Felicidade Com Letras Minúsculas

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felicidade COM LETRAS MINÚSCULAS Por Marisa Amorim (Jornalista) “A felicidade é a soma das pequenas felicidades”: li essa frase uma vez num outdoor e nunca me esqueci dela. Na época, eu já suspeitava que a felicidade com letras maiúsculas, de que tanto se fala, não existia. Mas não sabia o que colocar no lugar dela: afinal, sonhamos com a grande felicidade desde que nos entendemos por gente e, de repente, imaginar que ela não existe, que é uma espécie de Papai Noel que aguardamos de janeiro a dezembro, deixa um vazio grande dentro da gente. Quando li a frase do outdoor, uma ficha básica caiu. Entendi que a felicidade, ao contrário do que pregam os pessimistas, existe sim. Só que, ao contrário do que pintam os otimistas, ela não vem no superlativo. A grande felicidade dos finais dos contos de fadas e dos filmes de Hollywood só é possível nos contos de fada e nos filmes de Hollywood. Na vida real, o que existe é uma felicidade homeopática, distribuída em conta-gotas. Uma pequena alegria aqui, outra ali, uma surpresa que nos faz ganhar o dia (e não necessariamente o mês), um momento de carinho e, quem sabe, de amor ali, um abraço apertado no filho, um bate-papo com uma amiga verdadeira, um encontro que ilumina um final de tarde ou uma tarde que ilumina a vida. São momentos, pedaços, fatias. Depois que entendi isso, tudo ficou mais fácil - e mais possível. Não espero mais pelos dias perfeitos que a grande felicidade promete trazer. E uso o “quando” com mais moderação: quando eu tiver o melhor emprego do mundo, quando eu encontrar o amor perfeito, quando eu fizer uma viagem à Europa, quando eu quitar minha casa, quando eu trocar o carro, quando eu emagrecer e ganhar massa muscular, quando eu tiver um filho, quando meus filhos crescerem, quando eu me aposentar, quando eu escrever um livro, quando eu terminar meu mestrado, quando, quando, quando… enquanto a gente vai empilhando os “quando”, esperando aquele acontecimento ou aquele momento mágico que vai nos proporcionar a felicidade com letras maiúsculas, a felicidade homeopática passa e a gente não nota. Os momentos que poderiam ser especiais, ou especialíssimos, passam batidos porque estamos esperando a mega sena acumulada, a felicidade acumulada, a explosão hollywoodiana de alegria. Tenho tentado ao máximo não ficar distraída. Quero, a cada minuto, prestar atenção, olhar, ver, enxergar, ouvir, escutar, sentir - ficar atenta a todos os pequenos sinais de felicidade: que seja a alegria modesta de tomar uma xícara de café, comer pão com manteiga na chapa, comer arroz doce ou um pedaço de pudim de padaria, lamber os dedos e lembrar o gosto da infância, o prazer discreto de ler um livro que não é uma obra-prima, a emoção ao ler um texto sensível e que nos faz

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felicidade COM LETRAS MINÚSCULASPor Marisa Amorim (Jornalista)“A felicidade é a soma das pequenas felicidades”: li essa frase uma vez num outdoor e nunca me esqueci dela. Na época, eu já suspeitava que a felicidade com letras maiúsculas, de que tanto se fala, não existia. Mas não sabia o que colocar no lugar dela: afinal, sonhamos com a grande felicidade desde que nos entendemos por gente e, de repente, imaginar que ela não existe, que é uma espécie de Papai Noel que aguardamos de janeiro a dezembro, deixa um vazio grande dentro da gente.Quando li a frase do outdoor, uma ficha básica caiu. Entendi que a felicidade, ao contrário do que pregam os pessimistas, existe sim. Só que, ao contrário do que pintam os otimistas, ela não vem no superlativo. A grande felicidade dos finais dos contos de fadas e dos filmes de Hollywood só é possível nos contos de fada e nos filmes de Hollywood. Na vida real, o que existe é uma felicidade homeopática, distribuída em conta-gotas. Uma pequena alegria aqui, outra ali, uma surpresa que nos faz ganhar o dia (e não necessariamente o mês), um momento de carinho e, quem sabe, de amor ali, um abraço apertado no filho, um bate-papo com uma amiga verdadeira, um encontro que ilumina um final de tarde ou uma tarde que ilumina a vida. São momentos, pedaços, fatias.Depois que entendi isso, tudo ficou mais fácil - e mais possível. Não espero mais pelos dias perfeitos que a grande felicidade promete trazer. E uso o “quando” com mais moderação: quando eu tiver o melhor emprego do mundo, quando eu encontrar o amor perfeito, quando eu fizer uma viagem à Europa, quando eu quitar minha casa, quando eu trocar o carro, quando eu emagrecer e ganhar massa muscular, quando eu tiver um filho, quando meus filhos crescerem, quando eu me aposentar, quando eu escrever um livro, quando eu terminar meu mestrado, quando, quando, quando… enquanto a gente vai empilhando os “quando”, esperando aquele acontecimento ou aquele momento mágico que vai nos proporcionar a felicidade com letras maiúsculas, a felicidade homeopática passa e a gente não nota. Os momentos que poderiam ser especiais, ou especialíssimos, passam batidos porque estamos esperando a mega sena acumulada, a felicidade acumulada, a explosão hollywoodiana de alegria.Tenho tentado ao máximo não ficar distraída. Quero, a cada minuto, prestar atenção, olhar, ver, enxergar, ouvir, escutar, sentir - ficar atenta a todos os pequenos sinais de felicidade: que seja a alegria modesta de tomar uma xícara de café, comer pão com manteiga na chapa, comer arroz doce ou um pedaço de pudim de padaria, lamber os dedos e lembrar o gosto da infância, o prazer discreto de ler um livro que não é uma obra-prima, a emoção ao ler um texto sensível e que nos faz sonhar, se emocionar ao olhar pro céu e ver um arco-iris, sentir cheiro de chuva, ver um beija flor, a sensação agradável de reencontrar e abraçar uma amiga, ficar olho no olho, calada e ouvindo as histórias de um amigo durante horas e a felicidade pulsando nosso coração, ficar ofegante até mesmo perder o fôlego com um beijo no céu da boca, tremer as pernas ao ganhar flores, três pingos que significam muito mais do que pontos, a indescritível sensação de amizade incondicional que invade a alma ao ganhar um abraço de corpo inteiro, a benção de receber um abraço carinhoso e de amor verdadeiro de um filho, a possibilidade de brincar por meia hora com uma criança que escancara aquele sorriso gostoso, lindo com a leveza que só uma criança possui, a leveza de pôr a cabeça no travesseiro e pensar que estou com saúde, que minha mãe está viva e que o dia seguinte vai nascer cheio de incógnitas, esperança e de promessas. Mais um dia pra gente lembrar e viajar nas lembranças das coisas simples, mas que marcam nossa vida e ter a chance de ser, varias vezes, minimamente feliz.

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A minha amiga Isa em seus devaneios poéticos afirma de boca cheia: “vou viver intensamente eu, eu mesma com todas as minhas discrepâncias, mas vou simplesmente ser feliz”.Não sei se você concorda. Não sei se a soma das pequenas felicidades é uma operação matemática muito modesta pros nossos tempos. Talvez me falte ambição. Ou talvez eu tenha a maior ambição de todas, que é ser feliz…sem ser exatamente FELIZ. Como diz o Felipe, meu jovem e sensível professor de inglês: Does it make sense? Faz sentido?