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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Felipe Araújo de Carvalho “FIC MARAVILHA, NÓS GOSTAMOS DE VOCÊ”: MÚSICA E FESTIVAIS EM TEMPOS DE CHUMBO (1972) Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de História da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial a obtenção do diploma de Licenciatura e Bacharelado em História. Orientador: José Roberto Braga Portella CURITIBA 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

Felipe Araújo de Carvalho

“FIC MARAVILHA, NÓS GOSTAMOS DE VOCÊ”: MÚSICA E FESTIVAIS EM TEMPOS DE CHUMBO (1972)

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de História da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial a obtenção do diploma de Licenciatura e Bacharelado em História. Orientador: José Roberto Braga Portella

CURITIBA 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

Felipe Araújo de Carvalho

“FIC MARAVILHA, NÓS GOSTAMOS DE VOCÊ”: MÚSICA E FESTIVAIS EM TEMPOS DE CHUMBO (1972)

Curitiba

2008

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À minha mãe Socorro Araújo pelas primeiras canções; ao meu pai Domingos Filho

pelos diálogos; ao meu irmão Ivan Araújo com quem compartilho os gostos

musicais; e a minha esposa Stephanie Hauck por sua companhia.

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AGRADECIMENTOS

Quero expressar meus agradecimentos ao Prof. Dr. José Roberto Braga

Portella que se dispôs a me orientar e também ao Sérgio Bajerski, sempre disposto

a ajudar.

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SUMÁRIO

RESUMO..........................................................................................................................6 APRESENTAÇÃO...........................................................................................................7 INTRODUÇÃO................................................................................................................9 1 A HISTORIOGRAFIA MUSICAL...........................................................................11 1.1 SEGUINDO A CANÇÃO: CAMINHANDO E ESCREVENDO.............................12 1.2 CANTA CANTA MINHA GENTE...........................................................................12 1.3 QUERO FALAR DE UMA COISA, ADIVINHA ONDE ELA ANDA...................14 1.4 PÁGINA INFELIZ DA NOSSA HISTÓRIA............................................................15 1.5 REALCE, QUANTO MAIS PURPURINA MELHOR.............................................18 2 É DIA DE FESTIVAL................................................................................................22 2.1 MAIS EIS QUE CHEGA A RODA VIVA E CARREGA O DESTINO PRA LÁ: A DÉCADA DE 1960, A INDÚSTRIA CULTURAL E O REGIME MILITAR ....22 2.2 APESAR DE VOCÊ: FESTIVAIS E AS REAÇÕES À DITADURA......................25 2.3 CAMINHANDO CONTRA O VENTO: A TRAJETÓRIA DOS FESTIVAIS .......28 3 A MINHA MÚSICA NÃO TRAZ MENSAGEM: A TRAJETÓRIA DO FIC.....32 3.1 NOVAMENTE ELE CHEGOU COM INSPIRAÇÃO.............................................35 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................42 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................43

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RESUMO:

Esta pesquisa tem por objeto o estudo do desenvolvimento da sociedade brasileira e da indústria televisiva no Brasil através do Festival Internacional da Canção da Rede Globo de Televisão (FICs) de 1972 (a sétima edição deste evento). Os FICs compõem o movimento mais geral de desenvolvimento do capitalismo no país e são palco simbólico das representações e configurações sociais da época. A indústria midiática ganha destaque na ação do Estado autoritário, apoiada em múltiplos fenômenos que disputavam a adesão de sujeitos sociais importantes, como os estudantes e operários, para o que os FICs desempenharam um papel fundamental na interação e integração de grupos sociais. Temos como objetivo geral investigar a indústria televisiva no Brasil como um novo campo de relacionamento entre os indivíduos, as propostas estético-musicais e as ideologias políticas. Como objetivos específicos, pesquisar os movimentos musicais no Brasil do final da década de 1960 até 1972 e sua ligação com as configurações sociais; também fazer uma revisão bibliográfica da produção historiográfica sobre musica; e analisar o FIC de 1972 por sua peculiaridade e envolvimento de massificação em conexão com o regime militar.

Palavras-chave: Regime Militar; Indústria Cultural; História; Música; Televisão

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APRESENTAÇÃO

Uma história bem curtinha Fácil de cantar Por que cantar Parece com não morrer É igual a não se esquecer Que a vida aqui tem razão1

Este trabalho monográfico é a finalização de um breve estudo sobre os festivais

televisivos ocorridos durante as décadas de 1960 e 1970. Entre tais festivais optamos

por analisar mais detidamente os Festivais Internacionais da Canção (FIC) realizado

pela Rede Globo de Televisão, por ter sido este pouco explorado academicamente, ainda

que tragam em si diversos elementos paradigmáticos para a compreensão da sociedade

brasileira imersa em um regime militar ditatorial.

O objetivo maior deste trabalho é o de colocar na pauta das pesquisas

festivalescas os FICs, com as suas contradições e seus méritos, parte integrante do

movimento cultural mais geral no qual a Música Popular Brasileira estava inserida no

período militar citado.

Nos utilizamos para tanto de algumas fontes de revistas do período, das canções

produzidas e acima de tudo do montante bibliográfico produzido por outros

pesquisadores da área musical, em especial os relacionados a este período, para os quais

dedicamos a produção da primeira parte inicial de nosso trabalho monográfico.

Desta forma, dedicamos o primeiro dos três capítulos deste trabalho para fazer

uma revisão bibliográfica das obras publicadas sobre música no sentido de detectar se

de fato havia uma ausência de debates sobre os Festivais da Globo. Autores de diversas

áreas e épocas contribuíram para elucidar tal questão.

No segundo capítulo, nos deteremos em buscar os primórdios dos festivais

televisivos quando estes são adaptados dos palcos estudantis e da fórmula italiana de

San Remo em seu formato brasileiro, idealizado por Solano Ribeiro, incluindo neste

contexto o próprio surgimento dos Festivais Internacionais da Canção.

Na etapa final aprofundamos o debate sobre os próprios FICs e sua imersão no

discurso tecnocrático da Globo, buscando suas contradições e peculiaridades que fazem

1 Musica Enquanto engomo a calça, de Ednardo.

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destes festivais especiais de serem pesquisados. O embate entre “Fio Maravilha” –de

Jorge Bem Jor interpretado por Maria Alcinda –e “Cabeça”, de Walter franco,

extrapolam os limites do palco demonstrando o bom e o ruim da resistente permanência

dos festivais musicais nas televisões.

A opção pelo FIC de 1972 diz respeito acima de tudo pelo contexto no qual as

ausências de artistas famosos, exilados após o Ato Institucional Nº5 (AI-5) de 1968, fez

grande impacto e também pelas polêmicas deste envolvendo a mudança do Júri na fase

final do evento, sem deixar de explicitar o espancamento de Roberto Freire e a censura

em pleno palco de alguns artistas.

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INTRODUÇÃO

No decorrer dos últimos anos foram lançados diversos livros sobre os festivais

da canção realizados no Brasil nos anos de 1960 e 1970.2 Dentre aqueles eventos,

merecem destaque os Festivais Internacionais da Canção (FIC), organizados pela TV

Globo.

Os FICs foram paradigmáticos como aglutinadores políticos e culturais,

sobretudo o de 1972 (VIII FIC), pois levantou questões que diziam respeito à ordem

social e política vigente e aos festivais, de maneira geral. Tanto que com o VIII FIC,

como afirma Zuza Homem de Mello em A Era dos Festivais, praticamente se encerra o

ciclo festivalesco.

Não obstante a vitalidade editorial do tema na atualidade, percebe-se nas obras e

estudos até agora publicados a ausência de um enfoque na linguagem tecnológico-

televisiva dos festivais, ou seja, a escassez de pesquisas que discutam a organização dos

festivais, a partir dos FICs da Globo, como movimento inserido na organização das

empresas brasileiras de comunicação midiática nas décadas de 1960 e 1970. Tampouco

um debate dos FICs que coloque os festivais da Globo, com suas especificidades, dentro

de uma discussão mais ampla da estética, da cultura, da política e da sociedade da

época.

A ascensão rápida da Globo, sua disposição em “Rede”, a ligação com o grupo

Times-Life e a CPI abafada que investigava a relação do grupo Marinho com

investimentos estrangeiros3 logo fez com que as produções Globo se tornassem um

divisor de águas no tocante a realizações culturais. A visão empreendedora, profissional

e pragmática dos diretores gerais, Boni e Walter Clarck, diante de uma TV-empresa que

buscava o afastamento do amadorismo e do patriarcalismo de Asis Chateubriand,

dividia imprensa e artistas. Nos festivais não seria diferente. Alguns artistas, aliás,

dedicavam-se à tentativas constantes de manchar a imagem dos FICs, como era o caso

2 Dentre estes se destacam: A era dos festivais: uma parábola (MELLO, Z. H. A Era dos Festivais: uma parábola, São Paulo: Ed. 34, 2003); Prepare seu coração (RIBEIRO, S. Prepare Seu Coração: a história dos grandes festivais, São Paulo: Geração Editorial, 2002); Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB 1959-1969 (NAPOLITANO, M. Seguindo a canção, São Paulo: Ana Blumme, 2001). 3 Sobre estes temas polêmicos encontrados nas origens da fundação da Rede Globo, ver principalmente a obra COSTA, A. H. , SIMÕES, I. F. e KHEL, M. R. Um país no ar: a história da TV brasileira em três canais, São Paulo: Brasiliense, 1986. ver ainda ÁVILA, C. R. A. A teleinvasão, São Paulo: Cortez, 1982, MACHADO, R. C. A Fundação Roberto Marinho: denúncia, Porto Alegre: Tchê, 1988; HERZ, D. A história secreta da Rede Globo, Porto Alegre: Tchê, 1987; e CAPARELLI, S. Comunicação de massa sem massa, São Paulo: Cortez, 1982.

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do piauiense tropicalista Torquato Neto, que em seus artigos da Geléia Geral nunca se

esquecia de, em épocas de FIC, colocá-lo na fogueira4.

Apesar de os FICs e a Globo possuírem tantos elementos sócio-históricos para

serem analisados academicamente, podemos dizer que os Festivais Internacionais são

relegados a um segundo plano, dentro da produção editorial, quando o assunto são

Festivais. Os festivais da Excelsior e da Record são as vedetes de historiadores e

sociólogos que buscam analisar o país pelo aspecto cultural da música unida à televisão,

mesmo que canções como É proibido proibir, de Caetano Veloso, e Para não dizer que

não falei de flores, de Geraldo Vandré e considerada a marselhesa brasileira, tenham

sido apresentadas em Festivais Internacionais da Canção da Globo.

Todavia, as publicações feitas sobre outros festivais que não o FIC nos trazem

elementos do ambiente social festivalesco em que vivia o país na época, bem como

sobre a agitação cultural causada por estes espetáculos televisivos.

4 Sobre a produção de Torquato Neto ver SALOMÃO, W. (org.) Torquato Neto: Os últimos dias de paupéria, São Paulo: Max Limonad, 1982; PIRES, P. R. Torquato Neto: Torquatália (Geléia Geral) e Torquato Neto: Torquatália (do lado de dentro), Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

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1. A HISTORIOGRAFIA MUSICAL

1.1. SEGUINDO A CANÇÃO: CAMINHANDO E ESCREVENDO

Zuza Homem de Mello utilizou-se das demarcações históricas de Eric

Hobsbawm5 para escrever o seu livro titulado, em paráfrase, A era dos festivais6.

Poderíamos também utilizar os títulos dessas obras do historiador britânico para dizer

que no Brasil estamos vivendo a “Era” da publicação de livros sobre música. Jamais se

viu tantas biografias de músicos e grupos como nos últimos 15 anos –em especial na

primeira década de nosso século. Paralelamente, os produtores musicais –

principalmente os ligados à televisão– decidiram escrever as suas biografias

profissionais e entrar em um campo vaidoso de disputas para saber quem foi o produtor

mais importante de uma era musical frutífera das décadas de 1960 e 1970.

Mas não são só produtores que entraram na dança da autobiografia. Cantores

como Caetano Veloso, já demasiadamente biografado, resolvem falar sobre os seus

pontos de vista do período em que produziram e modificaram a música brasileira.

Os incansáveis jornalistas tampouco resistem a “ver a banda passar” e querem

sempre “botar o seu bloco na rua”, lançando obras de quem viu, aplaudiu ou apenas

gosta do tema e está cansado de escrever para diários que serão jogados ao lixo no final

do dia.

Seja como for, entre tantas publicações e biografias repetidas, tantos relatos de

experiências e produções, tantos livros escritos por artistas, historiadores e produtores,

felizmente algumas obras se salvam. E são elas que, direta ou indiretamente, nortearão o

nosso trabalho sobre o Festival Internacional da Canção de 1972. No próximo tópico

deste trabalho, passaremos a tratar de algumas destas obras.

1.2. CANTA, CANTA MINHA GENTE7: ATRAVÉS DAS OBRAS

A César o que é de César, a Deus o que é de Deus. Uma frase criada para evitar

conflitos e que causou tantas guerras por poder. Saltando milênios na temporalidade

histórica, no campo de pesquisa dentro das ciências humanas, diversas vezes é difícil

qualificar o que é de César e o que é de Deus, ou, pisando em terreno mais firme e

5 Eric Hobsbawn escreveu as famosas obras A era das revoluções, A era dos impérios, A era do Capital e a Era dos extremos, todas editadas no Brasil pela Companhia das Letras. 6 MELLO, Z. H. A Era dos Festivais: uma parábola, São Paulo: Ed. 34, 2003. 7 Trecho da canção canta, canta minha gente, de Martinho da Vila, cantor também revelado em festivais.

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condizente com nossa pesquisa, o que é pertencente ao campo da história, da filosofia,

da sociologia ou da antropologia.

Um assunto rico como Festival televisivo aglutina tantos valores sócio-históricos

que os mais diversos campos de produção acabam por ajudar neste amplo debate. Fora

dos campos acadêmicos, como já citado acima, os livros e artigos produzidos para além

da pesquisa, como biografias e relatos de artistas e produtores que viveram a época, são

de fundamental importância para embasar e aclarar as idéias do pesquisador.

Porém, ainda entre César e Deus estão fronteiras mais difíceis de se delimitar do

que as fronteiras em que atuam as ciências humanas – estas, rotineiramente irmãs e

companheiras de trabalho. Quando o assunto são os festivais, falamos de um ponto de

convergência entre tantos fatores sócio-históricos que acaba sendo fundamental se

estabelecer que festival iremos estudar e, dentro desta delimitação, que obras

bibliográficas iremos efetivamente utilizar.

Os Festivais Internacionais da Canção da Rede Globo de Televisão foram

aglutinadores, do palco à tela, de aspectos políticos, estéticos, sociais, culturais,

tecnológicos, empresariais e de gênero –citando apenas alguns exemplos. Para cada um

desses aspectos, diversas produções bibliográficas podem nortear e embasar uma

pesquisa.

Não sendo este o momento para uma pesquisa mais profunda, delimitaremos o

nosso passeio entre obras que dizem respeito ao nosso tema, apresentando neste

primeiro capítulo apenas por aquelas publicações pioneiras no assunto “música e

festivais” ou entre aquelas que trouxeram grande contribuição mesmo que tenham sido

produzidas fora do âmbito acadêmico.

1.3. QUERO FALAR DE UMA COISA, ADIVINHA ONDE ELA ANDA?8

No primeiro bloco de produtores de obras pioneiras sobre história e música está,

sem dúvida, José Ramos Tinhorão. Com obras de caráter determinista, fortes e em certa

medida polêmicas, Tinhorão entrou no tema musica e cultura popular datando,

determinando inícios, meios e fins para os grandes momentos da cultura brasileira e

trazendo um tom profético nos textos, livros e artigos publicados.

8 Trecho da canção Coração de estudante, de Milton Nascimento, cantor que também se revelou através de festivais.

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Recentemente, entrevistado pela Rede Globo, Tinhorão reclamava que as

recentes obras bibliográficas sobre musica citavam trechos de seus livros sem que

houvessem referências, ou seja, roubavam as suas idéias. Sem que haja uma verificação

quanto esta acusação, o fato é que por seu pioneirismo ao levantar temas pertinentes da

cultura e da música brasileiras, pouco se pode escrever sem passar por alguma das obras

de José Ramos Tinhorão.

Nascido em 1928 em São Paulo e criado no Rio de Janeiro, era um freqüentador

das rodas de samba cariocas, estando a partir daí em contato com a cultura brasileira até

se tornar parte da primeira turma de jornalismo do país. Então, Tinhorão trabalhou em

revistas, rádios, jornais e até mesmo na televisão, atuando, durante os anos de 1960, na

TV Excelsior, TV Rio e TV Globo. Em 1966 lança o livro Música popular: um tema em

debate. Trabalhando como crítico de música, era temido pelos artistas durante a década

de 1970. Em 2000 o Instituto Moreira Salles de São Paulo cria o Acervo Tinhorão,

disponível a pesquisadores e interessados.

Entre as principais obras de José Ramos Tinhorão podemos citar Música

Popular: do gramofone ao rádio e TV 9, Pequena história da música popular10, História

social da música popular brasileira11 e Cultura Popular: temas e questões12. Em todas

estas publicações há uma preocupação com a música popular, bem como, por outro

lado, há afirmações extremamente pontuais que são polêmicas do ponto de vista da

historia. São exemplos os casos da bossa nova, último capitulo do livro Pequena

História da Música Popular em que Tinhorão afirma ser a bossa nova surgida em 1959

no apartamento de Nara Leão13. Ou seja, precisar tão categoricamente uma data e um

lugar –pequeno, diga-se– para o surgimento de um movimento musical sem pensar em

um amplo processo como um todo (a passagem do samba para o samba-canção e deste

para a bossa nova com influencias do jazz e ao mesmo tempo influenciando o jazz) é

uma marca registrada de Tinhorão.

Porém, mais importante é ressaltar o empreendimento do pesquisador como um

todo. Tinhorão fez mestrado em história na USP e tem o seu trabalho largamente

divulgado em Portugal, onde viveu grande parte de sua carreira como pesquisador. Os 9 TINHORÃO, J. R. Musica Popular: do gramofone ao radio e TV , São Paulo: Ática, 1981. 10 TINHORÃO, J. R. Pequena historia da musica popular, São Paulo: Art Editora, 1991. 11 TINHORÃO, J. R. Historia social da musica popular brasileira, São Paulo: 34, 1998. 12 TINHORÃO, J. R. Cultura Popular: temas e questões, São Paulo: Editora 34, 2001. 13 Aliás, este ano comemora-se os 50 anos de bossa nova e no programa Som Brasil, da Rede Globo, em homenagem à bossa, Carlos Lyra repudiou enfaticamente esta idéia de a bossa nova haver surgido no apartamento de Nara Leão. Segundo ele, se tivesse que delimitar um local, pensaria nos bares em que os precursores da bossa nova iam assistir às apresentações de samba-canção no Rio de Janeiro.

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debates levantados por ele sobre música e até mesmo sobre festivais não podem ser

meramente ignorados.

Também pioneiro em diversos sentidos está o mineiro Ruy Castro. Jornalista de

profissão, desenvolveu um método de pesquisa que intriga a profissionais da

comunicação e pesquisadores de diversas áreas, como historiadores e a antropólogos.

Isto porque tenta esgotar ao máximo os temas aos quais trata, utilizando-se de

estratégias de entrevistas com familiares e amigos que vão além do que faria um

jornalista em busca da sensação ou o pesquisador em busca de informação.

Castro prepara listas imensas de perguntas aos seus entrevistados, geralmente

com mais de 50 questões, sendo que as últimas têm um apelo emocional que faz com

que o entrevistado, cansado pela bateria de perguntas e chocado pelas últimas argüições,

conte até mesmo os detalhes mais contidos. Foi desta maneira que desvendou Garrincha

na obra Estrela Solitária ou Tom Jobim e Vinicius de Moraes no livro Chega de

Saudade: a história e as histórias da bossa nova14.

Chega de Saudade vai reconstituir a vida boêmia do Rio de Janeiro que acabará

por desencadear, em finais de 1959, na bossa nova, o ritmo que será o principal

ingrediente da receita de como se ganhar um festival. Vale lembrar que bossanovistas e

cantores engajados disputavam o cenário nacional em palcos ideológicos opostos.

Porém, mesmo os arranjos mais dissonantes levam o crivo da influência bossa nova,

como o caso do tropicalismo. Cantores como Chico Buarque, Nara Leão e Carlos Lyra

são, de certa forma, filhos da bossa nova, embora tenham encontrado o seu próprio

caminho entre o samba e o jazz.

Ainda entre jornalistas que publicam sobre música (porem deixando de lado o

pioneirismo), podemos citar o livro Tropicalismo: decadência bonita do samba, de

Pedro Alexandre Sanchez. Um trabalho que busca falar sobre a música brasileira atual

partindo do período festivalesco, dedicando mui especial atenção aos tropicalistas e

acima de tudo Caetano Veloso. Uma pesquisa adjetivado e apaixonado, sem muito

compromisso histórico e acadêmico mas que traz novidades dentro da idéia ousada de

que o tropicalismo é ao mesmo tempo a decadência do samba e a herança deixada para

os grupos e cantores recente, como Chico Science e Fernanda Abreu.

De maneiras diferentes, estes jornalistas deixaram contribuições para as

pesquisas históricas sobre música e sobre festivais. Porém, no próximo tópico vamos

14 CASTRO, R. Chega de Saudade: a historia e as historias da bossa nova14 , São Paulo: Companhia das letras, 1991.

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ver algumas obras cujo compromisso principal, ao analisar a música, é a história. São

autores como Napolitano, Paulo César Araújo e Moby, entre outros.

1.4. PÁGINA INFELIZ DA NOSSA HISTÓRIA15: NEM TÃO INFELIZ

O atual momento é de irmos mais diretamente no campo da história e dos

historiadores no tocante ao tema “música”. Aqui, Marcos Napolitano é um dos nomes

mais citados quando o assunto é festival. Isto porque a sua tese de doutorado, Seguindo

a Canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969)16 é uma das

primeiras pesquisas sobre festivais televisivos de música. Este trabalho vai discutir as

inovações musicais no Brasil estudando exaustivamente a bossa nova, discutindo a

indústria cultural e a ampliação da audiência com a popularização da televisão.

Seguindo a Canção vai pesquisar ainda os festivais como pólo de criação da MPB e

trazer um texto interessante sobre tropicalismo, terminando por entrar na questão central

de sua obra que é a instituição da sigla MPB como marca política e engajada.

Entretanto, Seguindo a Canção não é a única contribuição de Marcos

Napolitano. Um de seus livros traz o título que é o próprio tema do presente capítulo,

qual seja, História e Música17, obra que vai passar por todas as tendências musicais ao

longo de nossa história (principalmente o final do século XIX) até termos a moderna

música popular brasileira. Trilhando um caminho diferente de Tinhorão, esta obra de

poucas páginas mostra que um movimento musical e cultural não tem um único início,

um meio ou um fim nem fundadores e desertores definitivos. A cultura é uma

efervescência a ser pensada e refletida.

Sem nos alongarmos mais neste autor, duas obras de Napolitano que ainda

merecem destaque (além, é claro, de artigos e publicações) são os livros Cultura

brasileira: utopia e massificação (1950-1980)18 e Cultura e poder no Brasil

contemporâneo19, que tratam da cultura de massa e movimentos de vanguarda durante o

regime militar. Ainda a publicação do Departamento de História da Universidade

15 Canção Vai passar, de Chico Buarque. 16 NAPOLITANO, M. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB – 1959-1969, São Paulo: Ana Blume, 2001 17 NAPOLITANO, M. História & Música: história cultural da música popular, Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 18 NAPOLINANO, M. Cultura brasileira: utopia e massificação(1950-1980), São Paulo: Contexto, 2001 – (Repensando a História). 19 NAPOLITANO, M. Cultura e poder no Brasil contemporâneo, Curitiba: Juruá, 2002.

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Federal do Paraná, História: questões e debates20, que no numero 31, organizada por

Napolitano, traz diversos pesquisadores que pensam o país através da música.

Para continuarmos ainda entre historiadores, Ramon Casas Vilarigno escreveu o

livro A MPB em movimento: musica, festivais e censura21, obra que, segundo o prefácio

do livro, precisou de três anos para ser realizada mas que em seu conteúdo não traz

novidades dentro do que foi produzido anteriormente. De qualquer maneira, a

linguagem apresentada por Vilarigno é de fácil leitura e uma parte da publicação é

pontual no que diz respeito às fichas dos festivais, ou seja, a classificação dos artistas

nas principais realizações festivalescas.

Outra historiadora que não pode ser relegada a segundo plano é a irmã de Chico

Buarque e filha de Sérgio Buarque de Hollanda: Heloísa Buarque de Hollanda. Seus

debates sobre o CPC da UNE, tropicalismo e vanguarda durante os anos de 1960 são

aclaradores e profundos, deixando uma grande contribuição sobre o processo cultural

que o Brasil vivia nos anos anteriores ao golpe, cuja efervescência cultural, intelectual e

a organização social só poderiam ser interrompidas pelo golpe militar de 1964. Entre as

principais obras de Heloísa Buarque de Hollanda estão Cultura e Participação nos anos

6022 e Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/7023.

Outra grande contribuição foi dada pelo historiador Alberto Ribeiro da Silva,

mais conhecido como Moby. Seu trabalho Sinal Fechado: a música popular brasileira

sob censura (1937-45/1969-78)24 trata a censura sobre a música durante o Estado Novo

em comparação com os métodos e veículos de censura durante o regime militar. Este

livro, fruto da pesquisa de mestrado do autor, demonstra o quanto regimes ditatoriais se

utilizaram de dispositivos legais e constitucionais para alcançarem o poder, bem como

para assim se perpetuarem.

O trecho da canção de Paulinho da Viola, que fala sobre a vida corrida dos dias

atuais, já havia sido utilizada por Chico Buarque quando, cansado de ter músicas

censuradas, lançou um LP com canções de outros artistas e titulou o álbum de Sinal

Fechado. O livro de Moby, um assíduo freqüentador de rodas de samba, também trata

dos meios pelos quais os artistas burlavam a ditadura, concentrando-se na estratégia de 20 NAPOLITANO, M. (org.), História: Questões e Debates, Critiba: UFPR, Ano 16, nº 31, jul./dez. 1999. 21 VILARINO, R. C. A MPB em movimento: músicas, festivais e censura; São Paulo: Olho D’água, 1999. 22 HOLLANDA, H. B. & GONÇALVES, M. A. Cultura e participação nos anos 60, 8 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. (Tudo é História) 23 HOLLANDA, H. B. impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70, São Paulo: Brasiliense, 1981. 24 SILVA, A. R. Sinal fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-45/1969-78), Rio de Janeiro: Obra Aberta, 1994.

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Julinho da Adelaide, personagem criado por Chico Buarque para que o autor pudesse

publicar canções sem ser censurado. É uma obra sobre sinais fechados para produções

artísticas e sobre aqueles que conseguem avançar o sinal sem ser “multado”.

Para nos atermos no que diz respeito especificamente ao campo da historiografia

musical, vale lembrar a obra de Celso Favaretto, Tropicália: alegoria, alegria25, um

grande estudo limitado ao tropicalismo, sendo provavelmente a produção bibliográfica

mais aprofundada sobre o tema. Analisa o movimento de maneira detida, com

depoimentos dos artistas e até mesmo fazendo uma análise semiótica das produções

artísticas e da capa do disco Panis et circenses, ponto áureo da produção tropicalista.

Dezenas de letras dos participantes “tropicais” são analisadas dentro de uma

contextualização histórica ampla e profunda.

Para finalizar o debate histórico, impossível esquecer Paulo César Araújo e o seu

livro Eu não sou cachorro não26, que virou do avesso o conceito sobre o que é popular

dentro da música brasileira. Dentro de uma visão tangencialmente baktiniana, Araújo

analisa a censura entre os cantores da música dita “cafona”, mostrando que o

cerceamento entre os “bregas” era, por vezes, maior que contra tropicalistas ou

bossanovistas engajados, pois os cafonas tinham uma ação e criação limitadas até

mesmo pela própria produtora fonográfica, afinal, os bregas tinham que vender, e não

pensar ou ousar em suas criações.

Entre outros aspectos importantes do livro de Paulo César está a idéia na qual o

grande sucesso de venda dos cantores cafonas era que garantiam a liberdade de criação

dos engajados e astros da MPB. Tropicalistas e bossanovistas não vendiam muito,

porém davam crédito e boa imagem às produtoras de fonogramas. Em poucas palavras,

para que os cantores de venda elitizada da música popular brasileira pudessem fazer

discos criativos e de pouca vendagem (como um Gonzaguinha, Chico Buarque ou

Caetano), deveria haver cantores realmente populares como Odair José ou Paulo Sérgio

vendendo o suficiente para dar o real lucro à produtora.

Outro debate interessante de Araújo é quanto ao porque de o cafona não ser

pesquisado nas academias. A resposta levantada parte do principio de que isto tem

relação com o lugar de onde o acadêmico geralmente vem e a posição elitizada que

ocupa, fazendo inclusive com que os temas exaustivamente pesquisados exclua o que

25 FAVARETTO, C. Tropicália: alegoria, alegria, São Paulo: Kairós, 1979. 26 ARAÚJO, P.C. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar, Record: Rio de Janeiro, 2003.

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havia de mais popular na música brasileira, e reforçando como popular o que era, na

realidade, restrito a uma pequena camada da população. Um livro que traz novos

paradigmas ao campo da pesquisa no universo da música.

Até aqui citamos autores cujos temas de suas pesquisas podemos associar

facilmente com o que tratamos em nosso presente trabalho, qual seja, os festivais.

Porém esta lista poderia ir longe caso quiséssemos debater a música de uma maneira

ampla, parte menor de um todo da indústria cultural. Mas ainda não é momento de

entrarmos em debates teóricos como este sobre as teorias indicada originalmente por

Theodore Adorno e Max Horkheimer27.

Porém não poderíamos sair daqui sem citar algumas obras como Balanço da

bossa e outras bossas28, de Augusto de Campos, um conjunto de suas obras publicadas

contemporaneamente à produção artística dos anos 60 e 70 do século passado. Ainda a

obra lusitana de Anhanguera, Corações Futuristas: notas sobre musica popular

brasileira29, uma publicação que, como o próprio nome diz, são notas por vezes são tão

curtas e breves que perdem o fio da meada, deixando a fluência da pesquisa confusa,

entretanto sem comprometer a totalidade.

Abordando diversos trabalhos de pesquisa de historiadores, é o momento de

vermos mais publicações sobre a música brasileira, grande maioria lançadas na presente

década, cuja abordagem escapa do aspecto puramente histórico. É o que faremos a

seguir.

1.5. REALCE, QUANTO MAIS PURPURINA MELHOR30

Como não poderia faltar, falaremos um pouco sobre as obras publicadas por

produtores e artistas de musica que atuaram nos anos de 1960 e 1970. Entre estes, um

dos primeiro a abrir alas aos tantos livros que viriam depois foi o Noites Tropicais31, de

Nelson Motta, uma autobiografia que ditaria o ritmo de algumas das obras vindouras,

com afirmações no tom de “eu fiz”, “eu revelei” ou “eu apresentei”. De qualquer

27 Em um debate maior, não poderíamos passar por cima das teorias da Escola de Frankfurt, em especial Adorno, Horkheimer e Benjamin. 28 CAMPOS, A. Balanço da bossa e outras bossas São Paulo, Perspectiva, 1968. 29 ANHANGUERA, M. Corações futuristas: notas sobre música popular brasileira, Lisboa-Portugal: A regra do Jogo, 1978. 30 Trecho da canção Realce, de Gilberto Gil. 31 MOTTA, N. Noites Tropicais, Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

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maneira, são obras que apresentam o cotidiano de artistas e produtores, trazendo ao

debate uma idéia das inovações tecnológicas que chegavam na indústria televisiva.

Neste mesmo aspecto –e em abordagem semelhante –está o livro Prepare seu

coração: a historia dos grandes festivais32, de Solano Ribeiro. Não há discussão quanto

à importância desta obra. Não tanto pelo que esta contido no livro, mas por quem foi

Solano Ribeiro, idealizador e diretor dos principais festivais, inclusive do VIII FIC em

1972.

O contato direto com artistas dá uma grande noção do cotidiano de uma grande

produção festivalesca, do que realmente faziam os cantores antes e depois de cada

festival e das dificuldades para se conseguir uma grande apresentação com boa

transmissão de imagem e áudio. Também podemos saber as condições técnicas e

tecnologias dos canais televisivos e do que era preciso para se preparar e fazer acontecer

diferentes festivais em diferentes emissoras, já que sabemos estas disporem de recursos

desiguais.

Sem compromisso com a história e com um grande compromisso para com ele

mesmo, Solano Ribeiro expande a sua importância com relação aos festivais e torna-se

uma pessoa importante, não apenas para a história da música, mas também para a

história da televisão brasileira. Não deixa de ser verdade. Ainda nos dois últimos

festivais realizados na televisão, quem os produziu –incluindo o da Globo de 2000 –foi

o renomado Solano. Escrito por ele, podemos ter uma maior idéia do que seria o

impacto de um vídeo tape ou das cores na TV para a época.

Todavia, se falta compromisso histórico para Ribeiro, um outro “homem dos

bastidores” vai lançar seu livro visando aproximar-se o máximo possível dos métodos

acadêmicos. Sem muitas dificuldades, em função de circular facilmente no meio

artístico e televisivo (sendo ainda nome importante em tal contexto), Zuza Homem de

Mello vai lançar o que ainda é o trabalho mais detalhado sobre os festivais televisivos

como um todo. A Era dos Festivais: uma parábola33 é um livro grande, acompanhado

de um CD duplo contendo as principais canções da era festivalesca, além de trazer

fichas técnicas e classificação final de cada festival.

Mello delimita os festivais em uma faixa de 1960, com o primeiro festival da

Record, até 1972, com o VIII FIC. Excetuando uma parte que fala sobre a I Bienal do

32 RIBEIRO, S. Prepare Seu Coração: a história dos grandes festivais, São Paulo: Geração Editorial, 2002. 33 MELLO, Z. H. A Era dos Festivais: uma parábola, São Paulo: Ed. 34, 2003.

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Samba, cada capítulo do livro fala de uma das edições dos festivais realizados ao longo

deste recorte histórico.

Vendo todos os que participaram do movimento cultural da época lançando o

material que estava guardado nas gavetas, Ana Maria Bahiana, que entrevistou as

principais personalidades da época, também desencaixotou34 o que tinha disponível e

lançou Nada será como antes: MPB anos 7035, publicando inclusive as entrevistas que

haviam sido censuradas. Com este material da Revista Civilização Brasileira todo um

campo se abre para novas pesquisas sobre o assunto.

De importância semelhante à publicação de produtores estão as publicações de

cantores que vivenciaram a época. Verdade Tropical36, de Caetano Veloso, é um livro

ousado, como tudo o que vem de Caetano, mas que (como tudo) cumpre bem o seu

papel e diz o que tem para dizer. As idéias de Caetano sobre antropofagia tropicalista e

sobre o próprio tropicalismo trazem novos elementos para se pensar o movimento a

partir de então.

Outro livro de artigos de Caetano –muitos publicados nas décadas de 60 e 70 do

passado século –se chama Caetano Veloso: o mundo não é chato37, organizado por

Eucanaã Ferraz. A idéia de nacionalismo e o confronto de Caetano com outros correntes

musicais podem ser percebidas neste livro recente.

Ainda dentro do tropicalismo, Tom Zé lançou recentemente a obra Tropicalista

lenta luta38, acompanhado de seu mais recente trabalho musical. Também está nas lojas

mais um Baú do Raul39 foi lançado com novas fotos, textos e músicas inéditas. Da

mesma forma foram e estão sendo lançadas biografias de Chico Buarque, Gilberto Gil,

Titãs, Paralamas do Sucesso, Renato Russo, Legião Urbana, Secos e Molhados e tantos

outros que vão às livrarias aos atropelos.

Continuando na Era das Publicações Musicais, a psicóloga francesa Monique

Augras lançou O Brasil do Samba-Enredo40; o pesquisador e produtor musical Rodrigo

34 Na introdução do livro, Bahiana explica o quanto ver as demais publicações sendo lançadas a influenciou para que organizasse um livro. 35 BAHIANA, A. M. Nada será como antes: MPB anos 70 trinta anos depois, Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2006. 36 VELOSO, C. verdade tropical, 3 ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 37 FERRAZ, E. (org.), Caetano Veloso: o mundo não é chato, São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 38 ZÉ, Tom, Tropicalista Lenta Luta, São Paulo: Publifolha, 2003. 39 Já havia sido lançado um livro chamado O Baú do Raul no início da década de 1990 (São Paulo: Ed. Globo, 1993) mas os mesmos idealizadores desta obra, lançaram um novo Baú do Raul Revirado, seguindo a tendência de obras com aspectos visuais mais atraentes e um CD com canções inéditas (ESSINGER, S. (org.), Baú do Raul Revirado, Rio de Janeiro: Ediouro, 2005). 40 AUGRAS, M. O Brasil do samba-enredo, Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998.

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Faour publicou um livro de 600 paginas chamado História Sexual da MPB: a evolução

do amor e do sexo na canção brasileira41; o historiador André Diniz mandou para as

livrarias Almanaque do Samba: a historia do samba, o que ouvir, o que ler, onde

curtir42, o musicologista Carlos Sandroni lançou, em 2001, a importante obra Feitiço

decente: transformação do samba no rio de janeiro (1917-1933)43.

Nas ciências sociais, sem citar as importantes contribuições de Renato Ortiz44,

por merecerem um espaço maior e mais adequado e por não abrange especificamente

música e festivais, temos Márcia Tosta Dias com Os donos da voz: industria

fonográfica brasileira e mundialização da cultura45 e a importante obra de Rita Morelli,

Industria fonográfica: um estudo antropológico46, que toca no tema da industria cultural

nos anos 70 do século XX a partir dos cantores Fagner e Belchior. São duas grandes

contribuições das ciências sociais para o debate sobre a indústria fonográfica brasileira

nas últimas décadas do século anterior.

Contudo, ainda podemos sem dúvida afirmar que falta, em toda esta bibliografia

apresentada, um debate sobre os Festivais Internacionais da Canção da Rede Globo de

Televisão. Principalmente se quiséssemos abordar um aspecto mais histórico-

tecnológico enquanto empresa inserida profissionalmente em um Brasil de comunicação

amadora. Portanto, buscaremos saber como o padrão Globo de produções, ainda em seu

embrião mas já mostrando suas garras, se manifesta nos FICS e em especial no FIC de

1972. Qual o impacto das cores neste FIC, único a ser transmitido colorido? O que

ocasiona a mudança, anteriormente citada, de júri que diz respeito ao VIII FIC?

Podemos ver os FICs como uma microcélula da ebulição do pais deste período?

Para entendermos os FICs em suas especificidades, e necessário que antes o

coloquemos dentro do contexto geral de festivais televisivos da época.

41 FAOUR, R. Historia Sexual da MPB: a evolução do amor e do sexo na canção brasileira, Rio de Janeiro: Record, 2006. 42 DINIZ, A., Almanaque do Samba: a historia do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir, Rio de Janeiro: Zahar, 2006. 43 SANDRONI, C. Feitiço decente: transformação do samba no rio de janeiro (1917-1933), Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 44 Renato Ortiz tem diversas obras importantes que poderíamos utilizar para uma melhor compreensão de nosso tema. Seu debate sobre telenovelas trazem importantes questões sobre a linguagem televisiva e seus livros sobre mundialização, identidade nacional e cultura podem perfeitamente perpassar o tema que estamos trabalhando. (ver Cultura brasileira e identidade nacional, São Paulo: Brasiliense, 1985; Mundialização e Cultura, São Paulo: Brasiliense, 2003; Mundialização: saberes e crenças, São Paulo: Brasiliense, 2006; e Telenovela: história e produção, São Paulo: Brasiliense, 1989). 45 DIAS, M. T. Os Donos da Voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura, São Paulo: Boitempo, 2000. 46 MORELLI, R. Indústria Fonográfica: um estudo antropológico, Campinas: Ed. Unicamp, 1991.

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2. É DIA DE FESTIVAL

Acorda, Maria, é dia de festival Violas já vêm cantando no doce do canavial47

2.1. MAS EIS QUE CHEGA A RODA VIVA E CARREGA O DESTINO PRA LÁ48:

A DÉCADA DE 1960, A INDÚSTRIA CULTURAL E O REGIME MILITAR

Na década de 1960 o Brasil passou por um período de profunda conscientização

política, debatendo temas importantes dentre os quais se destaca o que seria a “cultura

nacional”. O Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da

UNE ), criado em 1962, foi um dos grandes protagonistas desse processo. Os jovens do

CPC levavam à sociedade em geral, às empresas e aos estudantes peças de teatro,

festivais de música e produziam livros, discos e filmes dentro de um projeto intelectual

comum: a elaboração imperiosa de uma “cultura popular” em confronto com as

expressões artísticas vigentes49, que, segundo o CPC, eram manifestações culturais

alienantes sem conscientização política e engajamento social. O curto intervalo de 19

anos que Brasil teve entre a Ditadura de Getúlio Vargas e a Ditadura Militar foi

suficiente para que os estudantes e os operários tomassem força e se organizassem,

expandindo o debate sobre sua condição e os rumos que o país estava tomando50.

Foi nesta década também que a televisão começou sua inserção no mercado,

passando a ocupar espaços cada vez maiores entre a população e, consequentemente,

absorvendo verbas cada vez maiores da publicidade. Em 1951, quando só existia a TV

Tupi, o Brasil tinha 3.500 aparelhos televisivos, passando para 1,8 milhão em 1959,

momento em que a Tupi já concorria com a TV Record de São Paulo. Entre 1958 e

1962, as verbas destinadas à televisão passaram de 8% para 24%51. Dando seus

primeiros passos, a linguagem televisiva era quase toda emprestada do seu primo rico: o

rádio.

A TV Record, surgida em 1953, desde seu início dedicou-se aos programas

musicais, não demorando a tentar reproduzir os festivais universitários que atraíam as

47 DRUMMOND, C. Poesia completa, Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 2001 48 Trecho da canção Roda Viva, de Chico Buarque. 49 BERLINCK, M. T. Centro Popular de Cultura da UNE, Campinas: Papirus, 1984, p.9. 50 HOLLANDA, H. Cultura e participação nos anos 60, São Paulo: Brasiliense, 1985. 51 NAPOLITANO, M. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969), São Paulo: Annablume, 2001, p. 86).

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multidões de jovens e proporcionavam o debate estético sobre as novas formas

musicais. Ainda sem o recurso do vídeo teipe, as emissoras de televisão tinham que

buscar nas fórmulas ao vivo a saída para seus impasses de audiência.

A partir do dia 31 de março de 1964 o Brasil começou a vivenciar o início de um

regime militar que duraria mais de 20 anos. Cinco presidentes assumiram o cargo

máximo do poder executivo. Foram eles o Marechal Humberto de Alencar Castelo

Branco (1964-1967); o Marechal Artur da Costa e Silva (1967-1969); o General Emílio

Garrastazu Médici ((1969-1974); o General Ernesto Geisel (1974-1979); e o General

João Batista Figueredo (1979-1985). Embora a censura fosse uma constante ao longo de

todo o regime, os momentos de maior coibição popular foram durante os governos

presididos pela chamada “linha dura”, que se estende pelos mandatos de Costa e Silva e

de Médici. O festival musical que analisaremos, o FIC de 1972, foi realizado durante o

governo de Médice, o que aumenta a sua importância.

É no início do regime militar que a MPB ganha corpo e institucionaliza-se, após

o triunfo do espetáculo Opinião, “fundado sobre as cinzas do CPC52” que havia sido

proibido nos primeiros momentos do regime. Esta institucionalização, com marco em

1965, é melhor explicada por Napolitano em seu artigo Conceito de “MPB” nos anos

6053:

Por volta de 1965, houve uma redefinição do que se entendia como Música Popular Brasileira, aglutinando uma série de tendências e estilos musicais que tinham em comum a vontade de “atualizar” a expressão musical do país, fundindo elementos tradicionais a técnicas e estilos inspirados na Bossa Nova, surgida em 1959. Naquele contexto foram exercitadas formas diversas de atuação de artistas e intelectuais que acreditaram na possibilidade de engajar-se politicamente, ao mesmo tempo que atuavam no mercado musical [...]. Este processo que redimensionou e consagrou a sigla MPB –Música Popular Brasileira –pode ser visto como parcialmente determinado pelas intervenções culturais que tentaram equacionar os impasses surgidos em torno do nacional-popular, tomado aqui como cultura política54.

Mas a “revolução de 6455” foi um duro golpe em toda essa nova produção

cultural, já que instituições de coerção como o DOPS (Delegacia da Ordem Política e

52 NAPOLITANO, M. Seguindo a canção, São Paulo: Ana Blume, 2001, p. 66. 53 NAPOLITANO, M. O conceito de “MPB” nos anos 60, In: História: Questões e Debates, Editora UFPR, ano 16, nº 31, jul/dez, 1999, p. 11-30. 54 NAPOLITANO, M. história: questões e debates: mpb, ano16, nº 31, jul/dez, 1999, p.12 55 Claro que aqui não apoiaremos em nossos trabalho a gestão militar enquanto uma revolução e sim como um golpe extremamente daninho à sociedade brasileira. O termo está entre aspas por ser esta a versão apresentada pelos militares com relação ao golpe.

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Social) e o DOI-CODI (Departamento de Operações Internas –Comando de Operações

de Defesa Interna) agiam intensamente sobre os artistas e os veículos de divulgação, não

permitindo a circulação de idéias políticas, principalmente as que pusessem em debate a

condição brasileira diante do regime militar. A censura instaurou-se vorazmente

objetivando proibir a circulação da palavra política, pois se não circulasse não teria

eficácia política e, consequentemente, não estimularia a mobilização social56. Com o

acirramento do fechamento político, da censura e da repressão assegurados pelo AI-5, o

cenário nacional sofre um impacto ainda maior na política e, no que é mais conveniente

a este trabalho, na produção cultural.

Um amplo debate estético e ideológico ocorre nos anos de 1960 através da MPB

que, em função deste próprio debate, torna-se uma instituição sociocultural brasileira57.

Porém é importante, até aqui, compreender que havia uma música (com diversas

tendências e estilos que se complementavam) consumida pela classe média estudantil e

que possuía características estéticas e ideológicas que a cercava. Os cantores que faziam

shows em palco, atraindo as multidões estudantis, como Nara Leão e Elis Regina, logo

ganharam espaço nas televisões com programas adaptados do palco, isto é, saídos direto

das apresentações ao vivo tal como ocorria dentro e ao redor das universidades. Tais

programas foram o corpo do que, com Solano Ribeiro, se tornariam os festivais da

televisão, pois já arrecadavam grande audiência58. Os festivais tiveram como modelo

eventos que ocorriam nos palcos paulistas e cariocas na primeira metade da década de

1960.

Em minha opinião, a seqüência de espetáculos que ocupou o calendário de 1964 a 1965, pode ser considerada o “elo perdido” entre o circuito restrito da primeira bossa nova e a explosão da MPB nas televisões [...] Por exemplo, um dos espetáculos desse novo circuito, o Primeira Audição, realizado no colégio Rio Branco, pode ser considerado o piloto da fórmula televisiva que desembocou nos festivais da TV Record a partir de 1965. Essa fórmula tentava reproduzir a vibração dos shows ao vivo do circuito universitário.59

56 OLIVEIRA, S. C. Irreverências mil pra noite do Brasil: imagens do regime militar nas canções engajadas, Mestrado [dissertação]. Curso de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1998, p.4 57 id. ibid. p.12. 58 NAPOLITANO, M. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980), São Paulo: Contexto, 2001. 59 NAPOLITANO, M. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969), São Paulo: Annablume, 2001, p. 60-61.

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Em 1966, Excelsior, Record e Globo já possuem seus festivais televisivos, que

disputam entre si uma hegemonia que quase sempre ficava com a Record, de Solano

Ribeiro, o produtor do primeiro festival, na Excelsior, mas que a preço de ouro se

transferira para a concorrente. Sobre os festivais fala o próprio Solano Ribeiro.

Os festivais não surgiram do dia para noite. No início dos anos 60, existia uma forte movimentação musical a partir da Bossa Nova, com base no Rio. Em São Paulo havia muita gente fazendo boa música. [...] Logo percebi que os encontros despertavam grande interesse e, de repente, poderiam acontecer num lugar maior. Na época, o centro acadêmico do Mackenzie fazia um espetáculo chamado O Fino da Bossa, de muito prestígio, e que trazia o pessoal do Rio. Isso reforçou a idéia de alugar um teatro. Alugamos o antigo teatro de Arena. A primeira apresentação foi um sucesso extraordinário. E aí chamamos esses espetáculos de Noites de Bossa. [...] Naquela época o Boni (José Bonifácio Sobrinho) me chamou para trabalhar como coordenador de programação da TV Excelsior. Fazia de tudo um pouco, até que surgiu a chance de produzir um programa. Aí levei todo esse pessoal para a TV. Foi o Noites da Bossa Paulista.60

Mas se até aqui tratamos dos personagens que ocupam o palco de nossa

pesquisa, no próximo momento de nosso trabalho vamos analisar de que maneira estes

protagonistas irão se confrontar ou atuar em conjunto no âmbito cultural.

2.2. APESAR DE VOCÊ61: FESTIVAIS E AS REAÇÕES À DITADURA

“Para o Brasil, em termos econômicos e políticos, talvez seja correto dizer que

os anos 70 tiveram início em 1968. Foi nesse ano que se deu a inflexão para cima da

economia brasileira [...] E foi nesse ano também que se editou o Ato Institucional n.º 5,

pondo-se fim a um curto período de liberalização do regime político instalado em 64,

durante o qual tinham se multiplicado as manifestações de oposição a esse regime”62.

Ao mesmo tempo em que o “Milagre Econômico” era exaltado pelo Regime,

elevando o Brasil à condição de oitava potência econômica mundial, grupos de jovens

estudantes, jornalistas e todas as demais categorias populares que ousavam protestar

contra os militares eram duramente perseguidos, torturados, alguns morriam nas prisões,

como no famoso caso de Herzog63, ao passo em que outros brasileiros tinham que

60 In: Jornal da Tarde, o homem dos festivais, São Paulo, 13 ago. 2000. 61 Trecho da música Apesar de você, de Chico Buarque. 62 MORELLI, R. Indústria fonográfica: um estudo antropológico, Campinas: Edunicamp, 1991, p. 47. 63 O jornalista Vladimir Herzog era um profissional da TV Cultura que havia sido preso no dia 25 de outubro de 1975 pelo DOI-CODI, que seria o Departamento de Operações Internas –Comando de Operações de Defesa Interna. Segundo a versão dos militares, Herzog havia se suicidado e para provar a versão deles, divulgaram uma foto na qual Vladimir aparecia pendurado pelo pescoço numa tira preso à janela. Suas pernas apareciam dobradas, pois a janela era baixa, o que tornava a versão a versão oficial

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deixar o Brasil, mesmo amando-o64, para não entrarem para a estatística de

desaparecidos, que crescia ainda mais com a formulação do Ato Institucional Número 5

no final do ano de 1968.

Em meio a tanta repressão, a parte da população que via o regime com críticas

tinha ainda um último recurso para reproduzir a sua ideologia e suas injúrias: a arte, em

especial a música. Ao mesmo tempo em que o regime se organizava, a indústria

fonográfica também se estruturava enormemente e cada vez com maiores condições

técnicas.

Por sua parte, os militares não se faziam de rogados e respondiam às críticas

com seu enorme aparato militar, uma máquina de investigação e coerção que ia desde

censuras simples –como bilhetes, causando um efeito moral e psicológico, não menos

eficaz e silenciador– até métodos de agressões físicas que causavam por vezes a morte.

Deste confronto, surgiram lendas musicais que jamais serão esquecidas, como o

famoso personagem Julinho da Adelaide, criado por Chico Buarque para tentar fugir da

censura, pois ele era o mais caçado pelos censores. Como quase tudo que Chico

produzia já era previamente censurado, ele criou esse pseudônimo para lançar músicas.

Funcionou, mas por pouco tempo. Através do Jornal do Brasil a censura descobriu e

Chico teve de prestar contas. Mas deixava claro que havia uma relação cotidiana entre

os cantores das décadas de 1960 e 1970 com a censura, com os dois lados desse “jogo”

tornando complexos os mecanismos de censura, por parte dos militares, e de “drible”,

por parte dos artistas frequentemente censurados.

As censuras, as letras feitas e canções elaboradas dialogavam diretamente,

mostrando que ao mesmo passo em que os militares reprimiam seus opositores, a

música ainda se mostrava como espaço de resistência. Vilarino65 expõe que a partir da

edição do AI5 isso começa a mudar, com a música sofrendo um vazio ideológico e

mesmo físico, entendendo “físico” aqui, como a ausência dos principais nomes da

ainda mais verossímil. Segundo Napolitano, “era o primeiro corpo que não desaparecia, dentro de um órgão da repressão militar”. Para o autor, esse erro “técnico” dos torturadores poderia ter o objetivo de mostrar à sociedade e ao governo Geisel que a “comunidade de segurança” estava viva e atuante. Enfim, foi um recado da linha dura para Geisel como demonstração de seu descontentamento com o projeto do governo de distensão/abertura. Em janeiro de 1976 morreria o operário Manuel Filho nas mesmas circunstâncias, fazendo com que Geisel exonerasse o comandante do II Exército e ninguém mais fosse morto no DOI-CODI até o fim do regime. (NAPOLITANO, M. Cultura e Poder no Brasil Contemporâneo, Curitiba: Juruá, 2002, P. 60) 64 Referência ao lema do regime militar que dizia “Brasil: ame-o ou deixe-o”. 65 VILARINO, R. C. A MPB em Movimento: Música, Festivais e Censura, São Paulo: Olho Dágua, 1999.

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música brasileira. Rita Morelli66 vai estudar antropologicamente como esse vazio,

representado fundamentalmente pelo exílio dos baianos tropicalistas, se dá, através da

chamada Onda do Ceará de Fagner, Belchior e Ednardo, que ocuparão, de certa forma,

esse espaço na década de 1970, já com participação em 1972, ano do sétimo Festival

Internacional da Canção.

Os festivais televisivos são importantes para entender um dos principais

espaços que os cantores tinham para se apresentar, um ambiente que não se restringia

apenas aos palcos, mas era passado em todo o Brasil pela TV, num momento em que a

indústria fonográfica e a televisiva cresciam vertiginosamente, sempre visados pelos

censores da ditadura que dedicavam aos meios de comunicação uma preocupação

especial. Um determinado ato de “subversão” da parte dos artistas que se apresentavam

na televisão, em especial nos festivais, seria visto em diversos Estados do Brasil e

influenciariam diversos jovens. Assim, os militares se prepararam na tentativa de

impedir que determinadas músicas ganhassem os prêmios máximos ou mesmo que

fossem classificadas para as finais, obtendo relativo sucesso em alguns casos no qual

modificaram até mesmo o júri, como no FIC de 1972.

Mas a posição que a canção popular engajada67 assumiu na recusa em aceitar a

situação vigente, e, como a palavra cantada adquiriu um forte poder de penetração em

determinados segmentos, no qual o poeta metaforicamente induzia à união contra o

regime militar, com o objetivo de mobilizar a população para a oposição, às vezes até

para a revolução68.

Portanto, “a lógica da censura pautava-se na proibição da circulação da palavra

política, ou seja, se a palavra não circulasse, não teria eficácia política e,

consequentemente, não estimularia uma mobilização geral”.69 Mas à medida em que a

palavra engajada circulava, ocorria um “amadurecimento”, ou, como o próprio Semi

66 O objetivo da escritora é apresentar como se comportou a indústria fonográfica a partir de 1968, com a edição do AI5, em que os principais nomes da música no país tiveram que se retirar do país. Após a onda do tropicalismo, geradora de enormes vendas para o mercado fonográfico, a estratégia da indústria foi continuar buscando no nordeste o alimento para as vendas. (MORELLI, R. Indústria fonográfica: um estudo antropológico, Campinas: Edunicamp, 1991) 67 Entendemos aqui como engajada a “atuação do intelectual numa esfera pública, em defesa das caudas humanitárias, libertárias e de interesses coletivos, utilizando-se basicamente da formulação e afirmação de idéias críticas e coerentes com aqueles princípios, delimitando seu espaço num movimento pendular entre os ideais e as ideologias vigentes” aqui relacionado com a indústria cultural, que busca transformar “idéias em bens culturais mercantilizados” (NAPOLITANO, M. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969), São Paulo: Ana Blume, 2001, p.11) 68 OLIVEIRA, S. C. Irreverências Mil prá Noite do Brasil, dissertação de mestrado, UFPR, DEHIS, 1998 P.122 69 Op. cit. P. 12

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conceitua, uma “evolução da censura”70, de patrulhamento ideológico e político. Mas o

censor atingia a especificidade da obra e não a sua produção, pois o próprio regime

militar desejava utilizar obras artísticas e o renome dos cantores para a divulgação de

suas idéias, criando diversas instituições como a Funarte e Embrafilme para estimular a

produção e mesmo o êxodo de artistas para o lado ideológico do regime71.

2.3. CAMINHANDO CONTRA O VENTO72: A TRAJETÓRIA DOS FESTIVAIS

São muitas as conseqüências positivas que os festivais televisivos deixaram de

herança para a cultura brasileira. Talvez, a principal delas tenha sido participar

ativamente da nacionalização da indústria fonográfica do Brasil que, não fora os

festivais, correria o grande risco de viver dos produtos musicais internacionais.

Poderíamos complementar destacando, ainda, que os festivais foram um dos

principais responsáveis pela exportação da música popular brasileira para o mercado

externo. Com a revolução cubana em 1959, os gêneros deste país estavam impedidos de

entrar nos Estados Unidos, havendo, portanto, uma tentativa mercadológica de

introduzir a bossa nova no mercado americano do latin-jazz, aproveitando o embargo

comercial dos norte-americanos ao principal ritmo importado por este país.

Os festivais revelavam ao público, nos três principais canais em que eram

realizados (TV Excelsior, TV Record e TV Globo), uma grande quantidade de artistas

na área musical, entre instrumentistas, compositores, arranjadores, maestros e

interpretes. Muitos destes acabariam por se perpetuar como grandes nomes da música

popular brasileira, como Chico, Caetano, Gil e muitos outros. O debate crítico que se

seguia cada vez que um festival era realizado, impulsionava o público a fazer parte

integrante deste processo sociocultural através de comportamentos que iam desde

assistir pela televisão seus artistas preferidos, até pegar em armas e partir para um

confronto bélico com o regime militar.

Os diversos festivais televisivos de música popular brasileira influenciaram na

criação de uma nova modalidade musical na indústria fonográfica nacional, parte de um

processo no qual, claro, incluiria ainda a ditadura, a população receptora e outros

diversos segmentos sociais, como os empresários e as indústrias em geral. Mas foi,

70 Op. cit. P.20. 71 Op. cit. P.21-2. 72 Trecho da canção Alegria alegria, de Caetano Veloso.

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numericamente falando, a indústria fonográfica que cresceu 15% ao ano na década de

197073, acompanhando o final do estouro dos festivais televisivos, com um crescimento

de 444% entre 1966 e 1976, enquanto o PIB do país, neste mesmo período, teria sido de

apenas 152%74.

Entre 1967 e 1980, a venda de toca-discos cresce 813%. A indústria do disco cresce em faturamento, entre 1970 e 1976, em 1.375%. ao mesmo tempo, a venda de discos, no mesmo período, aumenta de 25 milhões de unidades para 66 milhões de unidades por ano. A produção de fitas cassete, uma novidade no Brasil, cresce de um milhão, em 1972, para 8,5 milhões em 1979. É na década de 70, e não nas precedentes que o disco Long Play toma impulso surpreendente. Tais dados não seriam mera coincidência, mas o evidente resultado da assiciação entre o regime militar e a “indústria cultural”, patrocinada pelo grande capital, principalmente o internacional75.

Paralelo ao crescimento da indústria fonográfica, era necessário vincular aos

produtos musicais a imagem da performance do artista, enquadrando-o em algum estilo

musical. “Já não era suficiente informar o gênero ao qual a canção estava vinculada [...]

Era preciso relacioná-la a um compositor conhecido e a um movimento cultural

determinado. Essa nova rotulação foi fundamental para reorganizar o mercado

musical76”.

Destas performances surgiam embates, como os dos músicos de esquerda do

CPC com a bossa nova e de ambos com a jovem guarda, que são apenas os primeiros

passos do que ocorrerá nos eventos festivalescos, quando estes três segmentos estarão

plenamente consolidados e lidando com outros tipos de correntes nacionalistas.

Principalmente, com o ambíguo desbunde dos tropicalistas, que acreditavam, no sentido

oposto da bossa nova, que a música deveria ser gravada e amplamente divulgada para

que chegasse ao povo, pois só assim teria sentido em ser revolucionária. E, segundo

Solano Ribeiro, as canções tropicalistas de fato “ganharam feições revolucionárias, com

temáticas urbanas, e mudaram o panorama musical da época77”.

Todos estes jovens movimentos musicais, juntos aos representantes já

consagrados da música nacional, farão com que os festivais não deixem em nenhum

momento de revelar novos nomes para o cenário nacional. Mesmo o FIC de 1972,

73 MORELLI, R. Indústria fonográfica: um estudo antropológico, Campinas: Edunicamp, 1991, p.47 74 NAPOLITANO, M. op. Cit. p.84 75 SILVA, A. R. Sinal fechado: a música popular brasileira sob censura (1937-45/1969-78), Rio de Janeiro: Obra Aberta, 1994, p.34 76 NAPOLITANO, op. Cit. p. 83 77 JORNAL da Tarde, O homem dos festivais, São Paulo, 13 ago. 2000.

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realizado no último suspiro deste gênero televisivo, trouxe cantores como Raul Seixas,

hoje considerado por muitos como o pai do rock tupiniquim.

A possibilidade de apresentar um novato ao lado de um nome consagrado em igualdade de condições fazia do festival a única porta de entrada para um novo compositor e também para o lançamento de novos cantores e grupos, pois o seu extraordinário sucesso atrairá todas as atenções, não só do público, dos críticos e da imprensa em geral, mas também dos responsáveis pelo mercado do disco, em geral incompetentes para lançar qualquer coisa que não preencha as expectativas do que costumam rotular de comercial78

O show Opinião, “fundado sob as cinzas do CPC79”, era um grupo de artistas

com idéias engajadas que formulava os primeiros protestos contra o regime militar. O

movimento era formado por Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Ferreira Goulart e

Armando Costa, que tentariam levar ao povo uma mensagem política através do

espetáculo, recorrendo à música como ferramenta política. “O triunfo do Opinião pode

não ter se restringido aos limites imaginários do palco [...] Tornando-se um evento

paradigmático, representou uma das vertentes da institucionalização (inclusive no seio

da indústria cultural) da nova MPB, que a partir de 1965 tornava-se uma sigla

ideologicamente reconhecível80”.

Depois de uma temporada de sucesso de público no teatro, a Record resolve

transformar o Opinião em um programa musical em que Zé Ketti, João do Valle e Nara

Leão (que era remanescente da bossa nova e agora aderia ao protesto nos moldes do

CPC) são os principais protagonistas, cantando temas de relevância nacional, com um

conteúdo regionalista e usualmente polêmico, alcançando grande sucesso.

Podemos dizer que os “filhos do CPC” foram os responsáveis por um grande

investimento das televisões em programas de gênero musicais. Só em 1965, três

programas deste gênero foram lançados pela TV Record, todos visando públicos

teoricamente distintos. Foram eles O fino da bossa, lançado em maio, apresentado por

Elis Regina e Jair Rodrigues. Em seguida, a mesma rede de TV lançou, em julho, o

Bossaudade, com Elisete Cardoso e Ciro Monteiro. E no final do ano, em setembro, foi

a vez do Jovem Guarda, com Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia no comando

do programa. Ao longo da era festivalesca, diversos programas irão surgir, como o Pra

78 RIBEIRO, S. Prepare Seu Coração: a história dos grandes festivais, São Paulo: Geração, 2002, p. 95 79 NAPOLITANO, op. Cit. p. 66 80 NAPOLITANO, op. Cit p. 72

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ver a banda passar (com Chico Buarque e Nara Leão) e o Divino Maravilhoso (Com

Caetano e Gil).

Os festivais foram, portanto, os responsáveis pela consolidação de diversos

nomes e movimentos que iriam compor a sigla MPB, servindo como campo de

experimentação para a indústria fonográfica, para a televisão e para os novos artistas,

que iriam, talvez, encontrar uma via de acesso com o público, que, por sua vez,

respaldavam e se respaldavam nas correntes e estilos musicais, apoiando-as ou

refutando-as de acordo com o seu gosto. É claro que, em contrapartida, muitos desses

nomes, como Jair Rodrigues e Elis Regina, eram igualmente responsáveis pela

consolidação dos festivais, que necessitava de artistas de renome para dar credibilidade

e, ao mesmo tempo, conquistar a atenção inicial do público.

Assim, podemos ter claro que tais festivais não surgiram repentinamente já em

seu formato televisivo, são advindos dos palcos e dos shows realizados nos circuitos

cariocas e paulistas da década de 1960, que acabaram por embasar os diversos

programas musicais televisivos e, a partir de então, dar suporte aos festivais de música

popular brasileira.

Em minha opinião, a seqüência de espetáculos que ocupou o calendário de 1964 a 1965, pode ser considerada o “elo perdido” entre o circuito restrito da primeira bossa nova e a explosão da MPB nas televisões [...] um dos espetáculos desse novo circuito, o Primeira Audição, realizado no colégio Rio Branco, pode ser considerado o piloto da fórmula televisiva que desembocou nos festivais da TV Record a partir de 1965. Essa fórmula tentava reproduzir a vibração dos shows ao vivo no circuito universitário81.

Após abordarmos o máximo que nos cabe sobre os festivias em seu contexto

mais amplo, vamos, no próximo capitulo, nos concentrar nos FICs, em especial o de

1972.

81 NAPOLITANO, op. Cit. pp. 60-61

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3 A MINHA MÚSICA NÃO TRAZ MENSAGEM: A TRAJETÓRIA DO FIC

A minha música não traz mensagem Não faz chantagem ou guerra fria E nem fala de ideologia Eu vim apenas lhes falar De uma grande perda que nem sei Se é de direita ou de esquerda82

Na metade da década de 1960, as indústrias fonográfica e televisiva passam a

apostar efetivamente em música brasileira na busca de novos talentos. Em parte devia-

se também às pressões feitas pela Associação Brasileira dos Produtos de Disco (ABPD)

ao governo, que acabou por criar, em 1967, a Lei de Incentivos Fiscais, que permitia

aplicar as dívidas das produtoras internacionais na produção de discos nacionais.

Aproveitando essa onda nacional na música e inspirado no Festival de San Remo, na

Itália, o produtor Solano Ribeiro realizou um festival pioneiro na TV Excelsior. “Estava

na hora de uma incursão mais ousada, em que a televisão iria representar um papel

fundamental83”.

Nessa mesma época [1965], o mercado do disco era invadido anualmente pelos sucessos lançados no festival de San Remo, em geral uma baboseira melosa [...] Achei que era o momento de criar um festival no Brasil. Pedi o regulamento de San Remo ao Enrique Ledemberguer, dono da editora musical formata, e o adaptei às nossas condições84.

E foi no embalo da fórmula do festival de San Remo que a Globo resolveu

realizar os seus festivais televisivos. Em outubro de 1966, o governo da Guanabara

organizou junto à TV de Roberto Marinho, o I Festival Internacional da Canção,

coordenado por Augusto Mazargão com um forte caráter turístico, trazendo diversos

artistas internacionalmente conhecidos no cenário musical para compor o júri ou mesmo

para se apresentarem, concorrendo ao Galo de Ouro, prêmio que recebiam os

vencedores.

82 Trecho da canção Manifesto, de Guto e Mariozinho Rocha, interpretada por Elis Regina em 1966 na apresentação ao vivo chamada Dois na bossa, espetáculo em conjunto com Jair Rodrigues no Teatro Paramount. 83 RIBEIRO, S. op. Cit. p.66 84 id. Ibid. p. 67

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O Estado da Guanabara, através de sua Secretaria de Turismo, e a Rede Globo

dividiam ao meio os custos do FIC. Em 1967, Carlos Laet, Secratário de Turismo,

afirmou à revista Manchete que “o FIC custou 750 mil cruzeiros novos, mas dos cofres

do estado saíram apenas 370 mil, o resto fica ao encargo da Globo85”. Por ser um evento

patrocinado, em parte, pelo próprio Estado, os cantores engajados teoricamente

perderiam parte do seu efeito.

Esta fórmula incrementava a diluição das expectativas “ideológicas” em torno da fase nacional e tornava diferente os critérios de escolha da vencedora. Ao invés da música que apontasse para a superação dos impasses e indicasse uma revolução nos gêneros convencionais da MPB, como no festival da Record, o FIC privilegiava a forma de “canção”, acima de qualquer gênero étnico mais destacado, que se aproximava das baladas românticas da linguagem “universal86”.

Apesar de o FIC procurar dar mais importância à fase internacional, o fato é que

o público se preocupava e se envolvia bem mais com a fase nacional, e as pretensões

iniciais da Secretaria de Turismo de da própria Rede Globo não impediram em nada que

os primeiros FICs se caracterizassem por suas diversas canções engajadas, dentre as

quais uma delas gerasse o nome do próprio livro no qual Marcos Napolitano escreveu,

acima, o relato sobre o FIC. Aliás, é importante destacar que embora tenha sofrido

contundentes críticas por seu caráter comercial e turístico, os FICs revelaram não

apenas a “marselhesa” brasileira apresentada por Geraldo Vandré, mas outras canções

também engajadas como É proibido proibir, de Caetano Veloso, e a própria canção que

vencera Vandré na finalíssima de 1968, Sabiá, de Chico Buarque, que trata (ainda que a

maioria das pessoas não se apercebesse na época) do exílio.

Mas o importante, ao falarmos das diversas críticas que dizem respeito aos FICs,

é percebermos que sejam quais forem os pontos fracos ou fortes deste festival, eles

estão em sintonia com a realidade sociocultural e política da época. O FIC de 1972 traz,

de fato, diversas revelações musicais para o cenário artístico, apesar de desde 1968

começar o esvaziamento cultural que ocorreu no Brasil em conseqüência da repressão

da ditadura implantada quatro anos antes, causando um efeito devastador na criatividade

musical brasileira, cada vez mais refém da censura.

Em contrapartida, o mercado consumidor e as produtoras musicais não pararam

de crescer desde então. Podemos então colocar que “o ano de 1968 constitui um ponto

85 MANCHETE, São Paulo está em chamas, Rio de Janeiro, 28 de out. 1967. 86 NAPOLITANO, op. Cit. p.153

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de referência para as histórias interligadas da indústria fonográfica no Brasil e da

Música Popular Brasileira na década de 197087” e neste ano, o FIC que fora realizado

talvez ilustre esse fator mais que qualquer outro.

Apesar de os festivais da TV Excelsior e o da TV Record serem os mais

pesquisados, mais analisados e, sem dúvida, os mais paradigmáticos dentro da Era dos

Festivais, que fatos festivalescos são mais relembrados pelo público do que a polêmica

que envolvia Geraldo Vandré ou o discurso do Caetano Veloso? Nos dois principais

livros lançados sobre o tema no início do ano 2000, tanto o de Solano Ribeiro quanto o

de Zuza de Mello vêm acompanhados de CDs com as coletâneas de músicas

festivalescas, no qual estão presentes estes dois fatores gravados fonograficamente. Ou

seja, o longo discurso de Caetano que começa com a frase “mas é isso que é a juventude

que diz que quer tomar o poder?” e o breve lamento de Geraldo Vandré que, ao ser

batido pela música Sabiá, de Chico, finaliza “a vida não se resume em festivais”.

Embora tenham deixado a canção mais cantada pelos movimentos de esquerda,

talvez os FICs não tenham sido os que deixaram mais canções na mentalidade popular,

mas sem dúvida deixaram alguns dos momentos mais polêmicos. E são essas polêmicas

que nos interessam ser analisadas, afinal, os conflitos constituem o motor da sociedade.

Nos primeiros festivais os cantores se contentavam com pequenos conjuntos, ou se limitavam a aceitar os arranjos do maestro da emissora. Aumentando a competição, passaram a procurar “cobras”, e isso deu início a uma verdadeira corrida aos arranjadores. Esse ano [1968], não contente com canções bem arranjadas e bem interpretadas, os compositores estão recorrendo à cenografia [...] Agora, Caetano leva as coisas às últimas consequências, montando uma verdadeira “Ópera tropicalista” em “É proibido proibir”88.

Tendo em conta a importância dos FICs no âmbito geral dos festivais,

passaremos a analisar pontualmente o Festivais Internacionais da Canção ao qual nos

propomos desde o início, ou seja, o VII FIC, apresentado em 1972.

87 MORELLI, R. op. Cit. p.47 88 VEJA, Um festival de protestos, n.03, 25 set. 1968.

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3.1. NOVAMENTE ELE CHEGOU COM INSPIRAÇÃO89: O VIII FIC

O ano de 1972 trazia em seu âmago uma série de elementos interessantes. O

Brasil era o primeiro país tricampeão da Copa do Mundo e estava na segunda edição de

seu campeonato nacional; éramos finalmente o país do futebol e tínhamos o rei desse

esporte: Pelé. Enquanto isso, Emerson Fittipaldi era um astro da Fórmula 1 e era

realizada a primeira olimpíada na Alemanha depois do nazismo, embora com o trágico

fato da explosão do avião contendo a delegação israelense. Na geopolítica internacional,

a guerra do Vietnã ainda estava nas mídias; a China Comunista era uma atração

incógnita e a Rússia era uma Curiosidade. No universo musical, nossos principais

artistas estavam exilados e, dentro do aspecto internacional, nada menos que o final da

maior banda da história da música: The Beatles. Em nossa política interna, o cargo

máximo do executivo brasileiro era exercido por Garrastazu Médice, maior

representante da chamada “Linha Dura”. 1972 foi um ano interessante e cheio de

mudanças.

Aliás, já sabemos que o júri do VIII Festival Internacional da Cação da Rede

Globo (FIC) mudou durante o festival, tema que falaremos logo em breve. Mas não foi

apenas isso que mudou. O polêmico e mal quisto Augusto Marzagão foi colocado para

escanteio, após tanto ser criticado e angariado a antipatia do meio cultural e em seu

lugar foi contratado “O Homem-Festival” Solano Ribeiro. Marzagão era extremamente

mal quisto no meio musical e alguns artistas dedicavam grande parte da sua energia a

criticá-lo, como no caso de Torquato Neto. “Vejam só: o Festival Universitário, da

Tupi, foi muito bem organizado. Sobrou organização. No do Marzagão, sobra apenas

molecagem.90”.

De fato, a escolha por Solano Ribeiro em 1972 deveu-se principalmente ao bom

relacionamento que este tinha com os artistas, do contrário de Marzagão, que podemos

ver claramente nas palavras de Dorival Caimi o que os cantores pensavam sobre este

produtor musical: “O FIC é um verdadeiro embuste, onde prevalece apenas o interesse

de Marzagão, o comerciante. Marzagão é proprietário da Editora Cane e, para ganhar o

89 Trecho da canção Fio Maravilha, de Jorge Bem Jor e interpretada por Marial Alcinda no VIII Fic, chegando na finalíssima nacional. 90 Aem autor, Gente famosa conta porquê não canta no FIC, Brasília: rev. Fatos&Fotos, 5 nov. 1970, p.12.

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Festival, o cantor tem que estar bem com a editora. Meu filho Dori chegou a desistir de

participar do Festival, devolvendo até os ingressos e as gredenciais91”.

Claro que, apesar de críticas, grandes nomes da música brasileira continuaram a

participar dos FICs na década de 1970. Embora os Festivais fossem um risco muito alto

para artistas já consagrados em função das críticas e das vaias (essas não mudaram até o

final da Era dos Festivais), nomes continuavam a ser revelados a cada edição de cada

Festival da Globo. Talvez isso fique claro nas empolgadas manchetes da revista

Manchete, que tem títulos de efeito como “O festival atesta toda a riqueza da música

popular mundial. Cada grande nome traz, na prática, um estilo e uma mensagem

diferentes92”.

Voltando ao quesito mudanças, mudaria também o troféu. O famoso galo de

ouro, desenhado por Ziraldo e símbolo do FIC, também foi substituído por um

galináceo mais estilizado e moderno que acompanharia o ritmo da TV colorida. Outra

mudança seria a inserção da própria cor em um festival. Tudo isto para tentar dar vida

aos festivais musicais na televisão, que agonizava diante do público.

Já durante o III FIC, em 1968, Juvenal Portella, no Caderno B do Jornal do

Brasil, apontava que não havia razão na continuidade dos festivais televisivos e que

deste FIC nada ficaria na lembrança dos brasileiros:

Nenhum proveito para a música brasileira (...) tem se conseguido através de tais realizações nos últimos tempo. O investimento que se faz neste festival, que terminou, só pode ter resultado ou na popularidade de quem o promoveu ou na compensação destes gastos quando que na verdade os objetivos tinham que precipuamente ser outros. Mas da maneira como é estruturado, o festival comercial tende a desaparecer93.

Talvez por isso Solano Ribeiro estivesse na Alemanha produzindo e aprendendo

sobre as produções internacionais e sobre o pragmatismo europeu. Foi, entretanto,

chamado em 1972 por Boni para dar um novo suspiro aos eventos festivalescos no

Brasil e atendeu prontamente ao chamado.

Solano Ribeiro organizou a fase nacional em duas eliminatórias, como já era

feito anteriormente no FIC. Nos dias 16 e 17 de setembro, 30 canções se apresentariam,

sendo 15 em casa um dos dias. No dia 30 de setembro, duas entre 12 músicas seriam

91 Id. Ibid. p.13 92 GHIVELDER, Zevi, O que dizem os astros da canção, Rio de Janeiro: rev. Manchete, nov. 1970, p.23. 93 PORTELLA, J. Festival em ritmo morno, Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 3ª feriaCad. B, P.2, 02/10/1968.

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escolhidas para representar o país junto à fase nacional que, em ritmo de mudanças,

contaria com menos países, não havendo mais participação de países com pouca

tradição musical, embora seja discutível o que signifique isso. As duas canções

brasileiras iam direto para as finais junto à outras 10 canções internacionais no dia 1º de

outubro. Entre os internacionais estavam nomes de peso como Astor Piazzolla.

Após o encerramento das inscrições em 30 de junho, foi montado o grupo para

destacar 30 músicas entre as 1.912 inscritas e, seguindo o sistema instituído por Solano

na Excelsior e Record, sem que os autores fossem identificados pelos cinco especialistas

encarregados da tarefa, todos de sua absoluta confiança: Roberto Freire, Décio

Pignatari, Julio Medaglia, Sérgio Cabral e César Camargo Mariano. Não havia mais

editora ligada ao FIC, os compositores poderiam editar suas músicas onde bem

quisessem. Solano não prometia grandes astros, mas sim novos nomes para uma

renovação na música brasileira dos próximos anos. Na sua opinião, se aparecesse uma

nova geração de grandes compositores, o FIC estava salvo94.

E podemos dizer que foi o que de fato aconteceu. Ninguém menos que Raul

Seixas surge deste festival e outros cantores como Maria Alcinda e Sérgio Sampaio

(recém “ressuscitado” por Zeca Baleiro) são frutos deste festival. Também Fagner

despontou a partir daí com um visual de guerrilheiro e já apadrinhado por diversos

cantores de renome. Das revelações ainda destacamos Belchior, Ednardo, Oswaldo

Montenegro e Alceu Valença, que fizeram uma carreira de grande renome a partir de

então. Nomes como Jorge Bem Jor e Mutantes ainda compõem o quadro de artistas que

enriqueceram esta edição do FIC.

Com a implantação de cores, os censores tinham que ficar de plantão. Cantoras

com decotes eram um perigo e a moda que vinha do primeiro mundo era um atentado ao

pudor, principalmente se transmitido a cores. Tendo que se deparar com assuntos como

estes, o mais importante era o que estava por vir. E assim, um dia antes da primeira

eliminatória, o júri do VII FIC finalmente foi anunciado: Mário Luís Barbato (diretor de

programação da Rádio Globo), Rogério Duprat (maestro identificado com o

tropicalismo), Décio Pignatari (poeta e professor) e Roberto Freire eram alguns dos

nomes mais fortes a participarem deste júri. Compunham ainda a mesa julgadora Sérgio

Cabral, Alberto de Carvalho, Guilherme Araújo, os jornalistas Big Boy e Walter Silva.

A presidente do júri era ninguém menos que Nara Leão.

94 MELLO, Z.H. A Era dos Festivais: uma parábola, São Paulo: 34, 2003, p. 414.

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Em um palco extremamente colorido (rosa, lilás, amarelo, verde e azul) que

continha ainda as cores de bandeiras dos países participantes, estavam quatro

apresentadores. Os homens, Murilo Néri e José Augusto, vertiam smokings azul e

vermelho, enquanto as mulheres, Maria Cláudia e Arlete Sales, usavam as mesmas

cores em seus vestidos altamente decotados para dar um tom o mais colorido possível

para o primeiro e único FIC colorido. Além do Brasil, Panamá, Colômbia, Venezuela,

Porto Rico e México acompanharam os decotes e cores que ficaram expostos de

maneira extravagante, pese os anseios da censura.

Ao final do primeiro dia seis canções se classificaram: Serearei (de Hermeto

Paschoal); Nó na Cana (Ari do Cavaco e César Augusto); Eu sou eu Nicurí é o Diabo

(Raul Seixas); Cabeça (Walter Franco); Diálogo (Baden Powell e Paulo César

Pinheiro); e Fio Maravilha, de Jorge Bem Jor cantado por Maria Alcinda.

Na segunda eliminatória, no dia seguinte, o júri classificaria mais sete canções.

Embora o proposto eram de seis classificadas por eliminatória, o empate entre duas

canções acabaram por incluir ambas e, aproveitando a deixa, o júri acrescentou, a

pedido de Nara Leão, a melodia Eu quero e botar meu bloco na rua, de Sérgio Sampaio.

As classificadas da segunda noite foram: “Let me sing, let me sing”, de Raul Seixas;

“Flor lilás”, de Luli; “A volta do ponteio”, de Roberto da Silva e Roberto dos Santos

com os Originais do Samba; a polêmica “Viva a Zapátria”, de Sirlan e Murilo, “Mande

um abraço pra velha”, dOs Mutantes; “Carangola”, de Fototi e Fauzi Arapi e

“Liberdade, liberdade”, de Oscar Torales. Na final, seriam 14 concorrentes, disputando,

dali a duas semanas, a chance de representar o Brasil na grande final. Gal Costa e Alceu

Valença (este acompanhado de Jackson do Pandeiro) ficaram de fora das finais.

Se a tônica de 1972 era de mudanças, o regulamento do VII FIC mudara mais

uma vez durante as apresentações e os agora 14 países concorrente poderiam apresentar

cada um duas músicas. De cada eliminatória internacional sairiam cinco canções para

concorrer com as duas melodias brasileiras selecionadas.

Mas o intervalo entre o dia 17 de setembro e o dia 30 do mesmo mês era

suficiente para as coisas começarem a sair errado. “Fio Maravilha”, de Bem Jor e Maria

Alcinda (preteridas do gosto popular) e “Cabeça” de Walter Franco dividiam o júri,

apesar desta última ter sido a mais vaiada do festival. Nove dos jurados estavam com a

última canção, à contragosto do próprio Solano Ribeiro, que considerava Maria Alcinda

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o maior nome feminino da música popular brasileira depois de Carmem Miranda e Elis

Regina95.

Enquanto estas divisões não passavam de especulações, um fato ocorre e é

fundamental para o fim do ciclo dos festivais, que, até o momento, estava conseguindo

reerguer o seu conceito. Porém, os militares vão direto a Solano Ribeiro e o obrigam a

afastar Nara Leão da presidência do júri. Relutante, Solano substituiu todo o júri

brasileiro por um júri composto apenas de estrangeiros.

O Zé Octavio passou toda aquela noite tentando me convencer a permanecer na direção do festival. Era uma decisão complicada, pois eu já estava prevendo o que iria acontecer. Tal foi a dramaticidade do apelo feito pelo Zé que acabei concordando em ficar. Com uma condição, porém: a Nara sairia, mas com ela todo o júri da fase nacional, que seria substituído pelos artistas, jornalistas e convidados estrangeiros que já estavam no Rio. A Globo poderia justificar da seguinte maneira: como as músicas brasileiras classificadas iriam concorrer com as estrangeiras, por que não serem julgadas por um júri internacional?96

Walter Silva, Roberto Freire, Décio Pignatari e Rpgério Duprat “interpretaram a

decisão como uma represália às intenções manifestadas abertamente de elegerem

“Cabeça”. E tinham ele pelo menos um forte motivo para isso: Maria Alcinda estava na

mira da TV Globo e dizia-se que já estava contratada antes do FIC para seis

apresentações”97.

Com um júri de gringos, as guitarras elétricas de Raul Seixas e Os mutantes

foram mais facilmente assimiladas, porém, as polêmicas do VII FIC ainda estavam

longe de terminar: Alaíde não queria apresentar novamente a canção Serearei, e sim

contar o que se passava nos bastidores do FIC. Quando começou a falar, seu microfone

foi cortado, com o público dando uma sonora vaia por não entender o que se passava.

Alaíde se enfureceu, jogou o microfone no chão, saiu do palco e foi para o camarim

mudar de roupa. Deu-se por encerrada a apresentação desta noite.

Em outro lugar do Maracanãzinho, Roberto Freire era espancado quando tentava

entrar para ler no palco o manifesto que havia redigido contra a mudança do júri no qual

dizia:

95 MELLO, Z.H. A Era dos Festivais: uma parábola, São Paulo: 34, 2003, p. 415. 96 RIBEIRO, S. Prepare Seu Coração: a história dos grandes festivais, São Paulo: Geração Editorial, 2002, p. 172. 97 MELLO, Z.H. A Era dos Festivais: uma parábola, São Paulo: 34, 2003, p. 422.

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Os integrantes do júri da fase nacional do VII Festival Internacional da Canção, cumprindo a sua finalidade de apontar as duas composições musicais que representarão o Brasil na final internacional, decidiram indicar os seguintes concorrentes: ‘Cabeça’ de Walter Franco, e ‘Nó na Cana’, de Ari do Cavaco e César Augusto. Ao tempo que divulgam esta decisão, os membros do júri manifestam sua estranheza ante a decisão do festival, destituindo-os sem qualquer explicação. Consideram ainda a sua destituição um ato arbitrário e altamente suspeito98.

Após muito tumulto provocado por Nara Leão e Roberto Freire, Murilo Neri leu

para todo o Brasil este manifesto assinado por quase todos os membros do júri

destituído. Claro que foram excluídos as partes que falavam mal da Rede Globo.

Entretanto de nada adiantou. O novo júri elegeu “Diálogo” e “Fio Maravilha”,

consagrando cantores já consagrados (Baden e Jorge Ben) e ignorando as novas

promessas.

Para termos um contraponto do que aconteceu, vale a pena recorrer ao próprio

Solano Ribeiro:

Os acontecimentos, no entanto, tomaram outro rumo. Em uma leitura equivocada do que ocorria, os que defendiam por gosto e os que tinham interesse direto na música “Cabeça”, imaginaram que a destituição do júri era uma manobra para evitar a vitória daquele trabalho vanguardista, em favor da Maria Alcina, com “Fio Maravilha”, do Jorge Bem. Foi uma tremenda confusão. Manifesto escritos. Crônicas apaixonadas. Fofocas de todo o tipo. Escândalo. E, para meu desespero, foi desviado o foco da verdadeira razão do afastamento de Nara e consequentemente de todo o júri. Na noite da final nacional, o escritor, jornalista e psicanalista Roberto Freire, um dos jurados destituídos, bastante etilicoemocionado, tentou subir no palco do Maracanãzinho para ler um manifesto que denunciava as “manobras políticas de bastidores, visando prejudicar um trabalho que contrariava os interesses da Globo” e coisas do gênero. Para seu azar, o Roberto tentou ler o manifesto em um dos intervalos comerciais, quando os microfones estavam desligados, e evidentemente a segurança o retirou de lá sem muitas gentilezas99.

Seja pela visão mais objetiva de Zuza Homem de Mello ou seja pela visão mais

otimistas –por razões óbvias (a proteção de seu próprio trabalho)– de Solano Ribeiro, o

fato é que os festivais e suas polêmicas estavam esgotados na única emissora que ainda

os realizava: a Globo. O próprio Solano Ribeiro afirmou que os festivais acabaram

“porque a Rede Globo ficou cansada de resolver problemas políticos. A Globo se

desinteressou por festival. Preferiu parar e parou100”. Isto mostra duas coisas: a primeira

98 MELLO, Z.H. A Era dos Festivais: uma parábola, São Paulo: 34, 2003, p. 427. 99 RIBEIRO, S. Prepare Seu Coração: a história dos grandes festivais, São Paulo: Geração Editorial, 2002, p. 172. 100 MELLO, Z.H. A Era dos Festivais: uma parábola, São Paulo: 34, 2003, p. 433.

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que os festivais poderiam continuar acontecendo, caso a Globo quisesse, e a segunda,

mais óbvia, que a Globo se desgastou com os festivais ao mesmo tempo em que

desgastou, com suas posturas político-morais, os festivais em si.

Porém, por tudo o que analisamos, voltamos a defender o quanto os festivais da

Globo –apesar de esquecido nas pesquisas acadêmicas– não apenas tem os elementos

para se analisar o país da época, mas também foi uma reveladora de músicas e talentos

tanto quanto qualquer outro festival televisivo. Passamos a falar mais destas conclusões

na parte final de nosso trabalho.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Poetas, seresteiros, namorados, correi É chegada a hora de escrever e cantar Talvez as derradeiras noites de luar Momento histórico Simples resultado Do desenvolvimento da ciência viva Afirmação do homem Normal, gradativa Sobre o universo natural Sei lá que mais101

As considerações a que chegamos é que embora seja de alguma maneira

negligenciado pela produção bibliográfica e acadêmica, os Festivais Internacionais da

Canção da rede Globo de Televisão, os FICs, trazem em si todos os elementos positivos

dos grandes festivais de música popular brasileira da Excelsior e da Record –ou seja,

revelação de artistas com qualidade nas composições e produções –sem deixar de ter, da

mesma forma elementos para uma detida análise acadêmica, como as securas e as

contradições de uma sociedade inserida no contexto mais geral da industrialização e do

capitalismo.

Porém isso só não seria motivo para qualificar um diferencial dos FICs no

tocante ao que estimularia o desenvolvimento de mais pesquisas, desta formas

identificamos que o discurso tecnológico da Globo e o iminente desenvolvimento de um

Padrão Globo de Produções –aliado ao fato de que a rede global de TV foi a última a

desistir de produzir festivais musicais televisivos –trazem uma maneira distinta de

analisar tais festivais internacionais com relação aos idealizados por outras redes.

O fato de o FIC de 1972 ter sido o único em formato colorido a ser realizado

durante a “Era dos Festivais” também é em si um forte elemento de análise. E os

bastidores da destituição do júri presidido por Nara Leão e a polêmica quanto ao

espancamento de Roberto Freire são indicativos dos períodos mais difíceis de um

regime que vivia a sua fase mais rígida.

101 Trecho da canção Lunik, de Gilberto Gil e Torquato Neto

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