquanto os be­neficiários da solução eficiente permanecerão invisíveis para os tribunais. O empregado demitido faz sua voz mais presente do que a do beneficiário do emprego que nem sequer foi criado. A responsabilidade do magistrado é grande: incumbe-lhe tanto recuperar as empresas viáveis quanto resistir à tentação de manter artificialmente em funcionamento empresas que há muito deveriam ter saído do mercado. Nesse caso, o magistrado que ado­ta a solução eficiente age como benfeitor do interesse difuso, das pessoas sem nome e ros­to que, ainda sim, são afetadas profundamente por suas decisões.

^ B reve cu rrícu loDaniel K. Goldbcrg Secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça. Mestre (LL.M) pe­la Havard University. Doutor pela Universidade de São Paulo.

Com exceção da hipótese de aprovaçito alternativa mesmo com desaprovação de uma das classes (eram doion), prevista no art. 58, § l u.

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A IMPORTÂNCIA DAS NOVAS REGRAS DE PRIORIDADE

DA FALÊNCIA PARA A GOVERNANÇADOS CREDORES

Eduardo Lundberg

Enquanto economistas do Banco Central, preocupados com a questão do crédito no Brasil, esclarecemos que a ineficiência no processamento das falências e concordatas foi o que nos levou a participar das discussões que culminaram com a aprovação da

nova legislação falimentar. Do ponto de vista do risco de crédito, essa legislação é impor­tante, pois define as regras aplicáveis ao pagamento dos créditos das empresas em dificul­dades. Quando as empresas estão econômica e financeiramente bem, os problemas legais com a insolvência não se colocam. Entretanto, a legislação falimentar é importante, para quem toma ou concede crédito, pois a precificação dos riscos de inadimplência é feita a partir das regras aplicáveis no cenário de uma empresa em crise financeira.

Evidentemente, de um ponto de vista econômico mais amplo, a principal motivação para a reforma da legislação falimentar foi a de contribuir para o aumento da produtivida­de do sistema econômico, promovendo o saneamento do parque produtivo e gerando in­centivos para que os processos de resolução de insolvência sejam levados a cabo de forma eficaz e eficiente. Cabe ao sistema de insolvências facilitar salvamentos e reestruturações de empresas insolventes, mas viáveis, e proceder à liquidação eficiente daquelas consideradas inviáveis. A exemplo da atribuição similar do Banco Central de intervir e liquidar institui­ções financeiras, a função envolve o saneamento do setor financeiro, tirando do mercado os bancos insolventes e problemáticos. O sistema de falências também tem esse lado profiláti- co, ao promover a liquidação das empresas inviáveis, reduzindo o dano que elas causam para o sistema econômico.

Como já salientamos, além da maior eficiência microeconômica das empresas produ­tivas, um sistema de insolvências mais eficaz é fundamental para melhorar o funcionamen­to do mercado de crédito, por reduzir incertezas e riscos vinculados à concessão de emprés­timos. Infelizmente, o ordenamento anterior não vinha desempenhando nenhuma das duas funções, o que se espera passe a acontecer com base nos instrumentos da nova lei e sob a su­pervisão e governança dos principais interessados — os credores.

A questão da participação e governança de credores, que não observamos por parte dos bancos e grandes fornecedores no Brasil, é o principal aspecto econômico que gostaría­mos de destacar nesta apresentação sobre a reforma da legislação falimentar. Os bancos e instituições financeiras, como administradores e gestores da poupança popular, têm um im­

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62 Capítulo 2 Reflexões a partir cia Lei rr 11.101/05

portante papel de governança dos sistemas falimentares. No mundo inteiro, por sua espe­cialização em administrar e conceder crédito, os bancos têm um papel importante no salva­mento das empresas e na governança dos processos falimentares.

S it u a ç ã o a n t e r io r : d ia g n ó s t ic o e r e c o m e n d a ç õ e s

Quando examinamos a situação de ineficiência do sistema anterior de insolvências, diagnosticamos quatro graves problemas econômicos:

• ausência de mecanismos adequados de recuperação de empresas;• punição da falência direcionada à empresa, em vez do empresário;• desestímulo à participação dos bancos e outros importantes credores nos processos

falimentares; e• não-funcionamento do sistema de garantias reais quando seu acionamento é mais

necessário.

No Brasil, por falta de mecanismos adequados de recuperação, a empresa insolvente agonizava, prejudicando empregados, fornecedores e demais credores, com impactos nega­tivos para a sociedade como um todo. O instituto da concordata não alcançava todos os cre­dores (apenas os quirografários) e não possuía a flexibilidade e abrangência necessárias pa­ra viabilizar o salvamento das empresas, na medida em que era um 'favor legal' concedido pelo juiz. Além da rigidez e falta de abrangência da concordata, a antiga legislação pratica­mente impedia o devedor de negociar alternativas de salvamento com seus credores, pois essa iniciativa era entendida como um 'ato falimentar'.

A recomendação óbvia era no sentido de aumentar a abrangência e a flexibilidade dos planos de recuperação de empresas, dando espaço para seu salvamento. Nesse aspecto, te­mos provavelmente uma das mudanças mais profundas de enfoque da nova legislação en­volvendo a opção entre o 'favor legal' e a aprovação de credores. Não seria possível aumen­tar a abrangência e flexibilidade da antiga concordata, mantendo a tradição do 'favor legal'. Não se pode dar, sem a aquiescência dos credores, o poder discricionário a um juiz ou a uma lei para aprovar um plano abrangente de recuperação. O risco jurídico dessa forma de alteração de acordos contratuais seria imenso, e um risco para o crédito e para a própria ati­vidade econômica. A legislação ou a Justiça, a nosso ver, não pode dar carta-branca a mu­danças unilaterais de contratos.

O 'favor legal' que hoje existe na concordata só é compatível com uma previsão em lei, mediante delimitação das alterações possíveis, ou seja, algo bastante limitado, como na an­tiga concordata, ou como foi mantido no plano de recuperação judicial de pequenas e mi- croempresas. A alternativa adotada em outros países é sempre a negociação em juízo, ins­pirado no Chapter 11 norte-americano, segundo o qual só é possível homologar planos abrangentes mediante a aprovação formal dos credores. Assim, a nova legislação assumiu esse modelo de recuperação mais abrangente negociado com os credores, ou seja, a Lei nQ 11.101/05 não admite mudanças unilaterais de contratos de empresas em dificuldades. O que existe na nova lei é a previsão de espaço de negociação, com o juiz assumindo um pa­pel coordenador e conciliador nesses processos.

O segundo grande problema de nossa antiga legislação era o paradigma da proteção do patrimônio do empresário. O que fazia sentido em 1945 como postura de proteção dos

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A importância das novas regras de prioridade da falência para a governança dos credores 63

interesses dos credores, como o fechamento e a lacração da empresa falida, hoje não é mais aceitável, dada a perda de empregos e ativos intangíveis, além da mais rápida obsolescên­cia dos demais bens. Na prática, o que observávamos é que a empresa falida era punida com o seu fechamento e lacração, com trabalhadores perdendo seus postos de trabalho, os credores nada recebendo, enquanto os donos e administradores, de um modo geral, ten­diam a sair razoavelmente bem dos episódios. Exatamente o contrário do desejado.

A recomendação para esse segundo problema foi a adoção do paradigma inverso: pro­teger a empresa e punir o empresário. Um primeiro ponto positivo da nova legislação foi o de não determinar o fechamento e a lacração da empresa falida, privilegiando a venda em bloco de seus ativos, o que viabiliza a preservação das unidades produtivas, a manutenção dos empregos e a não-desvalorização dos ativos intangíveis da empresa. Mas só essa prio­ridade para a venda em bloco não bastava, sendo necessário alterar outros pontos impor­tantes da antiga legislação, como a revisão da regras de sucessão de obrigações, a facilida­de do saque pelos donos e administradores dos recursos da empresa falida com base na prioridade ilimitada dos créditos trabalhistas, assim como a impunidade dos ex-donos e administradores em razão da falta de governança dos processos falimentares.

A regra de sucessão de obrigações era um dispositivo legal que demandava revisão, incluindo-se a do Código Tributário Nacional (CTN), já que essa legislação inviabilizava a venda dos ativos de uma empresa em dificuldades financeiras, pois o comprador teria de suceder suas obrigações para com o Fisco, trabalhistas e outras. Ou seja, a regra da su­cessão punia a empresa, e não o empresário. Então, se o objetivo era o de dar prioridade à recuperação de empresas e preservação das unidades produtivas de empresas falidas, a regra de sucessão tinha de ser alterada. Já a questão da prioridade dos créditos trabalhis­tas, que foi limitada em 150 salários mínimos na nova legislação, teve por objetivo princi­pal evitar que os donos saquem os recursos remanescentes da empresa falida, a título de crédito trabalhista, seja em nome próprio, seja em nome de seus familiares ou por inter­médio de 'laranjas'.

Sobre a questão da impunidade dos ex-donos e ex-administradores de empresas fa­lidas, é importante destacar a falta de participação de bancos e de grandes credores. De pouco adianta ter um bom sistema judicial, um eficiente Ministério Público, uma legisla­ção repressora ótima, mas sem nenhuma governança privada. Se as pessoas envolvidas e prejudicadas não participarem e denunciarem as irregularidades, a probabilidade de pe- nalização de infratores será muito baixa.

Assim, o terceiro grande problema do antigo sistema falimentar era a ausência de governança de bancos e grandes fornecedores, refletido na falta de engajamento desses credores privados nos processos de recuperação, assim como o desinteresse na solicitação de falência das empresas inviáveis. A principal razão para isso era a falta de incentivos corretos, considerando-se a prioridade ilimitada concedida aos créditos trabalhistas e o pri­vilégio desfrutado pelo Fisco no recebimento de seus créditos, o que será discutido no pró­ximo bloco.

Por fim, o quarto e último problema econômico da antiga legislação falimentar era o não-funcionamento das garantias reais ao crédito por ocasião da falência das empresas, ou seja, essas garantias não cumpriam sua finalidade exatamente quanto elas eram mais neces­sárias, significando um desestímulo ao crédito e ao mercado de capitais. Essa situação não só tende a aumentar o custo de crédito para o empresário, mas também a prejudicar o aces­so ao próprio crédito. Um exemplo das dificuldades é o acesso a muitas das linhas de cré­dito do BNDES. De custo financeiro baixo, elas freqüentemente não são repassadas pelos

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64 Capítulo 2 Reflexões a partir da Lei rr 11.101/05

bancos por causa do risco de crédito. Esse problema está associado às regras de prioridade dos créditos trabalhistas e fiscais na falência, o que será discutido a seguir.

G o v e r n a n ç a e p r io r id a d e s n a f a l ê n c ia

A principal questão da antiga legislação relativamente à participação e governança de credores estava associada à definição das prioridades de pagamento na falência. É importan­te destacar que os credores só participarão dos processos falimentares se tiverem direitos materializados mediante uma expectativa positiva de receber seus créditos. A participação nesses processos é custosa, afetando o envolvimento de tempo e o pagamento de custas e ho­norários advocatícios. Em economia é preciso haver incentivo. Ninguém participa desses processos de graça. O incentivo para a participação e governança é ter expectativa positiva de receber seu crédito. É por isso que as regras de prioridade na falência são importantes, pois são regras de incentivo.

A primeira prioridade da antiga lei era o pagamento ilimitado de créditos trabalhistas, o que favorecia o saque da massa pelos donos, administradores e pessoas ligadas. Se não bastasse isso, a segunda prioridade eram os créditos tributários, que pouco beneficiavam o Fisco mas afastavam a participação dos demais credores do processo. Assim, não adianta­va o eventual esforço de credores privados no sentido de evitar eventuais fraudes dos do­nos contra as empresas, já que a segunda prioridade beneficiava o Fisco.

Como ninguém se dispunha a trabalhar de graça pelo Fisco, o que se observava é que os principais credores — bancos e fornecedores —, por não receberem seus créditos, não participavam ou exerciam governança nos processos falimentares. Primeiro esses grandes credores não pediam a falência das empresas. Enquanto a empresa estivesse funcionando, mesmo que de forma precária, a possibilidade de executar alguma garantia, receber algum caixa, fazer algum tipo de acordo por fora ainda era possível. No dia em que a falência era decretada, a expectativa de recebimento era praticamente zero. Na falência era freqüente os credores não habilitarem seus créditos, dada a expectativa nula de receber alguma coisa. Assim, grandes bancos e credores não só não pediam a falência das empresas, como tam­bém não participavam dos processos de recuperação. Era muito difícil, muito caro e arris­cado, em termos de perda de capital, a participação em processo de salvamento de empre­sas no quadro legal anterior.

Vale a pena discutir um pouco mais a questão da prioridade do Fisco. Se essa priori­dade era tão prejudicial à governança dos processos falimentares e ao crédito no sistema econômico, sua instituição e manutenção deveriam ser entendidas como muito importan­tes para a arrecadação tributária. Infelizmente, esse não era o caso. O que se observava no Brasil é que o Fisco também não se beneficiava com isso e arrecadava pouco com a priori­dade, também porque não participava dos processos falimentares. O antigo artigo 187 do Código Tributário dizia que o Fisco não estava sujeito a concurso de credores e, portanto, havia um entendimento de que ele não deveria participar.

Nesse sentido, as autoridades tributárias adotavam uma postura d e fr e e rider (caro- nista) da falência, esperando que os credores privados solicitassem a falência da empresa, fizessem a devida governança, de forma que o Fisco pudesse receber sua parte com pouco esforço. Só que esse tipo de postura não funcionava, pois a governança não se materializa­va, e o Fisco acabava como um 'caronista' de uma viagem que não acontecia. Grandes cre­dores não pediam a falência das empresas insolventes, e elas continuavam funcionando

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A importância das novas regras de prioridade da falência para a governança dos credores 65

sem pagar seus impostos. Com isso se produzia um grande prejuízo para a economia e pa­ra a concorrência com as demais empresas, pela geração de um incentivo à informalidade na economia. Assim, até do ponto de vista do Fisco, acreditamos que haverá ganhos de ar­recadação tributária com a alteração na ordem dessa prioridade, na medida em que os bancos devem promover o fechamento intempestivo das empresas insolventes. Nossa ex­pectativa é de que, com o fechamento das empresas insolventes, deve haver redução da so­negação, abrindo-se espaço para as empresas sadias pagarem seus impostos.

As regras de prioridades da falência eram nosso principal desafio na reforma, porque envolvia proteger os créditos trabalhistas sem beneficiar os donos e altos executivos, au­mentar a participação e governança de credores, assim como o aspecto fundamental de va­lorizar o crédito com garantia real. Um primeiro ponto foi impor um limite para os créditos trabalhistas: 150 (cento e cinqüenta) salários mínimos. Pessoalmente acreditamos que o li­mite fixado foi alto, principalmente no que se refere a micro e pequenas empresas, e que po­deria haver um limite menor.

A inversão da prioridade do crédito tributário com o crédito com garantia real foi um grande avanço que se logrou aprovar na nova legislação. No entanto, é importante destacar que pessoalmente fomos contrários à prioridade do Fisco, pois na tradição e experiência in­ternacional essa prioridade não existe e não é recomendada. Pior, ficou parecendo que a le­gislação procurou beneficiar somente os bancos e as instituições financeiras, empresas que trabalham tradicionalmente exigindo garantias reais em suas operações de crédito.

De qualquer forma, é importante destacar que em nenhum momento a nova legisla­ção concede textualmente prioridade aos bancos, mas sim aos créditos com garantia real. Nada impede que fornecedores de bens e serviços, considerando a importância de suas operações e o novo quadro legal, venham a exigir, de seus clientes, garantias reais nas operações de crédito. Com ou sem interveniência de bancos, garantias reais passaram a ser importantes no processo falimentar, ficando os fornecedores convidados a mudar seus procedimentos. Até ontem, a exigência de garantias reais não fazia diferença na fa­lência, porque o Fisco recebia na frente. Mas dentro do novo quadro legal essa é uma mu­dança fundamental.

C o n c l u s õ e s

Com a aprovação da nova legislação falimentar (Lei nc 11.101 e Lei Complementar n~ 118, ambas de 9.2.2005), a expectativa é de uma grande mudança no papel dos bancos no processo falimentar, no sentido de uma maior participação e governança nos proces­sos de recuperação de empresas e no saneamento do sistema empresarial. Como interme­diários financeiros, os bancos costumam ter departamentos de crédito que fazem, como parte de suas atividades normais, o acompanhamento da saúde financeira das empresas tomadoras. No mundo inteiro, em razão dessa especialização, os bancos são os principais agentes dos processos de salvamento de empresas, avaliando a viabilidade dos planos de recuperação. Mas são também os agentes que costumam encaminhar à falência as empre­sas inviáveis, saneando o sistema econômico.

Essas mudanças básicas devem afetar todas as empresas em termos de regras de in­centivo, obrigando aquelas em dificuldades financeiras a adotar medidas destinadas a sua recuperação o quanto antes, sob risco de perder seu negócio. Dessa forma, entendemos que a nova Lei de Falência deve produzir um aumento de produtividade do sistema econômi-

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66 Capítulo 2 Reflexões a partir da Lei rr 11.101/05— ■ — —

co, exatamente por causa dessa maior eficácia dos processos falimentares. Em compensa­ção, isso deve gerar um maior conforto dos bancos em conceder crédito, reduzindo-se o ris­co de crédito para o sistema bancário. Assim, do ponto de vista econômico, na medida em que a nova legislação for corretamente aplicada pelo Judiciário, a expectativa é que ela pro­duza um aumento da produtividade do sistema econômico e a redução dos riscos de crédi­to, com diminuição dos juros e aumento da oferta de crédito na economia.

í Breve c u rr íc u lo

Eduardo Lundberg Economista formado pela USP. Assessor sênior do Departamento de Estudos e Pesquisas (Depep) do Banco Central do Brasil (BC). Nos últimos cinco anos foi responsável pela coor­denação do projeto Juros e Spread Bancário, tendo representado o BC nos Grupos de Trabalho (GT) que discutiram a nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas no âmbito do Governo Federal.

O autor agradece os comentários da Ana Carla Abrão Costa. As opiniões expressas neste arti­go são exclusivamente do autor e não refletem necessariamente a visão do BC.

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C a p ít u l o

A p r e c i a n d o a L e i C o m p l e m e n t a r

n q 1 1 8 / 0 5

A Lei Com plem entar n " 118/05 e seus reflexos na recup eração de empresas

Osmar Simes

O a r t ig o 3q da Lei Com plem entar n~ 118/05: p razo para pedir d e v o lu ç ã o de t r ib u to

Condorcet Rezende

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A Lei Complementar n ° 1 1 8 / 0 5

E SEUS REFLEXOS NAr ec u per a ç ã o de em presas

Osmar Simões

Após longo período de tramitação no Congresso Nacional, em 9 de fevereiro de 2005 foi sancionada pelo presidente da República a Lei nü 11.101, que dispõe sobre a recu­peração de empresas e falência do empresário e da sociedade empresária. Na mesma

data foi também sancionada a Lei Complementar nc 118, cujo objetivo era adequar o ordena­mento tributário ao novo diploma de recuperação e falências. Evidentemente, como já ocor­reu em outras oportunidades, o legislador não deixou passar a oportunidade de regular outras questões fiscais, mormente aquelas de interesse para arrecadação. Vou manter-me fiel ao título proposto, comentando apenas aspectos relacionados à sucessão tributária no âmbi­to dos planos de recuperação de empresas e o tratamento dos passivos fiscais correlatos.

A responsabilidade tributária por sucessão está caracterizada nos artigos 129 a 133 do Código Tributário Nacional (CTN). No plano da atividade empresarial, demandam maior atenção os artigos 132 e 133.

O artigo 132 aborda as operações societárias de fusão, transformação, incorporação e cisão. Esse dispositivo, que em nada foi alterado pela Lei Complementar n~ 118, tem a se­guinte redação: "A pessoa jurídica de direito privado que resultar de fusão, transformação ou incorporação de outra ou em outra é responsável pelos tributos devidos até a data do ato pelas pessoas jurídicas de direito privado fusionadas, transformadas ou incorporadas". A cisão — embora não mencionada expressamente no texto legal transcrito, porque à época da edição do CTN não era instituto jurídico previsto na legislação societária — tem-se por abrangida conforme a doutrina e jurisprudência majoritárias. Assim, por força do artigo 132, aquelas operações societárias não podem ser livremente adotadas em processos de re­cuperação de empresas, sob pena de ser transferida à pessoa jurídica sucessora a responsa­bilidade por todo o passivo tributário pretérito da sucedida. De outra parte, cabe ressaltar que, curiosamente, a Lei n~ 11.101, em seu artigo 50, inciso II, aponta expressamente as men­cionadas operações societárias de fusão, incorporação, cisão e transformação como meios de implementação da recuperação judicial.

O estudo mais profundo do que dispõe o artigo 132 do CTN, contraposto à nova lei de recuperação judicial, levou-me então a analisar a sustentação e compatibilidade sistêmica do regime jurídico proposto. O resultado dessa análise foi a constatação da existência de três diferentes situações.

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A Lei Complementar ir 118B5 e seus reflexos na recuperação de empresas 69

Com efeito, à luz das definições contidas na Lei nc 6.404/76 e também no novo Códi­go Civil (Lei nü 10.406/2002), a fusão e a incorporação são operações societárias de que re­sulta a necessária extinção das pessoas jurídicas incorporadas ou fusionadas. Sob essa óti­ca não há como afastar a responsabilidade das sucessoras, porque simplesmente o sujeito passivo da obrigação tributária ainda devida — que é a pessoa jurídica incorporada ou fu- sionada — deixa de existir por decorrência daquelas operações societárias, inviabilizando com isso a ação de cobrança do crédito por parte da Fazenda Pública. No mesmo sentido segue a cisão total, ou seja, aquela com versão de todo o patrimônio da sociedade cindida, haja vista que igualmente resulta extinção do sujeito passivo original.

Com referência à transformação das pessoas jurídicas, também prevista no artigo 132 do CTN, a regra básica é de que a mera transformação não extingue a personalidade nem altera o valor do patrimônio. Logo, não há por que cogitar na própria ocorrência da suces­são. A legislação tributária de forma geral também privilegia o princípio da continuidade da personalidade jurídica, independentemente do tipo jurídico.

Já podemos identificar uma situação diferente no caso de cisão parcial. Nesta, a perso­nalidade jurídica do sujeito passivo — devedor original — remanesce, permitindo que a Fa­zenda Pública legalmente exija seu crédito. Não há solução de continuidade. Destarte, o que cabe averiguar é se a redução do patrimônio, pela retirada da parcela cindida, compro­meterá de fato a capacidade de recuperação e pagamento da sociedade.

Se não houver comprometimento da capacidade de recuperação e pagamento, não exis­tirá motivo que justifique a obrigatória responsabilização da sociedade sucessora. Imagine-se uma cisão parcial com constituição de nova pessoa jurídica, que assuma determinada ativi­dade ou negócio da sociedade em recuperação, e cujas participações nessa nova sociedade os sócios ou acionistas, que serão os mesmos nas duas, se obriguem a subseqüentemente alienar e a reinvestir o produto na própria sociedade em recuperação. Tal situação muito se asseme­lharia à hipótese de exclusão da sucessão tributária prevista no § l ü, inciso II do artigo 133, com a alteração da Lei Complementar nc 118. Deve-se mencionar que existem doutrinadores que já sustentam que a responsabilidade por sucessão, na hipótese de cisão parcial, decorre­ria da disposição inserta no artigo 133 e não no artigo 132 do CTN.

Como conclusão, em meu entendimento, o legislador agiu corretamente ao atribuir, mesmo em processos de recuperação judicial, a responsabilidade tributária às pessoas ju­rídicas sucessoras, quando implementadas operações de fusão, incorporação ou cisão to­tal. A transformação, a meu ver, nem deveria ser tratada como hipótese de sucessão, ante o princípio da continuidade da personalidade jurídica aplicável ao caso, tornando desne­cessária sua menção no artigo 132. Finalmente, quanto à cisão parcial, se adotada como meio de recuperação judicial, penso que lamentavelmente o legislador falhou ao não con­templar expressamente a possibilidade de exclusão da responsabilidade da pessoa jurídi­ca sucessora. Admito que a exclusão não pode ser genérica; entretanto, a falta de previsão certamente acarretará dúvidas e eventuais discussões judiciais, complicando o processo de recuperação.

O artigo 133 do CTN, alterado pela Lei Complementar n~ 118, passou a conter três parágrafos, que basicamente disciplinam a responsabilidade tributária do adquirente de fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional. Até o adven­to da alteração legislativa em questão, a alienação de tais bens era sempre condutora de responsabilidade tributária por sucessão ao adquirente, fosse ela integral ou subsidiária. A mudança introduzida permitiu que a alienação judicial de fundo de comércio e/ou es­tabelecimentos não atraísse responsabilidade para o adquirente quando realizada no cur­

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70 Capítulo 3 Apreciando a Lei Complementar nQ 11805

so de processo de falência ou, no caso de exclusivo de alienação judicial de estabeleci­mentos, dentro também de processo de recuperação judicial. Evidentemente, para a sal­vaguarda dos interesses das Fazendas Públicas, medida com a qual estou de acordo, o le­gislador não estendeu a exclusão de responsabilidade tributária às alienações feitas para pessoas relacionadas, ou àquelas cujo intuito seja simplesmente fraudar a sucessão tribu­tária. Permito-me, todavia, criticar aqui a não-inclusão da recuperação extrajudicial na nova disciplina do artigo 133. Avalio que a inclusão em comento contribuiria bastante pa­ra o processo de recuperação de empresas, e em nada afetaria negativamente os interes­ses da Fazenda Pública.

Destaco a questão do tratamento dos passivos fiscais. A Lei Complementar n~ 118 in­troduziu os parágrafos 3Ü e 4C ao artigo 155-A do CTN, estabelecendo a possibilidade de concessão de parcelamentos tributários especiais para devedores em recuperação judicial. Reza o advindo § 4 que o prazo de parcelamento concedido pelos entes da Federação não Poderá ser inferior ao concedido por lei federal específica. Dentro desse contexto, temos o projeto de Lei na 245, em tramitação no Congresso Federal, que estabelece prazo mais di­latado para quitação dos débitos de devedores em recuperação judicial. Segundo o Proje­to de Lei, as pequenas e médias empresas teriam até 84 meses para pagar, enquanto as de­mais teriam 72 meses, sempre com parcelas iguais. Em que pese a ampliação de prazos proposta, em minha opinião há dois elementos que não foram contemplados. O primeiro é a redução de encargos moratórios, notadamente juros; o segundo, um prazo de carência para início do pagamento das parcelas. Obviamente, pode-se até argumentar, nessa situa­ção, que o princípio constitucional da isonomia estaria sendo violado. Se o objetivo, po­rém, é conceder condições especiais para viabilizar a recuperação de uma empresa ou em­presário, penso que tais condições devam ser deferidas de forma mais ampla e realista. Acreditar que a simples ampliação de prazo solucionará a questão dos passivos fiscais pa­rece-me um equívoco.

B reve c u rr íc u lo

Osmar Simões Advogado em São Paulo, especializado em direito tributário. Sócio sênior do es­critório Motta, Fernandes Rocha Advogados.

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O ARTIGO 3 s DALei Com plem entar n 2 1 1 8 /0 5 :

PRAZO PARA PEDIR DEVOLUÇÃO DE TRIBUTO

Condorcet Rezende

De acordo com o artigo 168 do Código Tributário Nacional — CTN (Lei nü 5.172, de 25.10.1966), o contribuinte que pagou tributo indevidamente tem direito a pedir sua devolução no prazo de cinco anos, contado a partir da data da extinção do crédito

tributário (data do pagamento).Em princípio, o pagamento do tributo extingue o crédito tributário e libera o contri­

buinte da dívida. Todavia, por força do artigo 150,1 e § 42 do CTN, há tributos cujo pagamen­to deve ser antecipado pelo contribuinte, ficando, porém, a eficácia do pagamento depen­dente de homologação pela Fazenda Pública; só depois de homologado torna-se o pagamen­to definitivo e extingue o crédito tributário. Depende de homologação o pagamento do Im­posto sobre Produtos Industrializados (IPI), do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), do Imposto de Renda, das contribuições para o PIS, Cofins, CSL, e do Im­posto sobre Serviços. A homologação deve ocorrer dentro de cinco anos a partir do paga­mento antecipado pelo contribuinte; se a fiscalização não o fizer nesse prazo, considera-se homologado o pagamento (homologação tácita) e extinto o crédito tributário.

O ARTIGO 32 DA LC NS 118/05Em 9.2.2005 foi sancionada a LC n2 118/05, cujo artigo 32 assim dispõe:

Art. 3° — Para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da Lei n° 5.172, de 25 de outubro de 1966 — Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento ante­cipado de que trata o § I o do art. 150 da referida Lei!

Estabelece o referido § 1~ do art. 150 do CTN: "O pagamento antecipado pelo obriga­do nos termos deste artigo extingue o crédito sob condição resolutória da ulterior homolo­gação do lançamento".

Sem alterar a redação do art. 150, § 1L' do CTN, veio o art. 3L> da LC n2 118/05 fixar, por interpretação, o momento em que se dá a extinção do crédito nas hipóteses de tributos su­jeitos a homologação. Estabeleceu que o início do prazo de cinco anos a que se refere o art.

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72 Capítulo 3 Apreciando a Lei Complementar n‘ 11805

168,1, do CTN é a data do pagamento antecipado pelo contribuinte, que passa agora a ex- tinguir o crédito tributário, sem necessidade de ulterior homologação pelo Fisco.

Temos, assim, um dispositivo do CTN estabelecendo expressamente que a extinção se dá com a homologação e o art. 3C da LC nc 118/05, determinando que a extinção ocorre com o pagamento antecipado. Dispondo ambas sobre a mesma matéria, prevalece a lei mais recen­te, nos termos do art. 2Ü, § l ü da Lei de Introdução ao Código Civil (Lei nü 4.657, de 4.9.1942).

A JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (S T ))NA MATÉRIACombinando o disposto no art. 150, § 4", com a regra do inciso I do art. 168, ambos do

CTN, firmou o STJ o entendimento de que o prazo de cinco anos para o contribuinte pedir a devolução do tributo que pagou indevidamente, ou em excesso, só passaria a correr a par­tir da homologação do pagamento pelo Fisco; se o Fisco não o fizesse dentro de cinco anos, dar-se-ia a homologação tácita ao final do qüinqüênio, correndo daí os cinco anos para o contribuinte pedir a devolução. Assim, chegou-se à regra dos cinco mais cinco, ou seja, cin­co anos para ocorrer a homologação tácita (art. 150, § 4Ü) com a extinção do crédito tributá­rio mais cinco anos para o pedido de devolução (art. 168,1).

A LEI INTERPRETATIVA

Muito se discute na doutrina sobre a existência de leis interpretativas que, por sua na­tureza, são retroativas, já que vão esclarecer o significado de lei anteriormente publicada. Há autores que aceitam essa categoria de lei, enquanto outros alegam que ou a lei interpre- tativa simplesmente repete a lei interpretada (caso em que ela é inócua), ou inova (caso em que ela não pode retroagir, aplicando-se apenas para o futuro, como lei nova que é).

De acordo com o art. I 12 da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, a lei começa a vigorar em todo o país 45 dias após sua publicação oficial, salvo disposição em contrário. Com base nessa ressalva final, tornou-se praxe consignar na lei que ela entra em vigor na data de sua publicação. Assim, o que seria exceção absoluta tornou-se a regra. Se isso não houves­se ocorrido, a questão da lei interpretativa provavelmente não criaria maiores problemas, porque as leis só entrariam em vigor 45 dias depois de publicadas. Nesse interregno (vaca- tio legis), se a comunidade jurídica ou o próprio Legislativo notasse alguma obscuridade, contradição ou imprecisão no texto da lei publicada, bastaria editar 'lei interpretiva', antes, portanto, que a lei publicada produzisse quaisquer efeitos ou tivesse seu sentido fixado pe­lo Judiciário. Seria plenamente aceitável a edição de 'lei interpretativa' em tal hipótese.

Mas, sendo a prática legislativa brasileira a de consignar no texto da lei que ela en­tra em vigor na data de sua publicação, tão logo publicada passa a produzir efeitos, po­dendo as pessoas adquirir direitos, praticar atos jurídicos ou até ingressar em juízo e obter julgamento definitivo de sua causa, tudo nos termos da lei publicada. Lei interpretativa que venha a alterar, com efeito retroativo, o entendimento dos dispositivos da lei inter­pretada não poderá afetar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, por vedação expressa tanto do art. 6~ da Lei de Introdução ao Código Civil quanto, e so­bretudo, por força do disposto no art. 5Ü, XXXVI da Constituição Federal de 1988, que es­tabelece que "[...] a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

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O artigo 3‘ da Lei Complementar rr 118£)5: prazo para pedir devolução de tributo 73

O direito brasileiro, todavia, permite a retroatividade benigna, isto é, aquela que é fa­vorável ao cidadão, como as leis criminais que reduzem a pena (Constituição, art. 5~, XL); e o próprio CTN, em seu artigo 106, letra 'c', dispõe que a lei tributária se aplica a ato ou fato pretérito quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tem­po da sua prática.

A ' lei in t er p r et a t iv a ' n o CTNEm princípio, as leis dispõem para o futuro. A retroatividade da lei é exceção absolu­

ta e, em qualquer caso, não pode prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, como já dito.

Diz o art. 106 do CTN que "[...] a lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I — em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa..."

Esse dispositivo permitiu que se aprovasse o art. 3* da LC n 118/05, que se auto-in- titula 'interpretativo'. Mas, em relação a esse artigo, tem-se de observar que ele vem 'in­terpretar' dispositivo (art. 168 ,1 do CTN) que, em seus 38 anos de vigência, nunca susci­tou nenhuma dúvida; ademais, teve sua interpretação fixada pelo Poder Judiciário há cerca de 15 anos. Fica, assim, absolutamente claro que a intenção do legislador, ao apro­var o texto do art. 3C em comento, foi contraditar a jurisprudência já mansa e pacífica do STJ no sentido de fixar em até dez anos o prazo para os contribuintes pedirem a devolução dos impostos sujeitos ao regime de homologação que tivessem sido indevidamente pagos, ou pagos em excesso.

Ilustres juristas pátrios manifestaram-se contrários às leis interpretativas. Para Maxi- miliano:

[ ...] se a lei tem defeitos de form a, é obscura, imprecisa, faça-se outra com o cará­ter franco de disposição nova. Evite-se o expediente perigoso e retrógrado; a exegese por via de autoridade, irretorquível, obrigatória para os próprios juizes, não tem mais razão de ser; coube-lhe um papel preponderante outrora, evanescente hoje.1

Machado pondera:

De todo modo, quando afirmamos que a lei interpretativa apenas remove dúvidas quanto ao significado da lei anterior, tem-se de considerar que essas dúvidas tenham si­do expostas claramente em decisões das quais constem manifestações divergentes a res­peito do sentido da lei então aplicada. Não se pode admitir que o legislador, a pretexto de interpretar uma lei, edite outra atribuindo à anterior significado que nela ninguém tenha visto. Só é lei interpretativa aquela que adota um dos significados possíveis da lei interpretada. Em especial, significado que tenha sido enunciado em manifestações ju- risprudenciais reiteradas, em contraposição a outras que atribuam significado diverso para a mesma lei.2

1 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e interpretação do direito. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 93-4.2 Hugo de Brito Machado, "A questão interpretativa na Lei Complementar nü 118/2005: prazo para repetição do

indébito", Revista Dialética, n. 116,2005, p. 59.

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74 Capítulo 3 Apreciando a Lei Complementar n“ 11805

Carrazza observa:

Há quem queira — seguindo a traça do art. 106, I do CTN — que a lei tributária interpretativa retroaja até a data da entrada em vigor da lei tributária interpretada. Dis­cordamos, até porque, no rigor dos princípios, não há leis interpretativas. A uma lei não é dado interpretar outra lei. A lei é o direito objetivo e inova inauguralmente a ordem ju­rídica. A função de interpretar leis é concedida a seus aplicadores, basicamente ao Poder Judiciário, que as aplica aos casos concretos submetidos a sua apreciação, definitivamen­te e com força institucional.3

No mesmo sentido, o eminente ministro Velloso, para quem:

Num sistema constitucional como o nosso, em que a regra da irretroatividade si­tua-se em nível constitucional não apenas de lei ordinária, impossível falar-se em lei in­terpretativa. Admiti-la seria permitir ao legislador ordinário, a pretexto de estabelecer regra de interpretação da lei, fazê-la retroagir.4

Aliás, fazer o art. 32 retroagir foi intenção específica do legislador da LC n~ 118/05, co­mo se vê no próprio artigo 4Ü da LC, assim redigido:

Art. 4Q Esta Lei entra em vigor 120 (cento e vinte) dias após sua publicação, obser­vado, quanto ao art. 31, o disposto no art. 106, inciso I, da Lei t f 5.172, de 25 de outubro de 1966 — Código Tributário Nacional.

Como já visto, o art. 106,1 do CTN estabelece: "[...] a lei aplica-se a ato ou fato preté­rito: I — em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa".

A INTERPRETAÇÃO DADA AO ARTIGO 3Ü DA LC Nü 11 8/05 PELO ST]A I a e a 2â Turmas do Superior Tribunal de Justiça, depois de alguma divergência, aca­

baram submetendo a matéria ao crivo da Primeira Seção, a qual, em Embargos de Divergên­cia, pacificou a questão, consolidando a jurisprudência da Corte sobre a chamada tese dos cinco mais cinco para a definição do termo inicial da prescrição do direito de pedir a devo­lução ou compensação de valores indevidamente pagos a título de tributo sujeito a lança­mento por homologação, desde que ajuizadas as competentes ações até 9 de junho de 2005, data em que entrou em vigor a LC n° 118/05.

Em minha opinião, deveria o STJ ter aplicado a LC nú 118/05 somente aos pagamentos efetuados a partir de 9 de junho de 2005, dando efeito apenas prospectivo ao novo diploma legal, até mesmo porque, como bem observa Amaro:

Dar ao legislador funções interpretativas, vinculantes para o judiciário na aprecia­ção de fatos concretos anteriormente ocorridos, implicaria conceder àquele a atribuição de dizer o direito aplicável aos casos concretos, tarefa precipuamente conferida pela Constituição ao Poder Judiciário. Mais uma vez, não se escapa ao dilema: ou a lei nova dá ao preceito interpretado o mesmo sentido que o juiz infere desse preceito, ou não; no

Roque Carrazza, Curso de direito constitucional tributário. 16. ed. Sào Paulo: Malheiros, 2001, p. 307. Carlos Mario Velloso, Temas de direito público. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 299.

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O artigo 3U da Lei Complementar n* 118£)5: prazo para pedir devolução de tributo 75

primeiro caso, a lei é inócua; no segundo, é inoperante, por retroativa (ou porque usur­pa função jurisdicional.5

Para adotar uma decisão conciliatória, parece-me que teria sido mais razoável que o STJ tivesse aplicado, por analogia, a regra constante do art. 2.028 do vigente Código Civil, segundo a qu al"[...] serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo es­tabelecido na lei revogada".

Assim, poderia o STJ ter mantido os cinco mais cinco para os contribuintes que hou­vessem efetuado o pagamento indevido há mais de cinco anos, na data da entrada em vi­gor da LC nG 118/05, e ter aplicado o prazo de cinco anos desta última lei para os que hou­vessem efetuado o pagamento indevido há menos de cinco anos daquela data. Dessa for­ma, não haveria necessidade de os contribuintes que efetuaram o pagamento indevido há mais de cinco anos fazerem apurações apressadas nos 120 dias de vacatio legis estabeleci­dos pela LC n~ 118/05, para ingressarem em juízo até 9 de junho de 2005, sob pena de ve­rem caducar seu direito de obter a devolução do que pagaram indevidamente.

Não obstante manifestações doutrinárias no sentido de que ao editar lei interpretativa estaria o Legislativo invadindo competência específica do Judiciário, há decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, relator o E. ministro Celso de Mello, na Medida Cautelar em ADIN nü 605/DF, na qual a Suprema Corte, por unanimidade, entendeu que

[...] as leis interpretativas — desde que reconhecida a sua existência em nosso sis­tema de direito positivo — não traduzem usurpação das atribuições institucionais do Ju­diciário e, em conseqüência, não ofendem o postulado fundamental da divisão do poder.6

O b s e r v a ç ã o f in a l

Temo que as 'leis interpretativas' sejam apenas mais um instrumento para que os fiscos (federal, estadual e municipal) consigam reverter jurisprudência judicial consolidada contra seus interesses arrecadatórios, assim como as Emendas Constitucionais têm servido para o mesmo fim, como vimos com a EC nG 29/2000, relativa à progressividade do IPTU, e a EC n 39/2002, que permitiu a criação da esdrúxula 'contribuição de iluminação pública'.

Breve cu rrícu loCondorcet Rezende Advogado tributarista; sócio de Ulhôa Canto, Rezende e Guerra — Advo­gados; ex-professor de Legislação Tributária da Escola de Administração Pública da FGV; ex-pro­fessor de Legislação Tributária da Faculdade de Administração e Finanças da Uerj; ex-membro da diretoria executiva da International Fiscal Association; ex-presidente e atual vice-presidente da As­sociação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF).

Luciano da Silva Amaro, Direito Tributário brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 191.6 DJ 5.3.1993.

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PÁGINA EM BRANCO

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C a p ít u l o

A b o r d a g e n sESTRATÉGICAS

G estão das m ic r o e peq u en a s em presa s n o B r a s il : d esa f io s e

PERSPECTIVASAndré Silva Spínola

E stresse em pr esa r ia l n o B rasil e a n o v a Lei de Fa lên c ia e R ec u per a ç ã o de Em presa s

Istvan Karoly Kasznar

A spec to s relevantes d o in st it u t o da r ec u per a ç ã o ju d ic ia l e n ecessá r ia m u d a n ç a c u ltu r a l

Luiz Fernando Valente de Paiva

Fundos de investim ento em empresas em recuperação Luiz Leonardo Cantidiano

A nova Lei de Fa lência e Recuperação de Empresas e a CLT — c o n f lito s de in terp retação

Luciano Viveiros

O INSTITUTO DA FALÊNCIA NO NOVO REGIME BRASILEIROFlavia Saraiva Ayd Gisela Pimenta Gadelha

P eq u e n o s n e g ó c io s , e m p r ee n d ed o r ism o e a n o va Lei de Fa lên c ia e R ec u per a ç ã o de Em pr esa s : c o n s id e r a ç õ es so b r e o B rasil c o n t e m p o r â n e o

Fátima Bayma Francisco Marcelo Barone

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G estão das m ic r o ePEQUENAS EMPRESAS NO BRASIL:

DESAFIOS E PERSPECTIVAS

André Silva Spínola

Os pequenos negócios são, em todo o mundo e de forma muito mais destacada nos países em desenvolvimento, como o Brasil, um dos mais representativos e impor­tantes segmentos econômicos, configurando-se como agentes de inclusão econô­

mica e social pelo acesso às oportunidades ocupacionais e econômicas, democratizando oportunidades, tornando-se sustentáculo da livre iniciativa, sendo responsáveis por mais de 60 por cento dos postos de trabalho existentes no Brasil.

Com o surgimento das grandes corporações a partir do final do século XIX e início do século XX, os pequenos negócios passaram a enfrentar enormes desafios, em face da 'eco­nomia de escala' que se instala no mundo e que se acentua e se desenvolve de forma brutal nos anos 80 e 90 do último século, a partir do fenômeno da globalização econômica.

Diante dessa 'ameaça' surge uma grande oportunidade no final do século XX, com as políticas de terceirização em massa, no escopo da reengenharia de produção e do dozunsi- zing. Nesse ínterim houve fenômenos que fomentaram extraordinariamente o surgimento de pequenas empresas, como, por exemplo, o final da Segunda Guerra Mundial, com a ab­sorção de toda a mão-de-obra oriunda da guerra pelo mercado, além da crise do petróleo de 1973 e da queda do muro de Berlim em 1989, que também contribuíram fortemente pa­ra o desenvolvimento do segmento.

Nesse contexto, as pequenas empresas passam a ter outro papel fundamental, ao atuarem como um colchão entre as novas tecnologias de escala e especialização, as estraté­gias de terceirização adotadas pelas grandes empresas e a necessidade de os cidadãos bus­carem no trabalho sua ocupação, renda, cidadania e auto-estima.

Podemos destacar a década de 1990, com o advento da 'tecnologia da informação', nesse complexo contexto de globalização econômica. Novos segmentos empresariais sur­gem dia após dia, com novos produtos e serviços e, principalmente, uma nova dinâmica de organização e administração, com a modernização de equipamentos e processos. Os serviços passam a exercer papel fundamental nas cadeias de produção e distribuição, con­tribuindo, então, na absorção de mão-de-obra e no desenvolvimento de campos férteis e lucrativos de negócios. A informática e as telecomunicações passaram a ser elementos vi­tais na competitividade, flexibilizando as relações empresariais, trabalhistas e comerciais.

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Gestão das micro e pequenas empresas no Brasil: desafios e perspectivas 79

A versatilidade e o dinamismo do mundo dos negócios passam a ser responsáveis por grandes oportunidades, com a queda de barreiras burocráticas, incluindo as internacionais, e a conseqüente aceleração e dinamização das operações econômicas. Os micro e pequenos negócios, por sua estrutura mais simplificada, vivenciavam uma grande vantagem, uma vez que essa estrutura mais simples e menos hierarquizada permitia que tais inovações fos­sem rapidamente absorvidas, desde que devidamente disponibilizadas, em termos de cus­to e complexidade, criando um grande diferencial competitivo.

A participação desses negócios na economia dos países serve de parâmetro para aferi­ção do equilíbrio entre o desenvolvimento social e econômico. Nos países mais desenvolvi­dos e com boa distribuição de renda, sua participação no PIB tende a equilibrar-se com a das grandes empresas, mas no Brasil ainda se situa na casa dos 20 por cento, apontando para a ne­cessidade de dedicar a esses empreendimentos políticas públicas adequadas a seu fomento.

No Brasil, marcado pelo dinamismo e heterogeneidade, num escopo de precariedade permanente no que toca a políticas públicas eficazes, abrangentes e sistêmicas voltadas às pe­quenas empresas, esses empreendimentos se destacam por uma série de fatores e capacida­des, dentre as quais podemos destacar sua latente função social, capilaridade, fácil adequação a mudanças e peculiaridades regionais, econômicas, sociais e culturais.

Em termos de representatividade no Brasil, as micro e pequenas empresas represen­tam 99,2 por cento das empresas formalmente estabelecidas, correspondendo a um total aproximado de 5 milhões de empresas, gerando 60 por cento dos empregos formais e cerca de 20 por cento do PIB. Registre-se ainda que, no período de 2000 a 2002, foram criadas cer­ca de 1,4 milhão de novas microempresas e que, em relação a novos postos de trabalho nes­sas empresas, o crescimento, de 1995 a 2000, foi de 25,9 por cento, correspondendo a 1,4 mi­lhão de novos empregos, enquanto nas grandes empresas o incremento foi de apenas 0,3 por cento, não atingindo 30 mil novas contratações. Infelizmente, no mesmo período, 2000 a 2002, fecharam as portas algo em torno 770 mil empresas, o que demonstra o quão difícil e desafiadora é a gestão desses negócios num ambiente como o Brasil.

Como veremos a seguir, esses aspectos não foram levados em consideração na nova Lei de Falências e Recuperação Judicial.

C o m o a l e g is l a ç ã o b r a s il e ir a t em r e f l e t id o a im p o r t â n c ia e asPECULIARIDADES ECONÔMICAS E SOCIAIS DOS PEQUENOS NEGÓCIOSEm todo o mundo há sistemas de tratamento diferenciados para pequenas empresas,

com destaque para os países desenvolvidos, como os Estados Unidos e a Itália, verdadeiros paradigmas em termos de incentivo às micro e pequenas empresas.

Não nos ateremos aos conceitos doutrinários do novo direito empresarial, consideran­do empresa realmente aqueles negócios voltados para a exploração de determinadas ativi­dades econômicas, em consonância com a legislação vigente.

O Estado brasileiro contemplou esse representativo segmento com alguns princípios constitucionais, que até hoje se constituíram em mera retórica e duas leis de abrangência nacional, voltadas especificamente para o segmento.

Ressalte-se aqui que, no ano de 2005, os pequenos negócios conseguiram um conside­rável espaço na agenda política, econômica e social brasileira, com a discussão de mecanis­mos de incremento econômico e social, em um ambiente de formalidade, de onde foram propostos e estão em discussão importantes projetos de lei, como a Pré-empresa e a Lei

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80 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

Geral das Micro e Pequenas Empresas. Esses projetos tratam de questões tributárias, buro­cráticas (criando um cadastro unificado de identificação e um regime unificado de tributa­ção, envolvendo União, estados e municípios), acesso a serviços financeiros, inserção nas compras governamentais, inovação tecnológica, consórcios, dentre outros temas.

A legislação de abrangência nacional vigente compreende a Lei rr 9.317/96, que ins­titui o Simples — Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Mi- croempresas e das Empresas de Pequeno Porte e a Lei n~ 9.841/00, que cria o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. No âmbito dos estados brasileiros, temos várias legislações estaduais que criaram seus regimes diferenciados de recolhimento de ICMS, em alguns casos, e políticas de fomento ao segmento, em outros.

E aqui que encontramos a 'definição' pátria de microempresa e empresa de pequeno porte, de acordo com a Lei r f 9.841 /00, qual seja, aquela empresa que tem uma receita bru­ta anual de aproximadamente R$ 433.000 e R$ 2.133.000, respectivamente.

A despeito desses importantes avanços, a realidade enfrentada pelo segmento é críti­ca, considerando-se que, do ponto de vista da competitividade econômica, a relação entre as pequenas e grandes empresas é bastante desequilibrada, da mesma forma que com rela­ção aos empreendimentos ocultos na informalidade, hoje na casa de 10 milhões de unida­des, segundo o IBGE.

A oxigenação da economia, num cenário de competitividade e lealdade empresarial, se faz mais do que nunca necessária no Brasil, por meio do estabelecimento do equilíbrio das relações das pequenas empresas com os grandes grupos econômicos e com o Estado. A partir daí é que se poderá pensar, de forma realmente sistêmica, na reversão do quadro de elevados índices de desemprego, concentração de renda e informalidade.

O Estado tem então seu papel destacado como ator principal nesse contexto, no senti­do de regular e implementar políticas públicas eficazes.

Certo é que todo e qualquer tratamento favorecido ao segmento das pequenas empre­sas é dado com estribo na Constituição Federal de 1988, visando, pelo menos filosoficamen­te, efetividade, possibilitando uma adequada estratégia na busca de modernas e eficientes diretrizes que possam responder aos desafios atuais da geração de emprego, da distribuição de renda, da inclusão social, da redução da informalidade, do incentivo à competitividade, do crescimento das empresas e da economia, em busca de uma maior justiça fiscal e social.

Também nesse sentido, o próprio 'princípio da igualdade', devidamente interpretado, mostra-nos que aqueles que estiverem em determinada situação de desigualdade devem ser tratados pelo legislador de forma desigual, fazendo a lei diferenciação de tratamento ju­rídico fundada em razão relevante à ordem pública, em finalidade relevante para o direito.

As bases constitucionais do sistema econômico nacional são balizadas pelo Capítulo I, Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, inserido no escopo da Ordem Econômica e Financeira, mais precisamente em seus artigos 170 e 179:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na li­vre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I — soberania nacional;II — propriedade privada;

III — função social da propriedade;

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Gestão das micro e pequenas empresas no Brasil: desafios e perspectivas 81

IV — livre concorrência;V — defesa do consumidor;

VI — defesa do meio ambiente;VII — redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII — busca do pleno emprego;IX — tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob

as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Nesse mesmo sentido:

Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurí­dico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações adminis­trativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.

Em 2003, no âmbito da reforma tributária então em discussão, houve uma importante alteração constitucional que veio a inaugurar uma época de profundas discussões acerca da importância dos pequenos negócios no Brasil.

Por meio da Emenda Constitucional nú 42/03, o artigo 146 do capítulo do Sistema Tri­butário Nacional da Constituição Federal foi alterado, com vistas a abrigar um novo tema a ser alvo de lei complementar: "a definição de tratamento diferenciado, simplificado e fa­vorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte", prevendo ainda em seu parágrafo único " o cadastro único de contribuintes e o regime unificado de arrecadação de tributos", matéria esta que se discute por meio dos projetos de lei anteriormente citados, a Pré-empresa e a Lei Geral.

A n o va L ei de F a lê n c ia e R ecu p e ração de Empresas e asPERSPECTIVAS DAS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS

Para termos uma clara idéia do perfil do segmento dos pequenos negócios, a Tabela 4.1 apresenta uma divisão estatística dessas empresas pelo seu faturamento bruto anual.

Vê-se claramente que a maioria esmagadora dos pequenos negócios, 86 por cento, tem um faturamento anual de até R$ 360.000, o que lhes confere quase ínfima condição de ne­gociação com fornecedores, acesso a linhas de crédito e financiamento, acesso à Justiça, dentre outros relevantes fatores que foram levados em conta pelo legislador na nova lei, no que concerne à recuperação empresarial.

Além disso, a Tabela 4.2 mostra o incrível percentual de pequenas empresas que encer­ram suas atividades em até dois anos após o início de seu funcionamento. Tal dado demons­tra cabalmente como um mecanismo de recuperação coerente com a capacidade dos peque­nos negócios fazia-se fundamental, em face do enorme número de empresas que fecham as portas nesse curto espaço de tempo, extinguindo empregos e debilitando a economia.

Nesse contexto, o novo mecanismo de recuperação judicial especial para microempre­sas e empresas de pequeno porte demonstra ser de uma enorme fragilidade, ao não dar condições para que essas empresas se recuperem.

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82 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

T a b e la 4 .1 Faturamento bruto anual — Empresas ativas (Brasil)

Porte Faturam en to B rasil SE S ul N E N orte C O

Micro Até R$ 60 mil 48 45 50 55 49 41

Acima de R$ 60 mil até R$120 mil 25 21 22 22 21 34Pequena Acima de R$120 mil até R$ 360 mil 13 14 10 11 14 15

Acima de R$ 360 mil até R$ 600 mil 5 3 8 3 6 4Acima de R$ 600 mil até R$ 840 mil 2 2 3 1 2 1

Acima de R$ 840 mil até R$ 1.080 mil 2 2 2 3 2 1

Acima de R$ 1.080 mil até R$ 1.200 mil 1 1 — 1 1 1Acima de R$ 1.200 mil 2 7 2 2 4 1Não teve faturamento 2 5 3 2 1 2Total 100% 100% 100% 1 00% 100% 100%

T a b e la 4 . 2 Taxa de mortalidade por região e Brasil (2000- 2002) (%)

A n o de c o n st itu iç ã o

R eg iõ es

B rasilS udeste S ul N o rdeste N orte C en tro - oeste

2002 48,9 52,9 46,7 47,5 49,4 49,42001 56,7 60,1 53,4 51,6 54,6 56,42000 61,1 58,9 62,7 53,4 53,9 59,9

*

E fato incontestável que realmente o novo instituto da recuperação judicial, bem co­mo as novas disposições acerca do processo falimentar, são grandes avanços no campo do direito concursal brasileiro. Caminhou muito bem o legislador ao prever condições de re­cuperação empresarial e também ao agilizar o processo de recuperação de créditos, prote­gendo as empresas, a economia e os empregos. Tanto é assim que já se tem tramitando no Judiciário pedidos de recuperação judicial de grandes empresas brasileiras, como a Varig e a Parmalat, que comemoraram e muito a aprovação da nova lei, diante das dificuldades que vinham enfrentando nos últimos tempos.

Não obstante, o segmento dos pequenos negócios passou ao largo das intenções do le­gislador. Como já descrevemos exaustivamente no decorrer do presente trabalho, esse seg­mento é merecedor de um tratamento diferenciado, simplificado e favorecido. É verdade que a Lei i r 11.101/05 traz um regime especial de recuperação judicial para as microempre- sas e empresas de pequeno porte, mas notoriamente insuficiente para fazer frente às verda­deiras dificuldades por que passam essas empresas no seu dia-a-dia.

De forma distinta dos critérios definidos para a recuperação judicial das grandes em­presas, a recuperação judicial especial das pequenas inicia-se a partir de pedido unilateral, ou seja, sem a necessidade de concordância dos credores, desde que cumpridos alguns re­quisitos, a ser deferido pelo juiz, com duração máxima de 42 meses, com o passivo sendo dividido em 36 parcelas iguais e sucessivas mensalmente, com seis meses de carência parao primeiro pagamento. Dessa forma, não há a necessidade da instalação de assembléia de

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Gestão das micro e pequenas empresas no Brasil: desafios e perspectivas 83

credores, bem como da confecção de laudo econômico-financeiro e de avaliação de ativos, entre outros documentos.

Esse desenho de recuperação seria realmente interessante para pequenos negócios, na­turalmente pouco complexos, com um círculo restrito de fornecedores e passivo pouco re­presentativo para os credores empresarias (bancos, atacadistas, indústrias, fiscos, entre ou­tros). Infelizmente, a recuperação especial diz respeito apenas aos créditos quirografários, não às outras naturezas de passivos, o que veio a fragilizar em muito esse mecanismo. Res­salte-se aqui que o projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados previa esse mesmo regime, mas abrangendo todos os créditos, incluindo os trabalhistas, estes a serem quitados em até seis meses.

Dessa forma, no campo prático, apenas os fornecedores diretos das pequenas empre­sas seriam obrigados a participar de um possível plano de recuperação judicial, o que não seria capaz de efetivamente recuperar essas empresas, haja vista a representatividade dos tributos e financiamentos no seu dia-a-dia.

Ressalte-se ainda que esse passivo quirografário será corrigido monetariamente e so­frerá a incidência de juros de um por cento ao mês, de forma que, no final das contas, seria um crédito muito mais bem remunerado do que grande parte dos investimentos disponí­veis no mercado, avaliando-se do ponto de vista dos credores, o que vem a retirar desses credores o caráter de colaboradores no âmbito da recuperação judicial.

Concluindo, o que se vê é a manutenção da concordata, tão criticada pela sua inoperân- cia, considerada por todos a 'ante-sala da falência', dada sua falta de condições de recuperar as empresas. Os institutos (recuperação judicial especial para ME e EPP e concordata) são os mesmos, com diferenças apenas nos prazos e previsão de correção monetária e juros remu- neratórios aos credores.

A recuperação judicial comum tampouco será utilizada pelas micro e pequenas em­presas, haja vista sua complexidade, exigindo-se a contratação de profissionais especiali­zados (advogados, administradores, economistas, consultores), o que naturalmente faz com que as pequenas empresas se afastem, uma vez que, como já vimos, a grande maio­ria tem receitas mensais girando entre torno de R$ 20.000, com margens de lucro bastan­te restritas.

Breve c u rr íc u lo

André Silva Spínola Advogado e consultor da Unidade de Políticas Públicas do Sebrae Nacional. Especialista em direito empresarial e gestão de negócios.

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Estresse em presa r ia l n o B rasile a n o va Lei de Fa lên c ia

e R ec u per a ç ã o de Em presa s

Istvan Karoly Kasznar

Certamente, a nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas representa uma evo­lução no meio da complexa constelação de legislações que dizem respeito ao mundo empresarial. Sua estrutura e redação são detalhadas, abarcando efetivamente os te­mas mais difíceis e importantes, para que se possa de certa forma pôr em ordem a miríade

de assuntos que se associam à deterioração, à concordata, à falência e portanto ao feneci- mento de empresas.

Moderna, previdente, essa lei é correta para a regulação do sistema econômico e abor­da com bom senso a temática microeconômica.

Contudo, naturalmente, como a maior parte das leis, ela peca num ponto. Muito em­bora até dedique um par de parágrafos às micro e pequenas empresas, que empregam 68 por cento da mão-de-obra do país e geram 65 por cento do produto interno bruto, ao ter de ser aplicada a elas também sujeita-as a um garrote vil, posto que eivado e sublimado por numerosas exigências legais, normativas, burocráticas e organizacionais.

É bem correta a nova legislação para as grandes, as giga e as megaempresas, que pos­suem uma estrutura, uma infra-estrutura e um aparelhamento técnico, institucional, jurídi­co e burocrático já montados para agüentar o inferno da burocracia legislativa brasileira, considerada em eficiência a H 5à do mundo, entre 155 países, segundo o International Fi­nancial Corporation (IFC), órgão do World Bank.

E muito embora se assevere correta, entenda-se isso no sentido de ter ocorrido uma li­geira melhoria na direção da atenuação dos problemas decorrentes de concordatas e falên­cias, que ao longo das últimas décadas foram resolvidas de modo moroso pelo Judiciário brasileiro, à custa de milhões de empregos, talentos, insumos materiais e recursos financei­ros perdidos.

Se cintes se liquidava a empresa e ponto final, após passar-se por uma via-crúcis que nem Kafka seria capaz de criar em seus escritos que ressaltam pesadelos torturantes, de agora em diante, por exemplo, a figura da intervenção e de uma nova administração nas empresas problemáticas — instituída com o apoio dos próprios colaboradores internos de uma empresa, ou pela figura de um interventor profissional, ou algo similar — representa de fato um progresso eloqüente e digno de nota.

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Estresse empresarial no Brasil e a nova Lei... 85

Mas seriam essas evoluções positivas da nova lei tão significativas a ponto de se po­der afirmar que se deu um passo decisivo, marcante, digno de Alexandre, o Grande, no sen­tido da resolução dos dramas aflitivos das organizações que tendem a desconstruir-se, des- montar-se, quebrar e talvez falir?

Será que de fato os legisladores, os economistas, os administradores públicos, os pla­nejadores governamentais, os gestores e engendradores de políticas públicas e privadas que afetam e dizem respeito ao universo empresarial podem dar-se por satisfeitos, abrir um largo sorriso e afirmar que estão com a plena sensação do dever cumprido?

Talvez essa vontade de crer que o dever tenha sido cumprido mereça uma ligeira obje­ção. No que se refere ao que os legisladores podem fazer, isto é, melhorar, atualizar e tomar mais realista e abrangente a lei, eles podem dar-se por algo mais satisfeitos. Evoluiu-se, é bem um fato. Todavia, uma lei apenas, sozinha, isolada do contexto maior no qual atuará, é tal e qual a pata desmontada e retirada de uma aranha. Essa patinha não anda sozinha.

Políticas empresariais, econômicas, legislativas, éticas, sociais e afins fazem parte do mesmo contexto, num rol maior e nacional de negócios, com caracterizações públicas e privadas e com a necessidade de evoluir progressivamente, de modo bem balanceado, ca­librado, de tal sorte que, mediante sua plena integração, a tessitura macrorrelacional de di­mensões que constituem o todo de um país venha a gerar benefícios a todos.

Isso significa que a legislação progrediu para facilitar e realmente resolver problemas que anteriormente não eram previstos na antiga Lei de Falências e Concordatas. Contudo, dada a nova fase que se vive na sociedade e na economia brasileiras, as falências certamen­te perdurarão, porque há fatores que, no lugar de terem sido resolvidos, estão sendo gerado­res de situações agravantes e deverão criar alta probabilidade de morbidez organizacional no futuro.

Senão, veja-se, neste curto conjunto de pensamentos aqui expostos, um grupo limita­do, contudo relevante, de fatores que continuarão incentivando a quebra, a concordata, a falência, a bancarrota, ou outro termo similar que queira expressar a decadência, a senes- cência, a derrocada e, no final, o triste desaparecimento das organizações.

Sem que se resolvam para valer os problemas que se seguem e que se constituem em autênticos desafios dos promotores de políticas jurídicas, econômicas, empresariais e afins no Brasil, com vistas a que haja uma efetiva e real evolução sistêmica, mediante a qual os agentes econômicos se vejam gerando uma malha integrada de ações sinérgicas em prol do movimento desenvolvimentista, sem entraves ao progresso das organizações, eles — os problemas que a lei quis resolver, contornar e minimizar — poderão talvez ser minorados temporariamente, ou reduzidos em seu teor, ou 'marginalizados' e mantidos nos escalões do esquecimento. Contudo, tal e qual uma gripe mal curada, em que o vírus permanece dentro do corpo e vai minando-o até vencê-lo e quiçá trazendo em seu encalço outros ma­les, poderá recrudescer mais adiante e deixar aparecer a solução como feita em seu ângu­lo residual, marginal e de instância tópica.

No Brasil, a cultura que prevalece é dada pelo triste ditado popular que faz escola, e que assim se professa: "cada macaco no seu galho". Ora, políticas que visam o bem-estar or­ganizacional, empresarial e setorial econômico não se encontram num galho apenas, tam­pouco numa árvore só. As soluções das macropolíticas hão de envolver todas as dimensões do interesse empresarial, social e econômico, tal como se uma nação fosse constituída por uma floresta rica, múltipla em espécies e variada em complexidades.

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86 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

Portanto, essa nova lei é útil, mas é um galho. Faz parte do hipercomplexo mundo das leis, que no Brasil são contraditórias, enroladas, de difícil compreensão e ótimas para que uma mesma frase sirva para inúmeras interpretações. Sem falar que há leis que pegam, outras que não pegam, e ademais os agentes econômicos descumprem desbragadamente inúmeras leis. Um bom exemplo é a pirataria, que grassa no Brasil, destruindo mais de 32 bilhões de dólares por ano em direitos autorais, marcas, direitos sobre patentes e congêne­res. E, mais difícil ainda, se infelizmente nem todos os membros do Congresso Nacional, que são ou deveriam de fato ser os maiores legisladores do país, agem com a plena lisura ética que os bons costumes e a evoluída cidadania quereriam ver, é certo que o ato de se lu­dibriar as leis perdurará, e isso gerará 'deseconomias' no sistema de produção nacional.

Em geral, os pequenos e microempresários são vilmente garroteados, tributados e pressionados, enquanto os ricos, por disporem de meios, recursos e contatos prestigiosos, conseguem fugir às garras das imposições aparentemente férreas da lei.

No Brasil seria preciso reapreciar e reescrever aquele outro ditado popular que diz: "aos inimigos, a lei". Seria mais correto afirmar: "aos excluídos dos agrupamentos jurídicos e legais monitorados por forças advocatícias, por forças políticas representativas e por en­tidades públicas das quais se apossaram os seus colaboradores, resta a imposição austera e implacável da lei".

Os fatores que podem explicar falências organizacionais significativas no Brasil, con­siderando-se um cenário de médio prazo, diga-se algo como os cinco anos vindouros, po­dem ser classificados como de magnitude macro e de magnitude micro.

Entre os fatores macro, merecem apreciação e citação os seguintes, sem ordem de prio­ridade, posto que isso requisitaria um estudo macroeconométrico, que não é o caso de apre­sentar neste livro:

• A permanência de um Estado hipertrofiado, ineficiente, cada vez mais caro, que ao mesmo tempo possui uma dívida pública cujo valor, em junho de 2005, ultrapassou1 trilhão de reais e gerou o pagamento de 175 bilhões de reais apenas na conta dos juros. Nesse sentido, o Estado absorve o minguado crédito livre do mercado; joga as taxas reais de juros para cima; inibe a capacidade de captação livre das empresas privadas; e cria uma péssima estrutura de capital empresarial, posto que os emprés­timos hão de ser evitados, pelo custo que possuem e por elevarem o risco de ina­dimplência das organizações.

• O uso pelos governos mais recentes de uma política monetária contracionista mais que ortodoxa, que por um lado contém de fato a inflação em patamares menores que os outrora vivenciados pelo Brasil entre 1987 e 1993, por exemplo, mas que justamente eleva a dívida pública e os juros para valores cada vez maiores. Resol­ve-se no curto prazo o problema da inflação, mas não se atende à solução estrutu­ral do sistema econômico, que deverá ter um Estado do tamanho da capacidade de pagamento e sustentação do contribuinte.

• A existência da maior carga fiscal sobre as empresas no mundo. Ora, isso significa que o maior sócio das empresas privadas no Brasil é o Estado, que pouco retorna com boa infra-estrutura, serviços públicos e apoio institucional, a favor do mundo empresarial. Impostos altos e crescentes extinguem os lucros empresariais, causam prejuízos, eliminam investimentos e reinvestimentos e inibem o desenvolvimento econômico privado. As empresas são submetidas a uma estrutura de custos ascen­

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Estresse empresarial no Brasil e a nova Lei... 87

dente, que mina e prejudica sua competitividade doméstica e internacional, sujei- tando-as a risco de quebra por custos superiores aos dos concorrentes.

• Políticas de preços administrados e públicos que seguem uma evolução ciclotímica, tipicamente gerada por autoridades desesperadas, cuja mente aparvalhada se aco­pla à perfeição à inoperância sistêmica, com uma visão casticista geradora de grava- mes burocráticos e éticos insustentáveis para empresas submetidas a uma concor­rência global.

Entre os fatores micro, hão de merecer a atenção:

• O envelhecimento, a desatualização e o cansaço dos empreendedores e empresários que movem um negócio. Efetivamente, com o passar dos anos e das décadas, as pes­soas perdem o punch, o gás, e tendem a acomodar-se. Nessa hora, a menos que aprendam a atualizar-se, ou saibam criar já, antes que isso ocorra, alianças e parce­rias que levarão adiante seus negócios, é bem provável que sucumbam e se percam por deficiências que não souberam suplantar.

• O fato de que a renda per capita dos brasileiros vem caindo fortemente desde 1998, por sete ou oito anos seguidos, de tal forma que, com menos poder aquisitivo, maior inadimplência, maior 'despoupança' e menor capacidade de alavancar negócios, eles estão mais fracos financeiramente e, logo, as empresas das quais são detentores.

• Entre 1990 e 2005, inúmeros empresários constituídos não fizeram empresas porque assim queriam e isso fosse o 'sonho de suas vidas'. Simplesmente fizeram empresas porque não arrumaram emprego, num país em que, em São Paulo, o índice de de­semprego foi de 17,7 por cento em junho de 2005. Isso significa que há um gigantes­co contingente de brasileiros que prefeririam estar numa empresa pública (como no INPS, ou INSS, que entre 2001 e 2005 passou 25 por cento do tempo de serviço com seus colaboradores em greve, por melhores salários), ou numa transnacional, como funcionários. Contudo, obrigados pela diáspora do Brasil a atuar como empresá­rios, arriscam-se a revelar que são em algum bom percentual destituídos dos talen­tos empresariais que asseguram a sobrevida e o desenvolvimento organizacional.

Natural e evidentemente, há inúmeros outros fatores que podem gerar falências nas organizações. A lei teria atentado a todos eles? Certamente não, porque não existe a possi­bilidade de uma simples legislação abarcar o mundo de problemas e de desafios mastodôn- ticos que aflige o Brasil atual e do futuro.

E note-se que cada um dos fatores anteriores implica em afirmar que, para que as le­gislações dêem certo, haverão de contar com todo tipo de políticas adicionais, para que, en­tão sim, num movimento compassado, possam dar efetividade às suas linhas e propostas principais.

Nesse sentido será necessário adotar, em resumo, medidas que contemplem, incenti­vem e promovam, entre outros, tanto em nível macro, quanto micro: uma reforma e uma modernização do Estado que sejam amplas, abrangentes, honestas e efetivas; uma reforma institucional que seja ampla e abarque os três níveis de poder; um pacto tributário que elimi­ne as guerras fiscais entre Federação, estados e municípios, para diminuir custos, algo que o bem organizado lobby dos defensores de um Estado grande jamais aprovará; uma política monetária que seja mais livre, sem tantos depósitos compulsórios, sem forçar o direciona­

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88 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

mento da poupança privada para o giro e o financiamento da dívida pública; uma oferta de moeda que jogue os juros reais para patamares civilizados, e não para os níveis que entre 2003 e 2005 mantiveram o Brasil como o 'campeão mundial das taxas de juros mais caras do mundo'; a promoção de medidas que formem uma poupança privada e pública endógena elevada, sem riscos de fluir ao exterior por temores de arbítrio e intervenção governamen­tais no patrimônio dos indivíduos e das organizações; o incentivo ao investimento empresa­rial de risco; o incentivo à eliminação dos entraves burocráticos; o investimento público e privado maciço em educação; o incentivo à geração de tecnologias próprias; e a redução drástica da carga tributária e especialmente da trabalhista.

Portanto, tal como se pode apreciar, há inúmeras medidas de porte a adotar para que os recursos da população brasileira sejam muito mais bem utilizados, explorados e aplica­dos, em favor de seus detentores e titulares, assim como da comunidade a que pertencem.

Que a nova lei foi um avanço, isso é incontestável e é algo a mais, que favorecerá a comunidade brasileira. Contudo, num pensamento final, é bom que se ressalte que essa adoção de uma nova lei foi e é mais uma condição necessária para o aperfeiçoamento le­gislativo, corporativo, de governanças e de operações empresariais, mas está longe de ser suficiente para sanar os desafios que nos compungem e massacram no país que possui a segunda pior distribuição de renda do mundo.

Esse fato não é um acaso. Tão-somente faz parte do contexto no qual se formou com sua dicriminativa política o Brasil.

Montado sobre uma estrutura que privilegia o poder do Estado e de monopólios e oligopólios a ele associados, o país há que aprender a liberar as amarras que garroteiam, sufocam e inibem o real desenvolvimento dos empresários, fazendo deles o mais eficaz instrumento de desenvolvimento. E quando o desenvolvimento é real, a renda real cresce, as vendas sobem, os impostos tornam-se pagáveis, o emprego retorna e, com isso, num re­petitivo ciclo e círculo virtuoso, diminui a inadimplência, aumenta a lucratividade e con­trola-se melhor o endividamento, o que por sua vez faz esvaírem-se os temores de ocorre­rem mais e maiores, em número e grau de importância, falências e concordatas.

Breve c u rr íc u lo

Istvan Karoly Kasznar Professor titular da FGV. Presidente da Institutional Business Consultoria Internacional (IBCI). Conselheiro econômico da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi). Conselheiro do Instituto Dannemann-Siemsen de Proprie­dade Intelectual.

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A specto s relevantes d oINSTITUTO DA RECUPERAÇÃO

JUDICIAL E NECESSÁRIA MUDANÇA CULTURAL

Luiz Fernando Valente de Paiva

A manutenção da atividade produtiva é o princípio que deverá nortear a aplicação da Lei nü 11.101/05 (nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas) em toda a sua extensão, permeando os institutos da recuperação judicial, recuperação extra­

judicial, como também o próprio instituto da falência, por meio do afastamento do deve­dor e da continuação de suas atividades.

O principal objetivo do processo de recuperação consiste em permitir que o devedor faça uma adequação de seu fluxo de pagamentos a sua geração de caixa, de tal forma que o devedor volte a ter recursos financeiros para pagamento de suas obrigações nos respectivos vencimentos. Esse é o objetivo maior da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas: manter a atividade produtiva, os empregos, gerar tributos e maximizar as possibilidades de pagamento a todos os credores.

A concordata preventiva, substituída pela recuperação judicial, obrigava exclusivamen­te os credores quirografários,1 basicamente fornecedores de bens ou serviços. A concordata permitia ao devedor alongar a dívida quirografária num prazo máximo de até 24 meses.

No entanto, a experiência demonstrou que, ao impetrar um pedido de concordata, o devedor sabia de antemão que não conseguiria honrar suas obrigações no prazo legal, por­que sua geração de caixa não seria suficiente para pagar aquele endividamento nesse perío­do. Mais do que isso, a concordata não era um instituto adequado à renegociação de débi­tos de outras naturezas (débitos com garantia real, trabalhistas, ou débitos tributários).

( P Pa r c e l a m e n t o d e d é b it o s t r ib u t á r io s

Ora, se o objetivo maior do processo de recuperação judicial era viabilizar a adequa­ção entre a geração de caixa e o fluxo de pagamentos, além de ampliar a base da negociação para outros credores, também era necessário permitir que o devedor efetuasse o parcela­mento dos seus débitos tributários, uma vez que o Fisco não pode negociar ou parcelar li­vremente créditos tributários e, por conseguinte, não pode ser submetido ao plano de recu­peração do devedor.

1 Credores sem garantias ou sem privilégios.

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90 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

Portanto, era preciso criar condições para que o devedor que ajuizasse um pedido de recuperação judicial obtivesse o parcelamento de seus débitos tributários, de forma a in­cluir na projeção de seu fluxo de pagamento as obrigações devidas ao Fisco e aquelas con­templadas no plano de recuperação, acomodando esse fluxo global de pagamento a sua geração de caixa. Por essa razão, concomitantemente à nova lei, foi sancionada a Lei Complementar nü 118/05, que introduziu alterações (necessárias) no Código Tributário Nacional para adequá-lo ao novo sistema falimentar, e abrindo-se a possibilidade de par­celamento dos débitos tributários de devedores que requeiram a recuperação judicial.

A possibilidade de parcelamento dos débitos tributários ainda está pendente de regu­lamentação (Projeto de Lei nQ 245/04)2 e somente contribuirá, de forma efetiva, para a con­cretização dos objetivos do processo de recuperação judicial, se os prazos de seis ou sete anos atualmente contemplados no projeto de lei forem alterados.

S u c e s s ã o t r ib u t á r ia e p r e v id e n c iá r ia

No que se refere especificamente ao instituto da recuperação judicial, a Lei Comple­mentar nü 118/05 também eliminou o risco de sucessão tributária e previdenciária nas hi­póteses de aquisição de unidades isoladas ou filiais de empresas em regime de recuperação judicial. Assim, os adquirentes desses ativos deixarão de correr o risco de arcar com os dé­bitos fiscais e previdenciários do devedor alienante.

Essa blindagem deverá criar um mercado atrativo para a aquisição de ativos, com no­vas oportunidades de investimentos, permitindo que a empresa em crise obtenha mais re­cursos no mercado, capitalizando-se. Essa blindagem, no entanto, não protege eventuais vendas fraudulentas, as quais poderão ser objeto de futuras ações revocatórias na hipótese de falência do devedor.

A NECESSÁRIA MUDANÇA CULTURALQuestiona-se, no entanto, se as condições de parcelamento tributário previstas no Pro­

jeto de Lei n~ 245/04 permitirão ao empresário com dívidas tributárias acumuladas resol­ver seu endividamento. Tudo indica que não. O legislador ignorou o fato de que, até hoje, a primeira iniciativa do empresário para resolver o problema da falta de recursos consiste em deixar de pagar impostos. Também não levou em consideração o fato de que há um grande número de empresas em dificuldades com débitos tributários acumulados, sendo insufi­cientes as condições estabelecidas no referido projeto.

No entanto, a despeito das deficiências do projeto de lei, é necessário que os empresá­rios compreendam as mudanças trazidas pela nova lei e abandonem a cultura de 'financia­mento' à custa do Estado. Não é conveniente deixar de pagar tributos, porque o não-paga- mento de débitos tributários sujeita o empresário ao pagamento da taxa Selic e multas que podem chegar a 150 por cento, em um processo crescente de endividamento. A nova lei pro­porciona ao empresário melhores condições de repactuar seus débitos, sem a necessidade de incorrer nas elevadas multas decorrentes do endividamento fiscal.

2 O Projeto de Lei n“ 245/04, apresentado pelo senador Fernando Bezerra, foi aprovado na Comissão de Assun­tos Econômicos (CAE) no Senado e, recentemente, foi remetido à Câmara dos Deputados para apreciação.

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Aspectos relevantes do instituto da recuperação judicial... 91

Da mesma forma, o empresário também deve abandonar as práticas de celebrar con­tratos de adiantamento de câmbio (que não pretende cumprir) para captar recursos, ou de fazer superestocagem às vésperas de um processo de recuperação," uma vez que, por meio de tais medidas, perderá a necessária confiança dos credores. Além disso, o empre­sário em dificuldades econômico-financeiras deve evitar a manipulação do balanço ou da relação de credores, práticas essas às vezes utilizadas para atingir o percentual mínimo entre ativo e passivo, anteriormente exigido para o deferimento da concordata preventi­va. Na nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas, o devedor que manipular o ba­lanço, além de perder o controle da companhia, cometerá crime falimentar, uma vez que a nova lei ampliou as hipóteses e a incidência dos crimes falimentares para atos pratica­dos no âmbito do processo de recuperação judicial.

P r o c e d im e n t o

Preenchidos os requisitos legais exigidos para o ajuizamento do pedido de recupera­ção, o juiz deverá deferir seu processamento. O devedor deverá, então, apresentar seu pla­no de recuperação no prazo de 60 dias, contados da publicação da decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial.

Após a publicação da relação de credores elaborada pelo administrador judicial, ou da data de publicação do edital contendo aviso de recebimento do plano (o que ocorrer por último), os credores terão 30 dias para impugnar o plano apresentado pelo devedor. Se o plano for rejeitado por um ou mais credores, será convocada assembléia de credores pa­ra deliberação acerca dele, a qual deve ser realizada no prazo máximo de 150 dias, conta­dos da decisão que deferir o processamento da recuperação judicial.

O PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL (NATUREZA CONTRATUAL)

É um dos aspectos fundamentais do processo de recuperação. O plano de recuperação deverá conter a descrição dos meios de recuperação a serem utilizados, a demonstração da viabilidade econômica do devedor e o laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens que compõem o ativo do devedor.

Em princípio, todos os credores estão sujeitos ao processo de recuperação judicial (re­gra potencial), com exceção do Fisco.1 O devedor deve indicar no plano de recuperação os credores cujas obrigações não podem ser honradas dado o fluxo de geração de caixa e, por­tanto, com quais credores pretende negociar.

Verifica-se, portanto, que não é obrigatória a inclusão de todas as espécies de credo­res no plano. É possível que o devedor não precise, por exemplo, repactuar os débitos com os credores trabalhistas. Essa ressalva é importante porque, conforme se verificará adian­te, o credor que não é afetado pelo plano proposto pelo devedor não tem direito a voto na assembléia que sobre ele delibera.

' Prática relativamente comum em concordatas preventivas.1 Os créditos tributários deverão ser objeto de parcelamento administrativo em separado, por enquanto, dentro

daqueles prazos de seis ou sete anos do Projeto de Lei n“ 245/04.

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92 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

Também é importante ressaltar que o princípio da paridade foi mitigado no processo da recuperação judicial. A nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas não exige que o devedor conceda tratamento paritário a todos os credores sujeitos à recuperação judicial, tal como ocorria na concordata preventiva, de forma que é possível elaborar um plano que preveja tratamento distinto para diferentes grupos de credores.

No entanto, o princípio da paridade de tratamento deve ser aplicado aos credores cu­jos créditos tenham a mesma origem, natureza e perfil, não sendo vedada, ao meu ver, a possibilidade de um credor optar pelas condições de pagamento de outro grupo de credo­res, na hipótese de o plano contemplar a possibilidade de opção a ser exercida pelo credor.

Se o plano for rejeitado por um ou mais credores, será convocada assembléia de cre­dores para deliberação acerca da aprovação, ou não, do plano. Tratando-se de procedimen­to de natureza contratual, é dos credores, e não do juiz, a decisão de aceitar aos condições propostas pelo devedor no plano de recuperação.

O PLANO ESPECIAL PARA MICRO E PEQUENAS EMPRESAS

Deve-se ressaltar que, no processo de recuperação judicial, as micro e pequenas em­presas poderão optar pela apresentação de plano de recuperação judicial (com a utilização de todos os meios de recuperação previstos na nova Lei de Falência e Recuperação de Em­presas), ou poderão propor um plano especial, mais restrito.

O plano especial consiste em uma moratória, por meio da qual o devedor poderá pa­gar seus débitos em parcelas mensais corrigidas e acrescidas de juros de 12 por cento ao ano. A proposta de pagamento deverá ser apresentada no prazo de até 60 dias após o defe­rimento do processamento da recuperação judicial e obrigará somente os credores quiro- grafários, excetuados aqueles decorrentes de repasse de recursos oficiais.

O pagamento deverá ser feito em parcelas mensais iguais e sucessivas, em um núme­ro máximo de 36 meses, sendo que o primeiro pagamento deverá ser feito no prazo máxi­mo de 180 dias da data da distribuição do pedido de recuperação. Não há necessidade da concordância dos credores para a concessão dessa moratória. Contudo, os credores sujeitos ao plano especial poderão apresentar suas objeções dentro do prazo de 30 dias. A falência deverá ser decretada se houver objeções dos titulares de mais da metade dos créditos sujei­tos ao plano especial.

Optando pelo plano especial de pagamento, as micro e pequenas empresas ficarão dis­pensadas da apresentação de laudo econômico-financeiro e de avaliação de ativos, entre outros documentos exigidos para instrução do pedido de recuperação judicial. Com isso, o legislador pretendeu reduzir as despesas incorridas no processo. Convém lembrar que, an­tes de optar pelo plano especial, os micro e pequenos empresários deverão verificar se a projeção de seu fluxo de caixa permite honrar suas obrigações nos prazos mencionados.

M e io s d e r e c u p e r a ç ã o

A nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas traz um rol exemplificativo, com 16 meios de recuperação que o devedor pode utilizar para recuperação da sua atividade. O plano pode contemplar abatimento das dívidas, concessão de prazos, cisão, conversão de dívida em capital, dação em pagamento, entre outros meios para a recuperação do devedor. Na elaboração do plano, o devedor deve examinar a composição de seu ativo, analisar se é

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Aspectos relevantes do instituto da recuperação judicial... 93

possível alienar algum bem e eventualmente transferi-lo para seus credores. Deve também analisar o perfil e as preferências de seu credores, uma vez que alguns podem preferir, por exemplo, a concessão de descontos e outros, o alongamento da dívida.

C la sses d e c r e d o r e s

Na assembléia geral, os credores são divididos por classes: os trabalhistas (votam por cabeça na aprovação do plano), os credores com direito real de garantia e todos os demais credores (ou seja, espécies de credores com privilégio geral, especial, quirografários e su­bordinados). Os credores dessas duas últimas classes votam em separado e com base no valor dos respectivos créditos.

C r it é r io s d e a p r o v a ç ã o d o p l a n o e l im it a ç õ e s a o d ir e it o d e v o t o

Há dois critérios de aprovação do plano. Segundo o primeiro critério, o plano deverá ser aprovado em cada uma das respectivas classes, contando com os votos da maioria dos credores de cada classe presentes à assembléia, além da maioria dos créditos em cada clas­se. É uma regra difícil de ser obtida. Se o plano não for aprovado por essa primeira regra, há também a possibilidade de ser aprovado se obtiver, obedecidos os critérios anteriores, votos favoráveis de pelo menos um terço de uma das classes, e a maioria nas demais.

Deve haver um mínimo de equilíbrio na elaboração do plano, a fim de que o quórum de aprovação seja obtido, com a ressalva de que os credores não afetados pelo plano e os só­cios do devedor não votam na assembléia geral de credores que delibera sobre o plano/ Ou seja, o legislador procurou evitar que os credores com potenciais conflitos de interesse de­cidam sobre as mudanças de direitos dos demais credores sujeitos ao processo de recupera­ção. Em outras palavras, somente votam na assembléia aqueles que têm exclusivamente in­teresse de credores.

V e r if ic a ç ã o e h a b il it a ç ã o d e c r é d it o s

A nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas alterou o procedimento de verifi­cação e habilitação de créditos, criando uma fase administrativa. Nessa primeira fase, as ha­bilitações e divergências de crédito apresentadas pelos credores são analisadas pelo admi­nistrador judicial, com base nos livros contábeis e documentos comerciais e fiscais do deve­dor e nos documentos que lhe foram apresentados pelos credores. Isso significa que o ad­ministrador judicial pode, desde logo, retificar a lista de credores para que estes compare­çam à assembléia e tenham direito de voto pelo valor do crédito já corrigido.

Deve-se salientar que, na nova lei, o legislador procurou evitar a manipulação da lista de credores pelo devedor, ato considerado crime falimentar e que dá margem ao afastamento do controlador. Mas, na eventual hipótese de o devedor ter deixado de incluir algum crédito em sua relação de credores, a exemplo de obrigações cuja contabilização não é obrigatória, o ad­ministrador judicial pode, desde logo, retificar a lista apresentada pelo devedor, evitando-se prejuízos ao respectivo credor.

5 Os sócios e outras pessoas especificadas no artigo 43 da nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas.

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94 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

Após a análise das informações e dos documentos colhidos, o administrador publica­rá edital, contendo a relação atualizada de credores, no prazo de 45 dias. Após a referida publicação, qualquer credor, o devedor, os seus sócios ou o Ministério Público poderão apresentar ao juiz impugnação contra a relação de credores atualizada pelo administrador judicial, apontando a ausência de qualquer crédito ou manifestando-se contra a legitimida­de, importância ou classificação dos créditos relacionados.

F in a n c ia m e n t o e x t r a c o n c u r s a l

O tratamento especial concedido a essa espécie de crédito destina-se a todos os forne­cedores de bens e serviços ou recursos financeiros que concederem créditos ou emprésti­mos para devedores em recuperação judicial.

Os atos de endividamento praticados pelo devedor no curso de sua recuperação judi­cial, bem como as despesas com fornecedores de bens ou serviços necessários à continua­ção de suas atividades no curso da recuperação judicial, serão considerados extraconcursais na hipótese de convolação da recuperação judicial em falência. Ou seja, caso a empresa em recuperação venha a falir, esses novos créditos concedidos ao devedor em recuperação de­verão ser pagos antes de qualquer outro no processo de falência, até mesmo antes dos cré­ditos trabalhistas.

Trata-se de mecanismo de financiamento comum em países com legislação falimentar moderna, onde há uma significativa oferta de recursos para o empresário em recuperação judicial. Essa modalidade de financiamento permitirá que o devedor obtenha novos recur­sos no mercado e, uma vez que tenha início sua oferta no Brasil, desencorajará a prática de atos pouco transparentes pelo empresário em dificuldades, a exemplo da superestocagem, celebração de contratos que sabe, de antemão, não ser capaz de honrar, ou da suspensão do pagamento de impostos.

Portanto, na elaboração do seu plano de recuperação, o devedor deverá levar em con­sideração, entre outros aspectos: a composição dos débitos do devedor; os interesses exis­tentes nos diferentes grupos de credores; os bens que compõem o ativo do devedor e que podem eventualmente ser alienados para a composição com os credores, como também se há necessidade, ou se é conveniente, obter novos recursos.

C o n t r a t o s d e a d ia n t a m e n t o d e c o n t r a t o d e c â m b io

O tratamento privilegiado concedido aos créditos decorrentes de contratos de adianta­mento de contrato de câmbio está relacionado ao interesse público na facilitação e bara­teamento do custo de financiamento aos exportadores. Em vista disso, a nova Lei de Falên­cia e Recuperação de Empresas manteve o privilégio, concedido pela legislação anterior, quanto ao cabimento de pedidos de restituição de quantias adiantadas por conta de contra­tos de câmbio em processos de falência.

Todavia, na hipótese de o devedor ajuizar pedido de recuperação judicial, o credor não poderá mais utilizar-se do pedido de restituição, tal como estava habilitado a fazer em processos de concordata preventiva. Nos termos da nova lei, o credor poderá tomar as me­didas que teria contra o devedor tal como se este não estivesse em processo de recuperação judicial. Em outras palavras, a distribuição e o deferimento do pedido de recuperação judi­cial não alteram os direitos do credor por contrato de adiantamento de câmbio.

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Aspectos relevantes do instituto da recuperação judicial... 95

C o n t r a t o s d e a l ie n a ç ã o f id u c iá r ia o u a r r e n d a m e n t o m e r c a n t il

A nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas prevê a prevalência das condições contratuais dos credores decorrentes de operação de leasing (arrendamento mercantil) ou garantidos por alienação fiduciária em caso de recuperação judicial do devedor. Em outras palavras, como regra geral, tais credores podem lançar mão, a qualquer tempo, das medi­das judiciais necessárias para reaver os bens alienados fiduciariamente ou arrendados.

A única exceção a essa regra geral diz respeito ao impedimento de retirada de bens de capital essenciais à atividade do devedor pelo prazo de 180 dias, contados do deferimento do processamento da recuperação judicial, que corresponde ao período de suspensão das ações e execuções em face do devedor. Não obstante, encerrado tal período, independente­mente do desfecho do pedido de recuperação judicial, os respectivos credores terão o direi­to de proceder à retirada e alienação dos bens para a satisfação dos seus créditos, na hipó­tese de o devedor estar inadimplente com suas obrigações contratuais.

C o n c l u s ã o

De todo o exposto, conclui-se que, por meio do instituto da recuperação judicial, as empresas e os empresários em dificuldades financeiras têm à sua disposição mecanismo jurídico efetivamente apto, legítimo e seguro para reorganizar suas atividades, reestrutu­rar suas operações e equacionar suas dívidas, de modo a permitir sua reabilitação econô- mico-financeira, mediante o pagamento de seus credores e a manutenção de suas ativida­des. Verifica-se que o legislador procurou flexibilizar o quanto possível o procedimento de recuperação judicial, para que o devedor possa propor um plano moldado à sua realida­de, que seja factível para a recuperação de seu negócio.

Para tanto, espera-se que o instituto seja compreendido e utilizado pelos operadores do direito de maneira ampla, observados os seus aspectos relevantes, a fim de permitir a efetiva realização do principal objetivo da nova Lei de Falência e Recuperação de Empre­sas, que se desnuda na recuperação e manutenção da empresa devedora, enquanto ente economicamente organizado, viável e produtivo.

[ Breve cu rrícu loLuiz F e r n a n d o V a le n te d e Paiva Sócio e coordenador da área de recuperação de empresas e fa­lências de Pinheiro Neto Advogados. Integrou a comissão interministerial que deu redação final à nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas.

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Fu n d o s de in v est im en t o emEMPRESAS EM RECUPERAÇÃO

Luiz Leonardo Cantidiano

Desejo salientar, desde logo, que o novo diploma legal, além de trazer soluções novas e modernas para permitir a recuperação de empresas, em meu juízo, também trará benefícios para o nosso mercado de capitais.

Todos aqueles que, de um modo ou de outro, estiveram recentemente envolvidos em operações de recuperação de empresas — além de se defrontarem com a circunstância de inexistir em nosso sistema legal um regime que permitisse segregar as parcelas viáveis da empresa que atravessa problemas de liquidez ou de insuficiência patrimonial, incluindo-se a substituição dos detentores de controle acionário, para dar continuidade aos segmentos do negócio que têm perspectiva de crescimento — também encontraram dificuldades na obtenção de novos recursos capazes de permitir o soerguimento da empresa.

Os investidores, capazes de destinar recursos novos para permitir a recuperação da empresa viável, eram reticentes em participar da operação de recuperação, em primeiro lu­gar pelo risco de contaminação com os problemas decorrentes da situação delicada em que a empresa se encontrava; ademais, inexistiam mecanismos adequados de mercado que pu­dessem viabilizar a captação de novos recursos.

Estou absolutamente convencido de que, para a consolidação e o crescimento do mer­cado de capitais, necessitamos de empresas saudáveis, saneadas, aptas a desenvolver seus negócios de forma continuada. De outro lado, temos plena consciência de que, para recupe­rar empresas, o país depende, e muito, de um mercado de capitais vigoroso e ativo, que possa prover recursos necessários aos investimentos a serem realizados.

Inúmeras são as políticas de investimento possíveis para um fundo de investimento em títulos e valores mobiliários. Das estratégias passivas de replicação de índices de mer­cado aos fundos de administração ativa que enfocam setores empresariais específicos, o mercado brasileiro de fundos oferece hoje aos investidores uma gama de alternativas com­parável à encontrada nos mercados mais desenvolvidos. Esse cardápio variado reflete o crescimento explosivo da indústria de fundos ao longo da década de 1990. De dezembro de 1989 a dezembro de 1999, o patrimônio líquido dos fundos de investimento domésticos cresceu 259 por cento em termos reais. Ao final de 2002, mesmo após a crise de confiança que temporariamente se abateu sobre nosso mercado, o patrimônio líquido dos fundos do­mésticos atingiu 27 por cento do PIB.

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Fundos de investimento em empresas em recuperação 97

Apesar da grande variedade de produtos que a indústria brasileira de fundos ofere­ce, fundos de investimento em empresas em recuperação ainda são uma novidade entre nós. No Brasil, a política de investimento mais próxima de que temos notícia é representa­da pelos fundos de liquidez, também chamados 'fundos de governança'. Aplicam nesses fundos, em geral, grandes investidores institucionais, como fundações de previdência pri­vada. A aplicação grande parte das vezes não se dá em dinheiro, mas com o aporte de ações de emissão de companhias abertas que o cotista já possuía em carteira. O que ele busca do administrador do fundo é um conjunto coerente e continuado de iniciativas com a gestão das companhias emissoras, no sentido de uma melhoria de seus padrões de go­vernança corporativa. Essa melhoria tende a refletir-se numa valorização das ações da em­presa e, conseqüentemente, das cotas do fundo. Os poucos fundos desse tipo em operação no Brasil surgiram no final da década passada.

Os fundos de investimento em empresas em recuperação, como conhecidos no mercado internacional, seguem no entanto uma política mais específica. Esses fundos buscam ativamente valores mobiliários — em especial títulos de dívida — de empresas em situação pré-falimentar ou concordatária, os quais freqüentemente são vendidos com deságios significativos. É uma estratégia de investimento denominada distress investing, que se popularizou entre hedgefunds na recessão americana do início dos anos 90. Além de alta alavancagem, os hedgefunds caracterizam-se pela adoção de estratégias de inves­timento altamente especializadas, como arbitragens estatísticas ou de valor relativo, ou apostas macroeconômicas em vários mercados globais simultaneamente.

Outro grupo de estratégias seguidas por hedgefunds é conhecido como event-driven: es­tratégias de investimento oportunistas que procuram aproveitar-se de eventos raros na vi­da de uma companhia de capital aberto e com alto impacto potencial sobre o preço de seus valores mobiliários. Fusões, aquisições, reestruturações patrimoniais, ofertas públicas de re- compra de ações exemplificam o tipo de eventos corporativos que os administradores des­ses hedgefunds procuram antever.

Como se sabe, a nova lei substitui as concordatas preventivas e suspensivas pelo pro­cesso de recuperação judicial, que visa assegurar a continuidade dos negócios das empre­sas viáveis, a preservação dos empregos e o pagamento dos credores. Ainda assim, muito naturalmente, o processo de recuperação judicial de uma companhia aberta, ou sua mera sugestão, é um evento de enorme influência sobre o preço de mercado de seus valores mo­biliários. Nesse sentido, o distress investing constitui uma política de investimento do tipo event-driven. O primeiro fator que pode tomar interessantes os valores mobiliários de emis­são de companhias em processo de recuperação é a rápida depreciação de seu valor de mer­cado, muitas vezes exagerada num primeiro momento, devido a uma resposta emocional de acionistas e credores.

Um administrador de fundos pode, em relação aos credores e outros investidores, ter vantagens comparativas em termos de análise da companhia e de sua viabilidade. Além dis­so, fundos de investimento usufruem tipicamente de maior grau de liberdade na composi­ção de sua carteira do que outras classes de investidores ou credores. Fundos de pensão, por exemplo, podem ter limitações estatutárias que os impedem de manter carteira, e menos ain­da de investir em ações ou debêntures de companhias em recuperação judicial. Bancos co­merciais, por outro lado, podem preferir desfazer-se desses papéis, que podem prejudicar seus limites de crédito e seu rating em outras instituições financeiras, e liberar assim recur­sos para outras operações. Fatores estruturais como esses prejudicam a formação de preço desses valores mobiliários, criando oportunidades para fundos especializados.

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98 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

No mercado internacional, não apenas os hedgefunds têm se utilizado do distress inves- ting. Alguns fundos de participação, conhecidos como fundos de private equity, também abraçaram com sucesso essa política de investimento. Esses fundos, com sua cultura mais participativa na administração da empresa, podem representar um investimento com ca­racterísticas mais benignas para a companhia em processo de recuperação, as quais acredi­tamos que deva ser incentivada até mesmo pelos órgãos reguladores.

No Brasil, os fundos de investimento em participações foram recentemente regulados pela Comissão de Valores Mobiliários, abrindo-se a oportunidade para a criação de fundos com características semelhantes àquelas aqui referidas. A Instrução CVM nü 391, de 16 de julho de 2003, em seu artigo 2C, define apropriadamente o fundo de investimento em parti­cipações como uma comunhão de recursos destinados à aquisição de ações, debêntures, bô­nus de subscrição ou outros títulos e valores mobiliários conversíveis ou permutáveis em ações de emissão de companhias, abertas ou fechadas, participando do processo decisório da companhia investida, com efetiva influência na definição de sua política estratégica e na sua gestão, notadamente mediante a indicação de membros do Conselho de Administração.

A instrução confere ao fundo grande flexibilidade na forma pela qual essa participa­ção no processo decisório da companhia investida pode ocorrer: pela detenção de ações que integrem o respectivo bloco de controle, pela celebração de acordo de acionistas ou, ainda, pela celebração de ajuste de natureza diversa ou adoção de procedimento que assegure ao fundo efetiva influência na definição da política estratégica e na gestão da companhia.

Além disso, no caso de a companhia investida ser fechada (uma novidade na aludida regulação), a instrução estabelece uma série de práticas de governança que ela deve seguir. Os fundos de investimento em participações dessa maneira constituem-se no novo arca­bouço regulatório, um perfeito veículo para a criação de fundos especializados em empre­sas em fase de recuperação judicial.

A criação desses novos fundos cumprirá o duplo objetivo de, por um lado, aumentar a liquidez e a boa formação de preços no mercado de valores mobiliários e, por outro, criar no país uma inédita e salutar parceria entre investidores e gestores empresariais na fase comple­xa, desafiadora, mas rica em oportunidades, da recuperação judicial de uma companhia.

Tendo em vista tal perspectiva, a Instrução 391 estabelece que, decidindo o fundo aplicar recursos em companhias que estejam, ou possam estar, envolvidas em processo de recuperação e reestruturação, será admitida a integralização de cotas em bens ou direitos, incluindo-se créditos, desde que tais bens e direitos estejam vinculados ao processo de re­cuperação da sociedade investida e desde que o valor deles esteja respaldado em laudo de avaliação elaborado por empresa especializada.

Manifesto minha confiança no papel extremamente relevante que o mercado de capi­tais pode e deve desempenhar no processo de recuperação das empresas nacionais que, sendo viáveis, atravessam dificuldades decorrentes de inadequada estrutura de capital ou de deficiência em sua gestão.

B reve cu rrícu loLuiz Leonardo Cantidiano Formado em direito no ano de 1972, na então Universidade do Es­tado da Guanabara. É sócio de Motta, Fernandes Rocha Advogados, com escritórios no Rio de Janeiro e em São Paulo, desde dezembro de 1980, atuando preponderantemente nas áreas de di­reito societário e mercado de capitais. De 15 de julho de 2002 a 27 de maio de 2004 foi presiden­te da Comissão de Valores Mobiliários. Também foi presidente do Cosra — Council of Securities Regulators of the Américas.

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A nova Lei de Fa lência e Recuperação

de Empresas e a CLT — CONFLITOS DE INTERPRETAÇÃO

Luciano Viveiros

As condições precárias e ultrapassadas a que eram submetidas as empresas em difi­culdade financeira para honrar seus compromissos com o Fisco, os empregados e fornecedores sempre se constituíram em uma missão irrealizável.

Credita-se como tardia a criação de uma legislação moderna capaz de reconhecer que a atividade empresarial no Brasil sobrevivia, enfrentando os descaminhos de um sistema econômico arcaico, cambiante e mal planejado que, por inúmeras oportunidades, lançou o país em aventuras terríveis e desastrosas.

Com o intuito de permitir maior flexibilidade para enfrentar todas as crises, internas e externas, a Lei nü 11.101/05 veio ao mundo jurídico em momento oportuno, com a econo­mia estável e ajustada à realidade dos mercados internacionais.

Por que em momento oportuno? Exatamente pela necessidade de adaptar-se às condições favoráveis, pois seria arriscado inferir uma legislação de características sociais e econômicas em meio a uma situação adversa, que resultasse em permissivo possível ao inadimplemento de dí­vidas sociais com a classe laborai. Seria o fermento necessário para uma convulsão social que poderia isolar o Brasil definitivamente dos avanços comuns aos países emergentes.

A lei de recuperação — em contrário senso — também poderá se constituir em válvu­la de escape para maus administradores que, amparados em um pseudoprocesso de recu­peração, possam procrastinar dívidas sociais e trabalhistas.

Nessa esteira surgem sérias controvérsias na interpretação e aplicação da lei de recu­peração. Senão vejamos. A CLT é uma lei especial, fruto de um decreto-lei de Vargas que restou, por conseqüência, criando uma Justiça Especial. Observe-se que as dívidas de natu­reza trabalhista são prescritas como privilegiadas, e sempre encabeçaram a ordem de crédi­tos em falência, desde a lei anterior, com os títulos vinculados aos acidentes de trabalho — hoje da competência da Justiça do Trabalho (EC 45/04, art. 114 da CF). Especificamente, ve­rifica-se no art. 449 da CLT a prioridade dos créditos trabalhistas na concordata em caso de falência. Será crível entender que a Justiça do Trabalho possa concluir pela substituição da vetusta concordata pelo neologismo 'recuperação extrajudicial', considerando a possibili­dade de tornar sem efeito qualquer rescisão de contrato de emprego e a conseqüente paga de indenização sob a metade dos salários devidos ao empregado. E, no mesmo teor dessa construção jurídica, será aceitável o cumprimento do § 1* do mesmo comando legal no que tange à necessidade de honrar a totalidade das indenizações trabalhistas devidas.

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100 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

Trata-se de norma específica que deve ser interpretada em favor do empregado pela própria natureza legislativa de proteção ao hipossuficiente que norteia a legislação do tra­balho, CLT. Nesse sentido, acentua-se o compromisso de que as empresas que optarem pe­la recuperação sejam compelidas a pagar os créditos trabalhistas na totalidade, indepen­dentemente da possibilidade limitada a 150 salários mínimos por credor (inciso I do art. 83 da Lei de Falência e Recuperação de Empresas), como também ignorar a suspensão de 180 dias do processo em curso para que a empresa interessada apresente plano de recuperação (§ 4Ü do art. 6Ü da Lei nQ 11.101/05).

Tempestivamente, não se pode olvidar que o sistema de penhora on-line, fruto do con­vênio Bacenjud entre Banco Central e Justiça do Trabalho, possa facilitar a execução ex offi- cio pelas varas de Trabalho de forma inquisitiva sobre as contas bancárias das empresas no total de depósitos efetivados, sempre com amparo na tese de que a Lei Especial (DL nc 4.542/43 — CLT) prevalecerá sobre a Lei Geral (Lei n~ 11.101/05 — Falências).

Quanto a esse conflito de entendimentos, só será possível mensurá-lo após os casos concretos se fixarem perante os tribunais, e a jurisprudência dominante das cortes superio­res passar a ditar as novas regras que serão absorvidas pelo Judiciário, ao longo do tempo.

Ademais, a Justiça do Trabalho tem sido implacável nas execuções dos processos sob sua tutela, atendendo aos requerimentos para penhora de faturas dos clientes do execu­tado e sobre bens que implicam na manutenção das atividades empresariais, de maneira que obrigue ao pagamento imediato da dívida, sob pena de paralisação total da empresa, sendo mister ressalvar que essas prerrogativas se coadunam com o exposto no § 2~ do art. 6Ü da própria lei de falência. E, em última hipótese, tem havido por parte dos advogados de reclamantes o artifício de apresentar pedido de falência para as empresas que — ina­dimplentes com créditos de natureza trabalhista — não venham honrando compromissos referentes as pagas salariais com seus empregados. Essa fórmula busca impingir legal­mente a possibilidade de acordo entre as partes, hoje tornando-se comum em hostes tra­balhistas. Tem gerado, porém, um clima de intensa insatisfação por parte dos empresá­rios que tentam sobremaneira sobreviver às intempéries das dificuldades financeiras que cercam suas atividades e, sem dúvida, prejudicado a possibilidade de recuperação extra­judicial com base na Lei nc 11.101/05.

Na verdade, a nova lei vem ao mundo jurídico estabelecer uma nova ótica quanto ao interesse do Estado em cumprir sua missão social e, de maneira objetiva, encher os cofres públicos com as dívidas tributárias e fiscais das empresas devedoras. Mais, principalmen­te, uma forma de monitorar potenciais golpes financeiros, com a desculpa de que o Esta­do estaria disposto a auxiliar na recuperação da empresa, sempre amparado na segunda intenção em receber impostos.

Em conclusão, resta reafirmar o papel social a que se destina a Lei nQ 11.101/05 na ga­rantia e manutenção da atividade empresarial especialmente prescrita no art. 47, e a função seletiva de separar o trabalhador dos infortúnios da fraude ou da má gestão que, conse­qüentemente, possam atingir a natureza alimentar e o papel do Estado na defesa do traba­lho e da continuidade do capital, sem jamais permitir um prejuízo social ao trabalhador que propugna pela continuidade da empresa como fonte de eterna sobrevivência humana.

B reve c u rr íc u lo

Luciano Viveiros Advogado trabalhista e professor convidado da Fundação Getulio Vargas, Es­cola Superior de Advocacia da OAB/RJ e do Centro Universitário da Cidade — UniverCidade.

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O INSTITUTO DA FALÊNCIA NO NOVO REGIME BRASILEIRO

Flavia Saraiva Ayd G isela Pim enta G adelha

No Direito Romano antigo, o regime da insolvência trazia terríveis conseqüências ao devedor, que podia ser vendido como escravo ou até mesmo perder sua vida, sen­do seu corpo repartido conforme o número de credores.

Esse sistema perdurou até a Lei Poetelia Papiria (428 a.C.), que aboliu o regime de exe­cução pessoal em prol de um sistema de constrição patrimonial.

Na Idade Média, com o incremento do comércio, a tutela estatal ganhou destaque, sur­gindo, a partir daí, o instituto da falência.1 Com isso, os credores passaram a sujeitar-se às regras impostas para efeito de habilitação dos seus créditos em juízo.

O Código napoleônico foi o primeiro a restringir os efeitos da falência à figura do de­vedor comerciante e a estabelecer regras mais favoráveis aos devedores honestos. Essa in­fluência se fez presente na legislação de diversos países, incluindo o Código Comercial Bra­sileiro de 1850 e, posteriormente, o Decreto-lei ne 7.661/1945.

O objetivo primordial da legislação falimentar era a satisfação dos credores, ainda que à custa do encerramento da atividade exercida pelo devedor. Essa concepção, porém, não poderia ter vida longa.

Afinal, o fim de uma atividade empresarial não prejudica apenas os credores, mas também a sociedade como um todo. Na medida em que as empresas pagam tributos, ge­ram emprego e renda, exercem uma relevante função social.

Os interesses dos credores não podiam mais sobrepor-se às causas de maior relevân­cia. Era imprescindível que houvesse um maior esforço do legislador no sentido de reer­guer as empresas economicamente viáveis e otimizar a utilização dos bens arrecadados, dando-lhes uma fruição econômica facilitadora dos objetivos do processo falimentar.

Nesse sentido, na década de 1990, diversos países deram início à reforma da legislação vigente. O primeiro procedimento de recuperação judicial surgiu nos Estados Unidos, em 1867, conhecido como Lei das Companhias Ferroviárias, que tratava da prevenção da que­bra dessas empresas mediante meios de reorganização e composição de débitos. Posterior­

1 A origem do termo 'falência' deriva do verbo latino fallere, que significa falsear, trapacear, enganar. Também eram utilizadas outras expressões correlatas: bancarrota, quebra, que guardavam relação com a praxe adotada pe­los credores de quebrar os bancos nos quais os falidos expunham suas mercadorias para venda.

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102 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

mente, em 1898, a tutela da lei foi ampliada para atingir outros segmentos, por meio do Bankruptcy Act, aprimorado sucessivas vezes em 1938, em 1978 e, finalmente, em 1994, após consolidação no Bankruptcy Code.

Foram modernizadas também as leis italiana (Lei nc 223/1991 e Decreto-lei nc 270/1999); francesa (Lei nü 94-475/94), portuguesa (Decreto-lei n2 132/1993), alemã (Insolvenzortnung, de 1999) e espanhola (Lei nü 22/2003).

No Brasil, a reforma teve início por meio da apresentação do Projeto de Lei n~ 4.376/1993, que após tramitar por quase 11 anos no Congresso Nacional deu origem à Lei n~ 11.101, sancionada no último dia 9 de fevereiro de 2005.

A referida lei surge, então, com o objetivo de viabilizar a superação da situação de cri­se econômico-financeira, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora e o emprego dos trabalhadores, compatibilizando-os com os interesses dos demais credores.

A partir daí, importantíssimas mudanças foram introduzidas no direito falimentar brasileiro. A concordata, por exemplo, foi substituída pelo instituto da recuperação,2 e o processo falimentar se tomou muito mais dinâmico.

Dentre os principais pontos pertinentes à falência, merecem destaque: ordem de clas­sificação dos créditos; exigência de valor mínimo para formulação do pedido de falência; ampliação do prazo para contestação e depósito elisivo; maior agilidade na realização do ativo; ausência de sucessão tributária e trabalhista. Passemos, então, a examiná-los.

O r d e m d e c l a s s if ic a ç ã o d o s c r é d it o s

A nova lei estabelece a seguinte ordem de prioridade para recebimento dos créditos: créditos derivados das relações de trabalho até o limite de 150 salários mínimos por traba­lhador e créditos oriundos de acidente de trabalho; créditos com direitos reais de garantia; créditos tributários; créditos com privilégio especial; créditos com privilégio geral; créditos quirografários; multas contratuais e penas pecuniárias; créditos subordinados.

A ordem de classificação de créditos ora estabelecida traz inúmeras vantagens em re­lação à anterior, sobretudo em razão da inversão das posições dos créditos tributários pelos créditos com garantia real. Essa simples inversão poderá em muito colaborar para a redu­ção do chamado spread bancário,' já que o grande peso de sua composição está justamente no risco da concessão do crédito. Assim, se os credores com garantia real receberem antes mesmo do Fisco, suas chances de recebimento aumentarão e, conseqüentemente, o risco da inadimplência será reduzido.

Já em relação à limitação imposta aos créditos derivados das relações de trabalho, o as­sunto tem suscitado muita polêmica. Recentemente, a propósito, a Associação Nacional das Profissões Liberais ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nü 3.424/2005, alegando haver violação do princípio constitucional da isonomia. O Supremo Tribunal Federal, toda­via, ainda não se pronunciou sobre a matéria.

: Moderno mecanismo de salvaguarda das empresas economicamente viáveis, aplicável mediante prévia aprova­ção de um plano flexível, sem a rigidez da chamada 'moeda concordatária', com maior participação dos credores.Representa a diferença entre a taxa que os bancos despendem para captar recursos no mercado — o que pagam para os aplicadores — e a taxa de juros cobrada para emprestar recursos aos clientes.

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O instituto da falência no novo regime brasileiro 103

Ex ig ê n c ia d e v a l o r m ín im o pa r a f o r m u l a ç ã o d oPEDIDO DE FALÊNCIA

No regime do Decreto-lei nu 7.661/1945 não havia nenhuma exigência acerca de valor mínimo para efeito de requerimento de falência, de forma que qualquer título protestado poderia ensejar esse pedido. Com isso, muitos credores, em vez de ingressarem em juízo com uma ação de cobrança, acabavam utilizando equivocadamente a falência para esse fim.

Já a Lei n~ 11.101/2005 passou a exigir como condição sine qua non ao requerimento de falência a exibição de título(s) que perfaz(çam) pelo menos 40 salários mínimos, isolada ou conjuntamente, apresentado(s) por um ou mais credores.

A nova regra teve por intuito retirar do pedido de falência a característica de simples medida coercitiva, de forma a evitar sua utilização como ação de cobrança.

A m p l ia ç ã o d o p r a z o pa r a c o n t e s t a ç ã o e d e p ó s it o e l is iv o

Outra importante mudança trazida pela nova lei diz respeito à ampliação do prazo de contestação do requerido no pedido de falência, que passou de 24 horas para 10 dias.

Por conseguinte, considerando-se que o devedor pode, no prazo da contestação, efe­tuar o depósito em juízo do valor da dívida com a finalidade de evitar a decretação da fa­lência, esse prazo — para o depósito elisivo — também foi ampliado.

Note-se, contudo, que, diferentemente do Decreto-lei ne 7.661/1945, a nova lei prevê, em seu artigo 98, a necessidade de o devedor depositar não apenas o valor correspondente ao total do crédito, mas também esse valor acrescido de correção monetária, juros e hono­rários advocatícios. Tal entendimento, que já vinha sendo adotado por nossos tribunais, foi finalmente positivado no Ordenamento Jurídico brasileiro.

M a io r a g il id a d e n a r e a l iz a ç ã o d o a t iv o

No decreto-lei de 1945, a realização do ativo apenas era iniciada após o longo proces­so de verificação de créditos e a tramitação do inquérito judicial. Antes disso, nenhum bem, com exceção dos perecíveis, podia ser alienado.

Esse trâmite, todavia, se mostrava incompatível com as necessidades da vida moder­na, e a conseqüência era a pior possível: diversos bens acabavam se deteriorando, pois não podiam ser vendidos fora do momento processual adequado.

O artigo 139 da nova lei passou então a autorizar a realização do ativo tão logo se con­clua a arrecadação dos bens. Ou seja, o legislador tornou a realização do ativo muito mais ágil, de forma a evitar a depreciação dos bens que o compõem, colaborando assim para que os credores recebam mais rapidamente seus créditos.

” A u s ê n c ia d e s u c e s s ã o t r ib u t á r ia e t r a b a l h is t a

De acordo com a nova lei falimentar, o adquirente da empresa, por meio ordinário de realização do ativo, deixa de ser sucessor do falido. Ou seja, o objeto da alienação em hasta pública (leilão, propostas ou pregão) estará livre de qualquer ônus, e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, incluindo-se as de natureza tributária, as deri­

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104 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

vadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho (artigo 141, inci­so II da Lei nc 11.101/2005).

Nesse sentido, os empregados do falido que porventura forem contratados pelo arre­matante da empresa serão admitidos mediante novos contratos de trabalho.

Todavia, para que a Lei nQ 11.101/2005 pudesse entrar em vigor sem incompatibilida­des com as demais normas do nosso Ordenamento Jurídico, e assim ser efetivamente cum­prida, foi necessário proceder a algumas alterações na Lei n~ 5.172/1966 — Código Tributá­rio Nacional, o que foi feito pela Lei Complementar nü 118/2005.

Como se sabe, as sociedades podem sofrer profundas modificações estruturais por força de transformação, fusão, incorporação ou cisão, valendo destacar que, pela redação anterior do CTN, as empresas resultantes de tais processos permaneciam responsáveis pe­lo pagamento dos tributos devidos e não pagos pelas sucedidas.

A nova redação inserida no artigo 133 do Código elimina o risco de sucessão na hipó­tese de alienação judicial em processo de falência, de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial, salvo, é claro, quando o adquirente for sócio da socie­dade falida, parente ou agente do falido.

Dessa forma, ao excluir expressamente a sucessão trabalhista e tributária, a Lei nc 11.101/2005 amplia a possibilidade de aquisição do negócio do falido ou da sociedade fali­da, bem como as oportunidades de satisfação dos credores.

C o n c l u s ã o

Não obstante a exaustiva e complexa tramitação do projeto que deu origem à Lei rr 11.101/2005, com recebimento de excessivas emendas e críticas ao longo de quase 11 anos no Congresso Nacional, a nova lei, em vigor desde 9 de julho de 2005, trouxe indiscutivel­mente celeridade e eficiência aos procedimentos falimentares, de forma a propiciar às em­presas a realização de sua função social, devendo portanto ser considerada um avanço.

R e f e r ê n c ia s b ib l io g r á f ic a s

Amador Paes de Almeida, Curso de falência e concordatas. São Paulo: Saraiva, 2002.Fabio Ulhoa Coelho, Comentários à Nova Lei de Falências. São Paulo: Saraiva, 2005.Rubens Requião. Curso de Direito Falimentar, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1988.

B reve cu rrícu loFlavia Saraiva Ayd Assessora de assuntos legislativos da Firjan, pós-graduada em Direito da Eco­nomia e da Empresa pela FGV, mestre em direito pela Universidade Antonio de Nebrija, Madri, Es­panha.

Gisela Pimenta Gadelha Advogada da Firjan, pós-graduada em Direito da Economia e da Em­presa pela FGV, pós-graduada em Propriedade Intelectual pela PUC-RJ.

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P e q u e n o s n e g ó c io s ,EMPREENDEDORISMO E A NOVA LEI

de Fa lên c ia e R ec u per a ç ã o de Em presa s : c o n sid er a ç õ es so bre o

B rasil c o n t e m p o r â n e o

Fátima Bayma Francisco Marcelo Barone

Vive-se um período muito singular na história do mundo, no qual a característica mais marcante é o fato de que grande parte dos acontecimentos científicos de todos os tempos está se processando recentemente. O conhecimento aumenta com grande aceleração. Há pouco dizia-se que ele dobrava a cada 18 meses e um ano, mas com freqüên­

cia essas taxas de crescimento se alteram. O mundo está coletivamente mais inteligente, en­tretanto mais complexo. São muitos os livros catalogados, as home pages na Internet, as te­ses de doutorado, os artigos e tantos mais que apresentam um testemunho desse esforço (Bayma, 1994,2005).

No bojo do ritmo intenso dessas mudanças está o extraordinário avanço da ciência e da tecnologia, ora dando origem, ora sendo o resultado da expansão do conhecimento.

As transformações sociopolíticas e econômicas ocorridas nas últimas três décadas, as­sociadas ao desenvolvimento da tecnologia da informação e da microeletrônica, mudaram o panorama global.

A globalização está reformulando a paisagem competitiva, levando novas tecnologias, mercados e indústrias a novos critérios de sucesso e sobrevivência. Ao aumentar a veloci­dade dos ciclos de vida da indústria, acelera o passo e o ritmo em que as firmas desenvol­vem novas tecnologias, produtos e serviços, em escala global, para estarem competitivas. A abertura dos mercados e a digitalização estão empurrando grandes corporações, pequenas e médias empresas para além das fronteiras nacionais, em uma disputa para alcançar novos países e regiões (Barkema, Baum e Manix, 2002: 923).

Sob esses signos, temos no Brasil — a partir do início da década de 1990, com a aber­tura comercial, iniciada no governo Collor de Mello (1990-1992), e a subseqüente reestrutu­ração produtiva que atingiu boa parte do nosso parque industrial — conseqüências sobre a economia e, principalmente, sobre o mercado de trabalho. Nesse cenário, os pequenos ne­gócios passaram a exercer papel fundamental no equilíbrio dinâmico e no desenvolvimen­to da economia.

Este artigo busca contextualizar, no Brasil contemporâneo, inserido em um mundo de rápidas mudanças, questões relativas à gestão dos pequenos negócios, ao empreendedoris- mo e à nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas.

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106 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

G l o b a l iz a ç ã o e e m p r e e n d e d o r is m o

Globalização, abertura comercial e reestruturação produtiva. Três variáveis determi­nantes de algumas das especificidades e similaridades dos países da América Latina, tais como concentração de renda, precarização das relações de trabalho, profundas desigualda­des entre gêneros e, principalmente etnias, primazia do capital financeiro, violência urbana e crescente no meio rural.

Sobreviver nessas condições, especialmente para aquelas empresas situadas na base da pirâmide empresarial, não é tarefa fácil. Como resultado da correlação das três variáveis determinantes supracitadas, temos um ambiente instável que, aliado à assimetria das infor­mações, gera uma necessidade contínua de aprendizado e inovação, que tem como externa­lidade a competição entre as unidades econômicas. Duas interpretações podem ser feitas a partir dessa constatação. A primeira considera o binômio aprendizado-inovação parte de um círculo virtuoso da economia, em que a competição é uma externalidade positiva dele. Neste texto (segunda interpretação), que tem como pedra angular os pequenos negócios, considera-se o binômio aprendizado-inovação parte de um círculo vicioso, haja vista que essas unidades econômicas têm pouco acesso (ou, na maioria dos casos, nenhum acesso) a informações úteis à gestão e ao desenvolvimento de seu empreendimento, dificultando a geração e difusão do conhecimento e, por conseguinte, o aprendizado. Sem aprendizado, não há inovação gerencial (levando-se em consideração que a tecnologia é quase uma uto­pia), e a competição, em um ambiente com essas características, tem efeitos nefastos (exter­nalidade negativa).1

Por outro lado, de acordo com Stoner e Freeman (1985:117), essas características am­bientais (econômicas e sociais) podem favorecer e/ou estimular o empreendedorismo. Três pensadores nos fornecem uma perspectiva histórica da gênese do estudo desse tema. Ri- chard Cantillon e Jean-Baptiste Say, no século XVIII, afirmavam, respectivamente, que em­preendedores eram oportunistas, correndo riscos visando o lucro, comprando produtos (geralmente agrícolas) para processá-los e vendê-los por preços maiores, e que o desenvol­vimento econômico se dá em função da criação de novos empreendimentos, sendo os em­preendedores agentes dessa mudança (Vogel, 2004: 2).

Porém, foi Joseph Schumpeter, a partir da teoria do desenvolvimento econômico (1911), quem definiu que a essência do empreendedorismo está na percepção e no aprimo­ramento de novas oportunidades no âmbito dos negócios, criando uma nova forma de uso dos recursos, sendo estes deslocados do seu emprego tradicional para novas combinações.

Do marco schumpeteriano até o início do século XXI, o estudo do tema, principalmente ligado às ciências sociais, disponibiliza um conjunto de matizes, sendo difícil precisá-lo. Ba- rone e Zouain (2005) apresentam outra definição para empreendedorismo: é a capacidade de interagir com o ambiente, identificando vantagens competitivas, para desenvolver ativida­des, inovadoras ou não, que gerem riqueza.

Esse processo de destruição criativa (Schumpeter, 1911) tem contribuído de forma signi­ficativa no combate à pobreza e na inclusão social, incluindo função anticíclica em períodos de recessão, mediante a geração de ocupação e renda nos países da América Latina, como o Brasil.

1 Na página 110 são apresentadas, de forma resumida, as conseqüências dessa externalidade negativa aos peque­nos negócios no Brasil.

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Pequenos negócios, empreendedorismo e a nova Lei... 107

AS PIRÂMIDES SOCIAL E EMPRESARIAL

Duas estruturas lógicas (pirâmides social e empresarial) fornecem um referencial ana­lítico para a categorização e compreensão do universo dos pequenos negócios no Brasil contemporâneo.

A definição de pirâmide social (econômica) utiliza o conceito de camadas de consu­mo, com base na renda anual per capita do indivíduo/unidade familiar, extrapolada a par­tir da paridade do poder aquisitivo nos Estados Unidos da América (Prahalad e Stuart, 2002:18). No topo da pirâmide, encontra-se a camada 1, onde estão entre 75 e 100 milhões de consumidores, com renda per capita anual superior a 20 mil dólares, os mais ricos do mundo (classe alta e média dos países desenvolvidos e as elites dos países em desenvolvi­mento). Nas camadas 2 e 3, com renda per capita anual variando entre 20 mil e 1,5 mil dó­lares, encontram-se os consumidores pobres dos países desenvolvidos e a classe média dos países em desenvolvimento, um universo de 1,75 bilhão de indivíduos. Na base, a cama­da 4, com 4 bilhões de indivíduos e renda anual per capita inferior a 1,5 mil dólares; destes, cerca de 1 bilhão vivem abaixo da linha da pobreza (renda per capita inferior a 1 dólar por dia). No Brasil, em torno de 50 milhões de pessoas se enquadram nessa camada, de acor­do com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 1999.

Três conceitos são utilizados para definir a pirâmide empresarial brasileira: a catego­rização universal por porte: micro, pequena, média e grande empresa; o critério do novo Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (Lei n~ 9.841/99) e sua atuali­zação pelo Decreto-lei n~ 5.028/04, que classifica as empresas de acordo com sua receita bruta anual e o de pessoas ocupadas, utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Es­tatística (IBGE) nos levantamentos dos censos e pesquisas socioeconômicas, anuais e men­sais. Segundo o Sebrae (2004), este decreto-lei abrange não somente os empregados, mais também os proprietários das empresas, como forma de dispor de informações sobre o ex­pressivo número de microunidades empresariais que não empregam trabalhadores, mas funcionam como importante fator de geração de renda para seus proprietários. A partir destes, temos então:

• Microempresa: unidade econômica com receita bruta anual inferior a US$ 173.502^ e/ou estabelecimentos industriais com até 19 pessoas ocupadas e, no comércio e na prestação de serviços, com até 9 pessoas ocupadas.

• Empresa de pequeno porte: unidade econômica com receita bruta anual superior a US$ 173.502 e igual ou inferior a US$ 853.252,80 e/ou estabelecimentos industriais de 20 a 99 pessoas ocupadas e, no comércio e na prestação de serviços, de 10 a 49 pessoas ocupadas.

Os pequenos negócios (micro e pequenas empresas — MPE) representam, segundo o IBGE, mais de 3,8 milhões de estabelecimentos formais, absorvendo 44 por cento da mão-de-obra empregada e gerando cerca de 20 por cento do produto interno bruto (PIB) nacional.

2 Os valores em dólar que citamos nesta página, bem como na página 110, correspondem à cotação: USS 1,00 = R$ 2,50.

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108 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

T e c n o l o g ia d a in f o r m a ç ã o

Pequenos negócios, empreendedorismo, globalização, pirâmides social e empresarial, variáveis dependentes e independentes que nos ajudam a interpretar melhor o modelo (ce­nário) que se configura. Em um mundo de rápidas mudanças, a tecnologia da informação funciona como uma 'liga', desempenha papel fundamental e perpassa todas as demais va­riáveis supracitadas.

O processo de globalização ocorre como culminância do processo histórico de expan­são do capitalismo, quando a tecnologia de informática se associou à de telecomunicações, diminuindo, a partir de então, as fronteiras existentes entre os países, independentemente de sua localização (Villa, 1995: 35). Nesse contexto de mercados imperfeitos, em que a tecnolo­gia da informação e a globalização assumem múltiplas faces, dependendo sempre de uma série de 'capacidades sociais', tem-se como conseqüência um mundo (o da era da informa­ção) marcado por inúmeras ambivalências, onde aflora a tendência de uma cisão da socieda­de local e global em uma camada on-line e um proletariado off-line (German, 2000:114). Essa dicotomia afeta diretamente os pequenos negócios que, em sua maioria, estão alijados desse processo (em que a tecnologia se insere no binômio aprendizado-inovação, transformando- o no trinômio aprendizado-tecnologia-inovação), formando uma camada off-line na base da pirâmide empresarial. Por outro lado, as vantagens de um mundo globalizado, tais como fle­xibilidade, portabilidade e o baixo custo de determinadas tecnologias, permitem a um sele­to número de pequenos empreendedores tornar-se competidores globais.

A revolução das tecnologias da informação atua redefinindo a estrutura da economia e da sociedade,3 levando à emergência do informacionalismo, que dá à tecnologia o papel de haste basilar de uma nova sociedade. Associado a esse conceito, Castells (1999) introduz outro, o de penetrabilidade, em que

[ ...] os registros históricos das revoluções tecnológicas mostram que todas, não so­mente a atual, são caracterizadas pela capacidade de penetrar em todos os domínios daatividade humana, não como fonte exógena de impacto, mas como o tecido em que essa ati­vidade é exercida. (Castells, 1999:50)

A nova revolução industrial ou segunda revolução industrial é entendida por Shaff (1990: 27) como a revolução da microeletrônica e da informática. Como derivada primeira (ou principal influência) na formação econômica das sociedades, temos o desemprego es­trutural, em razão da automação da produção e dos serviços, com impactos diferenciados nas esferas de trabalho dos países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Empiricamente, a relação entre o desenvolvimento tecnológico (inovações) e o nível de emprego tem sido bastante estudada e debatida. Algumas conclusões desses estudos são sistematizadas por Shaff (1990: 29):

• o ritmo das inovações tecnológicas vem se intensificando continuamente;• sua implementação técnica está aumentando, e a conseqüente pressão sobre o mer­

cado de trabalho;• diferenciação em relação à aceitação (e a conseqüente implementação) de novas tec­

nologias.

3 Variáveis ambientais destacadas por Stoner e Freeman (1985) que estimulam o empreendedorismo.

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Pequenos negócios, empreendedorismo e a nova Lei... 109

Suas conseqüências na esfera da estrutura econômica da sociedade ou na configura­ção de suas novas características sociais perpassam pelo desemprego estrutural e como as sociedades reagem em razão da exacerbação dessa nova variável. O autor é veemente ao afirmar que o desemprego não pode ser solucionado pelo auxílio-desemprego, principal­mente para jovens (Shaff 1990: 28).

Apesar de uma visão predominantemente eurocêntrica em Sociedade informática (1990), suas idéias apresentam uma correlação forte com o contexto sociopolítico e econô­mico do Brasil contemporâneo, especialmente no que tange à base da pirâmide social e sua imagem refletida em um espelho côncavo (base da pirâmide empresarial). Em síntese, não serão as políticas públicas assistencialistas universais e/ou focalizadas que minimizarão os impactos do desemprego estrutural, e sim o estímulo ao desenvolvimento das habilida­des empreendedoras, principalmente nos jovens, entre 25 e 34 anos que, segundo o Global entrepeneurship monitor (GEM) de 2004, são as que mais apresentam potencial para a cria­ção de novos negócios.

Re visitando um documento intitulado The triple resolution, de 1964, elaborado por The Santa Barbara Center of the Study of Democratic Institutions, comitê da ad hoc interdiscipli- nar, composto por 37 especialistas, entre os quais vários prêmios Nobel, o autor evidencia outra conseqüência da segunda revolução industrial: o crescimento da riqueza material da sociedade e a queda na demanda por mão-de-obra (Shaff, 1990: 34,35 e 40).

E como lidar com essa situação? O comitê de especialistas apresenta o seguinte cami­nho: instar a sociedade, por meio das instituições jurídicas e governamentais apropriadas, a comprometer-se a propiciar, por direito, um rendimento adequado a todo indivíduo e a toda família.

Essa solução racional nada mais é, em termos da legislação brasileira, do que o Progra­ma de Renda Mínima (Bayma, 2005). Mas idéias nem sempre apresentam capacidade de materialização em realidades objetivas. A questão central é: de onde viriam os recursos pa­ra sua viabilização? A carga tributária brasileira beira os 38 por cento do PIB, e a sociedade, de uma forma geral, não está disposta a suportar esta mais-valia social mesmo que a 'cau­sa seja boa'. Por outro lado, ao entender que é impossível manter um zvellfare State keynesia- no e que a participação direta do Estado na economia deve restringir-se a suprir as falhas de mercados, entre elas, o desemprego estrutural advindo da penetrabilidade da tecnologia na sociedade moderna, o papel efetivo do Estado deveria ser o de promover para a socie­dade (no caso, as bases da pirâmide social e empresarial) um conjunto de mecanismos/ins­trumentos que facilitassem o self-employment e diminuíssem a taxa de mortalidade dos pe­quenos negócios, haste basilar da economia brasileira.

Esse argumento é ratificado por Castells (1999: 49), para quem

[ ...] o entendimento da relação entre a tecnologia e a sociedade é que o papel do Es­tado, seja interrompendo, seja promovendo, seja liderando a inovação tecnológica, é um fator decisivo no processo geral à medida que expressa e organiza as forças sociais domi­nantes em um espaço e em uma época determinada.

Nos dias atuais, esse 'esforço' pode ser delineado pela sua Lei de Recuperação de Em­presas e pela Lei Geral de Micro e Pequenas Empresas.

Como os pequenos negócios no Brasil se comportam nesse cenário? O próximo item apresenta algumas evidências a partir de uma pesquisa realizada pelo Sebrae em 2004.

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110 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

P e q u e n o s n e g ó c io s n o B r a s il c o n t e m p o r â n e o

País com dimensões continentais, o Brasil possui 5.656 municípios, que são as células mater da Federação; destes, segundo o IBGE, apenas 6 por cento têm mais de 50 mil habi­tantes, e apenas 95 cidades, entre elas as capitais dos estados, possuem mais de 150 mil ha­bitantes. Com diferenças sociais, políticas, geográficas e econômicas, inseridas em um am­biente altamente competitivo e desigual, no que se refere ao trinômio aprendizagem-tecno- logia-inovação, quais são as respostas dos pequenos negócios?

A dificuldade de sobrevivência em uma economia com as características da brasileira é evidenciada cotejando-se as taxas de mortalidade com o tempo de existência: 49,4 por cento dos pequenos negócios encerram suas atividades com até dois anos de existência, 56,4 por cento, com até três anos e 59,9 por cento, com até quatro anos.

O estudo do Sebrae (2004) indica ainda, a partir das respostas dos empresários da amostra pesquisada, os fatores de sucesso e as causas de fechamento das empresas. Os fa­tores de sucesso foram agrupados em três categorias: habilidades gerenciais, capacidade empreendedora e logística empresarial.

São entendidas como habilidades gerenciais"a preparação do empresário para intera­gir com o mercado em que atua e a competência para bem conduzir seu negócio" (Sebrae, 2004: 12). Como os questionários admitiam respostas múltiplas, dois itens se destacaram, com 49 por cento e 48 por cento de participação: bom conhecimento do mercado em que atua e boa estratégia de vendas.

A capacidade empreendedora reflete a disposição e a capacidade empresarial para co­mandar o empreendimento, permitindo, por meio de habilidades naturais, descobrir as me­lhores oportunidades de negócios, assumir riscos envolvidos no investimento de recursos financeiros e humanos em uma nova empresa e conduzir os negócios em meio a adversida- des e dificuldades que surgem no dia-a-dia (Sebrae, 2004:13). Os principais atributos men­cionados nessa categoria, em um intervalo entre 31 por cento e 25 por cento de participação, são: criatividade do empresário (31 por cento), aproveitamento de oportunidades de negó­cios (29 por cento), empresário com perseverança (28 por cento) e capacidade de liderança (25 por cento).

As bases para a criação, a sustentação e o crescimento empresarial são definidas como logística empresarial (Sebrae, 2004:13). O intervalo entre 31 e 17 por cento contém os prin­cipais fatores de sucesso: escolha de um bom administrador (31 por cento), uso de capital próprio (29 por cento), reinvestimento dos lucros da empresa (23 por cento) e acesso a no­vas tecnologias (17 por cento).

Por outro lado, e em igual importância, as causas do fechamento das empresas são fun­damentais quando se objetiva o apoio a esses empreendimentos. As principais razões e/ou dificuldades mencionadas foram: falta de capital de giro (42 por cento), falta de clientes (25 por cento), problemas financeiros (21 por cento), maus pagadores (16 por cento), recessão econômica do país (14 por cento) e falta de crédito bancário (14 por cento). A observação des­sas respostas nos mostra que problemas ligados ao capital (próprio ou de terceiros) são a principal fonte de insucesso dos pequenos empreendimentos no período analisado.

Além de fatores qualitativos, pontos fortes e fracos relacionados aos pequenos negócios no Brasil, foi estimado também o custo socioeconômico advindo da taxa de mortalidade em­presarial. Os números são impressionantes: no período de 2001 a 2003, mais de 772 mil empre­sas encerraram as atividades, representando uma perda de 2,4 milhões de postos de trabalho, que correspondem a um desperdício econômico de aproximadamente US$ 7,92 bilhões.

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Pequenos negócios, empreendedorismo e a nova Lei... 111

N o v a lei d e r e c u p e r a ç ã o d e e m p r e s a s e a lei g e r a l d a s m ic r o ePEQUENAS EMPRESASA nova lei de falência, que tramitou no Congresso Nacional por quase 11 anos e foi

sancionada em fevereiro de 2005, sob o signo de nova Lei de Falência e Recuperação de Em­presas, cria mecanismos para minimizar a falência dos pequenos negócios (59,9 por cento em até quatro anos), superando a crise econômico-financeira do devedor, preservando em última instância sua função social e o estímulo à atividade econômica no país.

Iniciativas como essa criam um ambiente favorável para o desenvolvimento dos pe­quenos negócios no Brasil, porém é preciso mais. O ambiente competitivo e globalizado em que se encontram, caracterizado pela destruição criativa schumpeteriana, acesso diferencia­do ao conhecimento e a novas tecnologias, em especial as da informação, leva a um ponto de inflexão que a médio e longo prazo pode enfraquecer essa importante haste basilar da economia brasileira.

Com essas condições e em uma sociedade informacional, global, em rede, em que a tec­nologia está presente (penetrabilidade) em todas as atividades humanas, a capacidade em­preendedora precisa ser potencializada. Vindo ao encontro dessa necessidade, tramita no Con­gresso Nacional a Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas, cujos principais objetivos são:

• estimular a formalização, a constituição, o funcionamento e o desenvolvimento das micro e pequenas empresas;

• racionalizar e simplificar procedimentos por meio de recolhimento unificado de im­postos e contribuições da União, dos estados e municípios; e

• criar um cadastro unificado de dados e informações.

Não existe possibilidade de interferir no sistema, a não ser por dentro. A 'chave' para a mudança está nas mãos de poucos; iniciativas como essas demonstram que devemos tra­balhar para que essa 'chave' passe para as mãos de alguns, como a tempestade da mudan­ça, que impele o Angelus Novus de Klee "[...] irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vi­ra as costas, enquanto o amontoado de ruínas (passado) cresce até o céu. Essa tempestade [de mudanças] é o que chamamos de progresso" (Benjamin: 226). Alea jacta est...

R e f e r ê n c ia s b ib l io g r á f ic a s

Harry G. Barkema, Joel A. Baum & Elizabeth A. Mannix, "Management challenges in a new time". Academy o f Management Journal, 45(5): 916-30, out. 2002.Francisco Marcelo Barone & Deborah Moraes Zouain, "Uma palavra à procura de es­paço no dicionário". O Globo, Caderno Boa Chance. Rio de Janeiro, 9 jan. 2005.Fátima Bayma, Pós-graduação, educação e mercado de trabalho. Campinas (SP): Papirus, 1995._________ & Ricardo Karam, (orgs.). "Programas sociais: Fome Zero e Bolsa-Família" In:Saúde, previdência e assistência social. São Paulo: M. Books, 2005.Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultu­ra. Brasília: Brasiliense, 1985. v. 1.Manuel Castells, A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

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112 Capítulo 4 Abordagens estratégicas

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Breve c u rr íc u lo

Fátima Bayma Doutora em educação. Mestre em administração/Estados Unidos. Especialização na França e Bélgica. Professora do doutorado e mestrado em administração da FGV. Livros e arti­gos publicados. Criou e coordenou vários cursos de pós-graduação e seminários na área de gestão, saúde e negócios.

Francisco M arcelo Barone Doutorando em Políticas Públicas e Formação Humana pela Univer­sidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Coordenador do Programa de Estudos Avançados em Pequenos Negócios, Empreendedorismo e Microfinanças (Small) da Escola Brasileira de Adminis­tração Pública e de Empresas (Ebape) da Fundação Getulio Vargas (FGV).

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C a p ít u l o

E s t u d o d e c a s o s

O CASO Parm alat

Joel Luís Thomaz Bastos

N o v a lei br a s ile ir a de Fa lên c ia e R ec u per a ç ã o de Em pr esa s :UMA COMPARAÇÃO COM AS NORMAS INTERNACIONAIS

Gordon W . Johnson

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O CASO Parm alat

Joel Luís Thomaz Bastos

A Parmalat Alimentos e sua holding Parmalat Participações são duas das inúmeras em­presas deste país que buscaram a concordata com o intuito de se reerguer. Para des­crever um pouco do caso Parmalat, é pertinente a elaboração de um breve histórico

processual do ocorrido.Após o ajuizamento e deferimento do processamento da concordata da Parmalat hou­

ve uma intervenção na empresa, determinada, curiosamente, pelo Poder Judiciário.O tumulto processual se instalou quando um banco credor ajuizou uma medida caute-

lar preparatória de ação de execução, e nessa medida foi determinada a intervenção, sem que houvesse nenhum requerimento nesse sentido. Inicialmente houve a concessão de limi­nar para proibir a alienação de bens da Parmalat; impedir remessas de valores ao exterior; solicitar informações ao Banco Central sobre remessas de divisas e saída de dinheiro do Bra­sil, tendo sido nomeado, concomitantemente, um comitê de fiscalização para a empresa.

Infelizmente, o recurso contra essa decisão não teve sucesso imediato, tendo ela tido vigência por algum tempo. Posteriormente, referida decisão foi, de ofício, complementada pelo juízo em que tramitava a ação cautelar, para o fim de 'blindar' a empresa e decretar a intervenção, além de afastar o conselho de administração, tornar indisponíveis todos os bens dos diretores, determinar a quebra de sigilo bancário, fiscal, eletrônico destes, impe­dindo-os de se ausentar do país. É de concluir, portanto, que todos os diretores, a partir des­se momento, passaram a ser tidos, arbitrariamente, como figuras suspeitas.

Não bastasse todo o já relatado, há ainda que lembrar que foi determinada a suspen­são de todas as ações de execuções existentes contra a empresa, qualquer que fosse a natu­reza do título.

Com o intuito evidente de tentar dar uma roupagem de legalidade societária a isso, houve a convocação de uma assembléia geral extraordinária para ratificar tais atos, mesmo se tratando de uma sociedade anônima cujo maior acionista era outra empresa, que nem se­quer era parte na ação, e para a qual foram estendidos os efeitos da intervenção.

Resta, portanto, evidente que essa intervenção não foi prejudicial somente para a em­presa naquele momento, como também para os seus credores, pois insatalou-se uma total insegurança jurídica, uma vez que ninguém sabia exatamente o que fazer. A situação era a

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O caso Parmalat 115

seguinte: credores sem saber o que fazer com os títulos representativos de seus créditos na­quele momento.

Passado um tempo, sem que os resultados da intervenção tivessem sido satisfatórios, a controladora italiana da Parmalat nomeou uma empresa de consultoria com executivos capacitados para tentar, mediante um acordo, acabar com essa intervenção e voltar a gerir a empresa em bases sólidas, de tal modo a tornar possível sua reestruturação.

As tratativas entre o juízo que decretou a intervenção, a Parmalat e essa empresa indica­da pela controladora resultaram num acordo, mediante o qual a empresa de consultoria aca­bou por assumir o controle da companhia. Como primeira medida, foi eleito um novo conse­lho de administração, ocasião em que teve início o processo de recuperação da Parmalat.

Paralelamente a tudo isso, há que ressaltar, ocorreu um conflito positivo de competên­cia, com a finalidade de prosseguir no processo de concordata, que havia sido suspenso em decorrência da 'intervenção'.

A decisão determinando que o juízo da concordata era o efetivamente competente só veio a ocorrer depois de algum tempo, quando o Tribunal de Justiça, ao julgar o conflito suscitado, determinou que todos os processos fossem julgados pelo juízo da concordata.

Dessa forma, a documentação necessária para instruir o procedimento de concordata preventiva da Parmalat foi entregue seis meses após a impetração da concordata.

Ressalte-se, por oportuno, que a insegurança de todos os envolvidos durante esse pe­ríodo era muito grande, em especial a dos credores, que acabaram por ficar impossibilita­dos de tentar reaver seus créditos naquele momento e sem saber se iriam constar da lista de credores ou não.

Deferida a concordata, começou-se a estudar uma tentativa de criar um plano de rees­truturação para a empresa. Dentro desse contexto, foi realizada uma ampla negociação com os credores, com o intuito de que o plano de reestruturação fosse apresentado para a homo­logação judicial antes da entrada em vigor da Nova Lei de Recuperação e Falências.

Essa tentativa de buscar a reestruturação de uma empresa dentro do regime da con­cordata nos leva a refletir acerca dos institutos da concordata e da recuperação judicial tra­zida pela Nova Lei de Recuperação e Falências.

Segundo a lei antiga, o Decreto-lei x f 7.661/45, a concordata é um benefício, é um favor legal, uma moratória que engloba somente os credores quirografários, o que leva a crer ser um favor 'pela metade', pois os demais credores, tidos como privilegiados, continuam po­dendo executar seus créditos. Além disso, há que mencionar que o processo da concordata é lento e engessado, pois, embora conserve a administração do negócio, o administrador fica de mãos amarradas. Um exemplo típico disso se dá quando uma empresa em concordata opta por vender um imóvel inoperante, que só traz custos, sem gerar, em contrapartida, ne­nhum lucro ou receita. Para tanto, a concordatária deve submeter seu pleito ao juiz, ao Mi­nistério Público e aos credores. Obviamente, torna-se impossível a realização dessa venda antes de três ou quatro meses, o que definitivamente engessa a atividade da empresa.

Ainda no que diz respeito ao Decreto-lei r\Q 7.661/45, mister se faz salientar que o es­paço para negociação entre devedor e credor é muito pequeno; é o que dificulta toda a di­nâmica do processo de reestruturação. No entanto, a Nova Lei de Recuperação e Falências, ao que tudo indica, virá resolver essa questão, posto que, além de aproximar mais a empre­sa devedora dos seus credores, afasta um pouco a participação do Judiciário e do Ministé­rio Público, possibilitando maior dinâmica na negociação.

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116 Capítulo 5 Estudo de casos

Normalmente, as chances de recuperação de uma empresa em concordata são muito pequenas. Isso se deve ao fato de que as empresas, o mais das vezes, oferecem-se para pagar a concordata em dois anos e, via de regra, seu fluxo de caixa não é suficiente para fazer fren­te ao giro normal e realizar tais pagamentos, o que acaba somente por adiar a falência. E, conforme é de conhecimento geral, a falência, na forma prevista no Decreto-lei r f 7.661/45, significa aniquilar a empresa. O procedimento se resume na arrecadação dos bens da empre­sa para, com o fruto da venda destes, iniciar o pagamento aos credores. Nesse contexto, a perspectiva de recuperação de valores é sempre muito pequena, em razão da ordem legal de pagamentos, feita como se segue: em primeiro lugar, os credores trabalhistas, depois o Fisco e, por fim, os credores privilegiados. Fica claro que as possibilidades de recebimento de um credor quirografário são sempre muito baixas, para não dizer inexistentes.

A Nova Lei de Recuperação e Falências tende a mudar esse paradigma, uma vez que ela não só valoriza a negociação entre os devedores e os credores, como também defende a manutenção da atividade produtiva da empresa, acabando com o estigma de que é mais vantajoso eliminar uma empresa mediante a falência.

Apropria falência na nova lei sofreu modificações significativas nesse aspecto. Ela tra­tou de acelerar a liquidação de ativos da empresa e priorizar a venda dos ativos em bloco, o que significa dizer que a venda judicial desses bens será realizada enquanto eles ainda va­lerem alguma coisa, diferentemente do que ocorre hoje em dia, pois de nada adianta deixá- los arrecadados e guardados até virarem sucata.

Em conclusão, o que se pode concluir do caso Parmalat é que a empresa possui reais chances de sobrevivência. É uma empresa que já mostra sinais de recuperação depois que começou a contar com uma administração profissional. Isso se mostra nítido na medida em que já se pode notar que os produtos Parmalat voltaram aos supermercados. Paralelamen­te ao trâmite da concordata, o plano de recuperação vem sendo elaborado. Além disso, uma ampla negociação com os credores financeiros e operacionais tem sido feita no sentido de buscar a aprovação judicial do plano de reestruturação.

A grande conclusão a que se deve chegar é que essa idéia de intervenção pelas mãos do Estado, especialmente do Judiciário, não funciona e não pode em hipótese alguma ser adotada. Tanto é verdade que, em determinado momento do caso Parmalat, o próprio Judi­ciário reconheceu o erro e buscou um acordo em que se pudesse colocar à frente da empre­sa profissionais capacitados, técnicos e com conhecimento de mercado. Fica a lição.

B reve c u rr íc u lo

Joel LuísThomaz Bastos Advogado, sócio do escritório Felsberg, Pedretti, Mannrich e Aidar Ad­vogados e Consultores Legais.

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N o va lei br a s ile ir a de Fa lên c ia e R ec u per a ç ã o de Em pr esa s :

UMA COMPARAÇÃO COM ASn o r m a s in t er n a c io n a is

Gordon W. Johnson

A adoção de uma nova lei de insolvência marca uma importante etapa no contínuo es­forço de criação de um moderno e favorável clima para a realização de investimen­tos no Brasil, estimulando os negócios e fomentando o crescimento da economia. A aplicação da longa e esperada lei, com suas saudáveis mudanças em favor da reabilitação,

pode ser observada com o pedido de recuperação judicial da Varig, imediatamente após a data de entrada em vigor da lei em 9 de junho de 2005. Esse pedido foi seguido pela conver­são do processo de recuperação judicial da Parmalat Brasil da lei antiga (Lei n~ 7.661/45) para a nova lei. Esses e outros casos parecem avançar de forma razoável e eficiente.

A existência de eficazes leis comerciais e de confiáveis e eficientes mecanismos de apli­cação para auxiliar na solução de problemas envolvendo ativos e empresas em dificuldades são ingredientes essenciais para o crescimento econômico. Modernas leis e processos facili­tam a rápida decisão e recuperação dos ativos e negócios em dificuldades, assim como a re­dução do risco e a minimização das perdas de valor nas transações comerciais. A reabilita­ção de negócios viáveis preserva os empregos e gera maior valor para a economia com a continuidade do negócio. Se o negócio não é viável, ou sua lucratividade não pode ser re­cuperada, o processo de reorganização e falência será acionado para permitir a reciclagem dos ativos para os 'atores' mais eficientes e produtivos do mercado. Dessa forma, o sistema recuperatório e falimentar está constantemente contribuindo para o processo de reciclagem dos negócios em dificuldades e daqueles fracassados, o que faz parte do processo natural de ajustes de mercado.

Como a nova lei brasileira se compara aos padrões e normas internacionais?Este trabalho examina o contexto dos padrões globais de recuperação e falência que

serviram como uma das fontes para o desenvolvimento da nova lei brasileira (Lei rr 11.101/05) e analisa a experiência comparada em face das inúmeras reformas realizadas em outras jurisdições. Conclui com algumas observações sobre as próximas etapas e as princi­pais áreas a serem analisadas à medida que o processo de recuperação e falência brasileiro vai avançando.

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118 Capítulo 5 Estudo de casos

O CONTEXTO PARA OS PADRÕES GLOBAIS

As crises ocorridas nos mercados emergentes no final dos anos 90 resultaram em um esforço internacional sem precedentes para a promoção de padrões globais para o alcance da estabilidade financeira. O esforço conjunto do Banco Mundial e do Fundo Monetário In­ternacional, abrangendo em tomo de 12 áreas, objetiva fortalecer o sistema financeiro tan­to em nível internacional quanto doméstico, para ajudar os países a responder melhor às crises e identificar vulnerabilidades sistêmicas. As análises dos padrões estão divididas em categorias focadas na transparência, no setor financeiro e nos sistemas de infra-estrutura do mercado. O propósito principal dos diagnósticos de um país é dar suporte às reformas ne­cessárias, de modo a adequá-las às melhores práticas internacionais.1

Os padrões de transparência — disseminação de dados, transparência fiscal, política monetária e financeira — são baseados em procedimentos desenvolvidos pelo Fundo Mo­netário Internacional. Adicionalmente, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacio­nal desenvolveram em conjunto as diretrizes para a gestão da dívida pública para assistir os países no que tange às boas práticas de administração da dívida pública.

Os padrões do setor financeiro — supervisão bancária, sistemas de pagamento e de acor­dos, supervisão de seguros, regulamentação do mercado de capitais, sistemas antilavagem de dinheiro — são dirigidos aos principais sistemas financeiros do mercado. Avaliações do setor financeiro são realizadas em conjunto pelo Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial.

Os padrões de infra-estrutura do mercado — governança corporativa, contabilidade e au­ditoria, sistemas de insolvência e direitos de credores — representam os sistemas funda­mentais para o comércio e exercem um papel vital na promoção e sustentação da confiança nas relações comerciais. Este último grupo de avaliações é conduzido pelo Banco Mundial.

T a b e la 5 -1 Padrões e procedimentos utilizados nas análises de bancos e fundos

Transparência

• Disseminação de dados (IMF)• Transparência fiscal (IMF)• Política financeira e monetária (IMF)• Administração da dívida pública (IMFA/VB)

Seto r financeiro

• Supervisão bancária (BCP)• Pagamento e acordo (CPSS)• Supervisão de seguros (IAIS)• Regulamentação do mercado de capitais (losco)• Antilavagem de dinheiro (FATF/IMFAVB)

Integridade do m ercado

• Governança corporativa (OSCD)• Contabilidade e auditoria (IAS/ISA)• Insolvência e direitos de credores (WB)

1 Até janeiro de 2004, cerca de 500 análises haviam sido conduzidas em aproximadamente cem países.

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Nova lei brasileira de Falência e Recuperação de Empresas: uma comparação com... 119

O PAPEL E A IMPORTÂNCIA DOS SISTEMAS DE ADMINISTRAÇÃO E DEINSOLVÊNCIASO desafio inerente à iniciativa de modernizar o sistema de insolvência e de direitos

de credores é o desenvolvimento de um eficaz e eficiente sistema de recuperação de crédi­tos e de empresas, de forma a mitigar o impacto das dificuldades financeiras e das insol­vências empresariais. A existência de um eficaz modelo de insolvência e direitos de credo­res é considerada essencial para a promoção de um sólido ambiente de investimento e de crescimento no setor privado. A experiência em crises financeiras tem demonstrado que a eficiente aplicação dos sistemas de insolvência é crucial para promover a confiança no am­biente de negócios, antes, durante e depois das crises. Primordialmente, esses sistemas atuam como uma forma de proteção ao crédito e investimentos, permitindo aos stakehol- ders2 precificar, monitorar e resolver o risco de inadimplência com maior precisão. Diplo­mas legais de controle, reestruturação e insolvência servem, de igual forma, como base pa­ra reestruturações não-judiciais; facilitam a realização dos ativos de tal modo que reduzem a deterioração de seu valor. Funcionam como válvulas de segurança para a dificuldade empresarial, permitindo às partes salvar os negócios viáveis e transferir os ativos mais efi­cientemente para os melhores agentes do mercado; impõem disciplina à administração da empresa para manter uma boa governança corporativa.

V e n c e n d o o s d e s a f io s d o s n e g ó c io s em u m m e r c a d o g l o b a l

Crédito é a vida dos negócios. Crédito e sua acessibilidade requerem bancos e investido­res que tenham à sua disposição uma ampla gama de opções de empréstimos e investimen­tos, com o devido amparo legal. Os bancos e investidores operam igualmente com base em riscos razoáveis e gerenciáveis, que são mais facilmente medidos quando os direitos das partes são claramente estabelecidos por lei. A proteção do crédito e os mecanismos de cum­primento corolários exercem um importante papel nesse contexto. A garantia real tem se tornado crescentemente significante e bastante variada nas modernas práticas de crédito, especialmente para permitir às empresas explorar o valor potencial e subutilizado dos ne­gócios para ter acesso a capitais tão necessários. Modernas leis do mercado financeiro e de capitais podem facilitar esse processo. Quando empresas fracassam — uma conseqüência natural da competição nos mercados de hoje —, os interesses da comunidade de crédito de­vem estar balanceados com as políticas governamentais de estímulo ao investimento, ao crescimento econômico e ao emprego. Esse balanceamento busca o equilíbrio entre a con­fiável observação dos direitos dos credores e a revitalização dos negócios.

P r o m o v e n d o u m c l im a s e g u r o d e in v e s t im e n t o s e d eCONFIANÇA COMERCIAL

Institutos legais de controle e recuperação ajudam a promover a confiança comercial e a previsibilidade, permitindo aos agentes do mercado e aos stakeholders precificar, admi­nistrar e decidir quanto aos riscos de inadimplência e moratória. Onde esses sistemas fun-

: Sikeholders refereni-se às partes envolvidas: credores, fornecedores e investidores.

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120 Capítulo 5 Estudo de casos

cionam efetiva e eficientemente, a deterioração dos ativos é minimizada por uma pronta resposta: as partes são capazes de resolver mais rapidamente as disputas e maximizar a re­cuperação de ativos com a adoção de uma eficiente negociação e reestruturação, ou por via de leilões e vendas. Exercem igualmente um efeito disciplinador nas relações comerciais, encorajando a condução responsável do negócio por meio de regras segundo as quais a administração da empresa pode ser auxiliada, responsabilizada, substituída ou penaliza­da se estiver fora dos limites razoáveis de um comportamento justo. Dessa forma, estrutu­ras legais eficazes e eficientes podem promover o acesso ao crédito mediante o estabeleci­mento de medidas mais confiáveis para o risco de crédito.

Sistemas de administração e de insolvências funcionam também como uma válvula de segurança para crises empresariais. Quando os negócios entram em dificuldades financei­ras, existe um mecanismo pelo qual podem ser salvos eficiente e rapidamente. Para negó­cios que ultrapassam o estágio de salvamento, existe um mecanismo para transferir os ati­vos para agentes mais eficientes do mercado. Conseqüentemente, esses dois elementos — recuperação do negócio e procedimento de liquidação — desempenham uma função natu­ral e necessária dentro de uma economia de mercado. Facilitam uma boa administração do risco de crédito e um comportamento responsável dentro do setor financeiro em relação a empréstimos e crédito, fornecendo aos credores um conjunto de ferramentas com que eles podem gerenciar melhor sua carteira e promover ações corretivas sempre que necessário, para que seja minimizado o impacto em sua carteira de créditos. Esses conceitos são a base para o desenvolvimento dos Princípios e diretrizes do ênco Mundial para eficazes sistemas de insolvências e de direitos dos credores (Princípios):''

A AVALIAÇÃO CONTÍNUA DE RISCOA avaliação contínua de risco, conforme definido pelo autor, descreve o ciclo de vida

natural de um investimento ou transação típica desde sua concepção, seus diferentes está­gios de crise, até a falta de pagamento ou fracasso. A cada progressão no estágio de crise existem diferentes riscos e escolhas a serem considerados, e a gama de escolhas é freqüen­temente ditada pelos incentivos e desestímulos das partes, governadas grandemente pela estrutura regulatória e outros fatores que afetam o negócio (Quadro 5-1). No começo da re­lação de crédito — a fase de acesso ao crédito —, a instituição financeira se engaja em uma sé­rie de etapas convencionais para decidir a extensão do crédito, incluindo a pesquisa da ca­pacidade de crédito e os riscos inerentes ao tomador em particular. Dependendo dos riscos identificados, o credor pode requisitar proteção de crédito ou aumento da garantia median­te garantia real ou outras formas de proteção. O risco de crédito está também refletido no preço do crédito negociado. No melhor dos mundos possíveis, o banqueiro não pode viver exclusivamente em função do monitoramento do crédito para certificar-se de que o paga­mento será feito em tempo e forma apropriados. Infelizmente, não vivemos num mundo em que os mercados são perfeitos.

1 O relatório Princípios foi preparado pelo Banco Mundial em colaboração com o Banco Africano de Desenvolvi­mento, Banco Asiático de Desenvolvimento, Banco Europeu para Reconstrução de Desenvolvimento, Banco In- teramericano de Desenvolvimento, Corporação Internacional de Financiamento, Fundo Monetário Internacional, Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento, Comissão de Direito Internacional de Comércio das Nações Unidas, Insol Internacional e Associação Internacional de Tribunais (Comitê J). O documento está dis­ponível no Banco de Dados Jurídico de Insolvência Global do Banco Mundial, http://vvwvv.worldbank.org/gild

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Nova lei brasileira de Falência e Recuperação de Empresas: uma comparação com... 121

Q u a d r o 5 -1 A avaliação contínua de risco

A cesso ao créd ito Crise financeira % Executar/resolver

• Informação • Informação • Informação• Garantia • Identificação de opções • Opções de garantia• Negociação (preço) • Negociação (preço) • Negociação (plano)• Contratação • Aditivos de contratos • Novos contratos e acordos• Registro de direitos • Registro de direitos • Registro de direitos• Monitoramento • Monitoramento • Monitoramento da implementação

Como parte de uma ordem natural, as empresas freqüentemente encontram proble­mas financeiros e dificuldades no cumprimento de suas obrigações — a fase da crise finan­ceira. Empresas podem entrar em crise financeira por diversos motivos: má gestão, fraude, disputa jurídica, mudanças de mercado ou obsolescência ou queda da competitividade de produtos. Quaisquer que sejam as causas, o fornecedor do crédito, uma prudente institui­ção financeira ou investidor necessitarão reavaliar o risco de crédito à luz da atual situa­ção da empresa. A principal questão nesse estágio é saber se o risco é administrável a pon­to de justificar o reescalonamento ou reestruturação da dívida, e em que termos. Questões de regulamentações específicas que governam o tratamento de empréstimos não pagos e de provisionamentos, ou a tributação com respeito a dívidas perdoadas e cessão de créditos podem entrar nessa equação. Melhorar a proteção oferecida ao credor será provavelmente solicitado, por exemplo, na hipoteca ou penhor sobre novas garantias, ou na reestruturação dos contratos. Se os bancos ou investidores concluem que o negócio não é viável, ou a dí­vida não pode ser reestruturada, devem optar pela sua cobrança por meio de ações indivi­duais, tais como execução das garantias, ou mediante o sistema formal de execução de co­brança, tal como o pedido de falência — o estágio de resolução e recuperação.

A avaliação contínua do risco revela uma ligação direta entre o risco de crédito no início da relação e nos últimos estágios, quando a empresa enfrenta declínio financeiro ou descum- pre suas obrigações. A eficácia dos mecanismos e sistemas legais que servem de proteção a credores e permitem a recuperação do crédito no caso de um descumprimento de obrigações pode aumentar ou diminuir o risco do banco ou investidor. Se, no processo de análise de ris­co, um deles entende que os procedimentos de administração ou insolvência resultarão em baixo ou nenhum retomo, a possibilidade de baixo-desempenho carrega um maior risco de perda que deve ser incorporado ao custo do crédito a ser concedido no início da transação. Is­so está tipicamente refletido nas maiores taxas de juros e custos do empréstimo, que restrin­gem o acesso ao crédito, tornando-o menos acessível, ou acessível somente a um maior custo.

Os princ íp ios d o B a n c o M u n d ia l e a a v a lia ç ã o c o n t ín u a de RISCOA estrutura do Banco Mundial para avaliar sistemas de insolvência e de direitos de

credores é baseada no espectro do risco comercial descrito anteriormente. Os Princípios fo­ram especialmente desenvolvidos para auxiliar os legisladores e formuladores de política governamental na análise da eficácia daqueles sistemas que permitem aos stakeholders ge­

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122 Capítulo 5 Estudo de casos

renciar e mitigar os riscos ao longo da contínua relação comercial (Quadro 5-2). Revisões são efetuadas em um programa conjunto entre o Banco Mundial e o Fundo Monetário In­ternacional para desenvolver Relatórios de Observância dos Padrões e Códigos (ROSCs) nas regiões padrão mais relevantes.

Sistemas que dão suporte ao acesso ao crédito incluem aqueles que governam a in­formação de crédito, proteção ao crédito (garantias, hipotecas e cauções) e registros. Di­reitos sem capacidade de execução, entretanto, não têm nenhum significado; assim, os procedimentos de observação e cumprimento das leis devem também ser avaliados, in­cluindo-se a eficiência do Judiciário e dos tribunais onde as ações de cobrança e de cum­primento legal tipicamente acontecem. No estágio de crise financeira, outros sistemas se tornam particularmente relevantes, incluindo-se a responsabilidade legal dos administra­dores e dos membros da governança da empresa, o sistema de insolvências, as práticas de administração de riscos de crédito, os mecanismos informais de recuperação e de resolu­ção de créditos problemáticos, o amplo ambiente propício a facilitar as reestruturações, tais como leis empresariais e fiscais que possam criar incentivos ou desestímulos ao can­celamento da dívida e da renegociação. Finalmente, examinamos os sistemas mais for­mais para resolução e recuperação — reabilitação judicial e falência, ou seus primos qua- se-formais. Esses sistemas não podem ser mensurados de modo correto, com base isolada na lei, mas devem igualmente ser examinados com base em sua operacionalização pelo Judiciário, pelos tribunais e pela regulamentação dos profissionais que atuam na área de recuperação e falência.

■ ^ A ESTRUTURA DA INSOLVÊNCIA C O M E R C IA L ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ™Analisaremos em maior detalhe a insolvência comercial em um processo coletivo pa­

ra resolver e ajustar os direitos e interesses das partes envolvidas em uma empresa fracas­sada. Invariavelmente, o sistema em qualquer país é constituído de três pilares centrais: o legal, o institucional e a estrutura regulatória.

A estrutura legal incorpora as regras que refletem inúmeras políticas e interesses poten­cialmente divergentes que devem ser balanceados e harmonizados para fazer o sistema fun-

Q u a d r o 5 - 2 Os princípios do Banco Mundial/Estrutura de avaliação ROSC

A cesso ao créd ito » A dm inistração de risco Resolução/recuperação

• Sistemas de informação de crédito

• Responsabilidade legal dos administradores • Mecanismos de saída corporativa

• Sistemas de garantias reais

• Práticas de administração de riscos• Recuperações informais

• Procedimentos de recuperação de empresas

♦ Registros (aviso) • Negociação (plano)• Sistemas de controle • Ambiente adequado • Reestruturação quase-formal

• Procedimentos de leilões

• Tratamento tributário para a inadimplência ou reestruturação de dívidas

• Eficiência das leis, do Judiciário, dos tribunais e regulamentação