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Livro: Nutrição Clínica Capítulo: 41- Transtornos Alimentares Autores: Vinicius da Cunha Tavares Faustino Teixeira Neto - 41 - TRANSTORNOS ALIMENTARES Vinicius da Cunha Tavares INTRODUÇÃO Os transtornos alimentares são síndromes psiquiátricas complexas e ainda relativamente pouco compreendidas, mostrando-se cada vez mais importantes no cenário da psiquiatria moderna. A associação de alterações psicopatológicas, nutricionais e somáticas situa os transtornos alimentares em um campo multidisciplinar por excelência, onde o trabalho de equipe entre vários profissionais de saúde cumpre papel fundamental. Embora ainda possam ser classificados como relativamente raros, diversos estudos sugerem que a incidência de transtornos alimentares vem aumentando nas últimas décadas, mesmo em culturas onde este diagnóstico é considerado menos freqüente. Em um recente trabalho brasileiro foram analisados os hábitos alimentares de mulheres entre 12 e 29 anos da zona urbana de Porto Alegre demonstrando que 30,2% apresentavam comportamento considerado de risco para transtornos alimentares e 11,3% comportamento alimentar considerado anormal. (29) Como o ocultamento de sintomas é uma importante característica destes transtornos, é provável que muitos dados estatísticos estejam ainda subestimados. O presente capítulo visa discutir alguns aspectos importantes do conhecimento atual sobre os transtornos alimentares, focalizando principalmente a reabilitação nutricional indicada no tratamento destes distúrbios. Dois quadros clínicos principais – a anorexia nervosa e a bulimia nervosa – serão abordados de forma individualizada por se tratarem de síndromes bem descritas e com critérios diagnósticos definidos pelos atuais sistemas de classificação de doenças. Além destas, a freqüente presença de síndromes alimentares parciais será brevemente discutida, incluindo um possível 1

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Livro: Nutrição ClínicaCapítulo: 41- Transtornos AlimentaresAutores: Vinicius da Cunha Tavares

Faustino Teixeira Neto

- 41 -

TRANSTORNOS ALIMENTARESVinicius da Cunha Tavares

INTRODUÇÃO

Os transtornos alimentares são síndromes psiquiátricas complexas e ainda

relativamente pouco compreendidas, mostrando-se cada vez mais importantes no

cenário da psiquiatria moderna. A associação de alterações psicopatológicas,

nutricionais e somáticas situa os transtornos alimentares em um campo multidisciplinar

por excelência, onde o trabalho de equipe entre vários profissionais de saúde cumpre

papel fundamental.

Embora ainda possam ser classificados como relativamente raros, diversos

estudos sugerem que a incidência de transtornos alimentares vem aumentando nas

últimas décadas, mesmo em culturas onde este diagnóstico é considerado menos

freqüente. Em um recente trabalho brasileiro foram analisados os hábitos alimentares de

mulheres entre 12 e 29 anos da zona urbana de Porto Alegre demonstrando que 30,2%

apresentavam comportamento considerado de risco para transtornos alimentares e

11,3% comportamento alimentar considerado anormal.(29) Como o ocultamento de

sintomas é uma importante característica destes transtornos, é provável que muitos

dados estatísticos estejam ainda subestimados.

O presente capítulo visa discutir alguns aspectos importantes do conhecimento

atual sobre os transtornos alimentares, focalizando principalmente a reabilitação

nutricional indicada no tratamento destes distúrbios. Dois quadros clínicos principais –

a anorexia nervosa e a bulimia nervosa – serão abordados de forma individualizada por

se tratarem de síndromes bem descritas e com critérios diagnósticos definidos pelos

atuais sistemas de classificação de doenças. Além destas, a freqüente presença de

síndromes alimentares parciais será brevemente discutida, incluindo um possível

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terceiro diagnóstico recentemente proposto - o binge eating disorder - aqui traduzido

como transtorno da compulsão alimentar periódica.

ANOREXIA NERVOSA

CONCEITO

Relatos históricos sobre o hábito de jejuar e casos expressivos de inanição auto-

imposta estão presentes em diversos momentos ao longo da História, nem sempre

percebidos enquanto sintomas patológicos. Na literatura teológica da Idade Média

encontramos exemplos extremos de práticas de jejum religioso, muitos dos quais se

assemelham notavelmente a vários aspectos da sintomatologia moderna.(5) Embora

breves relatos de caso tenham surgido desde o século XVII, a anorexia nervosa só

começou a receber atenção enquanto possível nosologia médico-psiquiátrica a partir do

final do século XIX, com as descrições quase simultâneas de Sir Willian Gull na

Inglaterra e Ernest Charles Lasegue, na França.(35) Desde o princípio a anorexia nervosa

tem sido apontada como uma patologia complexa e multifacetada, onde coexistem

sintomas somáticos e psicopatológicos, interrelacionando-se mutuamente.

Paradoxalmente ao nome da síndrome, o sintoma anorexia – do grego an

(prefixo de negação, privação, ausência) e orexis (apetite); literalmente “falta de

apetite” – não é comum antes dos estágios avançados da doença, quando surge

associado a complicações inerentes ao processo de desnutrição clínica. Ao contrário, a

anorexia nervosa tem sido descrita como uma procura implacável pela magreza

(Brunch, 1973) (9) ou a busca da magreza como um prazer em si (Ziegler e Sours, 1968) (19), com a conseqüente manutenção voluntária do peso corporal em limites inferiores ao

esperado para a idade e estatura. Em última análise, pacientes anoréticas mantêm-se

famintas, tendo na magreza um propósito e tendendo a abandonar gradativamente todo e

qualquer outro ideal de vida em favor do controle sobre a alimentação, a forma e o peso

corporal. Outras estratégias para o emagrecimento somam-se aos esforços dietéticos em

uma parcela considerável dos casos, incluindo exercícios físicos intensos, uso de

laxantes, diuréticos, anorexígenos, vômitos auto-induzidos, etc.

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Como características psicopatológicas típicas, observa-se um intenso temor de

engordar e a vivência totalmente anômala da experiência corporal: além de se

preocuparem de forma excessiva e constante com o peso e forma do corpo, pacientes

com anorexia nervosa sentem-se obesas mesmo quando bastante emagrecidas, não

aceitando argumentações ou evidências contrárias a sua percepção (distorção da

imagem corporal).

Completando o quadro clínico, encontramos a associação dos distúrbios

endocrinológicos, envolvendo alterações em vários sistemas hormonais. Destaque

especial deve ser dado ao acometimento do eixo hipotálamo-hipofisário-gonadal,

manifesto através da presença obrigatória de amenorréia em mulheres e perda da

potência e interesse sexual em homens.

EPIDEMIOLOGIA

A anorexia nervosa ocorre mais freqüentemente em mulheres jovens, com

prevalência ao longo da vida estimada neste grupo entre 0,5-3,7%.(2) As taxas de

incidência relatadas por equipes de saúde mental dos países desenvolvidos aumentaram

substancialmente nas últimas décadas, atualmente girando em torno de cinco casos por

100.000 habitantes. É referida uma menor prevalência na maioria dos países orientais e

em desenvolvimento, mas não existem estudos epidemiológicos definitivos neste

sentido.(22) A proporção entre homens e mulheres varia em torno de 1:10, sendo que essa

diferença se atenua em amostras com idade mais precoce.(2) São relatados dois picos de

incidência: entre 14-15 e aos 18 anos.(20)

Aspectos sócio-culturais parecem exercer grande influência nos transtornos

alimentares, de forma ainda pouco compreendida. Profissões em que existe valorização

da magreza – por trabalharem com a comercialização da imagem (modelos, atrizes) ou

por exigirem leveza para melhor desempenho (jóqueis, bailarinas) – apresentam maior

risco para o desenvolvimento destes transtornos.(3,22) Alguns autores relacionam a

possível maior incidência de transtornos alimentares no mundo ocidental com a

evolução do padrão de beleza feminino em direção a um corpo cada vez mais magro

nestas culturas, mas este dado é ainda controverso. Embora o chamado “culto ao corpo”

e a pressão social para o emagrecimento possam ser localizados em sociedades

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ocidentais, particularmente no pós-modernismo, não está claro até o momento de que

forma atuariam na determinação de uma patologia alimentar. Três possibilidades

principais permanecem em estudo, segundo DiNicola: uma improvável relação de

causalidade direta; a idéia da pressão cultural como um fator precipitante, aumentando a

vulnerabilidade ao surgimento do transtorno quando associado a outros fatores; ou

ainda, apenas como determinante de uma forma de apresentação da doença síntone com

o universo cultural da paciente em questão (em culturas orientais, por vezes não são

encontrados de forma tão clara como no ocidente sintomas como o medo de engordar

ou a busca da magreza como um valor per si).(14,23) É importante salientar que estudos

transculturais têm demonstrado a ocorrência de casos significativos de anorexia nervosa

mesmo em localidades onde não vigora um padrão estético relacionado à magreza.(23,27)

DIAGNÓSTICO

Os critérios diagnósticos para anorexia nervosa das duas principais

classificações modernas – o CID-10 (Classificação Internacional de Doenças – 10ª

edição) e o DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – 4ª

edição) – são bastante próximos, exigindo presença simultânea de elementos clínicos e

psicopatológicos similares para formulação diagnóstica. Como diferença importante,

observa-se na classificação americana a possibilidade de especificar entre dois subtipos

de anorexia nervosa de acordo com a presença ou não de hábitos purgativos (ver

quadros 41.1 e 41.2).

QUADRO 41.1 – Critérios Diagnósticos do DSM IV para Anorexia

Nervosa – 307.1A. Recusa a manter o peso corporal em um nível igual ou acima do mínimo

normal adequado à idade e à altura (por ex., perda de peso levando à

manutenção do peso corporal abaixo de 85% do esperado; ou fracasso em ter

o ganho de peso esperado durante o período de crescimento, levando a um

peso corporal menor que 85% do esperado).B. Medo intenso de ganhar peso ou de se tornar gordo, mesmo estando com

peso abaixo do normal.

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C. Perturbação no modo de vivenciar o peso ou a forma do corpo, influência

indevida do peso ou da forma do corpo sobre a auto-avaliação, ou negação do

baixo peso corporal atual.D. Nas mulheres pós-menarca, amenorréia, isto é, ausência de pelo menos

três ciclos menstruais consecutivos (considera-se que uma mulher tem

amenorréia se seus períodos ocorrem apenas após a administração de

hormônio, por ex., estrógeno).Especificar tipo:

Tipo Restritivo: durante o episódio atual de Anorexia Nervosa, o indivíduo

não se envolveu regularmente em um comportamento de comer

compulsivamente ou de purgação (isto é, auto-indução de vômito ou uso

indevido de laxantes, diuréticos ou enemas).

Tipo Compulsão Periódica/Purgativo: durante o episódio atual de Anorexia

Nervosa, o indivíduo envolveu-se regularmente em um comportamento de

comer compulsivamente ou de purgação (isto é, auto-indução de vômito ou

uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas).

QUADRO 41.2 – Critérios Diagnósticos do CID-10 para

Anorexia Nervosa – F50.0A. O peso corporal é mantido em pelo menos 15% abaixo do esperado (tanto

perdido quanto nunca alcançado) ou o índice de massa corporal de Quetelet –

peso (kg) / altura2 (cm) – em 17,5 ou menos. Pacientes pré-puberes podem

apresentar falhas em alcançar o ganho de peso esperado durante o período de

crescimento;B. A perda de peso é auto-induzida por abstenção de “alimentos que

engordam” e um ou mais do que se segue: vômitos auto-induzidos; purgação

auto-induzida; exercício excessivo; uso de anorexígenos e /ou diuréticos;C. Há uma distorção da imagem corporal na forma de uma psicopatologia

específica por meio da qual um pavor de engordar persiste como uma idéia

intrusiva e sobrevalorada e o paciente impõe um baixo limiar de peso a si

próprio;D. Um transtorno endócrino generalizado envolvendo o eixo hipotalâmico-

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hipofisário-gonadal é manifestado em mulheres como amenorréia e em

homens como uma perda de interesse e potência sexuais (uma exceção

aparente é a persistência de sangramentos vaginais em mulheres anoréticas

que estão recebendo terapia de reposição hormonal, mais comumente tomada

como uma pílula contraceptiva). Pode também haver níveis elevados de

hormônio do crescimento, níveis aumentados de cortisol, alterações no

metabolismo periférico do hormônio tireoideano e anormalidades de secreção

da insulina;Se o início é pré-puberal, a seqüência de eventos da puberdade é demorada ou

mesmo detida (o crescimento cessa; nas garotas, os seios não se desenvolvem

e há uma amenorréia primária; nos garotos, os genitais permanecem juvenis).

Com a recuperação, a puberdade é com freqüência completada normalmente,

porém a menarca é tardia.Anorexia nervosa atípica – F50.3

Diagnostico utilizado quando um ou mais dos aspectos chave da anorexia

nervosa, tais como amenorréia ou perda de peso significativa, estão ausentes,

mas que por outro lado apresentam um quadro clínico razoavelmente típico.

Pacientes com todos os sintomas chave, mas somente num grau leve, podem

também ser melhor descritos através desse termo.

QUADRO CLÍNICO E EVOLUÇÃO

Um caso típico de anorexia nervosa usualmente manifesta-se durante o final da

infância e adolescência em meninas sem alterações prévias do crescimento e

desenvolvimento. Na grande maioria dos casos não há qualquer história psiquiátrica

pregressa e as pacientes são descritas como inteligentes, esforçadas, ambiciosas e muito

bem adaptadas, mantendo estas características nas primeiras fases da doença.(6)

A paciente começa a sentir-se insatisfeita com seu corpo e aparência, instituindo

um padrão de restrição alimentar progressivo no intuito de emagrecer. Num primeiro

momento, é comum que apenas alimentos considerados responsáveis por ganho de peso

sejam abandonados, como carboidratos e comidas gordurosas. Com o tempo, entretanto,

refeições inteiras passam a ser deixadas de lado ou limitadas a pequenas quantidades,

reduzindo drasticamente a ingesta calórica total.

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Cerca de metade das pacientes com anorexia nervosa apresentam episódios

recorrentes de compulsão alimentar (ver bulimia nervosa) e a utilização subseqüente de

métodos purgativos (vômitos induzidos, uso de laxantes, diuréticos, etc) para evitar um

possível ganho de peso.(2,20) Algumas pacientes mais graves podem utilizar estes

métodos rotineiramente, mesmo na ausência de episódios compulsivos, depois de comer

qualquer quantidade de alimentos.

A hiperatividade é freqüente, geralmente contabilizada pela paciente juntamente

com os esforços dietéticos na busca pelo emagrecimento. É comum o aumento da

atividade física dentro das atividades cotidianas – como subir e descer escadas muitas

vezes ou fazer longas caminhadas diárias – assim como a prática de exercícios físicos

progressivamente mais intensos, por vezes extenuantes. Tipicamente é feita a escolha

por atividades que possam ser realizadas de forma mais solitária, sendo menos

observada a prática de esportes coletivos.(6, 20)

Conforme previamente relatado, pacientes anoréticas tem o medo de engordar e

a distorção da imagem corporal como características psicopatológicas típicas, mesmo

em quadros avançados de desnutrição. Embora grande parte das pacientes se sinta obesa

de uma forma global, outras podem concentrar suas queixas em apenas determinadas

partes do corpo (como o abdome ou as coxas, por exemplo), afirmando-as inadequadas,

grandes ou gordas demais. A auto-observação do corpo e a quantificação de variações

reais ou imaginárias podem tornar-se verdadeiros rituais, com algumas pacientes se

pesando, medindo ou visitando o espelho em vários momentos do dia (por vezes depois

de cada pequena ingesta alimentar), temendo um possível ganho de peso.

Com a evolução do quadro, observa-se que, paralelamente à restrição alimentar e

a um emagrecimento contínuo e mantido, ocorre uma circunscrição progressivamente

maior do campo de interesses em assuntos relacionados a dietas, exercícios, estética e

emagrecimento. As pacientes tornam-se propensas a diversos distúrbios

comportamentais e alterações psiquiátricas como sintomas depressivos, irritabilidade,

labilidade de humor e isolamento social. Pode surgir algum grau de dificuldade escolar

ou a necessidade crescente de mais tempo de estudo para manter o rendimento no

padrão anterior. Um tempo cada vez menor é utilizado no sono e em atividades de lazer.

Apesar de todos os sintomas e dificuldades, a negação da doença é característica, sendo

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comumente observada uma marcante indiferença aos riscos apontados por familiares ou

equipe de saúde, mesmo em quadros avançados de caquexia.

Complicações clínicas possíveis incluem distúrbios hidroeletrolíticos,

comprometimento cardíaco (arritmias, principalmente), distúrbios na motilidade

gastrointestinal, infertilidade, hipotermia e outros sintomas relacionados ao

hipometabolismo. A amenorréia, mesmo com poucos meses de duração, pode estar

associada com osteopenia, podendo progredir para quadro potencialmente irreversível

de osteoporose, aumentando o risco de fraturas patológicas. A mortalidade decorrente

de complicações relacionadas diretamente ao diagnóstico de anorexia nervosa foi

estimada entre 5-7%, podendo atingir até 20% em alguns estudos com vários anos de

seguimento.(2,20, 36)

Diversas comorbidades psiquiátricas são freqüentemente encontradas entre

pacientes com anorexia nervosa, podendo complicar de forma marcante sua evolução.

Entre elas destacam-se os transtornos de humor (principalmente as síndromes

depressivas, presentes entre 50-75% dos casos), o transtorno obsessivo-compulsivo (em

até 25% dos casos), os transtornos de ansiedade (principalmente a fobia social), os

transtornos de personalidade (42-75% dos casos) e o abuso de substâncias (12-18% dos

casos). As pacientes anoréticas com comportamentos bulímicos associados tendem a

manifestar maior espectro de comorbidades, incluindo tendências suicidas e auto-

agressivas.(2, 20)

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Os vários quadros clínicos e psiquiátricos que cursam com emagrecimento e

diminuição da ingesta alimentar devem ser diferenciados do quadro anorético típico.

Tendo em vista que muitas pacientes são conduzidas ao tratamento de forma

involuntária, negando a possibilidade de estarem doentes, pode ser difícil conseguir

alguns dados importantes na anamnese inicial. É importante afastar causas físicas para a

perda de peso, particularmente patologias gastrointestinais, lembrando inclusive da

possibilidade de comorbidades clínicas desta natureza em uma paciente com diagnóstico

prévio de anorexia nervosa. O adequado reconhecimento dos sintomas apresentados por

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cada paciente em particular, especialmente seu posicionamento subjetivo frente ao

emagrecimento, é a diretriz principal para o adequado diagnóstico diferencial.

Nos quadros depressivos pode ocorrer perda de peso expressiva secundária ao

verdadeiro sintoma anorexia (diminuição do apetite), não havendo busca pelo

emagrecimento ou temor de engordar como na anorexia nervosa. Além disso, existe na

depressão um sentimento geral de ineficiência ou incapacidade, enquanto a perda da

auto-estima na anorética se acha ligada particularmente ao peso e à imagem

corporal.(11,20,30)

Na esquizofrenia de início precoce, sintomas como negativismo, retraimento

emocional, indecisão e recusa alimentar por motivos delirante-alucinatórios podem

aproximar este diagnóstico do quadro descrito na anorexia nervosa. Neste último,

contudo, não estão presentes as alterações fundamentais da esquizofrenia nas áreas do

afeto, distúrbios do pensamento e volição.(11,30)

Nos quadros ansiosos é possível encontrar sintomas como evitação de alimentos

ou de situações relacionadas ao ato social de comer. A fobias alimentares e a fobia

social são os principais exemplos. Novamente, a ausência do emagrecimento como

motivação permite o diagnóstico diferencial.(11)

TRATAMENTO

São vários os objetivos do tratamento de pacientes com anorexia nervosa, uma

vez que se trata de uma patologia multifacetada e de etiologia ainda desconhecida. É

fundamental traçar um plano terapêutico individualizado, definindo prioridades de ação

de acordo com as particularidades de cada caso.

A definição do espaço adequado é de suma importância, podendo ser utilizados

recursos de maior ou menor complexidade de acordo com a severidade do caso:

atendimentos ambulatoriais, hospital-dia, internações domiciliares, nos hospitais

clínicos ou em unidades especializadas em transtornos alimentares. Parâmetros

utilizados nesta decisão envolvem grau de emagrecimento da paciente (considerar

internação se abaixo de 75% do peso esperado), exigência de equipamentos hospitalares

ou monitorização próxima, instabilidade clínica, grau de cooperação da paciente e

familiares, comorbidades, risco de suicídio e disponibilidade de recursos financeiros.(2, 3)

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A atenção psicoterápica é um dos aspectos centrais do tratamento e deve ser

instituída assim que possível. Técnicas psicoterápicas de diferentes orientações

(cognitivo-comportamental, interpessoal, psicodinâmica) têm sido propostas no

tratamento da anorexia nervosa e sua descrição foge do objetivo deste capítulo. A

criação de um vínculo sólido entre paciente e o terapeuta é o componente essencial em

todo trabalho psicoterápico e seu manejo é crucial para que as várias etapas do

tratamento possam ser ultrapassadas com êxito. O terapeuta deve estar atento as

diferentes necessidades de cada fase, estando pronto para intervir juntamente com a

equipe em momentos delicados – como em procedimentos involuntários – e oferecer ao

mesmo tempo um espaço propício para a escuta dos determinantes psíquicos da

paciente em questão. A flexibilidade necessária ao terapeuta pode ser exemplificada nos

momentos em que predomina um quadro de desnutrição mais severa, quando a presença

de distúrbios cognitivos geralmente inviabiliza intervenções que ultrapassem uma

abordagem suportiva.

A família representa um papel fundamental, particularmente em pacientes mais

jovens. Famílias desestruturadas, ausentes ou superprotetoras podem dificultar

severamente o tratamento, por vezes inviabilizando tratamentos externos. É importante

criar um canal de comunicação adequado entre equipe e familiares para possibilitar um

adequado intercâmbio de informações e, se constatada necessidade, indicar terapia

familiar.(2,33)

Os psicofármacos são utilizados principalmente no tratamento de comorbidades

psiquiátricas e também na prevenção de recaídas durante a fase de manutenção. Nas

fases agudas será sempre necessário realizar uma avaliação criteriosa do custo-benefício

para uso de cada medicamento, tendo em vista os maiores riscos de efeitos colaterais em

pacientes debilitadas. O uso de antidepressivos deve ser considerado nos casos

marcados por persistência de depressão clínica, sintomas obsessivo-compulsivos ou

quadros ansiosos, particularmente se não é observada melhora com ganho de peso. Os

inibidores seletivos da recaptação de serotonina são os mais estudados, tendo se

mostrado relativamente seguros. Existem evidências sugerindo efeitos benéficos no uso

da fluoxetina durante fase de manutenção, após recuperação do peso, podendo diminuir

risco de recaídas. Embora ainda não existam estudos controlados comprovando eficácia,

alguns relatos de caso sugerem benefício relativo no uso de antipsicóticos

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(particularmente os atípicos) em baixas doses, principalmente em pacientes muito

ansiosas, agitadas e com traços obsessivo-compulsivos graves.(2, 20)

BULIMIA NERVOSA

CONCEITO

O sintoma bulímico é conhecido há vários séculos – do grego bous (boi) e limus

(fome); literalmente “fome de comer um boi” ou “fome de comer como um boi” –

significando um apetite insaciável que conduz à ingestão de uma grande quantidade de

alimentos. Assim descrito, poderia ser confundido com os conceitos de hiperfagia

(comer excessivamente) ou polifagia (fome excessiva), tornando-se um sintoma muito

inespecífico, presente em uma série de patologias clínicas e psiquiátricas (diabetes

mellitus, hipertireoidismo, depressão atípica, etc).(6,10)

Entretanto, o episódio bulímico descrito por pacientes com transtornos

alimentares (ou episódio de compulsão alimentar, outra tradução proposta para a

expressão inglesa binge eating) apresenta algumas características peculiares e, na

maioria das vezes, não corresponde a um comportamento que visa atender a uma fome

exagerada. Ao contrário, pode surgir como resposta a diversos estados emocionais e

situações estressantes da vida cotidiana, principalmente quando envolvendo sentimentos

negativos (como ansiedade, depressão, tédio, solidão, etc). São ingestões alimentares

copiosas e marcadas por uma sensação subjetiva de descontrole, em geral secretas e

rápidas, nas quais o paciente só cessa a ingestão excessiva por algum tipo de mal-estar

físico (plenitude gástrica, náuseas, etc), por interrupção externa (chegada súbita de outra

pessoa, por exemplo) ou quando se esgotam os alimentos disponíveis.(6,10) Embora possa

ser utilizado como forma de alívio de tensão, a ocorrência de episódios bulímicos

provoca tipicamente fortes sentimentos de vergonha, tristeza e autocondenação.

Os episódios de compulsão alimentar foram percebidos classicamente em um

subgrupo de pacientes com anorexia nervosa, tendo sido descritos logo após os

primeiros relatos científicos da doença. Da mesma forma, foi registrada a presença uma

série de comportamentos potencialmente perigosos que visavam prevenir o aumento de

peso, tendo em vista que os acessos de voracidade incontrolável estavam ocorrendo

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dentro de um contexto marcado pelo medo mórbido de engordar. Entre os

comportamentos compensatórios possíveis podem ser citados vômitos auto-induzidos,

jejuns prolongados, exercícios excessivos, abuso de substâncias laxantes, anorexígenas

e diuréticas, etc.

A bulimia nervosa, contudo, só foi proposta como síndrome psiquiátrica por

Gerald Russel em 1979, a partir da descrição de pacientes com peso normal ou acima do

esperado com hábitos similares aos daquele subgrupo de pacientes anoréticas.(32) As

características centrais são os referidos episódios recorrentes de compulsões alimentares

seguidas de comportamentos compensatórios inadequados e a presença do medo

mórbido de engordar, usualmente manifesto como auto-estima excessivamente

influenciada por considerações a cerca da forma e peso do corpo.(1,6,10,32)

EPIDEMIOLOGIA

Embora a caracterização como entidade nosológica seja relativamente recente,

diversos estudos epidemiológicos têm sistematicamente demonstrado a morbidade

significativa e ampla distribuição da bulimia nervosa em várias partes do mundo,

particularmente em países ocidentais e industrializados. A prevalência de bulimia

nervosa entre mulheres adolescentes e adultas jovens varia entre 1,1 e 4,2%, de acordo

com os critérios diagnósticos utilizados. Assim como na anorexia nervosa, a bulimia

nervosa também é bem mais freqüente na população feminina, ocorrendo neste grupo

em cerca de 90% dos casos. A pico de incidência se localiza entre 18 e 19 anos de

idade, mas as pacientes costumam buscar ajuda apenas depois de alguns anos de doença

ativa (cerca de 3-5 anos).(2,12,15,20)

Aspectos sócio-culturais parecem exercer grande influência na bulimia nervosa,

talvez de forma ainda mais expressiva que no quadro anorético. A hipótese inicial de

um vínculo estrito entre o desencadeamento de sintomas alimentares e a exposição a

valores culturais ocidentais tem sido revista diante do achado sistemático de casos

significativos em outros ambientes culturais, particularmente quando em processo de

modernização. Um estudo recente realizado em Curaçao, onde caracteristicamente o

corpo esbelto não é apontado como padrão estético, demonstrou ausência de morbidade

significativa de bulimia nervosa, em contraposição a uma prevalência de anorexia

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nervosa comparável a países industrializados. Em um outro estudo realizado nas ilhas

Fiji, foi demonstrado aumento significativo de insatisfação corporal e comportamentos

bulímicos (como uso de vômitos para perda de peso) três anos após a chegada da

televisão, sugerindo um importante papel da mídia como forma de pressão social para o

emagrecimento. Assim como na anorexia nervosa, profissões relacionadas à

necessidade de controle do peso corporal para um melhor desempenho (atletas,

modelos, bailarinas, etc) estão em maior risco de desenvolvimento do transtorno.(3,20,22,23)

DIAGNÓSTICO

Os critérios diagnósticos das duas principais classificações modernas – o CID-10

(Classificação Internacional de Doenças – 10ª edição) e o DSM-IV (Diagnostic and

Statistical Manual of Mental Disorders – 4ª edição) – estão apresentados

respectivamente nos quadros 41.3 e 41.4.

QUADRO 41.3 – Critérios Diagnósticos do DSM-IV para Bulimia

Nervosa – 307.51A. Episódios recorrentes de compulsão periódica. Um episódio de compulsão

periódica é caracterizado por ambos os seguintes aspectos:

(1) ingestão, em um período limitado de tempo (por ex., dentro de um

período de 2 horas) de uma quantidade de alimentos definitivamente maior do

que a maioria das pessoas consumiria durante um período similar e sob

circunstâncias similares

(2) um sentimento de falta de controle sobre o comportamento alimentar

durante o episódio (por ex., um sentimento de incapacidade de parar de

comer ou de controlar o que ou quanto está comendo).B. Comportamento compensatório inadequado e recorrente, com o fim de

prevenir o aumento de peso, como auto-indução de vômito, uso indevido de

laxantes, diuréticos, enemas ou outros medicamentos, jejuns ou exercícios

excessivos.C. A compulsão periódica e os comportamentos compensatórios inadequados

ocorrem, em média, pelo menos duas vezes por semana, por três meses.

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Faustino Teixeira Neto

D. A auto-avaliação é indevidamente influenciada pela forma e peso do

corpo.E. O distúrbio não ocorre exclusivamente durante episódios de Anorexia

Nervosa.Especificar tipo:

Tipo Purgativo: durante o episódio atual de Bulimia Nervosa, o indivíduo

envolveu-se regularmente na auto-indução de vômitos ou no uso indevido de

laxantes, diuréticos ou enemas.

Tipo Sem Purgação: durante o episódio atual de Bulimia Nervosa, o

indivíduo usou outros comportamentos compensatórios inadequados, tais

como jejuns ou exercícios excessivos, mas não se envolveu regularmente na

auto-indução de vômitos ou no uso indevido de laxantes, diuréticos ou

enemas.

QUADRO 41.4 – Critérios Diagnósticos do CID-10 para

Bulimia Nervosa – F50.2A. Há uma preocupação persistente com o comer e um desejo irresistível de

comida; o paciente sucumbe a episódios de hiperfagia, nos quais grandes

quantidades de alimento são consumidas em curtos períodos de tempo;B. O paciente tenta neutralizar os efeitos “de engordar” dos alimentos através

de um ou mais do que se segue: vômitos auto-induzidos; abuso de purgantes,

períodos alternados de inanição; uso de drogas tais como anorexígenos,

preparados tireoideanos ou diuréticos. Quando a bulimia ocorre em pacientes

diabéticos, eles podem escolher negligenciar seu tratamento insulínico;C. A psicopatologia consiste de um pavor mórbido de engordar e o paciente

coloca para si mesmo um limiar de peso nitidamente definido, bem abaixo de

seu peso pré-mórbido que constitui o peso ótimo ou saudável na opinião do

médico. Há freqüentemente, mas não sempre, história de um episódio prévio

de anorexia nervosa, o intervalo entre os dois transtornos variando de poucos

meses a vários anos. Esse episódio prévio pode ter sido completamente

expressado ou pode ter assumido uma forma disfarçada menor, com uma

perda de peso moderada e/ou uma fase transitória de amenorréia.

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Bulimia nervosa atípica – F50.3

Diagnostico utilizado quando um ou mais dos aspectos chave listados para

bulimia nervosa estão ausentes em um quadro clínico claramente típico.

QUADRO CLÍNICO E EVOLUÇÃO

Os primeiros episódios de compulsão alimentar costumam surgir depois de

algum tempo dentro de um contexto de restrição dietética (poucas semanas até vários

meses). Conforme dito anteriormente, não estão necessariamente relacionados à fome,

que figura apenas como mais um entre vários fatores precipitantes (situações

estressantes, tensão emocional, sentimentos negativos, etc). Algumas pacientes podem

referir desencadeamento de episódios bulímicos também em experiências positivas,

principalmente quando associadas a algum grau de tensão emocional.

Caracteristicamente, estes episódios ocorrem de forma solitária, às escondidas,

envolvem uma grande quantidade de comida – média de 3 a 5 mil calorias – e são

acompanhados de uma forte sensação subjetiva de descontrole. É comum o relato de

uma ingestão bastante rápida, sem que a paciente se detenha na percepção da textura ou

sabor dos alimentos em questão. Os alimentos escolhidos geralmente são de fácil

acesso, muitas vezes ricos em carboidratos e evitados em dietas hipocalóricas, como

doces, chocolates, biscoitos, leite condensado, etc. Pode ocorrer ainda a ingestão

simultânea ou bastante próxima de alimentos considerados pouco compatíveis em

situações normais. Algumas pacientes referem vergonha de se alimentar diante de outras

pessoas em qualquer situação, temendo desencadear um episódio compulsivo e comer

de forma inadequada ou descontrolada.

A ocorrência do episódio bulímico leva a paciente a experimentar desconforto

físico e emocional, com sentimentos de culpa, inadequação, vergonha de si e o

característico temor de engordar. Medidas compensatórias diversas são adotadas num

esforço equivocado de impedir que a ingestão excessiva de alimentos cause ganho de

peso. A técnica mais comum é a indução de vômito logo após um episódio de

compulsão alimentar, sendo empregado por cerca de 90% dos indivíduos com bulimia

nervosa que se apresentam para tratamento em clínicas de transtornos alimentares.(3) A

indução ocorre através de uma grande variedade de métodos, incluindo o uso dos dedos

ou instrumentos para estimular o reflexo de vômito. Com o tempo, várias pacientes

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tornam-se capazes de vomitar apenas com desejo voluntário. Os efeitos imediatos

incluem alívio do desconforto físico e redução do medo de ganhar peso. Outros

comportamentos purgativos incluem o uso indevido de diversos tipos de laxantes (em

cerca de um terço dos casos), diuréticos de várias classes, substâncias eméticas e, mais

raramente, a realização de enemas. Em muitos casos pode ser também encontrado o uso

sistemático de anorexígenos e hormônios tireoideanos, por vezes em doses muito acima

das habituais.

A prática de rigorosos programas de exercícios físicos é bastante freqüente,

podendo exceder limites saudáveis. Exercícios podem ser considerados excessivos

quando interferem significativamente em atividades importantes, quando ocorrem em

momentos ou contextos inadequados ou quando o indivíduo continua se exercitando

apesar de lesionado ou de outras complicações médicas.

Pacientes com bulimia nervosa colocam uma ênfase excessiva na forma ou no

peso do corpo em sua auto-avaliação, sendo esses fatores, tipicamente, os mais

importantes na determinação da auto-estima. O transtorno pode aproximar-se bastante

da anorexia nervosa em relação à presença da insatisfação corporal, marcada pelo forte

temor de engordar e o constante desejo de emagrecer. É freqüente que estas pacientes

fixem seu peso ideal num valor próximo do limite inferior aceitável para peso e estatura,

não medindo esforços para alcançá-lo.(6)

Com o passar do tempo e a progressão do quadro, qualquer pequeno

contratempo da vida cotidiana pode desencadear um episódio compulsivo-purgativo. A

grande maioria das pacientes bulímicas passa a não ter refeições regulares, em parte

pelo desejo de emagrecer, utilizando o jejum como medida compensatória, mas também

pela sensação crônica de descontrole sobre o ato de comer (temem o desencadeamento

de um episódio compulsivo sempre que se propõe a comer algo). Em alguns casos, as

pacientes só se alimentam durante episódios de compulsão alimentar, em um padrão que

alterna jejum completo com episódios compulsivos freqüentes seguidos por métodos

purgativos. Grande parte do tempo e dos esforços pessoais se direciona para assuntos

relacionados ao corpo e emagrecimento, por vezes tornando-se o único tema possível.

Pacientes com bulimia nervosa apresentam comorbidades psiquiátricas numa

freqüência maior que a população em geral. Sintomas depressivos e ansiosos são muito

comuns ao quadro bulímico. Transtornos do humor claramente manifestos como a

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distimia e episódios depressivos podem ocorrer em até 50-75% dos casos. Transtornos

ansiosos, particularmente a fobia social, também são bastante freqüentes. Muitas vezes

o quadro afetivo tem seu início muito próximo ao desenvolvimento da bulimia nervosa,

com algumas pacientes associando os sintomas ansiosos e depressivos unicamente aos

sintomas bulímicos. De fato, muitos distúrbios do humor e de ansiedade remitem com o

tratamento efetivo da bulimia nervosa. Entre 30-37% dos pacientes bulímicos tem

algum tipo de dependência química, particularmente envolvendo álcool e estimulantes.

Também é observada maior correlação com transtornos da personalidade,

principalmente com o transtorno de personalidade borderline. (2)

As complicações clínicas mais freqüentes estão associadas aos hábitos

purgativos, particularmente à indução voluntária de vômitos. Uma perda significativa e

permanente do esmalte dentário, especialmente das superfícies linguais dos dentes da

frente pode ser observada. Esses dentes podem apresentar pequenas fraturas e ter uma

aparência serrilhada e corroída, além de estarem mais vulneráveis às cáries dentárias.

Em alguns indivíduos, as glândulas salivares – particularmente as glândulas parótidas –

podem tornar-se notavelmente hipertróficas deixando a face com aparência

arredondada. A estimulação periódica da glote pode causar calos e cicatrizes na

superfície dorsal da mão, por traumas repetidos produzidos pelos dentes, produzindo o

chamado sinal de Russel. O uso abusivo de laxantes pode perturbar severamente a

motilidade intestinal. Casos mais graves podem apresentar distúrbios hidroeletrolíticos

em graus variados (principalmente a hipopotassemia), arritmias cardíacas e, mais

raramente, ruptura gástrica ou esofágica(2, 20).

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Conforme salientado anteriormente, sintomas como polifagia, hiperfagia e

mesmo episódios de compulsão alimentar podem ocorrer em uma série de doenças

clínicas e psiquiátricas, sendo também encontrados ocasionalmente em pessoas sem

qualquer patologia específica (por exemplo, quando a alimentação ocorre após período

razoável de jejum). As bases do diagnóstico diferencial da bulimia nervosa residem na

correta caracterização de um ciclo compulsivo/purgativo recorrente dentro do contexto

psicopatológico típico, marcado pela problemática relacionada à imagem corporal.

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A diferenciação entre bulimia nervosa e anorexia nervosa pode ser difícil, tendo

em vista que muitas pacientes apresentam sintomas de ambos quadros clínicos, de

forma alternada ou simultânea. Esta distinção é realizada principalmente através da

presença de emagrecimento significativo e distúrbios endocrinológicos nas pacientes

com anorexia nervosa. No DSM-IV, a possibilidade de especificar formas restritiva e

purgativa permite utilizar o segundo diagnóstico quando os episódios

compulsivos/purgativos ocorrem apenas durante o curso de um quadro típico de

anorexia nervosa, impedindo o diagnóstico de bulimia nervosa (ver critério E, quadro

41.3). No CID-10, esta diferenciação torna-se mais difícil, sendo necessário formular os

dois diagnósticos conjuntamente. Pacientes com diagnóstico anterior de anorexia

purgativa que mantenham episódios de compulsão alimentar e medidas compensatórias

após normalização do peso e funções endocrinológicas constituem um problema

também no DSM-IV: o julgamento clínico do caso em questão deverá situar o

diagnóstico como uma remissão parcial do quadro anorético ou como quadro ativo de

bulimia nervosa.(1, 6, 12)

Em certas condições neurológicas ou outras condições médicas gerais, tais como

a síndrome de Kleine-Levin, existe uma perturbação do comportamento alimentar, mas

os aspectos psicológicos característicos da bulimia nervosa, tais como preocupação

exagerada com a forma e o peso do corpo, não estão presentes.(10,12)

A hiperfagia é comum na depressão com características atípicas, por vezes de

forma muito próxima a um episódio de compulsão alimentar. Contudo, esses pacientes

não se dedicam a um comportamento compensatório inadequado nem demonstram a

característica preocupação exagerada com a forma e o peso do corpo. Se também

ocorrem sintomas típicos de bulimia nervosa, devem ser formulados ambos

diagnósticos.(1,12)

O comportamento de compulsão alimentar periódica é incluído no critério de

comportamento impulsivo que faz parte da definição do Transtorno da Personalidade

Borderline do DSM-IV. Se todos os critérios para os dois transtornos são satisfeitos,

podem ser dados ambos os diagnósticos.(1)

TRATAMENTO

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A grande maioria das pacientes com diagnóstico de bulimia nervosa pode ser

tratada ambulatorialmente, sendo reservados espaços terapêuticos mais restritos

(hospital-dia, internações) para casos significativamente mais graves. Muitas vezes esta

gravidade está relacionada a complicações e comorbidades psiquiátricas, sendo bem

menos freqüente uma internação causada por sintomas próprios da bulimia (no caso,

ciclos incoercíveis compulsivo-purgativos).

A psicoterapia deve ser sistematicamente instituída sempre que houver um

terapeuta habilitado para conduzi-la. Diversas técnicas envolvendo diferentes

orientações podem ser propostas na abordagem destas pacientes e a descrição de cada

uma delas não faz parte dos objetivos deste capítulo. A modalidade cognitivo-

comportamental tem sido apontada por muitos pesquisadores como a intervenção

isolada mais eficaz na redução dos sintomas bulímicos, com benefícios adicionais

quando realizada juntamente com o uso de medicamentos.

Uma técnica particularmente útil envolve a elaboração de um diário alimentar,

onde a paciente passa a registrar suas refeições e episódios compulsivos assim que

ocorrem, juntamente com os sentimentos e elementos ambientais presentes no momento

daquela ingesta em especial. Durante as sessões seguintes, as pacientes são convidadas a

falar e discutir pontos difíceis do material obtido, tornando possível uma série de

intervenções psicoterápicas simples – algumas com grande efeito no curso da doença.

Como um exemplo, muitas pacientes conseguem vislumbrar pontos em comum no

desencadeamento de episódios de compulsão alimentar e, com o progresso da terapia,

elaborar melhores soluções para os mesmos. De fato, a própria realização do diário pode

alcançar benefícios terapêuticos ao propor um espaço contínuo de breves reflexões

durante o dia.(16)

A abordagem familiar pode ser bastante útil, particularmente em pacientes mais

jovens e dependentes. Tendo em vista que muitas bulímicas procuram atenção médica já

adultas, por vezes o cônjuge poderá ser o familiar mais importante no cotidiano da

paciente. Uma abordagem ao mesmo tempo informativa e suportiva deve ser oferecida

sempre que houver demanda ou constatada necessidade. A indicação de terapia familiar

usualmente só será necessária em casos mais graves.(2,33)

A farmacoterapia é de grande valor na bulimia nervosa, tanto na redução dos

sintomas compulsivo/purgativos como no tratamento das comorbidades associadas. Os

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antidepressivos são a medicação de primeira escolha, tendo sido comprovado um efeito

específico antibulímico, reduzindo de forma significativa o número e da intensidade dos

episódios de compulsão alimentar independente da presença de sintomas depressivos.

Além disso, um grande número de comorbidades psiquiátricas comuns nas pacientes

bulímicas (transtornos depressivos, transtornos ansiosos, transtorno obsessivo-

compulsivo, etc) podem ser tratadas com estes medicamentos. O uso da fluoxetina na

dose de 60 mg/dia tem sido considerado a primeira indicação no tratamento

farmacológico da bulimia nervosa, tendo em vista um maior número de estudos

científicos e a aprovação do FDA específica para este fim. Entretanto, até o presente

momento não existem evidências provando eficácia superior de um antidepressivo em

relação a outro, devendo ser observados princípios gerais de tolerabilidade aos efeitos

colaterais e maior probabilidade de adesão ao tratamento para escolha da droga em

questão. Pacientes que não respondem bem a um primeiro antidepressivo podem

beneficiar-se de uma segunda medicação, preferencialmente de classe

terapêutica/mecanismo de ação diferente.(2,4,18)

SÍNDROMES ALIMENTARES ATÍPICAS OU PARCIAIS

Apesar da proposição diagnóstica dos atuais sistemas de classificação de

doenças permitir diagnosticar apenas duas síndromes alimentares típicas, cerca de um

terço dos pacientes que buscam atendimento apresentam sintomas que não se

enquadram adequadamente em nenhuma delas. Em alguns casos não é observado um

sintoma essencial ao diagnóstico, mas o quadro geral parece bastante típico. Em outros,

apesar da presença de todos os critérios, os sintomas não atingiram um nível de

gravidade suficiente para a classificação.(17)

Estes quadros devem ser classificados no CID-10 como anorexia nervosa ou

bulimia nervosa atípicas, e no DSM-IV como transtorno alimentar não especificado. É

importante fazer um adequado diagnóstico diferencial com outras patologias clínicas e

psiquiátricas, evitando equívocos desastrosos como diagnosticar anorexia nervosa

atípica em uma paciente com quadro grave de caquexia secundário a uma moléstia

física não diagnosticada até aquele momento.

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Faustino Teixeira Neto

Estudos epidemiológicos supõem uma prevalência destes transtornos cerca de

cinco vezes maior que os índices para síndromes completas. Alguns autores fizeram

estudos de seguimento dos quadros atípicos e descobriram que cerca da metade destes

desenvolve um quadro típico. Assim sendo, uma vez excluídos os diagnósticos

diferenciais, é importante encarar uma síndrome atípica como um possível diagnóstico

precoce de um transtorno alimentar completo, instituindo tratamento apropriado.(17, 21)

TRANSTORNO DA COMPULSÃO ALIMENTAR PERIÓDICA (TCAP)

O transtorno da compulsão alimentar periódica é uma tradução proposta para o

binge eating disorder, uma entidade nosológica considerada ainda em pesquisa, estando

presente no apêndice B do DSM-IV. O transtorno é marcado principalmente pela

presença de episódios recorrentes de compulsão alimentar com todas as suas

características psicopatológicas, mas sem a presença dos comportamentos

compensatórios típicos da bulimia nervosa (ver bulimia nervosa). Os critérios

diagnósticos propostos pelo DSM-IV são apresentados no quadro 41.5.

QUADRO 41.5 – Critérios Diagnósticos do DSM-IV para

Transtorno da Compulsão Alimentar PeriódicaA. Episódios recorrentes de compulsão periódica. Um episódio de compulsão

periódica é caracterizado por ambos os seguintes aspectos:

(1) ingestão, em um período limitado de tempo (por ex., dentro de um

período de 2 horas) de uma quantidade de alimentos definitivamente maior do

que a maioria das pessoas consumiria durante um período similar e sob

circunstâncias similares

(2) um sentimento de falta de controle sobre o comportamento alimentar

durante o episódio (por ex., um sentimento de incapacidade de parar de

comer ou de controlar o que ou quanto está comendo).B. Os episódios de compulsão periódica estão associados a três (ou mais) dos

seguintes critérios: 1 – Comer muito mais rapidamente que o normal; 2 –

comer até sentir-se incomodamente repleto; 3 – comer grandes quantidades

de alimento, quando não fisicamente faminto; 4 – comer sozinho, por

embaraço pela quantidade de alimentos que consome; 5 – sentir repulsa por si

mesmo, depressão ou demasiada culpa por comer excessivamente;

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Faustino Teixeira Neto

C. Acentuada angústia relativa à compulsão periódica;D. A compulsão periódica ocorre, pelo menos dois dias por semana, durante

seis meses.E. A compulsão periódica não está associada co o uso regular de

comportamentos compensatórios inadequados (por exemplo, purgação,

jejuns, exercícios excessivos), nem ocorre durante o curso de anorexia

nervosa ou bulimia nervosa.

A grande maioria dos pacientes é obesa. A prevalência relatada nos EUA está

em torno de 2% na população em geral; em cerca de 30% dos pacientes que procuram

tratamento para emagrecer e em 71% do grupo dos Comedores Compulsivos Anônimos.

Em um estudo brasileiro foi encontrado 16% de TCAP em mulheres obesas que

procuravam ajuda com o programa dos Vigilantes do Peso. (7,26)

Tendo em vista que se trata de um diagnóstico muito recente, ainda em fase de

validação, muitos estudos ainda serão necessários para definir suas características

principais, complicações e comorbidades. Os trabalhos atuais têm demonstrado maior

gravidade da obesidade em pessoas com TCAP do que em pacientes apenas sem TCAP.

Além disso, alguns autores relacionam o diagnóstico com início mais precoce da

obesidade e com má resposta aos tratamentos propostos para redução de peso.(3,7,26)

O tratamento envolve orientação dietética adequada, com refeições regulares,

atenção psicoterápica e o uso de antidepressivos, principalmente os inibidores seletivos

da recaptação da serotonina. Alguns fármacos têm se mostrado úteis no tratamento

(como o topiramato e a sibutramina), mas necessitam de mais estudos para definir sua

real eficácia.(3,7)

TERAPIA NUTRICIONALFaustino Teixeira Neto

Como pôde ser visto, o tratamento de pacientes acometidos por transtornos alimentares,

especialmente os portadores de anorexia nervosa, deve ser conduzido por uma equipe

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Faustino Teixeira Neto

multiprofissional a qual deve incluir psiquiatra, psicoterapeuta, fisioterapeuta,

nutricionista e clínico.

ANOREXIA NERVOSA

De início, o exame clínico minucioso e cuidadoso deve preceder qualquer outro

procedimento no sentido de confirmar o diagnóstico e fazer um levantamento detalhado

das condições gerais do paciente.

Atenção especial deve ser dirigida aos diagnósticos diferenciais cujas principais

doenças incluem a doença inflamatória intestinal, o diabetes mellitus, o

hipertireoidismo, a tuberculose, os distúrbios gastrointestinais diversos, o câncer e a

depressão.

A avaliação do perfil nutricional e metabólico constitui medida de extrema

importância não só para o conhecimento, em profundidade, do grau da desnutrição, para

a confecção de um plano terapêutico adequado, com serve de parâmetro no

acompanhamento do paciente quanto a sua resposta ao tratamento estabelecido.

As alterações metabólicas que ocorrem na anorexia nervosa são semelhantes às

do jejum não complicado. O organismo, na tentativa de reduzir o gasto energético e

preservar a proteína corporal, diminui a taxa metabólica basal que pode atingir uma

redução de até 50% nos casos de desnutrição acentuada e prolongada. O estado

hipometabólico leva a uma redução de todas as atividades orgânicas manifestando-se

por bradicardia, diminuição da freqüência respiratória, queda do consumo de oxigênio,

diminuição da produção de CO2, hipotensão arterial e, até mesmo, hipotermia.

A dieta, por via oral, deve ser tentada como primeira opção respeitando-se as

preferências alimentares individuais dos pacientes.

As dietas devem ser balanceadas e nutricionalmente completas.

Inicialmente, deve-se dar preferência às dietas líquidas e concentradas

(hipercalóricas e hiperprotéicas) distribuídas em pequenas refeições administradas em

curtos intervalos de tempo.

Alimentos gelados ou na temperatura ambiente são preferíveis aos aquecidos por

diminuírem o tempo de esvaziamento gástrico e evitar a saciedade precoce e a sensação

de empachamento.

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Faustino Teixeira Neto

O uso de suplementos protéicos, vitamínicos e minerais são úteis e quase sempre

são necessários.

Dietas industrializadas para a nutrição enteral administradas por via oral, como

complemento à alimentação normal, podem ser de grande valia.

Quando o paciente se recusa a receber alimentos por via oral, nas quantidades

necessárias, deve-se recorrer à nutrição enteral a qual poderá se aplicada no domicílio

do paciente, sob supervisão da equipe de terapia nutricional.

A nutrição enteral deverá ser iniciada com um pequeno aporte nutricional em

torno de 20 Kcal/Kg/dia (800 a 1.200 Kcal/dia). A sua progressão deverá ser lenta e

cuidadosa para prevenir a ocorrência da síndrome de realimentação. Esta síndrome está

relacionada com a passagem do estado de catabolismo para o de anabolismo onde o

consumo aumentado, principalmente dos íons de maior concentração intra-celular (K,

Ca, P e Mg) leva a uma diminuição nas suas concentrações séricas podendo levar até à

morte.

Segundo alguns autores, os anoréticos podem necessitar de grande ingestão

calórica da ordem de 70 a 100 Kcal/Kg/dia (4.000 a 5.000 Kcal/dia) para apresentarem

ganho de peso da ordem de 1 a 1,5 Kg/semana(25). Após a estabilização deste estado

hipermetabólico, o aporte calórico deve ser gradualmente diminuído até se atingir uma

taxa calórica normal em torno de 30 Kcal/kg/dia.

Nos casos de desnutrição muito grave com risco de vida, o paciente deve ser

hospitalizado.

Muitas vezes os pacientes se recusam a receber a nutrição enteral também.

Outras vezes, por motivos mal compreendidos, manifestam grande intolerância à

nutrição enteral tendo sido descrito distensão abdominal, vômitos, distensão gástrica

com sensação de empachamento, íleo adinâmico e, até mesmo, pancreatite aguda(8,24,34).

Nestes casos deve-se recorrer à nutrição parenteral.

BULIMIA NERVOSA

Enquanto os anoréticos se recusam a comer, os bulímicos comem

compulsivamente e, motivados pelo sentimento de culpa e medo excessivo de engordar,

tentam eliminar os alimentos ingeridos através da prática de vômitos forçados e com o

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uso drogas, tais como laxantes, diuréticos, eméticos e outras. Práticas estas nem sempre

eficazes ao atendimento de suas expectativas. Por isso os bulímicos não se apresentam

tão emagrecidos como os anoréticos. Mas, apesar dos bulímicos se apresentarem,

usualmente, com peso próximo ao normal, é preciso estar atento à presença de

distúrbios nutricionais, freqüentemente vistos, secundários às práticas de vômitos

forçados e uso de purgantes, tais como hipocalcemia e outros desequilíbrios

eletrolíticos, além de lesões orgânicas que podem comprometer a alimentação saudável,

tais como danos dentários, esofagite, gastrite, colite dentre outras.

Estes pacientes devem ser tratados com dietas por via oral sob supervisão direta

do nutricionista.

Recomenda-se evitar, de início e tanto quanto possível, os alimentos

anteriormente "proibidos" pelo paciente, respeitando as suas preferências individuais.

Os pacientes bulímicos, raramente precisam da nutrição enteral e quase nunca

necessitam ser hospitalizados.

TRANSTORNO DA COMPULSÃO ALIMENTAR PERIÓDICA

Embora os pacientes portadores dessa condição se apresentem, usualmente,

como obesos, observa-se, com freqüência, maior refratariedade aos tratamentos

comumente propostos para a obesidade em geral.. É importante salientar que a

abordagem psiquiátrica, nestes casos, deve se constituir na pedra angular de todo o

conjunto de medidas terapêuticas a serem aplicadas nestes pacientes. Os cuidados

nutricionais, propriamente ditos, dirigidos à obesidade em geral podem ser melhor

vistos no Capítulo 16.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental

Disorders, Fourth Edition. Washington, DC, American Psychiatry Press, 1994.

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Faustino Teixeira Neto

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