Federalismo e Descentralização na Constituição

48
INTRODUÇÃO A “terceira onda de democratização” tem produzido nos países nela envolvidos diferentes experiências e resultados. Em al- guns, a redemocratização implicou a elaboração de Constituições “refundadoras”, gerando novos pactos e compromissos políticos e sociais. Em outros, ela foi acompanhada da descentralização política e financeira para os governos subnacionais. Em muitos países fede- rais, a redemocratização, a descentralização e as novas Constituições mudaram o papel dos entes federativos. O Brasil é um exemplo onde todos esses fatores ocorreram simultaneamente. A Constituição de 1988 desenhou uma ordem institucional e federati- va distinta da anterior. Voltada para a legitimação da democracia, os constituintes de 88 optaram por duas principais estratégias para construí-la: a abertura para a participação popular e societal e o com- 513 Revista Dados 1ª Revisão: 11.10.2001 Cliente: Iuperj – Produção: Textos & Formas *Este artigo é uma versão revista e atualizada de dois capítulos anteriormente publica- dos em livro (ver Souza, 1997). Agradeço a Fernando Abrucio, parecerista deste artigo, pelos inúmeros comentários e sugestões. DADOS — Revista de Ciências Sociais , Rio de Janeiro, Vol. 44, nº 3, 2001, pp. 513 a 560. Federalismo e Descentralização na Constituição de 1988: Processo Decisório, Conflitos e Alianças* Celina Souza

Transcript of Federalismo e Descentralização na Constituição

  • INTRODUO

    A terceira onda de democratizao tem produzido nos pasesnela envolvidos diferentes experincias e resultados. Em al-guns, a redemocratizao implicou a elaborao de Constituiesrefundadoras, gerando novos pactos e compromissos polticos esociais. Em outros, ela foi acompanhada da descentralizao polticae financeira para os governos subnacionais. Em muitos pases fede-rais, a redemocratizao, a descentralizao e as novas Constituiesmudaram o papel dos entes federativos. O Brasil um exemplo ondetodos esses fatores ocorreram simultaneamente.

    A Constituio de 1988 desenhou uma ordem institucional e federati-va distinta da anterior. Voltada para a legitimao da democracia, osconstituintes de 88 optaram por duas principais estratgias paraconstru-la: a abertura para a participao popular e societal e o com-

    513

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

    *Este artigo uma verso revista e atualizada de dois captulos anteriormente publica-dos em livro (ver Souza, 1997). Agradeo a Fernando Abrucio, parecerista deste artigo,pelos inmeros comentrios e sugestes.

    DADOS Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 44, n 3, 2001, pp. 513 a 560.

    Federalismo e Descentralizao na Constituiode 1988: Processo Decisrio, Conflitos eAlianas*

    Celina Souza

  • promisso com a descentralizao tributria para estados e munic-pios. Da primeira estratgia resultou uma engenharia constitucionalconsociativa em que prevaleceu a busca de consenso e a incorporaodas demandas das minorias. A segunda moldou um novo federalis-mo, tornando-o uma das mais importantes bases da democracia re-construda em 1988.

    Neste artigo, analiso o processo decisrio ocorrido na AssembliaNacional Constituinte relativo s mudanas na Federao e decisode descentralizar poder poltico e financeiro para as esferas subnacio-nais. A (re)construo de um sistema federal voltado para a divisode poder poltico e tributrio sem promover desequilbrio entre os en-tes federativos tarefa intrinsecamente contraditria, gerando, por-tanto, conflitos e tenses1. Baseado em dados empricos, o trabalhobusca entender: a) por que um pas com uma agenda de problemasque requer polticas nacionais decide descentralizar poder poltico efinanceiro; b) os conflitos, alianas e contradies gerados pelas deci-ses tomadas pelos constituintes, naquele momento histrico, em re-lao Federao.

    Argumento que, embora a deciso de descentralizar poder poltico efinanceiro, o que gerou um novo federalismo, tenha sido marcada porconflitos, tenses e contradies, ela favoreceu a consolidao da de-mocracia, tendo tornado o Brasil um pas mais federal, pela emer-gncia de novos atores no cenrio poltico e pela existncia de vrioscentros de poder soberanos que competem entre si.

    Inicialmente, apresento um breve relato sobre os principais fatos queantecederam os trabalhos da Assemblia Nacional Constituinte ANC. Nas sees seguintes analiso as instncias decisrias onde o fe-deralismo e a descentralizao foram redesenhados2. Posteriormen-te, discuto as motivaes das decises tomadas e, por fim, apresentoalgumas concluses.

    A DECISO DE DESCENTRALIZAR

    O sculo que findou passou por vrias ondas de elaborao de no-vas Constituies: ao final das duas Guerras Mundiais; na transiopara a democracia nos pases do sul da Europa e da Amrica Latina;nas ex-colnias e na Europa Oriental. Alm desses movimentos, essaonda tambm atingiu pases que no passaram por mudanas de

    Celina Souza

    514

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • regime poltico, como a Blgica, Canad, Holanda e Sucia, que, apartir dos anos 70, refizeram suas Constituies. Elaborar novasConstituies implica profundas manobras e negociaes polticas e tambm quando consensos e clivagens se tornam mais visveis.Entender como os constituintes lidaram com esses conflitos podeaprofundar nosso conhecimento sobre questes que ganharam sa-lincia no processo constituinte e tambm nos ajudar a traar as pers-pectivas da nova ordem a ser inaugurada.

    A busca desse entendimento implica tentar responder, inicialmente,s seguintes questes formuladas por Elster (1993): a) como foi con-vocada a Constituinte? b) como foram reguladas suas normas inter-nas? c) qual o papel dos interesses individuais e coletivos na elabora-o da Constituio? d) qual a importncia de foras extraconstitucio-nais no desenho do texto constitucional? Essas questes antecedem,portanto, a anlise da deciso de reformar a Federao tomada pelosconstituintes de 88.

    A Convocao da Constituinte

    Das eleies de 1986 saram os constituintes responsveis pela elabo-rao da nova Constituio brasileira3. Participaram desse pleito trin-ta partidos, dos quais doze elegeram representantes para a ANC, sen-do que o PMDB possua a maior bancada. As eleies de 1986 ocorre-ram no auge da euforia com o aparente sucesso do Plano Cruzado, ge-rando pouco debate em relao Constituinte. O PMDB e o PFL reu-nidos asseguraram quase 80% dos membros da ANC e os partidosconsiderados progressistas (PT, PDT, PSB, PCdoB e PCB) tinham, jun-tos, 9,5%4. A fora do PMDB e do PFL, que foram, tambm, os princi-pais fiadores da transio, poderia levar a crer que a elaborao daConstituio seria uma tarefa relativamente fcil. Mas no s isso noaconteceu, como tambm os partidos tidos como progressistas conse-guiram aprovar muitas de suas demandas. A Tabela 1 mostra a com-posio da ANC no momento de sua posse.

    A ANC somava 559 membros, dos quais 72 senadores e 487 deputa-dos federais, que receberam a tarefa de elaborar a stima Constituiobrasileira. Os perfis dos parlamentares da ANC foram analisados porCoelho e Oliveira (1989), Fleischer (1990), Kinzo (1990), Mainwaringe Prez-Lin (1998) e Rodrigues (1987), que apontaram as seguintescaractersticas: a) as anlises desmontam o mito de que o principal

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    515

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • partido de oposio ao regime militar, o PMDB, foi o grande vencedorda ANC, j que a ele se filiaram muitos ex-integrantes do PDS, parti-do de sustentao do regime anterior, mostrando, portanto, a presen-a de figuras vinculadas ao antigo regime nos dois partidos que sus-tentaram a Nova Repblica. Como observou Campello de Souza(1989), essa continuidade comum nas transies no-revolucion-rias, mas o grau dessa continuidade na transio brasileira foi extra-ordinrio; b) a ANC contou com 49% de novos parlamentares, ndicesemelhante ao de outras legislaturas. Altos ndices de renovao pas-sam a ser uma importante varivel para se entender os resultados daANC. No que se refere experincia poltica anterior, apenas 24,2%dos parlamentares no a possuam. Dos que tinham, 54% haviam sidovereadores, prefeitos, deputados estaduais e governadores, mostran-do a presena de um nmero considervel de polticos com ligaesprximas e recentes tanto com as esferas subnacionais como com o re-gime anterior6; c) uma das pesquisas mostrou que os membros daANC eram conservadores em questes de ordem e valores morais,mas progressistas nos temas socioeconmicos (Veja, 4/2/1987).

    O alto grau de heterogeneidade dos constituintes, aliado ao carterabrangente da transio poltica, sinalizava duas alternativas no quese refere ao processo decisrio: a) acordos entre grupos com afinida-des ideolgicas, colocando em confronto conservadores versus pro-gressistas; b) acordos entre grupos ideologicamente adversrios, ge-

    Celina Souza

    516

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

    Tabela 1

    Composio Partidria da ANC em 1986

    Partido5 Nmero %

    PMDB 302 54,0PFL 133 23,8PDS 38 6,7PDT 26 4,6PTB 19 3,4PT 16 2,9PL 7 1,3PDC 6 1,1PCdoB 6 1,1PCB 3 0,5PSB 2 0,4PMB 1 0,2

    Total 559 100,0

    Fonte: Clculos baseados em listagens do Superior Tribunal Eleitoral STE.

  • rando consenso em certas questes e deixando para o futuro as deci-ses em que este no pde ser alcanado. Esta ltima alternativa pre-valeceu e o papel do presidente da ANC, Ulysses Guimares, foi cru-cial para administrar esse equilbrio delicado e instvel de formaode consenso.

    Se a transio liderada pelo lder moderado, Tancredo Neves, tinhapor objetivos amenizar os efeitos da desintegrao das antigas coali-zes, definir limites para os recm-chegados e evitar retrocessos, es-tes no foram totalmente alcanados. Isto porque tanto as antigas coa-lizes como os novos atores assumiram papis de proeminncia, che-gando ao cenrio poltico-decisrio com fora extraordinria. Poucosgrupos foram excludos, como as vitrias e as derrotas de ambos os la-dos na ANC comprovam. Os acontecimentos polticos no foram ca-pazes de limitar a fora e o nmero de participantes do novo pacto de-mocrtico. A nfase na estratgia de construo de consenso aumen-tou o nmero de atores polticos com acesso ao processo decisrio, aomesmo tempo que intensificou conflitos e clivagens. nesse cenrioque a descentralizao poltica e financeira fincou suas bases e o fede-ralismo deslocou-se do centro, passando a constrang-lo7.

    Na fase inicial, vrios foram os fatores de conflito. A convocao deuma ANC no-exclusiva gerou a primeira ruptura entre progressistase conservadores. Ao assumir o compromisso de que a ANC no seriaexclusiva, que foi cumprido por Sarney, Tancredo acalmou os receiosdos militares e dos lderes do PFL contra um possvel radicalismo deuma Constituinte exclusiva e soberana. O fato de no ser exclusivatambm permitiu a participao de 23 senadores binicos, nome-ados durante o regime militar.

    Outra fonte de conflito foi o estabelecimento da Comisso dos Not-veis, comandada por Afonso Arinos, renomado jurista e conhecidopor suas idias reformistas. Os constituintes resistiram Comissopor considerar a iniciativa uma ameaa soberania da ANC. No en-tanto, essa rejeio foi mais retrica que real, como reconhecido porvrios entrevistados. A Comisso incorporou inmeras demandasdos progressistas, vindo a elaborar aquele que seria o primeiro ensaioda agenda da ANC e incorporando as presses que seriam exercidaspelos movimentos sociais. Outras instituies tambm se envolve-ram nos debates constitucionais, tais como universidades, associa-

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    517

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • es profissionais, sindicatos e movimentos sociais, que divulgavamsuas verses sobre como deveria ser a nova Constituio brasileira.

    Em junho de 1985, Jos Sarney enviou ao Congresso mensagem presi-dencial convocando a ANC, que continha, entre outros pontos, decla-rao de que a ANC no faria restrio a nenhum tema, inclusive aoda manuteno da Repblica e do sistema federativo, ambos proibi-dos na Constituinte de 1946.

    Os movimentos sociais foram os que mais fortemente reagiram aofato de a ANC no ser exclusiva. Os debates foram intensos, tendosido inclusive apresentada uma proposta de plebiscito. Milhares decartas chegaram ao Congresso conclamando a exclusividade daANC. Os debates sobre essa questo comearam no plenrio em outu-bro e em novembro de 1985 votou-se a Emenda Constitucional n 26aprovando a mensagem de Sarney.

    Os trabalhos da ANC tiveram incio em fevereiro de 1986. UlyssesGuimares foi eleito seu presidente, acumulando os cargos de presi-dente da Cmara dos Deputados e de presidente nacional do PMDB.Poltico moderado, Ulysses exercia, com desenvoltura, sua enorme li-derana, usando-a para arbitrar os inmeros conflitos surgidos noapenas no interior do seu heterogneo partido, mas tambm na ANCe na relao entre o Congresso e o Executivo federal. O resultado finalda Constituio brasileira que no contemplou decises sobre v-rias questes sensveis deve ser parcialmente creditado lideranaforte, porm conciliadora, de Ulysses Guimares.

    Quando a ANC comeou a funcionar, o governo Sarney j estava noseu segundo ano. Sarney construiu sua frgil base parlamentar acimados partidos, tentando sempre minimizar a fora de Ulysses e doPMDB. Segundo Jarbas Passarinho (entrevista em 21/5/1993), Sar-ney era prisioneiro de Ulysses, e o PMDB protelou ao mximo a deci-so sobre a durao do seu mandato como forma de mant-lo sob seucontrole e para que Ulysses comandasse reas importantes da admi-nistrao pblica, o que se materializou pela indicao de vrios mi-nistros, inclusive o da Fazenda.

    O mandato de Sarney foi marcado, entre outros fatores, pela impossi-bilidade de responder s altas expectativas geradas pela redemocrati-zao. Polticas pblicas errticas e inconstantes, concesses populis-tas, suspeitas de corrupo, falncia do Plano Cruzado e, principal-

    Celina Souza

    518

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • mente, paralisia ou lentido no processo decisrio permaneceramcomo os principais legados do seu mandato. Sua administrao tam-bm foi marcada por fortes confrontos com o Congresso. Essa tenso, obviamente, da natureza mesma das democracias de regime presi-dencialista. No entanto, o regime de 64 manteve o Congresso aberto eeleies regulares para o Legislativo e para alguns cargos do Executi-vo. Assim, to logo a democracia foi instaurada, o Congresso estavapronto para reafirmar seu poder, antes mesmo da promulgao danova Constituio. Uma das derrotas que o Congresso imps a Sar-ney nesse perodo foi o aumento das receitas municipais alm do quetinha sido proposto pelo presidente da Repblica, do que resultou aEmenda Airton Sandoval, sinalizando que a descentralizao finan-ceira seria um dos resultados previsveis da nova Constituio.

    Regras de Funcionamento

    A segunda grande batalha no interior da ANC teve a ver com as suasregras de funcionamento, principalmente seu papel na reviso da le-gislao do regime militar, que ficou conhecida como entulho auto-ritrio. Outros temas conflituosos tambm estavam sendo discuti-dos antes mesmo da deciso sobre as regras da ANC, tais como o de-bate presidencialismo versus parlamentarismo, a reforma agrria e, li-derada por prefeitos e governadores, a reforma tributria.

    O senador Fernando Henrique Cardoso foi designado relator do regi-mento interno. Publicado em maro de 1987, o regimento determina-va que no haveria apenas uma comisso para escrever a Consti-tuio, mas sim 24 subcomisses, que mais tarde formariam oito co-misses, que, posteriormente, constituiriam uma comisso de siste-matizao. As decises seriam, ento, submetidas ao plenrio, comduas rodadas de votaes nominais.

    Uma das inovaes do regimento foi admitir propostas vindas de forado Congresso. Entre os habilitados estavam os Legislativos estadual emunicipal, o Judicirio e os cidados, estes ltimos via emendas po-pulares, que deveriam ser assinadas por, no mnimo, 30.000 eleitores,sob a responsabilidade de trs entidades da sociedade civil. Esses me-canismos foram introduzidos no regimento como parte da negoci-ao entre os diversos grupos da ANC, buscando aumentar a chama-da participao cidad e evitar o isolamento dos constituintes. Outromecanismo de participao foi o que permitiu aos cidados mandar

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    519

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • sugestes diretamente para os constituintes via a rede dos correios,gerando uma participao extraordinria, com 72.719 sugestesaportando no Congresso Nacional (Monclaire, 1991).

    O incentivo participao popular fez com que 122 movimentos po-pulares enviassem emendas ANC, assinadas por mais de 12 milhesde eleitores, e 83 foram defendidas na ANC, ressaltando a peculiari-dade do processo constituinte brasileiro em face das demais Consti-tuies elaboradas durante esse perodo8.

    O entusiasmo que a ANC desencadeou, em especial a ampla mobili-zao popular, mostra a enorme confiana nela depositada e, portan-to, seu alto grau de eficcia poltica9. A presena de todo tipo de lobby,sindicatos e movimentos sociais, era a rotina da ANC e durante vintemeses o Congresso e Braslia transformaram-se no centro da vida dosbrasileiros, um exerccio de democracia e participao.

    O Funcionamento Interno da ANC

    Cada uma das 24 subcomisses e das oito comisses contava com umpresidente, dois vice-presidentes e um relator. As subcomisses ti-nham cerca de 21 membros e as comisses 63, eleitos de acordo com arepresentao partidria, o que significa que o PMDB e o PFL mono-polizaram os principais cargos. Os progressistas, no entanto, conse-guiram o controle de posies importantes. O principal cargo era o derelator, encarregado de escrever a verso final do relatrio.

    A ANC foi marcada por confrontos em algumas matrias, coalizesna maioria dos casos e por adiamentos quando o consenso no podiaser alcanado. Coalizes eram feitas e refeitas constantemente. Prati-camente, para cada questo especfica, um bloco extrapartidrio eraconstitudo, o qual logo se desfazia. O processo do desenho constitu-cional teve uma lgica prpria, muitas vezes diversa daquela da pla-taforma dos partidos ou da coerncia ideolgica. No entanto, ocorreuum alto grau de coalescncia no interior dos grupos ou subgrupos, oque ser analisado adiante.

    A FORMAO DE COALIZES NO INTERIOR DAS SUBCOMISSES

    As subcomisses eram o primeiro estgio do processo constituinte.Nesse nvel, as demandas e os interesses dos relatores prevaleciamsobre negociaes e acordos, que s eram feitos quando mudanas

    Celina Souza

    520

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • muito sensveis eram propostas. Quatro subcomisses lidaram dire-tamente com as questes relativas ao federalismo e descentraliza-o.

    Subcomisso da Unio, Distrito Federal e Territrios

    Esta subcomisso foi presidida por Jofran Frejat (PFL-DF) e seu rela-tor foi Sigmaringa Seixas (PMDB-DF). Sua composio, com trs dosseus quatro membros diretores eleitos pelo DF, mostra a prioridadeda subcomisso: conseguir a independncia poltica e a autonomia fi-nanceira de Braslia, compromissos assumidos pela Aliana Demo-crtica. Independncia poltica significava que Braslia teria sua pr-pria representao poltica via a eleio direta de seu Legislativo eExecutivo. Essa subcomisso, que tambm tinha a responsabilidadede decidir sobre a jurisdio e os poderes da Unio, concentrou todosseus esforos na expanso da representao poltica de Braslia e emassegurar recursos financeiros para a capital federal.

    No seu relatrio, Sigmaringa Seixas afirmava que a maior contribui-o da subcomisso estava no fortalecimento do federalismo, recor-rendo a um argumento comum entre os constituintes: no passado re-cente, a Federao era dominada pela Unio, que centralizava os re-cursos, impedindo o funcionamento da Federao, o que estimulava,entre outras distores, as disparidades regionais. No entanto, se-gundo ele, a longa prtica do federalismo centralizado no podia sereliminada da noite para o dia, da porque propunha a expanso dascompetncias concorrentes entre os trs nveis de governo.

    A subcomisso recebeu 289 propostas e realizou cinco audincias p-blicas, todas marcadas pelos interesses especficos do DF e dos terri-trios, que pressionavam por sua transformao em estados. Dentreas suas principais propostas, destacam-se: a) a manuteno do princ-pio de que o pacto federativo formado pela Unio, DF e estados, ex-cludos os municpios, que s foram incorporados nos estgios poste-riores; b) a ampliao das competncias da Unio em face das Consti-tuies anteriores; c) a expanso das competncias concorrentes entreos trs nveis de governo; d) o reconhecimento do direito do munic-pio de promulgar sua prpria lei orgnica; e) a proibio de que os ve-readores determinassem seu prprio salrio, competncia atribudaaos estados, o que foi derrubado na Comisso de Sistematizao10.

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    521

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • Sigmaringa Seixas afirmou que no sofreu presses, seja de governa-dores, prefeitos ou de corporaes, declarando que eu achava queno tinha nenhum prestgio porque ningum me pressionava (entre-vista em 13/5/1993), creditando a falta de presso ao fato de essa sub-comisso no lidar com distribuio de recursos financeiros.

    No entanto, a mudana do status poltico do DF exigiu enormes nego-ciaes e o compromisso do relator com o tema fez com que fosse asse-gurado ao DF a arrecadao dos impostos estaduais e municipais. Se-gundo Sigmaringa,

    [...] as negociaes foram intensas e muitas vezes eu achava que a au-tonomia no seria alcanada. A questo crucial era recursos, pois o DFsempre recebeu transferncias federais e a autonomia poderia blo-quear a possibilidade de continuar a receber esses recursos. No entan-to, no posso dizer que houve presses contra a autonomia, mas simdificuldades em convencer o governo federal a apoiar o grau de auto-nomia que desejvamos (entrevista em 13/5/1993).

    Questes relacionadas ao desenho das relaes intergovernamentais,aos novos conflitos que decorreriam da descentralizao, assim comoao novo papel do governo federal em um sistema poltico e financeirodescentralizado, no entraram na agenda dessa subcomisso. Apare-cem aqui os primeiros sinais de que a descentralizao seria adotadasem debate e sem a construo de um consenso sobre seus objetivos.

    Subcomisso dos Municpios e Regies

    Seu presidente foi Luiz Rodrigues (PMDB-MG) e o relator AloysioChaves (PFL-PA) e o Nordeste e o Centro-Oeste compunham amaioria. A subcomisso teve oito audincias pblicas, com a partici-pao de prefeitos, vereadores e tcnicos, tendo sido influenciada pe-los trabalhos do Instituto Brasileiro de Administrao Municipal IBAM.

    Essa subcomisso aprovou as seguintes propostas: a) a incluso domunicpio como parte integrante da Federao, uma aspirao pol-tica de todos os brasileiros, segundo o relator; b) uma lista de quator-ze servios que seriam da competncia do municpio, para que o ci-dado saiba a quem cobrar a realizao do servio pblico, mesmocorrendo o risco de ser muito detalhe para uma Constituio , oque foi rejeitado por presses da Comisso de Organizao do Esta-

    Celina Souza

    522

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • do, segundo os entrevistados. Assim, a tenso entre facilitar a cobran-a do servio pblico pelo cidado e a necessidade de deixar flexvel aalocao de funes entre os nveis de governo em um sistema federalfoi resolvida a favor da ltima alternativa; c) ampliao dos recursoslocais, apesar de no ser da sua competncia. Essa tentativa foi justifi-cada pelo relator por causa do clamor dos prefeitos, vereadores, tc-nicos, lderes comunitrios e do povo a favor de aumentar o poder domunicpio. Ainda segundo o relator, ningum questiona que o mu-nicpio a esfera de governo mais capaz de cumprir os anseios dopovo.

    A descentralizao era consenso dentro da subcomisso, no se regis-trando grupos contrrios a ela. Segundo Jos Dutra (entrevista em3/5/1993), do PMDB-AM, vice-presidente da subcomisso, o maiorgrupo de presso foi liderado por ele prprio, para a defesa da ZonaFranca de Manaus contra a possibilidade do Presidente da Repblicae do Ministro da Fazenda de aboli-la por decreto11.

    J o lobby a favor dos municpios teve forte presena no Congresso,antes mesmo da ANC. Em 1979, por exemplo, uma Comisso Parla-mentar de Inqurito CPI foi convocada contra a vontade dos mili-tares, sobre as causas do empobrecimento dos estados e munic-pios. O relatrio dessa CPI acusava o governo federal de tirania fis-cal e afirmava que estados e municpios estavam falidos, com sriasconseqncias para a ordem social. O relatrio conclua que a centra-lizao financeira afetava a autonomia dos estados, e, mais ainda, dosmunicpios, o que contrariava dados empricos12.

    Tambm nessa subcomisso o objetivo de descentralizar no foi pre-cedido de discusses sobre o tema. O relatrio era pleno de expres-ses normativas sobre as virtudes da descentralizao. Assim comona subcomisso analisada anteriormente, o governo federal esteveausente dos debates e das negociaes.

    Subcomisso dos Estados

    Esta subcomisso foi presidida por Chagas Rodrigues (PMDB-PI), eseu relator foi Siqueira Campos (PDC-GO), principal defensor da cri-ao de novos estados, em especial o de Tocantins, desmembrado deGois. Acriao do Tocantins tinha sido anteriormente aprovada peloCongresso e vetada por Sarney com o argumento de que o governo fe-

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    523

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • deral no tinha recursos para financiar seu estabelecimento. A regioNorte estava super-representada, com 22% dos membros da subco-misso, quando sua representao no Congresso era de 11%. Estasubcomisso se dedicou a uma nica questo: a instituio de novosestados.

    Os constituintes propuseram a formao de oito novos estados, mas asubcomisso s acatou trs: Tocantins, Santa Cruz a ser desmembra-do da Bahia e Tringulo a ser desagregado de Minas Gerais. Tam-bm foi aprovada a transformao de Roraima e Amap em estados.

    No seu relatrio, Siqueira Campos afirma que duas questes polari-zaram sua ateno: a organizao do estado-membro e a redivisoterritorial do pas, mas ele pouco se manifesta sobre a primeira. La-menta no poder propor uma rediviso territorial mais ampla devido falta de recursos financeiros, existncia de interesses polticosconflitantes, de preconceitos regionais e da fraqueza das estruturaslocais. Argumenta, ainda, que os estados a serem criados pelaConstituio poderiam contar com os recursos federais, o que no se-ria difcil porque o governo federal estava sendo prdigo no socorroaos bancos estaduais.

    Diferentemente das outras duas subcomisses, fortes clivagens terri-toriais emergiram na subcomisso dos estados, que ocorreram princi-palmente nas regies de desenvolvimento mais tardio, como o Nortee o Centro-Oeste. Velhas disputas em relao s fronteiras dos estadostambm ressurgiram e sub-regies que se ressentiam da pouca aten-o do governo estadual clamaram igualmente por independncia,tais como na Bahia, Minas Gerais e Paran. O Rio de Janeiro, estadocriado pelos militares, tambm reagiu contra a forma antidemocrti-ca da deciso. Tenses territoriais dessa ordem expressavam a insatis-fao das elites regionais, alm de mostrar que as delimitaes terri-toriais existentes no eram mais capazes de acomodar interesses pol-ticos divergentes. Disputas territoriais polarizaram essa subcomis-so tambm como reao aos conflitos em reas de ocupao antigae/ou recente que no foram contempladas nos rearranjos territoriaispromovidos durante o regime militar13.

    A criao do estado de Tocantins, rejeitada primeiro por Sarney e de-pois pela Comisso de Organizao do Estado, mas reintroduzida em

    Celina Souza

    524

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • etapa posterior do processo constituinte, evidencia tambm a disputaentre o Congresso e o Executivo federal em algumas poucas questes.

    As duas subcomisses analisadas apresentam as seguintes caractersti-cas comuns: a) decises foram tomadas baseadas em argumentos queno se sustentavam em evidncias empricas; b) no se discutiu as con-seqncias da descentralizao proposta; c) as subcomisses no sofre-ram presses em assuntos vinculados s relaes intergovernamentaise seus conflitos, sinalizando que a disputa intergovernamental se re-duzia rea tributria. Essa falta de presso mostrou que questescomo a descentralizao de competncias, bem como o novo papel dogoverno federal em um sistema descentralizado, no estavam na agen-da dos constituintes. No entanto, cada uma dessas subcomisses tinhauma prioridade e seus relatores foram escolhidos por apoiarem essasprioridades; d) a defesa da descentralizao baseava-se em argumen-tos normativos extrados das teorias de desenvolvimento, em especiala de que a descentralizao aumenta a eficincia e promove a democra-cia; e) a opo pelo intenso uso das competncias concorrentes temsido apontada, at hoje, como um dos principais problemas enfrenta-dos pelo governo federal. Nas diversas tentativas de mudar a Consti-tuio, essa falta de clareza indicada como um dos principais proble-mas a serem resolvidos14; f) o resultado dos trabalhos dessas subcomis-ses trouxe um paradoxo: a bandeira anticentralista dos seus membrosno se refletiu nas competncias e responsabilidades da Unio, que fo-ram ampliadas, em especial na rea social.

    A temtica das relaes intergovernamentais, principal responsabili-dade das duas subcomisses, no foi considerada, assim como a defe-sa da descentralizao no foi precedida de debates sobre seu impac-to na Federao, nas relaes intergovernamentais e nas polticas p-blicas.

    Subcomisso do Sistema Tributrio e da Diviso e Distribuiode Receitas

    A bancada do Nordeste predominou nesta subcomisso. Seu presi-dente era Benito Gama (PFL-BA) e o relator Fernando Coelho(PMDB-PE). Participaram tambm vrios lderes partidrios, bemcomo parlamentares com experincia anterior em matria tributria.A subcomisso recebeu 818 sugestes de outros membros da ANC equarenta da sociedade, sendo que cinco provenientes de emendas po-

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    525

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • pulares, com 114.103 assinaturas, colocando-a em terceiro lugar nonmero de sugestes recebidas (Michiles et alii, 1989).

    As audincias pblicas foram dominadas pela presena de tcnicos epelos lobbies municipais e estaduais, em contraste com o compareci-mento do governo federal, que contou apenas com uma apario dosecretrio da Receita Federal e de um tcnico do Instituto de PesquisaEconmica Aplicada IPEA.

    De acordo com o relator, o principal objetivo da subcomisso era di-minuir a concentrao dos impostos mais produtivos na esfera daUnio. Ele responsabilizava essa concentrao pelos problemas fi-nanceiros dos estados e municpios, e tambm pelo enfraquecimentodo sistema federativo, por atrasos burocrticos e no processo decis-rio, pelo aumento da corrupo e desperdcio. Os outros objetivos dasubcomisso eram: a) fortalecer as finanas subnacionais; b) descen-tralizar responsabilidades; c) redistribuir recursos, dando tratamen-to privilegiado s regies menos desenvolvidas; d) tornar o sistematributrio mais progressivo.

    A comparao entre a estrutura tributria proposta pela subcomissoe a que acabou sendo aprovada mostra as seguintes transformaes:a) as mudanas na moldura do sistema tributrio ocorridas entre oprimeiro e o estgio final do processo constituinte foram pequenas noque se refere aos impostos federais, o que indica um consenso claroem relao s perdas tributrias do governo federal; b) as disputas en-tre estados e municpios foram acirradas, o que explica as inmerasmudanas ao longo do processo; c) a subcomisso props aumentosde recursos maiores para os estados do que para os municpios do quefoi afinal aprovado, o que significa que os estados tiveram mais podernesse estgio e os municpios nos estgios seguintes.

    Duas importantes decises foram tomadas nessa subcomisso. A pri-meira foi a de aumentar as transferncias federais para as esferas sub-nacionais, pacificando as disputas entre as regies. No entanto, o va-lor a ser transferido no estava claro. A segunda deciso deu-se emtorno do aumento do Imposto sobre Circulao de Mercadorias ICM, que se transformou em Imposto sobre Circulao de Mercadori-as e sobre Prestaes de Servios de Transporte Interestadual e Inter-municipal e de Comunicao ICMS, e do conceito de autonomiadas esferas subnacionais. O ICMS principal tributo em termos de

    Celina Souza

    526

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • valor de arrecadao incorporou seis impostos federais, privilegi-ando os estados mais desenvolvidos. Apesar de ter havido um acordopara aumentar a base do ICMS, ocorreram divergncias em torno docritrio de cobrana do tributo: se no estado produtor ou consu-midor15. A proposta do IPEA era que o ICMS deveria ser cobrado nomomento do consumo, o que daria mais liberdade aos estados paradefinir suas alquotas e determinar sua poltica fiscal. Segundo seuautor, Fernando Rezende, a proposta no teve nenhuma repercusso.Do lado dos estados mais desenvolvidos, no havia interesse porqueeles perderiam recursos; do lado dos menos desenvolvidos porqueeles preferiam a transferncia de recursos federais a assumir a res-ponsabilidade pela sua coleta (Rezende, 1990). Outra razo poderiaser o temor dos governos estaduais s presses de suas elites pela re-duo das alquotas do ICMS, freqente no passado. Assim, o ICMSmanteve sua caracterstica de ser cobrado parte na origem, parte nodestino, mas sua base foi substancialmente aumentada pelos consti-tuintes.

    Outra proposta do IPEA no acatada era que as transferncias consti-tucionais para as esferas subnacionais deveriam incorporar percen-tuais de todos os impostos federais e no apenas do Imposto de Ren-da e do Imposto sobre Produtos Industrializados IPI. A justificati-va era estimular aumentos progressivos na arrecadao e diminuir osconflitos entre nveis de governo.

    Essa subcomisso foi a nica a demonstrar preocupao com os resul-tados da descentralizao, apresentando a proposta de criao de umfundo de descentralizao, constitudo de recursos do FINSOCIAL, quevigoraria por cinco anos, sendo depois extinto. Argumentou-se quecom esses recursos e com o aumento das receitas municipais e esta-duais, os governos subnacionais estariam capacitados a absorvermaiores responsabilidades. Da parte do governo federal, no haveriagrandes perdas com a extino do FINSOCIAL porque suas atribuiesnessa rea seriam transferidas. O fundo foi rejeitado em todos os est-gios da ANC e sempre reintroduzido por seu mentor, Jos Serra. Nosestgios seguintes da Constituinte, Serra diminuiu seu empenho naaprovao de sua proposta porque, segundo ele, no decorrer do pro-cesso constituinte o governo federal foi perdendo recursos a cadanovo estgio, no podendo arcar tambm com a perda do FINSOCIAL(entrevista em 2/2/1994).

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    527

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • Essa subcomisso se caracterizou por intensas clivagens regionais,por disputas entre estados e entre estes e os municpios. Apesar de ha-ver um consenso para reduzir os recursos federais, no estava claro otamanho da perda que o governo federal sofreria e tambm como osganhos dos governos subnacionais seriam distribudos. Um aspecto,no entanto, era transparente: o alto grau de negociao existente todavez que uma regio era penalizada pela aprovao de alguma propos-ta que beneficiava outra regio, o que gerou um jogo de soma positivaentre as regies dado o aumento de 0,9% dos recursos pblicos em to-das elas (Rezende, 1990:163). Esse jogo manteve, portanto, as mesmasdistores regionais do modelo tributrio anterior, com o Nordesterecebendo a menor parcela das transferncias per capita de impostos,seguido do Norte.

    Resumindo, essa subcomisso descentralizou recursos pblicos po-rm com menor impacto sobre as receitas federais do que seria poste-riormente aprovado. Assim como nas demais comisses, nessa tam-bm o governo federal foi o grande ausente.

    AS COALIZES NO MBITO DAS COMISSES

    Teoricamente, uma das principais atribuies de uma ANC dese-nhar o equilbrio entre o Legislativo e o Executivo (Elster, 1993). Noentanto, em pases federativos no apenas a tenso entre os Poderestem que ser enfrentada em uma Constituinte, mas tambm a relaoentre os nveis de governo. Da que redesenhar um sistema federalser sempre tarefa intrinsecamente contraditria.

    A legitimidade da ANC, o realinhamento dos partidos durante aANC e a existncia de um presidente com baixa legitimidade, aliadosao alto grau de clivagem regional, trouxeram para o processo decis-rio a presena de inmeros veto players. No entanto, como argumenta-do por Elster (1994), o poder, para ser efetivo, deve ser dividido. Se,por um lado, a ANC foi bem-sucedida na tarefa de legitimar a novaordem democrtica, fortalecendo as foras societais e as elites polti-cas subnacionais, por outro, no momento em que a Constituio esta-va sendo desenhada, o Brasil se deparava (e ainda se depara) com in-meras questes no resolvidas que requeriam polticas nacionais. Porque, ento, os constituintes decidiram descentralizar poder poltico efinanceiro e impor restries ao governo federal?

    Celina Souza

    528

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • A seo seguinte aborda as fases intermediria e final do processoconstituinte, quando os conflitos e as alianas se tornaram mais cla-ros. A deciso de descentralizar foi por muitos interpretada comouma questo menos controversa do que temas como reforma agrria,direitos trabalhistas, medidas nacionalistas e a durao do mandatodo presidente (Sadek, 1991). Pouca polmica no significa, contudo,ausncia de conflito. Apesar de haver um consenso em favor da redu-o dos recursos federais, as clivagens entre municpios e estados, en-tre estados e entre regies foram intensas, embora desenroladas nosbastidores16.

    As caractersticas e as circunstncias do processo constituinte, que in-centivaram a prevalncia de atores individuais sobre os coletivos,mostram que anlises que focalizam apenas o desempenho dos parti-dos polticos no explicam os resultados da Constituio. Por essa ra-zo, trs dimenses so desenvolvidas nas sees seguintes visandoiluminar as principais tenses que levaram descentralizao: a) vi-so dos partidos sobre o papel do governo federal; b) competio in-ter e intrapartidria; c) clivagens regionais.

    Comisso de Organizao do Estado

    O presidente foi Thomaz Non (PFL-AL) e o relator Jos Richa(PMDB-PR). No seu relatrio, Richa argumenta que o principal obje-tivo da comisso a questo da autonomia e o problema da descen-tralizao, porque a democracia requer a descentralizao de poder.A comisso aprovou as propostas relativas autonomia do DF, masrejeitou todas as de criao de novos estados.

    Ao compararmos o que foi aprovado pela comisso e o que prevale-ceu na Constituio verifica-se que muitas mudanas se deram du-rante o processo constituinte. Uma delas relaciona-se operacionali-zao da descentralizao. A Constituio incorporou inmeras com-petncias concorrentes entre os trs nveis de governo que haviamsido rejeitadas nessa comisso, mas que reapareceram na Comissode Sistematizao. (Richa (entrevista em 5/5/1993) afirmou no selembrar das razes para tal fato.) Outra diferena est na expansodas competncias do governo federal, em comparao com a Consti-tuio anterior na comisso essa ampliao foi menor do que o efe-tivamente aprovado.

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    529

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • Governadores e prefeitos estiveram ausentes dessa comisso. Segun-do Richa, os governadores no deram a devida importncia a ela, en-quanto os prefeitos eram tecnicamente despreparados para partici-par das discusses. Grupos corporativos tambm estiveram ausen-tes, da porque Richa argumenta que todas as conquistas relaciona-das com a descentralizao devem ser creditadas unicamente ao Con-gresso. Ele todavia admite que ns fizemos a descentralizao pelametade porque no propusemos a descentralizao administrativa,apenas a financeira. Isso seria importante para que a populao pu-desse pressionar pela prestao dos servios (entrevista em5/5/1993). Richa, ex-governador do Paran e ex-prefeito de Curitiba,apresenta um forte argumento contra a descentralizao para os mu-nicpios: os prefeitos tratam a arrecadao de impostos como umaquesto poltica e no financeira e so mais suscetveis a presses con-tra a cobrana de impostos do que os governadores.

    Essa comisso recebeu 536 sugestes de parlamentares e 109 foramselecionadas para anlise por terem relao direta com o federalismoe a descentralizao (ver Tabela 2).

    Tabela 2

    Emendas Propostas pelos Constituintes Comisso de Organizao do Estado

    Tema N de Propostas

    Clivagens territoriaisAutonomia local e competncias municipaisRegies metropolitanas e aglomeraes urbanasBenefcios fiscais para os municpios, regies e setoresCompetncias e bens do governo federalQuestes relacionadas com o Distrito FederalCompetncias concorrentesDvidas e capacidade de endividamento de estados e municpiosOutros

    3015151010922

    16

    Fonte: Agregao baseada em dados do PRODASEN.

    Enormes contradies ocorreram nas propostas. Primeiro, houvegrande concentrao naquelas relacionadas com clivagens territo-riais, principalmente criao de novos estados, poucas focando oprincipal objetivo da comisso: a definio de um novo formato parao Estado e a forma como os governos subnacionais deveriam lidarcom a descentralizao. Segundo, as propostas refletiam uma ques-to que atravessou todo o processo constituinte: a inteno de mudartudo que tinha sido feito pelos militares ou por eles bloqueado. Ter-

    Celina Souza

    530

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • ceiro, algumas questes acordadas nas subcomisses foram descon-sideradas na comisso, o que implicou retomar e ampliar as negocia-es, tanto nesse estgio como nos seguintes.

    A intensidade das disputas regionais pode ser verificada pelo nme-ro de propostas relacionadas com rearranjos territoriais e alianas fo-ram construdas superpondo-se aos partidos e s representaes geo-grficas17.

    A competio inter e intrapartidria tambm ilustra a compreensode alianas e deseres. O PFL apresentou propostas contra a criaode novos estados, mas vrios dos seus membros pressionaram pelacriao de cinco novos estados; o PDT batalhou pela recriao do esta-do da Guanabara, contra o desejo de seu principal lder poca, Leo-nel Brizola; o PMDB lutou pela criao do estado de Santa Cruz, naBahia, contra a orientao do ento governador da Bahia e membrodo PMDB, Waldir Pires.

    A viso dos partidos polticos sobre o papel do governo federal podeser revelado pelo grande nmero de propostas que sugeriam um pa-pel expandido do governo federal no que se refere s suas competn-cias. O PMDB apresentou o maior nmero de proposies nesse senti-do, mas tambm o PDT, PFL, PDS e PT desejavam um governo federalcom poderes ampliados.

    Uma tenso permanente foi identificada entre o que foi aprovado pe-las subcomisses e pela comisso competente, mostrando a impor-tncia das fases posteriores da ANC. A presena de Richa, um polticorespeitado, fez com que fossem bloqueadas as medidas que ele consi-derava excessos das subcomisses (entrevista em 5/5/1993). Taisexcessos, todavia, foram reintroduzidos mais tarde, sendo marcan-tes para o formato do federalismo e para o contedo da descentraliza-o. Os resultados das discusses relacionadas com a reestruturaodo Estado mostram que a descentralizao era entendida apenascomo uma questo de recursos financeiros.

    Comisso do Sistema Tributrio, Oramento e Finanas

    Alguns dos parlamentares mais proeminentes eram membros dessacomisso. O presidente foi Francisco Dorneles (PFL-RJ), antigo mi-nistro da Fazenda, e o relator, Jos Serra (PMDB-SP). O Sudeste conse-guiu garantir os postos-chave, embora as regies menos desenvolvi-

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    531

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • das tenham ficado com 53% dos assentos. A comisso recebeu 1.164sugestes. Em seu relatrio, Serra destaca os principais problemaspor ele enfrentados: conflitos entre os membros da comisso devidos suas distintas vises e ao grau diferenciado de conhecimento sobreo tema; e tendncia a constitucionalizar cada pequeno detalhe.

    Segundo Serra, os principais resultados da comisso foram: a) au-mento da base do principal imposto estadual, o ICMS, e maior liber-dade para os estados definirem suas alquotas; b) criao de um im-posto sobre vendas a varejo para os municpios; c) aumento das trans-ferncias constitucionais para as esferas subnacionais; d) proibiode vincular recursos; e) proibio ao governo federal de concederisenes fiscais de impostos partilhados com as esferas subnacionais;f) criao de um fundo com recursos do FINSOCIAL, o j mencionadofundo de descentralizao.

    Em seu relatrio Serra no esconde a preocupao com as perdas im-postas ao governo federal. Como tais perdas pareciam inevitveis, elepropunha a transferncia de responsabilidades para enfrentar a ques-to do equilbrio federativo. Sabemos que no passado o governo fe-deral concentrava excessivamente recursos e impostos, desequili-brando a Federao. A Constituio ir corrigir esse erro, mas seriacometer outro erro manter esse desequilbrio com os sinais trocados.

    Duas grandes mudanas foram introduzidas nessa comisso, contra-riando o que havia sido decidido na subcomisso: 1) o aumento de20% para 25% da quota do ICMS que os estados deveriam transferirpara os municpios, aumento que compensaria a perda do Impostosobre Servios ISS pelos municpios, proposta nessa comisso, oqual passaria a integrar o ICMS. Surpreendentemente, os prefeitosdas capitais, onde o ISS em geral o principal tributo, no ofereceramresistncia mudana porque avaliaram que o aumento na alquotado ICMS seria mais vantajoso (Serra, entrevista em 2/2/1994). Osparlamentares, no entanto, lutaram contra a extino do ISS, conse-guindo reintroduzi-lo nas fases posteriores; 2) a participao dos go-vernos subnacionais no IR e no IPI passou de 18% para 18,5% para osestados e de 21,5% para 22,5% para os municpios.

    Serra declarou que seu papel na questo tributria foi de resistnciaporque quase nada poderia ser feito: se eu no tivesse resistido, asperdas do governo federal teriam sido ainda maiores, em torno de

    Celina Souza

    532

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • 60% a 70% do IR e do IPI (Serra, entrevista em 2/2/1994). Ele tam-bm declarou no ter sido pressionado por grupos de interesse por-que todos sabem que eu no me submeto a presses. Essas afirma-es, no entanto, no subentendem a inexistncia de conflitos. Sur-preendentemente, as maiores presses no vieram do setor privadoou do governo federal, principais perdedores com o novo sistema tri-butrio, mas dos prprios parlamentares18. Nas palavras de um dosmembros dessa comisso, Osmundo Rebouas,

    [...] o ambiente na Comisso era emocional e irracional. Eu presen-ciei cenas deprimentes. Um dos debates mais acirrados deu-se em tor-no dos percentuais do FPE [Fundo de Participao dos Estados e doDistrito Federal] e FPM [Fundo de Participao dos Municpios]. Osconstituintes dos estados menos desenvolvidos lutavam para queeles fossem os mais altos possveis e os dos mais desenvolvidos osmais baixos. Para se chegar a um acordo, a cesta de trocas foi enorme,incluindo o aumento da bancada paulista no Congresso (Unafisco,1992).

    Os entrevistados tenderam a dar respostas evasivas quando as ques-tes se relacionavam com clivagens regionais. Os lderes Jos Geno-no (PT-SP), Haroldo Lima (PCdoB-BA) e Jos Maria Eymael (PDC-SP)argumentaram que essas disputas eram minimizadas pelos progra-mas partidrios. Apesar disso, o prprio Eymael declarou que houveum momento em que os representantes das diversas regies nessa co-misso tiveram que fazer um acordo para tomar decises pensandono pas e no nas regies (entrevista em 28/4/1993). Dentro doPMDB, a situao era ainda mais difcil. De acordo com seu lder naANC, Mrio Covas, seu principal objetivo era manter a coerncia dopartido (entrevista em 19/5/1993). J o lder do PFL, Jos Loureno(PFL-BA), afirmou que essas divergncias inexistiam no seu partidoporque havia um senso de unidade nacional, a imprensa que exa-gerava os conflitos regionais (entrevista em 10/5/1993). Para o lderdo PTB, Gastone Righi (PTB-SP), as negociaes foram intensas e lon-gas, o que foi interpretado pela opinio pblica como negligncia (en-trevista em 29/4/1993).

    A preocupao de Serra com os caminhos que a descentralizao esta-va tomando fez com que ele escrevesse uma carta pessoal ao presi-dente Sarney, enviada atravs de Ulysses Guimares. Sarney respon-deu verbalmente que Serra deveria aprofundar ainda mais a descen-

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    533

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • tralizao (Serra, entrevista em 2/2/1994). Serra tornou-se, assim, afigura mais visvel e isolada na defesa do governo federal. Em avalia-o posterior, argumenta que as perdas do governo federal para as es-feras subnacionais no foram assim to importantes quanto achavanaquele momento, mas outras questes continuavam preocupantes.A primeira era a expanso das isenes fiscais para a Zona Franca deManaus, que, segundo ele, reduzem as transferncias para a grandemaioria dos estados e municpios, colocando sobre o pas o pesadonus de sustentar algumas poucas indstrias e alguns poucos empre-gos. A segunda preocupao de Serra que o Congresso no est tec-nicamente preparado para cumprir o papel outorgado pela Constitu-io em matria tributria, em especial sobre despesa e oramento.Ademais, argumenta, o Congresso no tem vontade poltica de serco-responsvel pelo desempenho do setor pblico, como o modeloproposto pela Constituio requer. Finalmente, o governo federaltambm no tem vontade poltica para levar adiante propostas quepoderiam reduzir seu poder (Serra, 1989).

    Serra admite que suas principais derrotas foram a impossibilidade deoutorgar maior autonomia aos estados para que definissem sua pr-pria poltica fiscal atravs de maior liberdade para decidir sobre asalquotas do ICMS e a falta de apoio de seus pares para aprovar meca-nismos institucionais voltados para operacionalizar a descentraliza-o dos servios. Segundo ele, as disparidades entre estados e muni-cpios muito grande e isso requer planejamento e coordenao dogoverno federal (Serra, entrevista em 2/2/1994).

    Ocorreu nessa comisso, contudo, um grande acordo entre as regiesmais e menos desenvolvidas sobre a diviso dos recursos tributrios.As primeiras ganharam um ICMS ampliado e as segundas percen-tuais mais altos nas transferncias de recursos federais, que consti-tuem os fundos de participao (FPE e o FPM).

    Na segunda etapa dessa comisso, 692 sugestes foram recebidas e275 selecionadas para anlise das variveis relacionadas com os re-sultados da Constituio sobre o federalismo e a descentralizao(Tabela 3). O maior nmero de propostas concentrava-se na conces-so de benefcios fiscais. Nesse estgio, ainda no havia um acordosobre o volume de recursos que seria transferido para estados e muni-cpios, com percentuais variando entre 35% e 52% do IPI e do IR. Oscampees das propostas sobre aumento das transferncias foram os

    Celina Souza

    534

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • representantes do Nordeste e, por partido, o PMDB, seguido do PFL.J os representantes do Sul e do Sudeste lideraram as emendas paraiseno de impostos e concesso de incentivos fiscais19. J que as re-gies Sul e Sudeste so menos dependentes dos impostos federais,era racional que seus representantes se empenhassem pela aprovaode medidas nesse sentido.

    Tabela 3

    Emendas Propostas pelos Constituintes Comisso do Sistema Tributrio,

    Oramento e Finanas

    Tema N depropostas

    Benefcios fiscais que reduziam impostos federaisIsenes e incentivos fiscaisClivagens regionaisAumento do poder do Congresso sobre matria fiscal e oramentriaAlquotas, procedimentos e regulamentao de impostosVinculao de recursos para servios pblicos e atividades privadasRetorno ao governo federal de impostos transferidos para as esferas

    subnacionaisContra o fundo de descentralizaoLimitaes tributao e despesa pblicaLimites ao Congresso para propor emendas ao oramento

    845643382911

    7322

    Fonte: Agregao baseada em dados do PRODASEN.

    Houve contradies nas propostas contra a deciso do relator detransferir a competncia sobre o Imposto Territorial Rural ITR dogoverno federal para os estados. O argumento era o de que, no passa-do, quando de competncia estadual, o imposto no era regularmentecoletado. Mais tarde, Serra retirou essa proposta porque, segundo ele,foi o nico pedido feito comisso pelo ento ministro da Fazenda,Bresser Pereira (entrevista em 2/2/1994).

    A justificao contra o fundo de descentralizao era que os recursosque comporiam o fundo, vindos do FINSOCIAL, deveriam continuar fi-nanciando programas sociais. Serra contra-atacou usando o argu-mento favorito de seus pares, de que os recursos para programas soci-ais seriam melhor aplicados pelas instncias de governo mais prxi-mas da comunidade. O fundo foi aprovado na comisso, mas rejeita-do em todas as fases posteriores da ANC. Essa rejeio, todavia, no

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    535

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • surpreende, j que os recursos do FINSOCIAL sempre integraram a ces-ta de negociao entre parlamentares e o Executivo federal20.

    Divergncias entre os estados e os municpios podem ser constatadasna forma como os lderes partidrios evitaram respostas diretas ao as-sunto, nas constantes mudanas nos percentuais dos impostos fede-rais a serem transferidos e no ganho dos municpios, que aumenta-ram sua participao no ICMS, mantendo todavia o ISS. Apesar da in-tensidade dessas disputas, individualmente cada estado e cada mu-nicpio ganhou com o novo sistema, no apenas porque seus recursosaumentaram, mas tambm por conta das vitrias fora da rea de com-petncia da comisso, tal como o aumento da bancada paulista, de 60para 70 deputados.

    A competio inter e intrapartidria teve o mesmo papel que na Co-misso de Organizao do Estado. Os delegados dos partidos com-portaram-se mais de acordo com seus compromissos locais e regio-nais do que com os programas partidrios, por mais vagos que fos-sem. Como exemplo, seria racional supor que o PL, poca identifica-do como o partido que melhor expressava a ideologia liberal, teriaparticipao ativa nessa comisso, atuando contra o aumento dos im-postos. No entanto, o PL s apresentou uma proposta. Contra a emen-da de transferncia do ITR estavam membros do PFL, PMDB, PCB ePDT. Isso mostra que, assim como na comisso anterior, a competiointer e intrapartidria ocorreu mais em bases individuais do que cole-tivas e que acordos e conflitos variaram de acordo com cada questo.

    A viso dos partidos sobre o papel do governo federal foi marcada,nessa comisso, pelas seguintes caractersticas: por um lado, para ospartidos progressistas havia, naquele momento, afinidade ideolgicaentre descentralizao e democracia, mas tambm razes pragmti-cas para concordar com as medidas descentralizadoras que estavamsendo aprovadas pelos constituintes, uma vez que desde 1985 os par-tidos progressistas comearam a crescer nas eleies municipais. Noentanto, esses partidos no tiveram grande participao nessa comis-so. A descentralizao financeira deve ser creditada, principalmen-te, ao PMDB e ao PFL. Por outro lado, para os partidos mais conserva-dores, o aumento dos recursos municipais significava mais recursospara as lideranas locais, que tm importncia crucial para a eleiodos quadros legislativos. Naquele momento, a batalha partidria naesfera local estava polarizada entre o PMDB e o PFL, assim como nos

    Celina Souza

    536

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • governos estaduais. Dessa forma, mais recursos para os municpiosera essencial para ambos.

    J as clivagens entre as esferas municipal e estadual favoreceram osmunicpios, pelas seguintes razes: a) como reao ao regime militar,que sempre acusava os prefeitos de gestores irresponsveis, mais doque os governadores; b) a luta por mais recursos locais era mais anti-ga no Congresso, simbolizada pela CPI anteriormente mencionada; c)os deputados federais exerceram ou gostariam de exercer cargos ele-tivos no Executivo, o que mais fcil nos municpios do que nos esta-dos. Portanto, a deciso de descentralizar foi influenciada por incen-tivos mais favorveis aos municpios do que aos estados21.

    Outras questes tambm so importantes para o melhor entendimen-to dessa comisso. A adoo de um sistema tributrio baseado maisem transferncias constitucionais de recursos do que na arrecadaode receitas prprias implica reconhecer que nas regies menos desen-volvidas as atividades econmicas so escassas e que sua sobrevivn-cia depende de transferncias federais. Mostra tambm o temor dosparlamentares de que governadores e prefeitos no tenham fora su-ficiente para enfrentar presses contrrias cobrana de impostos.

    A liderana de Jos Serra foi efetiva apenas nessa etapa do processoconstituinte. Assim como em outras comisses, o que era decidido aliseria mudado adiante. Constante foi o enfraquecimento financeiro dogoverno federal, facilitado por um presidente carente de legitimida-de em oposio alta legitimidade dos governadores22. Tambm per-maneceu inaltervel o acordo entre as regies mais e menos desenvol-vidas, com os aumentos do ICMS, por um lado, e do FPE e FPM, poroutro. Nesse tipo de conjuntura, no havia espao para tecnicalida-des nem para preocupaes com os resultados da descentralizao.

    Esta seo buscou enfrentar o paradoxo de como entender a fraquezado Executivo federal durante a ANC no que se refere s questes queviriam a afetar seu desempenho futuro, ou seja, o federalismo e a des-centralizao. No entanto, fica ainda sem resposta o porqu de os le-gisladores, dependentes que so dos recursos federais para sua so-brevivncia poltica e para acomodar, via recursos oramentrios, asinmeras clivagens locais e regionais, enfraquecerem o papel media-dor do governo federal nessas disputas.

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    537

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • NOVOS CONFLITOS E ALIANAS: A COMISSO DE SISTEMATIZAO CS

    Com 93 membros, a CS foi o estgio mais importante do processoconstituinte. Todos os partidos estavam ali representados, assegu-rando, inclusive, a representao das minorias, de acordo com osprincpios pluralistas e consociativos que guiaram a ANC. A repre-sentao partidria na comisso refletia a composio da ANC, masno a representao regional, conforme os dados da Tabela 4.

    Tabela 4

    Composio da CS e da ANC por Regio (%)

    Regio CS ANC

    NorteNordesteDistrito FederalCentro-OesteSudesteSul

    53815

    3714

    113228

    3215

    Fonte: Clculos da autora a partir de dados dos arquivos da ANC.

    A primeira grande batalha travada na CS teve a ver com a escolha dorelator, e acabou se caracterizando como uma disputa de oratriadentro do PMDB. Pimenta da Veiga era o favorito do lder do PMDB,Mrio Covas, mas o eleito foi Bernardo Cabral, por seu talento verbal(Passarinho, entrevista em 21/5/1993). O presidente foi Afonso Ari-nos (PFL-RJ). Em virtude das presses para a concluso dos traba-lhos, posteriormente, foram criadas duas vice-presidncias, entre-gues a Fernando Henrique Cardoso e Jarbas Passarinho.

    A CS elaborou vrios projetos entre 1987 e 1988. Realizou 125 audin-cias pblicas e recebeu 35.111 emendas de parlamentares e 122 de gru-pos organizados. Estes nmeros mostram que, assim como nas fasesanteriores, comeava-se novamente do zero.

    No que se refere s duas principais questes aqui analisadas fede-ralismo e descentralizao , a CS foi marcada mais por compromis-sos e negociaes na resoluo de conflitos do que por confrontos. Deuma perspectiva cronolgica, verifica-se o retorno de presses para afundao de sete novos estados, apesar de ter sido aprovada, no final,apenas a criao do Tocantins e a elevao de Roraima e Amap con-dio de estados. No projeto de junho de 1987, os governos subnacio-nais foram beneficiados com a incluso de um artigo que os compen-

    Celina Souza

    538

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • sava pela explorao de recursos naturais. No projeto de agosto, rein-troduziram-se as competncias concorrentes, que permaneceram naverso final. Na verso de outubro consagra-se a vitria dos que ad-vogavam a reintroduo do ISS e a criao do Imposto sobre Vendas aVarejo de Combustveis e Lubrificantes Exceto Diesel IVVC. Nessaverso, o Centro-Oeste includo, juntamente com o Norte e o Nor-deste, como beneficirio do Fundo Constitucional de Desenvolvi-mento. Nas verses de agosto e de outubro, introduziu-se um artigoautorizando os governos federal e estadual a elaborar planos para atransferncia de responsabilidades aos municpios em programas so-ciais, que inclua a transferncia de pessoal, recursos e patrimnio.Na verso de fevereiro de 1988, esse artigo foi eliminado, alm de apa-recer o imposto sobre grandes fortunas. Na verso de julho, uma curio-sa mediao entre centralizao e descentralizao surgiu: as mudan-as tributrias que reduziam os recursos federais foram mantidas, masforam introduzidas novas obrigaes para o governo federal.

    Em cada verso, o relator escreveu longos considerandos, e dois pon-tos merecem destaque: o primeiro ressaltava o que ele chamou dealto grau de consenso, mostrando que a Constituio estava cons-truindo um novo e duradouro pacto social. Segundo Bernardo Ca-bral, o confronto era visto como indesejvel. O segundo era o fortale-cimento da Federao, embora os exemplos por ele citados se refe-rissem apenas s esferas subnacionais.

    O consenso foi alcanado atravs de um sistema montado por Covas.Segundo Passarinho (entrevista em 21/5/1993), Covas criou uma es-pcie de Conselho de Segurana da ONU dentro da ANC, ou seja,dele participavam todos os lderes partidrios, com direito a veto.Passarinho argumentou que as origens esquerdistas de Covas, alia-do aos esforos messinicos da esquerda radical em oposio negli-gncia da direita, foram responsveis pelas derrotas sofridas pela di-reita. Ainda segundo ele, a direita podia apenas minimizar certasmedidas, mas no podia jamais ganhar uma batalha.

    Por conta dos caminhos que a ANC estava tomando, em especial asameaas durao do mandato de Sarney, alm das medidas contr-rias aos interesses de vrios segmentos empresariais, criou-se, ento,um grupo extrapartidrio, o Centro, para lutar contra o que muitosrotulavam de tendncias esquerdistas da ANC. O Centro contoucom 152 parlamentares do PFL, PMDB, PDS, PTB, PDC e PL, sendo

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    539

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • tambm fruto das derrotas sofridas pelo PFL nesse estgio. Esses re-veses no eram comuns, j que desde a sua criao o PFL conseguiuter uma fora extraordinria no Congresso devido s divises inter-nas no PMDB23. O Centro contou com o apoio irrestrito de Sarney,que passou a distribuir benefcios polticos aos seus aliados, taiscomo concesses de TVs e estaes de rdio, obras pblicas e cargosno governo (Baaklini, 1992; Campello de Souza, 1992). Sarney tam-bm se apoiou nos militares que eram contra o parlamentarismo e areduo do seu mandato, usando inclusive o nome deles em ameaasveladas ANC (Passarinho, entrevista em 21/5/1993). Assim, o pre-sidente valeu-se dos militares como uma fora extraconstitucionalpara diminuir o poder dos partidos de esquerda e dos movimentossociais. Apesar de os compromissos do Centro serem com os empre-srios e com Sarney, este foi muito mais bem-sucedido do que aquelesem suas demandas. De acordo com o depoimento do presidente daFederao das Indstrias do Estado de So Paulo FIESP, em 1988ele viajou 85 vezes para Braslia para defender os interesses da cate-goria. Das 24 questes pelas quais a FIESP batalhou, seu presidenteafirma que foi derrotado em 21 delas (Folha de S. Paulo, 3/4/1993).Isso no significa, todavia, que a comunidade empresarial no tenhapoder, mas sim que o Congresso, quando confrontado com deman-das do Executivo e dos empresrios, tendeu a optar pelas primeiras.

    Os motivos pelos quais o Centro foi criado no se relacionam nemcom o federalismo nem com a descentralizao. A organizao doEstado e o sistema tributrio, principais manifestaes desses doisinstitutos, j estavam desenhados antes da criao do Centro, apesarda falta de consenso em torno de alguns detalhes. No entanto, a cria-o do Centro trouxe conseqncias para o processo constituintecomo um todo. Isto porque o grupo conseguiu mudar as regras regi-mentais, aprovando o Regimento Interno n 3, o que permitiu quequase tudo o que havia sido negociado pudesse ser revisto. Alm domais, o Centro quebrou a frgil coalizo formada pela Aliana De-mocrtica, aumentando o nmero de atores no processo decisrio. Asvitrias do Centro nas demandas de Sarney mostraram que o Execu-tivo federal no era uma instituio a ser ignorada e que, apesar deseu descrdito naquele momento, podia exercer seu poder. Por fim, odespertar tardio dos conservadores na ANC mostra que eles no esta-vam acostumados a lidar com formas mais consociativas no processodecisrio. Esses segmentos levaram algum tempo para reagir aos pro-

    Celina Souza

    540

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • cedimentos pluralistas e consociativos, que estavam sendo a marcada ANC.

    No entanto, a constituio de grupos acima dos partidos no se deuapenas com o Centro. A existncia de vrios outros mostra que a en-genharia poltico-partidria estava apenas em construo, o que tam-bm fica evidente quando se verifica que, durante a ANC, 15% dosparlamentares mudaram de partido24. A formao desses grupos, asmudanas de partido e a constituio de novos mostram que a ten-dncia a subdivises, em lugar de agregaes, como aconteceu nosanos 90, refletia os rearranjos e as acomodaes poltico-partidriasna nova ordem. Alm disso, a ausncia de um segmento ideologica-mente homogneo, capaz de liderar o processo constituinte, como sedeu em outros pases, s poderia fortalecer a tendncia a prticas in-dividuais. Se os progressistas foram mais bem-sucedidos nas subco-misses e comisses temticas, apoiados, principalmente, pelos mo-vimentos sociais, na Comisso de Sistematizao eles tiveram que re-troceder e negociar com as foras conservadoras. Nesse estgio, oconsenso era a forma de lidar com as diferenas. Esses fatos abrirammais espaos para a formao de acordos, muitos no diretamente re-lacionados com o federalismo e a descentralizao, mas negociadosem seu nome.

    A VITRIA DO CONSENSO: AS SESSES PLENRIAS E AS VOTAESNOMINAIS

    As sesses plenrias se constituram de 1.021 votaes nominais emdois turnos. Mais de 95% do texto final da Constituio j havia sidonegociado quando comearam as votaes nominais. Foram selecio-nadas 115 votaes nominais para anlise sobre o federalismo e a des-centralizao (Tabela 5).

    Tabela 5

    Votaes Nominais Selecionadas sobre Organizao

    do Estado e Sistema Tributrio

    Tema N de propostas

    Sistema tributrio e despesa pblicaConflitos inter e intragovernamentaisClivagens regionaisPapel do Estado

    61311310

    Fonte: Agregao baseada em dados do PRODASEN.

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    541

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • A mdia de participao dos constituintes nas votaes nominais se-lecionadas variou entre 350 e 400, sendo esta a mdia da maioria dasvotaes25. Das 115 votaes nominais selecionadas, 82 foram rejeita-das e 33 aprovadas, mostrando que mais de 70% das propostas foramapresentadas sem negociao prvia; 83% registraram alto grau deconsenso, seja para sua aprovao seja para sua rejeio. Somenteonze dessas votaes foram objeto de fortes disputas, das quais setetinham relao com o sistema tributrio, trs com conflitos inter e in-tragovernamentais e uma com o papel do Estado26. A grande maioriavisava mudanas parciais em impostos especficos e somente umaemenda foi apresentada, pelo PL, para mudar integralmente o captu-lo sobre o sistema tributrio. Coerente com seu iderio liberal, a pro-posta do PL tinha por objetivo a reduo de impostos e uma maiordescentralizao tributria, tendo sido derrotada.

    As clivagens entre as regies foram minimizadas nesse estgio dada aestratgia de busca de consenso. No entanto, alguns conflitos aindaocorreram, como mostra a Tabela 6.

    Tabela 6

    Votaes Nominais Selecionadas Relacionadas a Clivagens Regionais

    Regio Votao Nominal

    n 811 n 904 n 913 n 708

    Sim No Sim No Sim No Sim No

    NorteNordesteSudesteCentro-OesteSulDistrito Federal

    Total

    2549432325

    4169

    154480

    933

    5186

    306453

    336

    1187

    1155772338

    9213

    28751526

    34

    151

    106

    204

    685

    113

    1460691338

    6200

    3177642131

    3227

    Fonte: Agregao baseada em dados do PRODASEN.

    Se o Nordeste registrou ganhos nos estgios anteriores do processoconstituinte, o Sudeste demonstrou seu poder nas sesses plenrias.As votaes nominais nos 811, 904 e 913 so exemplos de como o Sudes-te saiu vitorioso nas confrontaes por votar como um bloco unido, en-quanto o Nordeste foi derrotado em virtude das divises entre seus re-presentantes. A votao nominal n 708 mostra que quando os repre-sentantes das regies se dividiam, o Norte, o Nordeste e o Cen-tro-Oeste conseguiam impor suas demandas. Surpreendentemente, os

    Celina Souza

    542

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • representantes do Sul, a regio do Brasil menos desigual social e econo-micamente, tenderam a se dividir nas votaes nominais selecionadas.

    Quatro votaes nominais so representativas do alto grau de nego-ciao inter-regional (Tabela 7)27 e implicam a defesa de interesses es-pecficos de uma rea ou regio. Em algumas situaes, um acordobeneficiando determinada rea podia anular os ganhos de outras de-cises. Isso aconteceu com a votao nominal n 718, que criou trsnovos estados, diminuindo, portanto, a vantagem conseguida porSo Paulo com o aumento do nmero de seus representantes.

    Tabela 7

    Votaes Nominais Selecionadas Relativas ao Alto Grau de Negociao

    entre as Regies

    Regio Votao Nominal

    n 453 n 463 n 464 n 718

    Sim No Sim No Sim No Sim No

    NorteNordesteSudesteCentro-OesteSulDistrito Federal

    Total

    23219162

    62

    1287

    10724597

    296

    3291

    10332596

    323

    52010140

    40

    32

    48483

    68

    341158031583

    321

    3511111634629

    367

    1000001

    Fonte: Agregao baseada em dados do PRODASEN.

    Duas propostas voltadas para operacionalizar a descentralizao fo-ram reapresentadas: a de n 726, assinada por Jos Serra e represen-tantes de vrios partidos e regies, com exceo da regio Norte, pararegular a transferncia de responsabilidades e atribuies do gover-no federal para os governos subnacionais e dos estados para os muni-cpios e para definir os procedimentos e os limites da descentraliza-o. A proposta foi, no entanto, derrotada em todas as regies. A se-gunda foi a de n 727, que visava aprovao de uma srie de serviospblicos, em especial sociais, que deveriam ser transferidos para osmunicpios, e que tambm foi rejeitada por todas as regies.

    O alto consenso obtido pelas questes relativas ao federalismo e descentralizao foi possvel graas participao dos lderes parti-drios, conforme pode ser visto na Figura 1.

    A figura acima mostra que a forma mais eficiente para aprovar umaproposta era obter o apoio de mais de quatro partidos, embora, nesse

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    543

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • estgio, poucas emendas tenham sido aprovadas no que se refere aofederalismo e descentralizao. A segunda maneira era conseguir aaprovao de membros de dois ou trs partidos ou grupos opostos aodo autor da proposta. A terceira era a apresentada por parlamentarescom algum tipo de liderana (partidria, relator ou representante dealgum grupo de interesse). No entanto, a taxa de sucesso nesse est-gio sempre foi baixa. Lderes do PFL, PDC e PTB apresentaram pro-postas que foram rejeitadas porque elas reduziam impostos federais.A forma menos eficiente de conseguir passar uma emenda era con-centr-la em um nico partido, tendo menos probabilidade do que aapresentada por parlamentares individualmente.

    Apesar de as propostas relacionadas com o federalismo e a descentra-lizao terem obtido alto grau de consenso nesse estgio, grande dis-perso foi registrada no que se refere aos partidos, com exceo doPCdoB, PT e PSB (ver Figura 2). Em nenhuma das 115 votaes nomi-nais analisadas houve acordo entre o PMDB e o PFL28.

    Todos os partidos obtiveram mais vitrias do que derrotas nas suasproposies. O PMDB foi o grande vencedor, fazendo do partido omais importante ator coletivo, seguido do PSDB, que teve apenasnove derrotas, inclusive a do fundo de descentralizao, e do PFL,com quatorze. O partido com maior nmero de derrotas foi o PL, com35, mostrando que a reduo de impostos, principal bandeira do par-

    Celina Souza

    544

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

    Partidos contrrios

    26,6%

    Um lder

    25,4%

    Um indivduo

    7,1%

    Mesmo partido/grupo

    4,7%

    Mais de quatro partidos

    36,1%

    Figura 1

    Coalizes nas Votaes Nominais

    (% de aprovao de acordo com a forma como a proposta foi apresentada)

  • tido no que se refere ao federalismo e descentralizao, no teve res-sonncia na ANC. O que se pode concluir em relao s votaes no-minais que todos os partidos e agrupamentos foram responsveispelo formato assumido pelo federalismo e pela descentralizao.

    POR QUE DESCENTRALIZAR?

    Por que a deciso de mudar o federalismo pela via da descentralizaofoi tomada pelos constituintes brasileiros? Trs grupos de razo, queagregam nove diferentes motivaes, podem ser listados (Quadro 1).

    Quadro 1

    Razes da Descentralizao

    Grupos de razo Motivao

    ExternasExternas + internasInternas

    Agenda da transioClivagens entre o Legislativo e o ExecutivoPeculiaridades da ANC

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    545

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

    0

    1219

    57 57

    73

    8792

    99 115 115

    0

    10

    2

    N

    mer

    od

    asv

    ota

    es

    no

    min

    ais

    com

    dis

    per

    so

    0

    30

    40

    50

    60

    70

    80

    90

    100

    PCdoB PT PSB PL PDT PDC PSDB PTB PDS PFL PMDB

    Par tido

    Figura 2

    Disperso nas Votaes Nominais

  • O primeiro grupo constitudo de razes baseadas na agenda da tran-sio: a) reao contra o regime autoritrio, j que centralizao e au-toritarismo sempre estiveram associados no Brasil; b) questes con-trrias descentralizao, tais como equilbrio fiscal e controle do d-ficit pblico, no constavam da agenda da transio, sendo seu prin-cipal objetivo legitimar a redemocratizao; c) a ausncia de consensosobre um novo formato para o Estado e um novo modelo de desenvol-vimento econmico tornou o processo decisrio fragmentado, permi-tindo posturas regionalistas, alm de dificultar um acordo sobre oque deveria ser alcanado pelo novo federalismo e pela descentrali-zao; d) havia uma enorme euforia no pas quando a Constituio es-tava sendo escrita, estimulada por fatores econmicos e polticos, talcomo o sucesso inicial do Plano Cruzado, e poucos polticos arrisca-vam falar de problemas, como os constrangimentos fiscais do gover-no federal; e) havia um ambiente favorvel aos governos subnacio-nais, abrindo caminho para assunes normativas sobre a descentra-lizao, como por exemplo seu potencial para promover eficincia,democracia e accountability.

    O segundo grupo constitudo de motivaes internas e externas re-lacionadas s clivagens entre o Executivo e o Legislativo. Depois deanos de submisso das instituies polticas nacionais e subnacionaisao Executivo federal, o Congresso estava em luta aberta contra o Exe-cutivo, e a descentralizao foi uma arma sempre presente ameaan-do o governo federal. Duas razes podem ser includas nessa catego-ria: a) ainda prevalecia a viso de que o governo federal era to-do-poderoso, inclusive financeiramente; b) Sarney tinha pouca legiti-midade, em contraste com os governadores e constituintes, cujas ima-gens se associavam tarefa de liderar a redemocratizao. Ademais,o Congresso tambm estava vendo seu poder aumentar porque o par-lamentarismo vencia em todas as etapas do processo constituinte.

    O terceiro grupo era composto de razes baseadas nas peculiaridadesda ANC e do Congresso: a) o parlamentar mdio em geral desconhecequestes fiscais; b) 54% dos membros da ANC que tinham experin-cia poltico-partidria anterior tinham sido governadores, prefeitos,vereadores ou deputados estaduais, alm de serem sempre poten-ciais candidatos aos Executivos subnacionais.

    A Constituio foi desenhada para formar as bases da nova ordem epara legitimar a redemocratizao. A descentralizao e um federa-

    Celina Souza

    546

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • lismo que constrange o centro, na expresso de Stepan (2000a), foramvistos como formas de legitimar a redemocratizao e reestruturar oEstado29. Nesse sentido, a Constituio de 1988 foi um sucesso. No en-tanto, a determinao de promover a descentralizao e mudar as fei-es do federalismo foi marcada por conflitos entre regies e entre es-tados e municpios, acirrados pelas circunstncias daquele momentohistrico, isto , pelas turbulncias e comoes que sempre se seguems mudanas de regime poltico, em especial de autoritrio para de-mocrtico. Ademais, a deciso foi marcada por premissas normativasem lugar de avaliaes sobre suas conseqncias na correlao de for-as dentro da Federao. Por outro lado, essa deciso expressa a con-cepo ideolgica (ou de valor) que tem sustentado o federalismo noBrasil, ou seja, a necessidade de acomodar demandas regionais con-flitantes em um pas marcado por alto grau de desigualdades inter eintra-regionais30.

    CONSIDERAES FINAIS

    As questes relacionadas com a organizao do Estado e com o siste-ma tributrio durante o processo constituinte foram menos voltadaspara formular e implementar polticas pblicas e mais para atender ademandas locais, regionais e individuais. No entanto, essas caracte-rsticas no so uma idiossincrasia brasileira. Como argumentamShugart e Carey (1992), assemblias constituintes so, por natureza,paroquiais. Na mesma linha, Elster (1994) afirma que os interessesdos eleitores so sempre e necessariamente os mais importantes paraos constituintes. Apesar de uma certa desconfiana ainda existenteem relao aos prefeitos e governadores, os constituintes assumiramo risco de aumentar o poder de governadores e prefeitos. Outros fato-res tambm contriburam para o contedo localista, regionalista e in-dividualizado de alguns aspectos da ANC: a pouca polarizao ideo-lgica e a opo pelo consenso em lugar do confronto, implicandofragmentao e adiamentos. Algumas concluses sobre o processodecisrio relativo ao federalismo e descentralizao podem ser aquiformuladas.

    1) Se os constituintes abraaram um antimodelo para algumas ques-tes, para outras repetiram muito do que era caro ao regime militar,como a criao de estados nas regies menos desenvolvidas do pas31.

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    547

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • 2) Em nome da restaurao do federalismo e da defesa da descentrali-zao, muitas medidas foram negociadas, da porque os conflitos e astenses decorrentes desses dois institutos ultrapassaram a questoda transferncia de recursos para as esferas subnacionais.

    3) A opo preferencial pelo consenso teve duas conseqncias prin-cipais: a) promoveu um jogo de soma positiva para as esferas subnaci-onais; b) limitou a possibilidade de enfrentar questes candentes,como a adoo de mecanismos capazes de promover uma melhorequalizao fiscal entre estados e regies. A opo pelo consensomostra o carter consociativo do federalismo brasileiro e da prpriaredemocratizao32. No entanto, isso no significa, obviamente, a eli-minao dos conflitos, seja naquele momento, seja nos desdobramen-tos futuros dessa engenharia constitucional.

    A engenharia constitucional brasileira foi marcada por esforos paralegitimar o retorno democracia mediante a promulgao de umaConstituio aberta participao popular e societal e no por preo-cupaes com resultados ou em construir um consenso social sobre oque deveria ser atingido pela descentralizao e pelo novo federalis-mo. Ademais, os procedimentos adotados incentivaram mudanasconstantes nas diversas verses da Constituio, induzindo a negoci-aes e compromissos com inmeros participantes. Por fim, o proces-so constituinte no se caracterizou pela ruptura com os partcipes doantigo regime, mas sim pela aceitao de novos e velhos atores, visan-do legitimao da nova ordem democrtica e assegurar a continui-dade da mesma. Essas caractersticas ampliaram o nmero de atoresno processo decisrio, fragmentando o poder, sem desintegrar, con-tudo, as velhas coalizes polticas.

    No que se refere essncia do federalismo e da descentralizao, cabedestacar alguns pontos. Primeiro, no havia dvida sobre a decisode restringir o poder do governo federal e do Executivo federal, o quefoi feito pela via da descentralizao tributria, mas poucos constitu-intes se debruaram sobre suas conseqncias e desdobramentos. Se-gundo, o governo federal no reagiu a essas perdas, nem os constitu-intes avaliaram que reduzir recursos federais tambm implicava res-tringir sua capacidade de transferir recursos para suas bases eleitoraispor intermdio do oramento federal33. Da parte do Executivo fede-ral, distribuir benefcios financeiros para que os parlamentares osempreguem em suas bases eleitorais tambm crucial para assegurar

    Celina Souza

    548

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • apoio coalizo governista. Essas tenses continuam na agenda pol-tica brasileira e reemergem todos os anos nos momentos de elabora-o e execuo do oramento federal.

    O surgimento de novas questes nos anos que se seguiram ao incioda redemocratizao, aliado ao fato de que a descentralizao no foiprecedida de um consenso social sobre os seus objetivos, acabarampor criar uma distncia entre os meios e os fins da descentralizao34.Ademais, e apesar do carter consociativo do federalismo e do siste-ma poltico brasileiro formatados em 1988, existe hoje uma grandetenso entre o que foi desenhado em 1988, dos pontos de vista consti-tucional e institucional, e o que acontece na prtica. Exemplos dessatenso podem ser encontrados: a) no uso excessivo de Medidas Provi-srias pelo Executivo federal; b) na persistncia das grandes desi-gualdades entre estados, municpios e regies, aumentando fragili-dades financeiras e administrativas e fazendo com que a capacidadede as instncias subnacionais tirarem vantagens da sua posio nosistema federativo e na descentralizao seja altamente diferenciada(ver Souza, 2001); c) no controle que muitos governadores ainda exer-cem sobre as instituies polticas e societais no territrio estadual,tornando o sistema poltico estadual e a relao entre os estados e osmunicpios pouco abertos contestao (ver Abrucio, 1998); d) no su-cesso do governo federal em recentralizar recursos fiscais em nomeda poltica macroeconmica, como mencionado acima; e) na competi-o entre esferas subnacionais por investimentos privados, a denomi-nada guerra fiscal, resultado da poltica de desregulamentao.

    Assim, a sada do governo federal de vrias funes, tanto de regula-mentao como de financiamento, e a impossibilidade de a ANC criarincentivos para a ao cooperativa entre os entes governamentais, emque o fundo de descentralizao acima mencionado seria uma das al-ternativas, tm contribudo para diminuir, mas no eliminar, o car-ter consociativo do federalismo brasileiro, assim como para aumen-tar a distncia entre os fins e os meios da descentralizao.

    A engenharia constitucional brasileira gerou um federalismo que in-corpora mltiplos centros de poder e que pode ser caracterizadocomo um sistema complexo de dependncia poltica e financeira en-tre esferas de governo. Desde 1988, vrios centros de poder, emboradesiguais, passaram a ter acesso ao processo decisrio e implemen-tao de polticas. Em um sistema democrtico e com marcas consoci-

    Federalismo e Descentralizao na Constituio de 1988...

    549

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • ativas, os polticos subnacionais tornaram-se uma fonte de apoio paraa coalizo nacional de governo, com possibilidades de sustentar ouvetar polticas pblicas, inclusive nacionais. A fora desses polticos edessas esferas no significa, todavia, que o Executivo e o governo fe-deral tornaram-se atores passivos.

    Ao desenhar um federalismo que impe restries ao governo fede-ral, os constituintes aproximaram o Brasil das federaes mais demo-crticas, j que, como lembra Stepan (2000a), todas as federaes de-mocrticas so, por natureza, limitadoras do centro.

    (Recebido para publicao em maro de 2001)

    NOTAS

    1. Na cincia poltica, a literatura sobre desenho constitucional tem sido abundante,mas poucos trabalhos focalizam prioritariamente as mudanas no sistema federati-vo. Ver, por exemplo, Bogdanor (1988); Elster e Slagstad (1988); Elster (1993; 1998);Lane (1996); Melo (1997); North e Weingast (1996); Reis (1986); Riker (1998); Shu-gart e Carey (1992); Weaver e Rockman (1993). Sobre a Constituinte brasileira, ver,entre outros, Baaklini (1992); Couto (1998); Fleischer (1990); Lamounier et alii(1991); Martinez-Lara (1996). Leme (1992) um dos raros autores que analisou es-pecificamente a questo federativa na ANC de 1986-88.

    2. Os dados foram extrados dos arquivos da ANC e do banco de dados do PRODASEN.Foram tambm realizadas entrevistas semi-estruturadas em 1993 e 1994.

    3. Nessas eleies o eleitorado brasileiro era de 69.166.963 eleitores.

    4. A diviso dos partidos em direita versus esquerda ou estatizantes versus liberaispouco contribui para o entendimento do comportamento dos partidos durante aANC. A importncia de se analisar a ANC para alm dos partidos polticos ressal-tada por autores como Campello de Souza (1989). Por essa razo, optou-se por no-mear como conservadores os partidos que, durante a ANC, resistiram a mudanasno status quo e que tinham em seus quadros expressiva presena de membros vin-culados ao regime militar, e como progressistas os que resistiram ao regime autori-trio e mostraram na ANC um compromisso com a expanso dos direitos polticose sociais. Como toda classificao de situaes complexas, essa tambm no deixade ser insatisfatria, inclusive porque no interior de vrios partidos, em especial noPMDB, havia representantes de ambos os grupos.

    5. Durante ou aps a ANC, esses partidos passaram por vrias mudanas: o PCB setornou PPS; o PDS e o PDC se transformaram, em 1993, no PPR, que, mais tarde, seuniu ao PP, constituindo o PPB.

    Celina Souza

    550

    Revista Dados1 Reviso: 11.10.2001Cliente: Iuperj Produo: Textos & Formas

  • 6. Sobre o papel dos parlamentares brasileiros no perodo 1946-99, em especial sobrea importncia de altos ndices de renovao na produo legal da instituio parla-mentar, ver Santos (2000).

    7. Processo semelhante foi tambm identificado na ANC por Couto (1998) no que serefere s reformas econmicas.

    8. Na Espanha, por exemplo, as subcomisses trabalharam a portas fechadas e aComisso de Sistematizao, que tinha apenas onze membros, foi marcada poracordos secretos (Bonime-Blanc, 1987).

    9. Por eficcia poltica entende-se o grau de confiana dos cidados na sua capacida-de de participar do processo poltico e de influenciar as decises sobre polticas queafetam suas vidas.

    10. Mesmo os maiores defensores da chamada autonomia municipal concordaram queessa deciso foi um exagero (entrevista com Diogo Lordello de Mello, 13/4/1993).

    11. A Constituio de 1988 garantiu por 25 anos os benefcios fiscais da Zona Franca deManaus.

    12. Dados levantados por Graham (1987) e Serra e Afonso (1991) mostram que os re-cursos para os municpios cresceram durante o regime militar enquanto os recur-sos para os estados foram reduzidos.

    13. Entre 1964 e 1986, os militares criaram quatro estados na regio Norte, um no Cen-tro-Oeste e fundiram os estados do Rio de Janeiro e da Guanabara.

    14. A Constituio previu sua reviso em 1993, o que no ocorreu. Curioso notar que oartigo sobre a reviso constitucional foi aprovado pela maioria dos partidos e portodos os partidos progressistas, o que mostra que os mesmos estavam confiantes naampliao das conquistas sociais e democrticas da Constituio de 1988. Somenteo PFL votou contra esse artigo, apesar de ter se tornado, poster