Fédon e a palavra1

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Filosofia da Educaçáo-

Prof. André

FÉDON e a PALAVRA

Fédon, filósofo grego, contemporâneo de Platão

Dizem alguns que o silêncio é de ouro. Um homem sábio, porém, náo o dirá.Pois de ouro é a palavra. De ouro e de fogo.

Porque uma vez dita, ela é uma idéia forjada e duradoura, assim como as jóias de metal, cuja forma resiste aos tempos. E de

fogo, porque ela está sempre acesa, para iluminar ou para queimar. E tanto queima para destruir e reduzir a cinzas as coisas

perecíveis em que toca, como para curar alguma corrupção da matéria. A palavra é, assim, um fogo, com todas as virtudes do

fogo, inclusive a virtude curativa do cautério.

Creio que esse provérbio que diz o silêncio; e de ouro foi inventado pelos governos despóticos. Pois a perversidade dos

tiranos e a truculência dos déspotas sempre foram os maiores inimigos da palavra, e isto porque nenhuma prepotência

consegue reduzir á escravidão o homem que se serve de sua palavra.

Ai da cidade em que os homens desertam do uso da palavra, acuados pelo medo, silenciados pelo egoísmo das próprias

conveniências ou emasculados pela indiferença! Na cidade em que em que os homens se decidem a servir-se livremente da

palavra, náo podem medrar os déspotas. E se houverem surgido, serão derrubados e reduzidos a cinza pelo fogo da palavra

dos cidadãos livres.

Já que a palavra é a arma mais poderosa de que dispõe o homem para defender-se contra a injustiça e a oposição, a mais

terrível maldade que pode cometer um tirano contra seu povo é proibir-lhe o uso da palavra na ágora da cidade. (ágora- praça

e mercado)

Mas se os cidadãos souberem avaliar o peso e a força da palavra, náo há tirano que dela os consiga privar. Pois se um

cidadão quiser, sempre poderá levantar a voz no meio do povo e clamar contra o tirano. Se os soldados fiscais do tirano o

silenciarem matando-o, os outros cidadãos continuarão o clamor pelo que morreu.

O tirano atilado sabe que, numa cidade amante da liberdade, se matarem um cidadão pelo uso que ele fez da

palavra, terá de matar a cidade inteira, pois a cidade inteira repetirá, dia e noite como um eco, a palavra do que morreu por

utilizar-se do poder de falar. E o tirano atilado sabe que náo pode matar todo o povo de uma cidade inteira, pois então ele

também deixará de existir como tirano, uma vez que náo terá sobre quem mandar.

E como só morto o cidadão pode ser impedido de falar, parece óbvio que só existe a tirania do despotismo naquela cidade

em que o povo desertou do direito de usar a palavra.Onde houver alguém capaz de falar contra a opressão e a prepotência, o

déspota será despojado de seu poder.

E quando digo que só a morte pode impedir o homem de servir-se da palavra, é porque na verdade assim é. O homem

arrastado ao cárcere poderá ir clamando pelo caminho seu protesto contra a injustiça, pois, quando chegar á porta do

calabouço, seu protesto já será um coro. Ou, então, quando chegar diante do juiz, sua palavra de fogo terá queimado os

ouvidos do magistrado.

Se cortarem a língua de um homem, como fizeram a Karibides em Mégara, bastará que ele fique no meio da ágora com a

boca aberta e falando com os olhos e as mãos, para que os demais cidadãos traduzam em sons a palavra que está dizendo e

julguem os malfeitores. Foi, de resto, o que aconteceu aos que torturaram o inocente Kaibides.

Se os fiscais do tirano mandarem amarrar um pano na boca do cidadão ou meter um freio de cavalo dentro

dela, prendendo-lhe a língua, poderá ele ainda ir para o meio da praça, como fizeram: Magonides de Magnésia e

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Philautos de Queronéia – o primeiro rasgou o pano com os dentes, até poder falar, e o segundo, tratado

torpemente como um cavalo, começou a dar coices para o ar, e cada coice era uma palavra, entendida pelo povo,

denunciando a iniqüidade do déspota.

Todos devem usar a palavra permanentemente, para corrigir os erros do mundo. O servo deve clamar mais alto,

para que os outros servos saibam que um senhor cruel está maltratando um dos seus companheiros e traía contra

o injusto a autoridade dos outros senhores ou a união de todos os servos contra todos os maus senhores. Devem

clamar o filósofo e o poeta, para que os apresentadores de idéias falsas e de versos descompostos náo corrompam

o povo inteiro com a mentira e a desarmonia. Deve falar o soldado, para corrigir os erros do capitão, quando a

cidade náo os corrige. O sil6encio, no caso, náo seria de ouro. De ouro é a palavra corajosa, que impede a perdição

da cidade, mergulhada nos próprios erros, ou desbaratada á mão dos inimigos, por falta de uma palavra. Uma

palavra de ouro, que dure tanto como ouro, e uma palavra de fogo, que alumie e queime tanto como o fogo.

Forjado-aquecido e trabalhado na forja(=oficina de ferreiro); fabricar, fazer.

Cautério: ferro em brasa que queima para curar

Despótico; tirânico, autoritário.

Emasculada:castrar, perder a virilidade;mostrar-se fraco.

Atilado(atilar):executar com cuidado;aperfeiçoar; esperto.

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