FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

download FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

of 10

Transcript of FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

  • 7/24/2019 FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

    1/10

    ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    A cidadania no final do primeiro reinado (1830): Lopes Gama e as instituiesrepresentativas

    Ariel Feldman*

    Este texto teve como ponto de partida um trabalho anterior. Neste trabalho pretrito,analisamos o peridico O Carapuceiro, escrito integralmente pelo monge, depois padre,

    Miguel do Sacramento Lopes Gama e publicado no Recife entre 1832 e 1842. 1 O

    Carapuceiro foi um imenso sucesso editorial, e o fato de ter durado uma dcada numa poca

    em que os jornais tinham vida efmera j demonstra isso. Sua proposta era pretensiosamente

    apoltica, isto , Lopes Gama afirmava que escreveria sobre moral e criticaria os maus

    costumes; a carapua vestiria quem quisesse. Demonstramos que, ao contrrio do que

    propunha Lopes Gama, essa gazeta exerceu forte influncia poltica nos espaos pblicos doPerodo Regencial (1831-1840). E no contexto do que a historiografia convencionou chamar

    de regresso conservador,2 Lopes Gama sustentou as bases ideolgicas das reformas que

    passariam vrias instituies de carter eletivo a partir de 1837. Em dezembro de 1841 era

    aprovada a reforma do Cdigo de Processo Criminal, a qual retirou dos juzes de paz (cargo

    eletivo) grande parte da autoridade judicial e policial anteriormente exercida.3 As altas

    patentes da Guarda Nacional, que tambm eram de carter eletivo, voltariam a ser de

    nomeao imperial apenas em 1850.

    4

    Todas essas instituies de carter eletivo - assim comoo Jri popular - foram criticadas nas pginas de O Carapuceiro, com o argumento central de

    que o povo brasileiro no estava apto para a democracia. Ou, nas palavras de Lopes Gama: o

    povo do Brasil to apto para a democracia como o muulmano para conhecer a jurisdio do

    papa.5Esse iderio, veiculado em um peridico de imensa circulao, e em uma linguagem

    coloquial e jocosa, exerceu importante influncia para sustentar as reformas nas instituies

    eletivas.

    * Doutorando em Histria Social pela USP e bolsista do CNPQ.1 FELDMAN, Ariel. .2006. O imprio das carapuas: espao pblico e periodismo poltico no tempo das

    regncias (1831-1842). Dissertao de Mestrado em Histria. Curitiba, UFPR.Disponvel emhttp://www.poshistoria.ufpr.br/documentos/2006/Arielfeldman.pdf Cf. tambm FELDMAN, Ariel.Uma crtica s Instituies representativas do perodo das regncias (1832-1840). Almanack braziliense, n.4, nov.2006, pp. 65-81. Disponvel em www.almanack.usp.br

    2 Sobretudo CARVALHO, Jos Murilo de.A Construo da Ordem. A elite poltica imperial. Rio de Janeiro:Editora da UFRJ / Relume-Jumara, 1996 e MATTOS, Ilmar R. O tempo saquarema. A formao do EstadoImperial. So Paulo: Hucitec, 1990.

    3 Um trabalho apenas descritivo, mas rico em informaes legislativas sobre os juzes de paz: VIEIRA, RosaMaria. O Juiz de Paz do Imprio a nossos dias. Braslia : Thesaurus, 1997.

    4

    Cf. CASTRO, Jeanne Berrance de.A milcia cidad: a Guarda Nacional de 1831 a 1850.So Paulo-Braslia: Ed. Nacional-I.N.I., 1977.5 O Carapuceiro, n. 1 (17/01/1838).

    1

    http://www.poshistoria.ufpr.br/documentos/2006/Arielfeldman.pdfhttp://www.almanack.usp.br/http://www.almanack.usp.br/http://www.poshistoria.ufpr.br/documentos/2006/Arielfeldman.pdf
  • 7/24/2019 FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

    2/10

    ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    O texto presente, por sua vez, analisa o peridico escrito por Lopes Gama ainda no fim

    do primeiro reinado, O Popular6Este foi escrito no segundo semestre de 1830. So cinqenta

    e um nmeros, de quatro pginas cada. A maneira pela qual esse jornal chegou at os dias

    atuais, encadernado sob o formato de livro e com numerao contnua, de 1 a 204, talvez

    indique como ele circulou ao longo da dcada de 1830 e 1840. 7Em O Popular, Lopes Gama

    se preocupou em explicar alguns artigos da Constituio de 1824, se dirigindo, sobretudo,

    para a classe indouta.8Com toda a fragilidade desta comparao, O Popular teve, tal qual O

    Federalista, jornal norte-americano escrito entre 1787 e 1788, a funo de consolidar a carta

    constitucional.9O jornal norte-americano atuou concomitantemente ao processo de aceitao

    da constituio 1787 pelos Estados confederados. J o brasileiro, foi escrito depois da

    Constituio de 1824 estar vigorando por seis anos, de ter sido rechaada em Pernambuco

    pela derrotada Confederao do Equador (1824), e de ainda estar sofrendo relativa ameaa no

    incio da dcada de 1830.10

    Comentrios introdutrios feitos, cabe frisar que esse texto tem como objetivo analisar

    a opinio que Lopes Gama externou em O Popularem relao a instituies com certos traos

    democrticos, notadamente os Juzes de Paz, a Guarda Nacional e o Jri popular. Os juzes de

    paz foram projetados constitucionalmente em 1824, regulamentados em lei de 15 de outubro

    de 1827 e tiveram seus poderes amplamente expandidos em 1832, com a promulgao do

    Cdigo de Processo Criminal. Este mesmo cdigo ampliou a jurisdio do jri popular, que

    havia sido projetado na Constituio de 1824. J as guardas nacionais foram criadas em

    agosto de 1831.

    *********************************

    6 Esse texto um ensaio preliminar que faz parte de uma pesquisa mais ampla: a tese de doutorado orientadapela professora Mrcia R. Berbel, no curso de Ps-Graduao em Histria Social da Universidade de SoPaulo. Nesta tese pretende-se, atravs da biografia poltica de Lopes Gama, iluminar a compresso doprocesso de construo do Estado nacional brasileiro. So trs as reas de atuao de Lopes Gama, dentro dasquais ele engendrou seus projetos de futuro: imprensa, parlamento e instruo pblica. Entendemos essas trsinstituies como espaos pblicos de primordial importncia para a nova estrutura poltica que se construa.

    7 Coleo completa do jornal na Biblioteca Nacional. Uma outra, quase completa, no Instituto Arqueolgico,Histrico e Geogrfico Pernambucano.

    8 O Popular n. 1 (02/06/1830).9 Cf. O Federalista. Russel : Campinas, 2003.10 Sobre a sociedade secreta absolutista Colunas do Trono e do Altar, que existiu em Pernambuco em fins da

    dcada de 1820 e incio da dcada de 1830 cf. QUINTAS, Amaro. O nordeste, 1825-1850, in: HOLANDA,Srgio Buarque de (org.). Histria Geral da Civilizao Brasileira. Tomo II, vol. 2. So Paulo: Difuso

    Europia do Livro, 1972 e CARVALHO, Marcus J. M. A Repblica dos Afogados: a volta dos liberais apsa Confederao do Equador, in: Anais do XX Simpsio da Associao Nacional de Histria. Florianpolis,1999.

    2

  • 7/24/2019 FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

    3/10

    ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    Sobre os Juzes de Paz so poucas as referncias em O Popular. Ao bem da verdade

    duas. Ambas elogiosas instituio. Segundo Lopes Gama, demandas que consumiriam anos

    e anos e toda a fortuna dos litigantes, os Juzes de Paz resolvem em menos de uma hora. 11

    Em outro nmero, Lopes Gama diz que apesar da inegvel utilidade dessa instituio, alguns

    snrs. Juzes de Paz, principalmente pelo mato, tem cometido arbitrariedades, que se lhes no

    pode perdoar. Segue escrevendo que os afeioados ao governo absoluto querem concluir

    que esses abusos nascem da natureza da instituio ou por serem tais juzes eleitos pelo

    povo. Nada h mais sofstico; retruca Lopes Gama porque mais fcil que eleies

    populares sejam bem acertadas, do que aquelas que so feitas a arbtrio do Imperante. 12

    Em relao instalao do Jri popular, que estava por ser feita, Lopes Gama tambm

    se mostrava otimista. Depois de constatar a agilidade que os juzes de paz conferiram aos

    processos, ele escreve que ainda melhor ser quando aparecer o Tribunal dos Jurados, ou

    Juzes escolhidos pelo Povo, para o crime ou cvel.13 Alguns meses depois, traduziu um

    texto de Mr. Aignan14intitulado O que o Jri Justia Hrimitiva [sic.] Povos da Europa;

    Povos da sia. O texto inicia-se assim: Donde vem o Jri? Que pas deu origem a essa bela

    planta, que s pode florescer no solo da liberdade? Em seguida, o autor do texto que Lopes

    Gama traduziu em seu jornal diz que essas questes no so importantes, pois o Jri (...) no

    produto particular de terra alguma; para mtua garantia dos cidados, a criao

    espontnea, a inspirao comum de todos os povos, que no so obcecados pela ignorncia,

    comprimidos pelo terror, ou abatidos pela escravido. O texto longo, e foi subdividido em

    trs nmeros do jornal com a tradicional frase continuar-se-.15Ele descreve o sistema de

    justia dos antigos assrios, egpcios e hebreus, tentando demonstrar os primrdios desta

    forma de se fazer justia, o Jri. Mas o que importa, em suma, a preocupao de Lopes

    Gama em defender esta instituio de carter notadamente popular.

    Em relao Guarda Nacional no aparece nenhuma referncia explicita nos

    cinqenta e um nmeros de O Popular. A idia de criar milcias cidads j era aventada noparlamento no ano de 1830. Mas a lei, muito semelhante lei francesa feita meses antes, s

    seria promulgada em agosto de 1831. Era o contexto da revoluo de julho de 1830 na Frana,

    que derrubou Carlos X, e da abdicao de D. Pedro I, em abril de 1831, que foi considerada

    11 O Popular n. 12 (10/07/1830).12 O Popular n. 28 (04/09/1830).13

    O Popular n. 12 (10/07/1830).14O Popular n. 37. Ainda no conseguimos informaes precisas sobre esse autor, Mr. Aignan.15 O Popular n. 40 e 44.

    3

  • 7/24/2019 FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

    4/10

    ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    pelos coevos como a nossa revoluo.16 Mas mesmo sem falar abertamente em criar

    guardas nacionais, Lopes Gama apoiou aquilo que foi um dos motivos da criao dessas

    milcias. Afirmou que o exrcito e a marinha estavam muito grandes e que era preciso reduzi-

    los.17Dessa forma, podemos supor, apenas supor, que ele apoiava a corrente de opinio que

    pressionou o parlamento a criar a Guarda Nacional.[Fazemos] os seguintes questionamentos:

    como pde a mesma pessoa apoiar a criao dessas instituies com traos democrticos para

    anos mais tarde critic-las? Como pde Lopes Gama colaborar com o estabelecimento de

    instituies e depois pretender reform-las?

    Nesse breve ensaio, entretanto, no queremos analisar as contradies de um discurso.

    Pelo contrrio, pretendemos encontrar no iderio de Lopes Gama o oposto, isto , aquilo que

    pode ter conferido uniformidade sua atividade jornalstica e poltica. Sem ter como objetivo

    encontrar coerncia em suas idias, o que por vezes pode acontecer em um trabalho

    biogrfico, apenas tem-se como objetivo pensar quais formulaes puderam, a posteriori,

    sustentar a crtica que esse monge beneditino fez no final da dcada de 1830, atestando a

    incapacidade do povo brasileiro para a democracia.

    O equilbrio entre as trs formas de governo

    Em sua defesa da Constituio, Lopes Gama sustentou em O Popular a idia de que a

    monarquia constitucional representativa era o equilbrio entre as trs clssicas formas de

    governo: a aristocracia, democracia e monarquia. Essa formulao, de origem inglesa,

    afirmava que o governo misto conseguiria extrair de bom o que cada uma dessas formas de

    governo tinha. Por outro lado, o governo misto tenderia a neutralizar os defeitos desses

    grandes modelos governamentais.18 A monarquia escrevia Lopes Gama destri a

    felicidade pblica para satisfazer a ambio dos ulicos, Nobres e Cortesos que cercam o

    monarca. Prosseguia afirmando que a Democracia sujeita a intrigas e cabalas, a

    desenvoltura e anarquia. E, no que pode ser considerado o grmen da formulao que iriadesenvolver melhor em O Carapuceiro, ele escreve que um pas, como o nosso, ainda falto

    de luzes e virtudes civis, tem poucos amigos, e muitos aduladores (...); por isso essa forma de

    Governo [a democracia] no nos convm. J a Aristocracia era defeituosa porque nela os

    16 Cf. MOREL, Marco. O perodo das Regncias. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2003.17

    O Popular n. 34 (25/09/1830).18 Lopes Gama lia peridicos ingleses. Cf. PALLARES-BURKE, Maria Lcia Garcia. Nsia floresta, OCarapuceiro e outros ensaios de traduo cultural.So Paulo : Hucitec, 1996.

    4

  • 7/24/2019 FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

    5/10

    ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    Magistrados e Nobres, e os geralmente chamados grandes so tudo, e a maioria do Povo

    nada. Por fim, emendava:

    Cansadas as naes de passarem pelos degraus ensangentados de todas as trs

    formas de governo; fatigados os maiores filsofos em procurar um governo, queevitassem o maior nmero de males, produzindo o maior nmero de bens; 19 foidescoberto enfim o Governo Monrquico-Constitucional-Representativo. Estaforma misto das trs, e que tem sido abraadas pelas naes mais modernas esbias, e respeitveis, como a Inglaterra e Frana.20

    O elemento democrtico, que Lopes Gama no nega, estaria garantido no Brasil pela

    representao nacional, cujo lcus seria o parlamento. O elemento aristocrtico, que esse

    jornalista poltico frisa no existir no Brasil, se faria presente dentro dessa esfera de

    representao nacional, mas em uma instituio especial, o Senado, criada para representar

    no a nobreza inexistente, mas os mais ricos e notveis. J o elemento monrquico teria como

    baluarte o imperador, que Lopes Gama enfatiza no reinar por vontade divina, mas por

    vontade dos povos. Apesar de ser um religioso, e de a religio ser posta como um elemento

    primordial na poltica, sem o qual toda a estrutura no funcionria, Lopes Gama sublinha que

    origem do poder est na vontade dos povos. E gasta muita tinta nisso, o que demonstra que

    ainda era importante refutar a idia do direito divino dos reis.21Talvez s para demarcar que

    estava vivendo em uma nova poca e suplantando um tempo antigo. Ou talvez porque a idia

    de que os cus eram a origem do poder ainda reverberasse na populao pernambucana

    coeva.22

    Cabe agora, no entanto, entender o que Lopes Gama entendia por representao

    nacional e por Povo.

    19 A idia de evitar o maior nmero de males, produzindo o maior nmero de bens, notadamente a base dafilosofia poltica de Jeremy Bentham. Apesar de ter citado a essncia da filosofia utilitarista de Bentham,Lopes Gama foi um ardoroso crtico desse filsofo ingls. Acredito eu que por motivos de ordem religiosa.Cf. O Carapuceiro n. 19 (21/06/1837) e n. 20 (24/061837), BENTHAM, Jeremy. Uma introduo aosprincpio de moral e legislao. [edio incompleta]. So Paulo : Abril, 1983 e ARAJO, Ccero. Bentham,o Utilitarismo e a filosofia poltica moderna, in: Filosofia poltica moderna: de Hobbes a Marx. So Paulo :Universidade de So Paulo, 2006.

    20 O Popular n. 2 (05/06/2009). Ver tambm os nmeros 3, 5, 7 e 24, que repetem essa formulao.21 O Popular nmeros 1, 2, 3, 5, 6, 7, 12, 15, 18, 29, 31, 34 e 36.22

    Sobre revoltas com traos ultraconservadores em Pernambuco e adjacncias cf. ANDRADE, Manuel Correiade. A Guerra dos Cabanos. Recife : Editora Conquista, s.d. e BRITO, Scrates Quintino da Fonseca e. ARebelio de Pinto Madeira: fatores polticos e sociais. Teresina : Projeto Petrnio Portella, 1985.

    5

  • 7/24/2019 FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

    6/10

    ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    Povo e representao nacional

    Lopes Gama analisou o artigo dcimo primeiro da Constituio, o qual dizia que os

    Representantes da Nao brasileira so o Imperador, e a Assemblia. Explicava ele,

    primeiramente, a diferena entre delgado e representante:

    o delegado no mesma pessoa moral que o delegante; depende da autoridadedeste, nem deve fazer se no o que lhe foi ordenado por aquele, de que recebe opoder, ficando-lhe sempre responsvel: tal entre ns o ministrio, tais so osmagistrados, os presidentes, e todos os empregados que exercem jurisdio: orepresentante no assim: o representante exerce o direito do representado porforma tal, que um, e outro so julgados, como fazendo uma mesma pessoa: por issopela nossa Constituio, o Imperador, e a Assemblia, valem tanto, como a mesmaNao; o que quer dizer, que a massa dos Cidados Brasileiro, que o que sechama Nao, renunciou o exerccio da Soberania, isto ; ao poder de fazer leis, deas mandar executar, e exercer a administrao. 23

    Esse seria o elemento democrtico necessrio para o equilbrio do sistema poltico: a

    representao nacional. Desta forma o Povo se faria representado. Como veremos, Povo e

    Nao muitas vezes so sinnimos no discurso de Lopes Gama, mas por vezes se distanciam.

    E o Povo, ou a Nao, ou a massa dos cidados brasileiros, no delegava a soberania. No

    momento que escolhiam seus representantes, a soberania j no mais pertencia ao Povo.

    Uma Nao afirmava Lopes Gama exercendo por si mesmo a Soberania seria a imagem

    do inferno.24

    Mas o que era o Povo? Respondia Lopes Gama que era o agregado de todos os

    cidados, e pessoas, que vivem debaixo de certas leis. E que desde os primeiros magistrados

    at o ltimo Cidado tudo Povo. Mas o redator de O Popular procurou desfazer o mal

    entendimento que muitos contemporneos tinha da palavra Povo. Segundo ele, muitos

    confundiam Povo com aquela classe nfima, de qualquer Estado, isto ; a gente que no tem

    meios de vida, que vadia, ignorante, mal educada, e viciosa. Para ele o Povo subdividia-se

    em duas categorias. A primeira era composta por Magistrados, Militares, Ministros da

    Religio, Empregados Pblicos, Agricultores, Comerciantes, Artistas etc... A segunda era

    composta por homens de pior educao, e nenhuma indstria. Essa segunda categoria era

    chamada de plebe. Conclua Lopes Gama: Toda plebe, e canalha Povo; mas todo o Povo

    no plebe, e canalha.25

    23

    O Popular n. 15 (21/07/1830).24 Idem.25 O Popular n. 22(14/08/1830). O ttulo do artigo O que se deve entender por Povo.

    6

  • 7/24/2019 FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

    7/10

    ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    Assim, todos os cidados so considerados Povo para Lopes Gama. Excludos dessa

    categoria, de Povo, s os escravos, que no so citados quando esse assunto tratado.

    Vejamos agora a explicao que Lopes Gama d para a distino entre cidados ativos e

    passivos. Ele escreve que nem todos que habitam um Estado entram no Pacto Social, s os

    que compe a Nao. Ainda que todos os homens sejam iguais em direitos escreve o

    redator de O Popular isto , devam ser igualmente protegidos pela Lei; contudo nem todos

    entram com faculdades iguais para a sociedade, nem concorrem com igual poro de meios

    para o benefcio geral. Da, segundo Lopes Gama, veio a distino entre Cidados ativos, e

    Cidados passivos.. Continuava exemplificando que Antnio v.g. pode ser eleito deputado;

    porque um cidado honrado, e instrudo; mas Joz, que no sabe ler, nem escrever, no esta

    nas circunstncias de exercer o mesmo cargo.

    Ainda sobre o assunto da cidadania, Lopes Gama deixava claro que a cor no era o

    critrio distintivo. Para ele, mais valia um pardo instrudo do que um branco ignorante. No

    houveram dois Ades: de um s procedemos todos diz o poltico e religioso Lopes Gama.

    Continua afirmando que h muito tempo os pardos ocupam cargos pblico de destaque. E

    mais: para ele no existiam no Brasil famlias cem por cento brancas. Acreditar nisso, seria a

    mesma coisa que acreditar que os portugueses no tm sangue judeu ou mouro. 26Ele toca,

    dessa forma, em um assunto que at a revogao do estatuto de pureza de sangue

    empreendida por Pombal era tabu na sociedade luso-brasileira, sobretudo na pernambucana.27

    Mas se houve uma peculiaridade na construo da cidadania no mundo lusitano, foi a incluso

    dos pardos. O constitucionalismo vintista portugus, diferentemente do constitucionalismo

    espanhol de Cdiz, incluiu os egressos do cativeiro na condio de cidados.28Lopes Gama,

    assim, reiterou essa incluso que j havia se iniciado h uma dcada no mundo luso-brasileiro.

    Representar a parte mais grada, mais rica

    Assim, temos alguns entendimentos do que seria o Povo e Nao para Lopes Gama. Como j

    mencionamos, esses dois vocbulos por vezes so sinnimos, por vezes se diferem. Esses

    vocbulos se diferem quando Lopes Gama afirma que compem a Nao apenas os que

    participam do pacto social. E esses, no entender dele, seriam os cidados ativos. Os outros,

    cidados tambm, mas sem o direito de participar da representao nacional. No comporiam

    a nao, seriam passivos, s teriam o direito de serem protegidos pelas mesmas leis. E o

    26 O Popular, n. 11(07/06/1830).27

    MELLO, Evaldo Cabra de. O nome e o sangue. Companhia das Letras, 1989.28 Cf. SILVA, Ana Cristina Nogueira da. A cidadania nos trpicos. O ultramar no constitucionalismomonrquico portugus (1820-1880). Tese de doutoramento. Lisboa: 2004.

    7

  • 7/24/2019 FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

    8/10

    ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    motivo para isso? Sobretudo a falta de instruo. Sobretudo a falta de luzes. Era a lgica da

    educao/excluso, oriunda da ilustrao setecentista e institucionalizada no imprio

    brasileiro.29 Essa lgica comps aquilo que Ilmar R. de Mattos denominou de a boa

    sociedade.30

    Mas dentro do grupo de cidado ativos, seriam todos iguais? Deveriam ser igualmente

    conceituados aqueles que compunham a Nao? No entender de Lopes Gama no. Quando

    defende o artigo dcimo quarto da constituio, que institui o Senado, Lopes Gama diz que os

    senadores representam uma classe diferente de cidados. Essa classe diferente de cidados,

    que o senado representava, no era fundada no nascimento. Para Lopes Gama as distines

    fundadas no nascimento eram injustas e odiosas. E esse era um carter vantajoso do Brasil no

    entender dele: a inexistncia de uma nobreza de nascimento. Alis, ele vrias vezes ironizou o

    pretenso carter nobre que os grandes proprietrios de terra pernambucanos se auto atribuam.

    Talvez fazia essas ironias por no ser oriundo da nobreza da terra pernambucana, e sim ser

    egresso de uma famlia urbana do Recife. Mas o fato que essas ironias atingiram seu ponto

    mximo quando a pretensa nobreza da terra pernambucana, notadamente os Cavalcanti-

    albuquerque e os Rgo-Barros, tornaram-se seus inimigos polticos s vsperas da Praieira

    (1848).31

    Mas por que, ento, os senadores representavam uma classe diferente de cidados?

    Responde Lopes Gama que para representar a parte mais grada, mais rica, pois nobre vem

    do latim, notabilispor abreviatura, e naqueles tempos notvel se chamava todo homem que se

    distinguia dos outros pelo seu saber, indstria, riqueza &c. &c..32 Assim eram dois os

    motivos que distinguiam essa classe diferente de cidados: indstria (ou riqueza) e saber (a

    parte mais grada). Estavam, assim, sendo criadas as bases de uma nobreza por merecimento,

    outro iderio oriundo da ilustrao e que o imprio brasileiro institua.33Para Tocqueville, um

    dos elementos que capacitava os Estados Unidos da Amrica democracia era a ausncia de

    uma nobreza.34Lopes Gama se apropriou da obra de Tocqueville, Democracia na Amrica,que de 1834, no final das regncias. O pensador francs acreditava que a democracia s teria

    29 ALCIDES, Srgio. Estes penhascos. Cladio Manoel da Costa e a paisagem das Minas, 1753-1773. SoPaulo : Hucitec, 2003, pp. 35-77.

    30 MATTOS, Ilmar R. O tempo...op. cit.31 Cf. QUINTAS, Amaro. O Padre Lopes Gama Poltico.Recife : Imprensa Universitria, 1958.32 O Popular n. 17 (28/07/2009).33 ALCIDES, Srgio. Estes...op. cit.,pp. 35-77.34

    Cf. FURET, Franois. O sistema conceptual da Democracia na Amrica, in: TOCQUEVILLE, Alexis de.Democracia na Amrica: leis e costumes de certas leis e certos costumes polticos que foram naturalmentesugeridos aos americanos por seu estado social democrtica. So Paulo : Martins Fontes, 1998

    8

  • 7/24/2019 FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

    9/10

    ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    sucesso em um local onde os costumes do povo fossem propcios para seu desenvolvimento.

    Lopes Gama, apropriando-se dessa idia, que ao bem da verdade est presente em vrios

    pensadores polticos da modernidade, constatou que o povo brasileiro no tinha costumes

    prprios para o desenvolvimento de uma democracia.35Notvel que, ao invs de encarar a

    ausncia de uma nobreza como um elemento favorvel ao desenvolvimento de uma

    democracia, Lopes Gama preocupou-se em criar um iderio para a instalao de uma nobreza

    de mrito. Uma nobreza de mrito, fundada na riqueza e no saber, e que acentuaria a lgica da

    educao/excluso. Uma nobreza de mrito que restringiria ainda mais o verdadeiro ncleo da

    boa sociedade. Alis, creio que a formao da nobreza imperial brasileira, muito diferente

    das nobrezas do Antigo Regime, deveria receber mais ateno da historiografia

    contempornea.36

    Consideraes finais

    Convm repetir os questionamentos que fizemos no incio desse texto: como pde a

    mesma pessoa apoiar a criao de algumas instituies com traos democrticos para anos

    mais tarde critic-las? Quais teriam sido as formulaes de Lopes Gama que deram substrato

    para que ele pudesse criticar as instituies eletivas j destacadas?

    Creio que uma das formulaes basilares do pensamento poltico de Lopes Gama emrelao formao do Estado nacional brasileiro foi a de que a representao nacional era

    indispensvel. Esse novo Estado, de tipo nacional, que estava se construindo, era fundado na

    vontade da nao. E a vontade da nao estaria representada no parlamento. No s no

    parlamento, mas tambm na figura do monarca, que foi escolhido por aclamao, pela

    vontade dos povos. Tanto que os representantes da nao, na leitura que Lopes Gama fez da

    carta de 1824, eram os deputados, senadores e o Imperador. Defender a constituio era

    defender o parlamento e a monarquia. Mesmo no perodo regencial, Lopes Gama defendeu a

    35 Jean-Jacques Rousseau, em O Contrato Social, assim como Montesquieu, em O Esprito das Leis, jabordavam a importncia dos costumes para determinar forma de governo a ser estabelecida.

    36 Ilmar R. de Mattos, em obra j citada, um dos autores que, segundo referenciais terico-metodolgicoscontemporneos, abordou, de alguma forma, o tema da constituio da nobreza brasileira. Marco Moreltambm aborda rapidamente o tema da concesso de ttulos nobilirquicos durante o primeiro reinado e as

    regncias. As transformaes dos espaos pblicos imprensa, atores polticos e sociabilidades na CidadeImperial, 1820-1840. So Paulo : Hucitec, 2005. Desconheo um estudo atual que aborde especificamente aconstituio da nobreza imperial brasileira.

    9

  • 7/24/2019 FELDMAN, A. a Cidadania No Final Do Primeiro Reinado (1830)

    10/10

    ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.

    10

    instituio monrquica, que tinha sido escolhida pela vontade nacional em outubro de 1822 no

    Rio de Janeiro, e em dezembro de 1822 no Recife, por aclamao popular.37

    O Brasil teve, a partir de 1826, o parlamento perenemente aberto. O mesmo no

    aconteceu em Portugal nem na Espanha, para apenas citar dois exemplos. No se pode

    enxergar esse fato como natural. Foi um fato construdo. E um dos milhares de construtores

    da idia de que a representao nacional era imprescindvel para o novo Estado Nacional foi o

    jornalista poltico recifense Lopes Gama.

    Indo mais alm, pensamos que criticar o carter eletivo das altas patentes da guarda

    nacional e dos juzes de paz, assim como questionar o jri popular, era, para Lopes Gama,

    criticar algo que no era a essncia do novo Estado que se construa. Rousseau entendia que o

    governo, a administrao, assim como os magistrados e o judicirio, deveriam ser

    subordinados vontade geral. Para Rousseau a vontade geral no poderia ser estabelecida por

    representao.38 Os revolucionrios franceses de 1789 tornaram prtica a idia terica do

    filsofo de Genebra. A vontade geral era sim representvel, e o lugar de representao dessa

    vontade era a Assemblia Nacional.39 Da mesma forma que os revolucionrios franceses,

    Lopes Gama entendia que a vontade nacional estava no parlamento, este dividido em duas

    casas. O imperador tambm representava a vontade nacional, pois podia dissolver a cmara

    dos deputados. Mas o aparelho administrativo de Estado era subordinado a essa vontade

    nacional. E poderia sofrer ajustes. A constituio estando assegurada, isto , o parlamento e

    monarquia estabelecidos, os mecanismos administrativos, policiais, militares e judicirios

    deveriam ser ajustados conforme fosse mais conveniente. O nico elemento democrtico

    imprescindvel era o que garantisse a representao nacional. A representao dos mais ricos

    e doutos estava no Senado. J a representao dos outros cidados ativos, estava cmara dos

    deputados.

    37 Cf. FELDMAN, Ariel . Conciliar a nao: a diviso dos poderes em debate na imprensa pernambucana(1822-1824). In: XIX Encontro Regional de Histria - ANPUH So Paulo, 2008, So Paulo. Anais do XIXEncontro Regional de Histria da ANPUH - Seo So Paulo, 2008.

    38

    Em O Contrato Social.39 Cf. NASCIMENTO, Milton Meira do. Rousseau, a revoluo e os nossos fantasma, In: Discurso, SoPaulo, V. 13, 1983.